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Revista Exitus

versão On-line ISSN 2237-9460

Rev. Exitus vol.9 no.5 Santarém  2019  Epub 11-Jun-2020

https://doi.org/10.24065/2237-9460.2019v9n5id1111 

Artigos

TRAJETÓRIAS DE SUCESSO ESCOLAR: desafios e perspectivas na escola do campo

TRAJECRY OF SCHOOL SUCCESS: challenges and perspectives in the rural school

TRAJETORÍA DE ÉXITO ESCOLAR: desafíos y perspectivas en la escuela del campo

Francisco de Assis Marinho Morais1 
http://orcid.org/0000-0002-0365-1429

Simone Cabral Marinho dos Santos2 
http://orcid.org/0000-0001-8338-8482

1 Mestre em ensino pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino (PPGE), da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/Campus Pau dos Ferros. Professor da rede de ensino estadual e municipal de Apodi-RN. E-mail: cizinhomparn@hotmail.com

2 Doutora em Ciências Sociais, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professora do departamento de Educação e dos Programa de Pós-Graduação em Ensino (PPGE) e Planejamento e Dinâmicas Territoriais no Semiárido (PLANDITES), da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/Campus Pau dos Ferros. Pau dos Ferros-RN. E-mail: simonecabral@uern.br


RESUMO

Este artigo discute trajetórias de sucesso escolar, por meio de prolongamento dos estudos de pessoas oriundas de escolas do campo. Trata-se de trajetórias escolares permeadas de desafios e enfrentamentos das adversidades da vida social do campo para chegar aos níveis prolongados de estudos, especificamente, mestrado e doutorado (Stricto Sensu). Abordamos os aspectos concernentes à vida no campo e às escolas onde estudaram os sujeitos, destacando a forma de ensino, as experiências de aprendizagem, as relações sociais em sala de aula, em meio aos desafios, as perspectivas e as motivações intrínsecas e extrínsecas para continuar os estudos no ensino superior.

Palavras-chave: Escola do campo; Trajetória escolar; Prolongamento dos estudos

ABSTRACT

This article discusses trajectories of school success, through the extension of the studies of people coming from rural schools. These are school trajectories permeated with challenges and confrontations of the social life adversities from countryside to reach the prolonged levels of studies, specifically master’s and doctoral degrees (Stricto Sensu). We approach aspects related to life in the countryside and to the schools where the subjects had studied, highlighting the teaching form, the learning experiences, the social relations in the classroom, amid the challenges, the perspectives and the intrinsic and extrinsic motivations to continue the studies in higher education.

Keywords: Rural school; School trajectory; Extension of studies

RESUMEN

Este artículo discute trayectorias de éxito escolar, a través de la extensión de los estudios de personas provenientes de escuelas rurales. Son percepciones de los estudiantes sobre los desafíos y enfrentamientos de las adversidades de la vida social del campo para alcanzar los niveles prolongados de estudios, específicamente maestrados y doctorados (Stricto Sensu). Se abordan aspectos relacionados a la vida en el campo ya las escuelas donde los sujetos fueron estudiados, destacando la forma de enseñar, las experiencias de aprendizaje, las relaciones sociales en el aula, los desafíos, las perspectivas y las motivaciones intrínsecas y extrínsecas para continuar estudios en el campo enseñanza superior.

Palabras clave: Escuela de Campo; Trayectoria escolar; Prolongación de los estúdios

INTRODUÇÃO

Historicamente, no contexto educacional brasileiro, as políticas educacionais voltadas às escolas do campo têm sido relegadas ao esquecimento dos poderes públicos que se abstêm de sua responsabilidade, no tocante ao tratamento diferenciado aos sujeitos de direitos desse espaço: os sujeitos do campo. Não obstante, esse esquecimento é também resultado da invisibilidade da escola do campo, sobretudo, pelas políticas oriundas do poder público. Em contraposição a esse contexto de invisibilidade, a escola do campo tem resistido ao seu desaparecimento, em meio a uma história de lutas e resistências para inseri-la na dinâmica social, econômica e política por uma escola pública de qualidade.

Assim, tem-se constatado na agenda dos movimentos sociais do campo, a busca constante pela superação de dificuldades estruturais, da luta por formação dos professores que atuam no ensino do campo e pela valorização da carreira docente, para nomear alguns desafios. Podemos averiguar esses fatos tanto nos teóricos estudados como nas vozes ecoadas de entrevistados ao longo do trabalho dissertativo intitulado “Trajetórias de Sucesso Escolar de Pessoas Oriundas de Escolas do Campo”, defendido no Programa de Pós-Graduação em Ensino (PPGE), do Campus Avançado Profa. Maria Elisa de Albuquerque Maia (CAMEAM), da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), em 2017. Nessa pesquisa, demos visibilidade às trajetórias escolares prolongadas e bem-sucedidas de alunos que estudaram no ensino multisseriado, em escolas do campo. Alunos que romperam com as dificuldades econômicas, políticos-sociais e de acesso às universidades, obtendo sucesso ao longo da formação escolar, acadêmica e profissional.

Para a mobilização dos sujeitos da pesquisa, trabalhamos com entrevistas semiestruturadas, através do contato pessoal direto, quanto uma chamada pública via redes sociais e e-mail, no período de 02 a 30 de julho de 2016, elencando critérios para chamamento e sensibilização dos participantes a se predisporem à pesquisa. Na constituição desses sujeitos, o(a) entrevistado(a) deveria atender aos seguintes critérios: a) Reconhecer-se como uma pessoa que tem sucesso escolar; b) Ter realizado os estudos, pelo menos nas séries iniciais do ensino fundamental, em escolas do campo; c) Ter cursado ou estar cursando pós-graduação Stricto Sensu (Mestrado e/ou Doutorado); d) Ter identificação com o campo onde nasceu e construiu suas raízes históricas.

O tratamento dos dados coletados foi feito por meio de Análise de Conteúdo (AC) proposta por Bardin (1994), sob o viés das categorias de análise: trajetória escolar, origem social e escola do campo. Com os perfis dos sujeitos traçados, buscamos, especificamente, estudantes advindos de escolas do campo, em sua maioria, oriundos de classe multisseriada ou muiltiano. No total, tivemos dez entrevistados, seis homens e quatro mulheres, sendo sete advindos por conhecimento da chamada via redes sociais e e-mail e três sensibilizados pessoalmente. Desses 10, dois com doutorado completo na área de Letras e Ciências Sociais, três com o doutorado em andamento nas áreas de Filosofia, Economia e Agronomia; e ainda, dois com mestrado completo, abrangendo as áreas de Letras e Educação e três cursando o mestrado nas áreas de Química, Agronomia e Economia. Quanto à graduação os sujeitos da pesquisa têm nível superior em Química (02), Letras - Língua Portuguesa (03), Pedagogia (01), Agronomia (01), Ciências Econômicas (01), Ciências Sociais (01) e Filosofia (01). Dos entrevistados, 07 deles trabalham como professores, sendo 05 no Ensino Superior e 02 na Educação Básica. Os demais são bolsistas que, posteriormente, pretendem ingressar na carreira profissional de professor.

Os sujeitos da pesquisa são chamados por pseudônimos, cuja escolha foi uma opção do entrevistado, tendo como referência alguém que marcou sua trajetória enquanto sujeito histórico, seja em âmbito familiar, seja nas instituições escolares pelas quais passaram. Assim os chamamos: Luiz, José, Dezinha, Totonho, Neta, Manoel, Ivan, Edinha, Chico e Maria.

Em se tratando da origem regional, são oriundos das seguintes comunidades rurais e respectivos municípios: Comunidades Reforma, Quiemadas, Carnaúba Seca e Melancias (Apodi-RN); Pombinho (Diamante -PB), Comunidades Fortuna e São Geraldo Fortuna (Caraúbas-RN). São sujeitos advindos do campo, filhos de famílias numerosas, com poucas condições econômicas de sobrevivência. Os pais, em sua maioria, têm baixa escolaridade, além de sobreviverem da agricultura familiar em situações complexas para o sustento da família, principalmente, quando os filhos (entrevistados) frequentaram a escola e a universidade.

Neste trabalho, abordamos os aspectos concernentes ao tempo da escola, com intuito de entender o contexto de desafios e possibilidades pelos quais construíam suas trajetórias de sucesso escolar. A relação com o campo, a escola onde estudaram, as experiências de ensino e de aprendizagem, as relações sociais em sala de aula, foram aspectos destacados em meio aos desafios, às perspectivas e às motivações intrínsecas e extrínsecas para continuar os estudos no Ensino Superior (graduação e pós-graduação). Esse trabalho de pesquisa dá visibilidade aos sujeitos que se reconhecem como pessoas que obtiveram sucesso escolar, tendo realizado seus estudos iniciais em escolas do campo.

CONCEITUANDO TRAJETÓRIA E ORIGEM SOCIAL

Em seus escritos, Bourdieu (1998) defende que a construção de uma trajetória está associada às condições concretas de existência a ela subjacente. Para Bourdieu (1998, p. 189), a trajetória não deve ser entendida como “série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações”, ou seja, as trajetórias estão em permanente mudança. A vida é uma teia de ramificações que ressignifica o trajeto percorrido pelo sujeito, ofercendo sentido à trajetória por ele trilhada. Bourdieu constrói esse conceito sob as bases da crítica ao método biográfico, alertando os sociólogos de que a teoria narrativa se funda em uma noção de senso comum de trajetórias de vida, por repousar numa lógica gerada pela criação artificial de sentidos e significados.

Interessa-nos, neste momento, a noção de trajetória de vida, em Bourdieu (1998, p. 190), constituída por um conjunto de relações objetivas que une o agente considerado “ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis”. Quando nos aproximamos das falas dos entrevistados, percebemos que eles são confrontados numa realidade objetiva e socialmente instituída, cujas trajetórias relacionam-se às condições concretas de existência a ela subjacente.

Assim, tecer uma trajetória requer atenção, memorização e, acima de tudo, reflexão e um pensamento fidedigno, resgatando detalhes, anseios, angústias, motivações, dificuldades, percalços, alegrias, tristezas, entre outros aspectos a serem descritos, evitando assim, criações fantásticas, relatos fictícios ou aleatórios, que não trazem sentido algum, tampouco credibilidade à pesquisa.

Em meados de 1950, Richard Hoggart (1975), preocupava-se em mostrar os efeitos perversos de uma escolarização longa para os filhos dos trabalhadores ingleses, em que o resultado disso era a perda da identidade cultural operária. Em contraposição aos estudos embasados na Teoria da Reprodução, que viam a escola como aparelho ideológico do estado e até mesmo da reprodução das desigualdades sociais, perpetuadas na sociedade, surgem em fins de 1980, os estudiosos que buscam pesquisar acerca das trajetórias escolares de sujeitos oriundos das camadas populares.

Essas pesquisas discutem as trajetórias escolares que surgem naquele momento de fim dos paradigmas e da fragmentação do objeto de es tudo da Sociologia da Educação. A partir de então, esses estudos dialogam com outros campos do saber como as questões antropológicas, as etnográficas, as históricas e ainda com a psicologia social. As pesquisas ganharam consistência, principalmente na França, sob o comando de Jean-Pierre Terrail (1990), que estudou a trajetória de filhos de operários que passaram por uma longa escolaridade, analisando os efeitos dessa escolaridade em suas vidas e como foram possíveis essas trajetórias de estudos prolongados, já que estes faziam parte de famílias operárias.

Aos poucos, esses conhecimentos de origem popular são substituídos por paradigmas de sociólogos que destacam conceitos aplicados por Nogueira (2004), como “Senso do jogo”, em que os sujeitos aplicam um conhecimento prático sobre como lidar com os constrangimentos e oportunidades associados à sua posição social. Para Nogueira (2004), na trajetória, nada está predeterminado, preestabelecido, mas construído de acordo com as suas atitudes, reações, disposições frente às oportunidades suscitadas. Para Nogueira (2004), a noção de trajetória escolar diz respeito, então, aos percursos diferenciados que os indivíduos ou grupos de indivíduos realizam no interior dos sistemas de ensino, ou seja, “quando se fala de trajetórias escolares, o ‘ponto’ em questão é o aluno e o espaço de referência é o sistema de ensino” (NOGUEIRA, 2004, p. 59).

Mas, a discussão de trajetória escolar não é nova, sempre se manteve presente nos estudos que analisam, de forma diacrônica, as relações entre origem social e participação no sistema escolar, em que as discussões acontecem de maneira entrelaçada. Em diferentes períodos históricos nas pesquisas sociológicas, a utilização do termo se deu de forma diferenciada. Para Bourdieu (2005), só obtém sucesso, êxito na vida estudantil, aquelas pessoas advindas de famílias que tivessem certo “capital cultural”, condições econômicas e sociais para seguir adiante. Se os sujeitos se inserissem nessa condição, o êxito seria garantido; do contrário, as famílias de classe social baixa, ou com pouco capital cultural, tenderiam para o fracasso escolar e abandono dos estudos. Lahire (1997) estabelece um paradoxo, permanecendo um desafio para a sociologia elucidar alguns casos nas trajetórias escolares dos estudantes, que ele denomina de “improbabilidades estatísticas”. O autor se questiona quanto aos fracassos dos alunos advindos de famílias com um enorme capital cultural e escolar, em boas condições econômicas, mas apresentam problemas quanto ao rendimento escolar. Enquanto famílias que passam por situações difíceis em manter seus filhos nas escolas, conseguem superar as condições de desvantagem social, de maneira a obter bons resultados nos seus estudos.

Seguindo essa narrativa, Charlot (2002) coloca que a posição social do sujeito não é determinante no seu desempenho escolar. O autor compreende a relação entre a origem social e o fato do aluno ser bem sucedido ou não na escola, tendo em vista a desigualdade social frente a ela. Ao reconhecer a desigualdade social, é necessário entender como ela se constrói e, assim, lutar contra ela. Assim, o sujeito é capaz de subverter a lógica dominante quando enxerga nos estudos, o meio para superar o contexto de dificuldades. É na relação com a escola, mas também com o saber, que se constroem as histórias dos chamados fracasso e êxito escolar.

Assim, o conceito de trajetória está estreitamente ligado ao conceito de origem social, cujas histórias tanto de sucesso quanto de fracasso, dependem, mas não são determinantes, da origem social de cada indivíduo. A promessa de um futuro melhor vincula-se às trajetórias de busca pela superação e pelo sucesso das pessoas ao longo da vida, em que a promessa de superar as condições sociais desiguais abre uma possibilidade de futuro, sobre o qual os sujeitos pesquisados fazem projetos e planos de mudança para sua própria existência. De fato, é a promessa de “mudar de vida” que tem mobilizado sujeitos de classe popular a buscarem o sucesso escolar (BARBOSA, 2016).

Estudos recentes de caráter exploratório, realizados por Santos e Xypas (2014), à luz da “teoria do reconhecimento” de Axel Honneth, concluíram que esta teoria pode explicar o caso de sujeitos que têm sucesso escolar, apesar das condições de pobreza e analfabetismo dos pais. Esses alunos encontraram formas de reconhecimento social fora ou dentro da família, particularmente, nas formas de amor e de solidariedade, entre outros resultados. Aquí repousa a ideia de que as trajetórias de sucesso escolar, dos sujeitos ultrapassam os determinismos da origem social, para alcançar reconhecimento social.

Nessa pesquisa, os resultados positivos dos esforços realizados pelos sujeitos entrevistados em favor do prolongamento dos estudos, resultam de mecanismos de agregação das escolhas individuais com um quadro de sistemas de interação e oportunidades concretas que os condicionam e orientam a seguir com os estudos. O sucesso escolar é resultante da aposta de retorno provável da escola, enquanto alternativa à superação das desigualdades, que ganha força pela expressão “vencer na vida”.

A ESCOLA DO CAMPO: por dentro da realidade investigada

Os sujeitos entrevistados têm sua origem social em famílias advindas do campo, numerosas, com poucas condições econômicas de sobrevivência, de pais, em sua maioria, com baixa escolaridade. Identificamos pais analfabetos, outros com Ensino Fundamental completo ou incompleto. Apenas dois entrevistados informaram que a mãe possui magistério, cursou o Logos II1 para a conclusão do 2º grau (atualmente, Ensino Médio); outro, a mãe tem formação em nível superior com o curso de Pedagogia.

Para os entrevistados, a baixa escolarização dos seus pais tem uma relação direta com a falta de condições financeiras para ter acesso e permanecer na escola. A esse fator, segundo os entrevistados, soma-se a falta de interesse e/ou predomínio da visão de que para morar no campo e trabalhar na roça, não precisava estudar. Essa concepção utilitarista marcou fortemente muitas escolas localizadas no meio rural. Para os povos do campo, cabem saberes mínimos, úteis ao trabalho com a enxada, a ordenha, o plantio, a colheita. Nesse contexto, a apropriação do “saber” permite o acesso para um desenvolvimento social, considerado como cultura de poucos:

Temos uma longa história que sempre defendeu que os saberes que a escola rural deve transmitir devem ser poucos e úteis para mexer com a enxada, ordenhar a vaca, plantar, colher, levar para feira... Aprender apenas os conhecimentos necessários para sobreviver e até para modernizar um pouco a produção, introduzir novas tecnologias, sementes, adubos, etc. Essa visão utilitarista sempre justificou a escola rural pobre, os conteúdos primaríssimos, a escolinha das primeiras letras (ARROYO, 2004, p. 82).

Superar a visão utilitarista requer reconhecer a emergência de pensar a escola do campo vinculada aos processos culturais. Quando adentramos as questões de ensino e metodologias, presenciamos em nossas escolas do campo uma educação livresca, de currículos embasados também nas políticas advindas do ensino da cidade, sem levar em consideração a realidade dos sujeitos de direitos do campo, suas culturas, seus costumes, seus modos de viver, de produzir e de se reproduzir.

O debate que emerge, atualmente, tenta se contrapor à lógica hegemônica do ideal de escola da cidade, que não leva em consideração as especificidades do meio rural no que tange à existência de uma cultura própria da terra, da produção, do trabalho e do modo de vida rural. Nesse sentido, “quanto mais se afirma a especificadade do campo, mais se afirma a especificidade da educação e da escola do campo” (ARROYO, CALDART, MOLINA, 2004, p.13). A luta para que se efetive na prática das escolas do campo, o ensino embasado na afirmação da identidade do campo, considerando seus saberes e atendendo às realidades camponesas, têm alcançado destaque de forma mais intensa, por movimentos sociais dos quais os sujeitos do campo participam, que tomaram enquanto bandeira, em suas pautas, uma educação diferenciada para seus povos, construída e efetivada no diálogo cotidiano.

Foi a partir da Primeira Conferência Nacional “Por uma Educação Básica do Campo”, realizada em Luziânia (GO) no ano de 1998, idealizada pelos movimentos sociais do campo, principalmente, o Movimento Sem Terra (MST), que a pauta da educação do campo ganha destaque. Demarca-se o papel da educação do campo na formação e no desenvolvimento dos sujeitos sociais do campo, em oposição ao conceito de educação rural que carrega o estereótipo de atraso na vida rural, como afirma Santos (2012):

Educação do Campo ao se estabelecer em oposição à Educação Rural, associada ao estereótipo de atraso na vida rural, compreende que há uma ampliação do processo de formação humana que passa a ser construído a partir de referenciais culturais e políticos para a intervenção dos sujeitos na realidade (SANTOS, 2012, p. 146).

A decisão é por “batizar” a educação trabalhada em comunidades, assentamentos e acampamentos de trabalhadores e trabalhadoras do campo, de Educação do Campo. Segundo Fernandes, Cerioli, Caldart (2004), decide-se utilizar a expressão campo e não a mais usual, meio rural, objetivando incluir no processo da Conferência uma reflexão sobre o sentido atual do trabalho camponês e das lutas sociais e culturais dos grupos que hoje tentam garantir a sobrevivência deste trabalho. Na prática, não se dá a devida atenção às especificidades quanto ao tratamento dos currículos das escolas do campo, suas práticas de ensino, seus conteúdos trabalhados, bem como as atividades voltadas ao desenvolvimento e sustentabilidade de homens e mulheres no campo.

Assim, o trabalho com a Educação do Campo envolve uma ação política na formação dos camponeses e camponesas que residem nesse espaço de condições, de vivências e sobrevivência digna, com os direitos que lhes são inerentes. Trata-se de uma forma de trabalho movida pela resistência desses sujeitos, muitas vezes, ameaçados de serem expulsos de suas terras, mediante disputas de setores do latifúndio, por exemplo.

Nessa realidade, nossos entrevistados vivenciaram a realidade das classes multisseriadas e/ou multianos nas séries iniciais do ensino fundamental. No ensino multisseriado, recai sobre o professor a responsabilidade exclusiva que envolve o processo ensino-aprendizagem. A classe multisseriada configura-se como “um quadro pedagógico no qual o professor é o responsável pelo ensino-aprendizagem concomitantemente de séries variadas” (SILVA, 1993, p. 86). Enfrentando diversas dificuldades, como unidocência, repetência dos alunos, evasão escolar, falta de espaço físico, precariedade de acesso às escolas, tanto do aluno quanto do próprio professor, utilização de materiais padronizados por série num contexto de diferentes níveis de escolaridade, é latente a necessidade do docente se reinventar de um ensino que segue o modelo seriado e urbano, mas que, na prática, atende sozinho aos diferentes níveis e séries. Assim, enfatiza o entrevistado Luiz:

O único problema é que às vezes, é, que eu achava no caso, (pausa) quando juntava as quatro séries; aquele pessoal que era, já estava próximo a sair da quarta série e tudo mais, acho que atrapalhava um pouco o desenvolvimento da gente (Informação verbal - Luiz).

O depoimento acima reforça alguns aspectos desafiadores no ensino multisseriado como: sala com alunos de diferentes idades, dificuldades em trabalhar com alunos em fase de alfabetização e outros com níveis de sistematização dos conteúdos, alunos em estágios mais avançados de aprendizagem ditam as respostas para os que não sabem, dentre outros. O professor sofre com a angústia de organizar no tempo pedagógico, a conexão de séries diferentes e níveis de aprendizagem específicos, provenientes do modo peculiar da classe multisseriada. Sem um planejamento que atenda aos níveis de aprendizagens diversos para os alunos, a generalização e a repetição dos conteúdos eram recorrentes.

Quando eu cheguei lá na segunda série, que era junto, era uma sala lá, era primeira e segunda numa sala, terceira e quarta era em outra, quando eu cheguei à segunda série eu não queria mais, tudo que passava eu já sabia, porque eu já tinha visto isso (Informação verbal - Luiz).

Para administrar essas situações em sala de aula, os professores do ensino multianos, trabalham de forma dobrada para atender às especificidades de cada um. Tem sido uma alternativa para o professor, as atividades em grupo, trabalhos que reforcem a cooperação e a integração entre a turma. Não por acaso, o entrevistado Luiz também destacou o sentimento de coletividade e familiaridade: “o bom do multisseriado era a questão tipo, como estava envolvida as quatro séries, a gente se tornava numa família, era mais agregado, então, a gente via até os exemplos dos alunos”. (Informação verbal - Luiz). O sentimento de criação dos laços familiares destaca-se como aspecto positivo no ensino multianos em escolas do campo, em que uns colaboravam com os outros que apresentavam dificuldades. Para Rocha e Hage (2010), construir e implementar proposições, políticas e ações com os sujeitos do campo envolvidos com as classes multisseriadas e não para eles, nos parece um caminho viável e mais adequado para o estabelecimento de um ambiente agradável, organizado e atraente, para que os alunos, em meio a uma classe aportada de conhecimentos heterogêneos, se sintam capazes de aprender.

PERSPECTIVAS DE ENSINO: as formas de ensinar e aprender

De acordo com as falas dos sujeitos, o ensino nas escolas do campo era embasado em aulas expositivas e rigorosidade metódica dos professores que se utilizavam de castigos e palmatórias para punição dos alunos. Esses discursos reforçam a forma como os professores ensinavam, principalmente nas décadas de 1970 e 1980, período em que a maioria dos entrevistados estudou as quatro primeiras séries (ensino primário), tratadas atualmente como anos iniciais do Ensino Fundamental. Alguns deles destacam ter alcançado o tempo da conhecida palmatória ao relatar: “Eu cheguei ainda, vamos dizer assim, a ver cena na época da palmatória, quando o uso da palmatória, quando alguns colegas não faziam a tarefa, ou por algum outro motivo que a professora tinha o uso da palmatória”. (Informação verbal - Dezinha). Totonho também cita a palmatória como instrumento utilizado pelos professores da época para impor o uso da autoridade em sala de aula, argumentando:

(...) Era uma escola de um método bem tradicional, mesmo, eu me lembro de muito que Dona C. tinha uma palmatória, isso em 87, em 85 tinha abolido isso nera (a palmatória)? Era em 87, ela ainda conservou ainda algum ano, então a escola tinha aquele método bem tradicional, bem da autoridade né? (Informação verbal - Totonho).

A postura rígida, a imposição do ensino com o método que ameaçava, fez durante muito tempo, os alunos terem medo de se posicionar, de apresentar trabalhos, de falar em público, de desenvolver-se em outros aspectos que não fossem a aquisição de informações decoradas, da tabuada, do exercício pronto, preestabelecido. Essa forma de ensinar era reforçada pela própria disposição da sala de aula, como afirma a entrevistada Edinha: “A sala de aula era arrumada em filas, aquelas cadeiras duplas, a gente sempre sentava com uma amiga e a metodologia era aquela mesma, de copiar no quadro pra gente. Fazíamos muitas cópias no caderno” (Informação verbal - Edinha).

Nos relatos, observa-se a centralidade do professor quanto ao processo ensino-aprendizagem, em que o aluno é mero receptor das informações, considerado para muitos, depósitos de informações, pois o conhecimento não era visto sob a ótica da construção, mas, embasado na égide da transmissão e recepção. Os professores eram a autoridade principal da escola, portanto, os alunos respeitavam-lhes, prestavam obediência, rendiam-lhes homenagens, já que adotavam uma postura rígida e, na maioria das vezes autoritária, conforme ouvimos nos relatos: “Em relação às metodologias, eu lembro que eram bastante tradicionais, né? Eu lembro que minha professora primária era aquela professora que colocava medo nos alunos” (Informação verbal - Maria).

Em outro relato, vemos que essa autoridade imputada aos professores(as) dava-se com o consentimento dos pais: “O pai deixava o aluno na escola, e dizia ao professor: Olha o que você fizer tá feito! Então, a autoridade do professor era inquestionável ainda nessa época, lembro que, a gente tinha muito medo de fazer alguma coisa que desagradasse a professora” (Informação verbal - Totonho). O professor tinha a permissão dos pais para agir assim, porque era a extensão dos pais na escola, portanto, lhe era dada toda a autoridade pelos pais.

Assim, ainda que os entrevistados reforcem a autoridade inquestionável dos professores, juntamente com a rigidez de postura em sala de aula, enaltecem o processo de aprendizagem, mesmo se tratando de uma aprendizagem limitada à contagem e decodificação de signos, sem relação maior com a realidade social. Segundo a entrevistada Edinha (Informação verbal - Edinha):

(...) A minha primeira professora que foi quem me alfabetizou, ela só tinha até o quinto ano, (4ª série) como eles chamavam, num é? E ela conseguiu em seis meses fazer com que eu aprendesse a ler. Então assim, pra mim, isso é fantástico! Eu não conseguiria, se eu pegasse uma criança pra alfabetizar, eu não consigo o que ela conseguiu. E assim, era de um rigor muito ferrenho, ela ainda é viva hoje, tenho o maior carinho por ela, ela era muito rigorosa muito rígida, mas ela conseguia (Informação verbal - Edinha).

Embora com formação inexistente, os relatos eram de que as professoras conseguiam êxito na aquisição da aprendizagem da maioria dos alunos. Essa metodologia do ensino remete-nos à rigorosidade que os professores alfabetizadores da época tinham quanto ao método da decodificação de signos, seguindo os passos da unidade até a palavra: aprender primeiro as letras isoladas, em seguida as sílabas, começando das mais simples para as mais complexas. Depois, a construção de frases, para somente passar a estudar através de textos.

As práticas docentes que priorizam o sistema de escrita alfabética como um ato de codificação e decodificação são apontadas pelos entrevistados como eficazes no processo de alfabetização. E, de certo modo, o são, considerando o objetivo da alfabetização limitada à utilização de atividades que ensinam de maneira fragmentada e mecânica. Mas quando avançamos na compreensão do processo de alfabetização, considerando a heterogeneidade presente em sala de aula, seja pela faixa etária, seja pelos níveis de aprendizagem diferentes, como é particular numa classe multisseriada, observamos limites quanto a uma reflexão sobre o processo interativo, aberto e crítico da realidade. Na visão de Paulo Freire (2011), se compreendemos o ato de ler de modo amplo, veremos que a leitura se caracteriza pelas relações entre o indivíduo e o mundo que o cerca, num processo interativo em que o indivíduo tem oportunidade de apresentar sua leitura de mundo em diálogo com a leitura da palavra: “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele” (FREIRE, 2011, pp. 19-20). A compreensão do texto passa pela relação com seu contexto, em que o desafio é compreender e interpretar a palavra escrita a partir do contexto de quem fala, lê, escreve e, portanto, entre leitura do mundo e leitura da palavra.

Assim, está em jogo o processo de aprendizagem e sua relação direta com a forma de avaliar, que também se enquadrava nos moldes tradicionais do ensino, primando pelos aspectos quantitativos e ignorando os aspectos qualitativos, como abordamos e conhecemos na atualidade: avaliação formativa, somativa, diagnóstica, entre outras. Vejamos o que nos retratam os entrevistados, no que tange às avaliações: “Aí tinha esses exercícios, famosos questionários, que era forma de avaliar” (Informação verbal - Dezinha).

A avaliação de caráter quantitativo primava pelo método da decoreba para compreensão dos conteúdos, cobrados nos momentos avaliativos, feitos ao término de cada bimestre. Ao professor, cabia avaliar se o aluno havia memorizado o conteúdo por ele explicado durante as aulas. As provas e os exames tinham objetivos claramente classificatórios, a fim de verificar o desempenho do aluno em determinado conteúdo, para assim, aprová-lo ou reprová-lo. Para atender às exigências da avaliação, os entrevistados destacaram o esforço individual e a vontade de aprender próprio do aluno, como elementos importantes para garantir a aprendizagem, êxito nas aprovações e, consequentemente, sucesso nos estudos. Como disse Dezinha (Informação verbal - Dezinha),

quando o aluno quer, não é o fato de você estudar em uma escola multisseriado, que vai fazer com que você não segue adiante não, porque quem faz o seu estudo é você enquanto aluno, lógico que uma estrutura, com menos alunos, com um ano só, é melhor, agora isso não é impedimento para que você siga adiante, que você buscou alternativas nenhuma não... (Informação verbal - Dezinha).

Os argumentos destacam uma visão positiva que tinha da escola do campo e, consequentemente, da classe multisseriada. O foco da aprendizagem está nos ganhos quantitativos, determinantes para seguir os estudos. No entanto, esse tipo de avaliação quantitativa, por mais que possa parecer positivo em função dos resultados, deixava a desejar quanto aos aspectos qualitativos, quanto ao desempenho dos alunos nos quesitos oralidade, criatividade, construção do conhcimento, entre outros vieses abordados em formas de avaliar com caráter mais formativo. Assim, esse ensino criava estigmas, medos, resultando em bloqueios e até desistências da escola. Além desses, outro argumento predomina na fala acima: a vontade própria do aluno, que apesar de estar em desvantagem, deseja estudar. Naturaliza-se a desigualdade de oportunidades e de condições materiais de vida dos estudantes, sob a justificativa que a mudança da realidade concreta das pessoas depende unicamente da vontade individual. Condições de continuar os estudos significa garantir às crianças do campo o direito de estudar no lugar onde moram, de modo que a existência de uma escola no campo tem se tornado um símbolo de resistência e reconhecimento da função social da escola do campo ao valorizar o direito de estudar no lugar de origem. Esse debate acende a necessidade de questionar o fenômeno avassalador que assola a escola do campo: o seu fechamento, que tem intensificado a migração de crianças entre comunidades rurais ou para cidade diariamente em busca do estudo.

AS RELAÇÕES SOCIAIS NO ESPAÇO ESCOLAR

No contexto das relações sociais no espaço da sala se aula, nossos entrevistados enfatizaram relações estabelecidas de forma diferenciada, quando estudavam na escola do campo, predominantemente, multisseriada, e quando chegavam à escola localizada na cidade. Na escola do campo, os colegas, quase sempre da mesma comunidade, o que já demonstrava familiaridade, confunfiam os laços afetivos com a parceria em sala.

Os entrevistados abordaram positivamente as relações cotidianas do espaço escolar baseadas na solidariedade e cooperação entre os alunos, de forma que um aluno podia auxiliar o outro nas atividades rotineiras em sala de aula, por meio do agrupamento de alunos de acordo com seus níveis de aprendizados e suas capacidades cognitivas, tirando proveito dessas relações, os alunos que apresentam maiores dificuldades.

Por outro lado, nas relações estabelecidas na escola da cidade, pesou a adaptação à nova escola. Para além da adaptação, rotina de horários, regras, professores e amigos, os alunos tinham que saber conviver diariamente em sala de aula com o preconceito, com os estigmas vivenciados em diversas situações por estes advirem do campo, “do sítio”, como alguns costumavam nomear em tom de ofensa, como se os sujeitos do sítio fossem intelectualmente atrasados, abordando-os de forma pejorativa e discriminatória. Essa expressão carregava a visão equivocada de que as pessoas “do Sítio” (campo) eram menos inteligentes, calados, com pouca informação, matutos, não sabiam se vestir, levando-as à hostilização. A fala de Neta é bem representativa: “Sempre tem! Ah, você é de onde? Eu sou do campo. Vixe ela é do sitio! Ah é assim, como que se quem morasse no sítio, quem tivesse uma educação no sítio, tivesse uma educação com menos qualidade” (Informação verbal - Neta). Essa forma de tratamento não se encerrou na escola da cidade, na verdade, persistiu até a Universidade. A entrevistada Neta acrescenta:

Inclusive hoje eu sinto isso, no meu mestrado, quando eu chego lá, ah vamos marcar um trabalho, Ah, eu vou ligar pra você, eu digo: olhe, ligar não, você tem que falar pela internet, porque lá não tem torre, e tal, ah mais você ta onde? Você se socou aonde? (Informação verbal - Neta).

Como vemos, eram diversos os motivos de discriminações, que iam desde a forma de falar, de andar, de vestir, de aparência física, até questões relacionadas ao desenvolvimento intelectual, o que tornava um verdadeiro desafio para os professores lidar com essa realidade nas escolas. Alguns entrevistados encaravam as situações de estigmas e tratamento diferenciado como “brincadeira”. Trata-se de uma fuga, uma forma de camuflar as ofensas e insultos. O entrevistado Luiz argumenta:

A gente era visto com outros olhos, mas, tinha muita gente que se estressava, e tudo mais, porque era como se fosse dividido como se fossem os alunos da cidade, os alunos do campo. Mas, eu sempre brinquei com isso. Eu sempre dizia: Ah eu sou do sítio! E tipo, aí quando eu chegava brincando, o pessoal já abraçava a gente. Então, comigo mesmo, nunca tive problemas (Informação verbal - Luiz).

Uma forma de superar a imagem negativa das “pessoas que vieram do sítio”, que se fazia presente entre os entrevistados, era demonstrar bons resultados nos estudos. Demonstrar bom desempenho nas atividades em sala de aula traduzia-se numa estratégia de superação de invisibilidade, que se fazia por meio da busca de reconhecimento. Ao mostrar bons resultados na escola, obtinham o reconhecimento dos colegas em detrimento do tratamento diferenciado em sala de aula por parte destes; pois, como afirma Santos (2012), é pelo reconhecimento do outro que o indivíduo se faz visível e notadamente reconhecido pelo grupo social.

Quanto à relação professor-aluno, sem fazer distinção entre a escola do campo e da cidade, foi marcada pela autoridade do professor em relação ao aluno, que impunha uma condição “moral” perante a turma. A condição de professor com “moral” era verificada por meio do domínio, da obediência, do respeito, da atenção expressos nos alunos em sala de aula. Assim nos informa nossa informante Maria: “Porque a concepção que eu tinha do professor era sempre de um professor muito autoritário, um professor muito rígido, de um professor que deveria estar sempre distante do aluno” (Informação verbal - Maria). Essa prática trazia aos alunos marcas negativas e alguns bloqueios como os destacados por Maria em seu relato:

Eu lembro que a minha professora lá do ensino primário, me chamava de ‘burra’ [...] Isso foi gerando traumas, muitos traumas. Eu lembro que, e mamãe pode confirmar isso, eu chegava chorando. Eu chorava viu! O que foi minha filha? Ah minha professora me chamou de burra, eu lembro demais. Eu sempre fui péssima em matemática, aí teve um momento que eu não sabia resolver a atividade, aí, ela me colocou do lado dela, do birô, pra eu resolver as questões, e toda tímida, [...] E todo mundo era indo embora, né? E eu ficando, e as lágrimas descendo [...] E eu muito nervosa, envergonhada, que eu era muito (Informação verbal - Maria).

Ao denominar a aluna de “burra”, a professora acreditava em sua incapacidade de aprender, e ainda pressionava os estudantes perante os demais da sala. Assim, a forma como a professora atuava, e as atitudes que tomava ou deixava de tomar, afetavam diretamente a atitude dos alunos no processo ensino-aprendizagem, expressando emoções nos alunos que pode perdurar sobre eles e como eles percebem essas emoções, podem carregá-las em suas vidas por muito tempo, em determinado momento, superadas ou não.

Contrastando o discurso acima, de maneira paradoxal, a forma como as emoções e sentimentos se expressam na postura dos professores utilizando-se de carinho e atenção, tem um efeito correspondente. Parte dos entrevistados demonstraram respeito e afeição aos professores, é o que averiguamos em suas colocações ao destacar: “A gente tinha bom professor, que era dedicado, que vinha todo santo dia dar aula pra gente em meio a tanta dificuldade, não sabia como naquela época a parte do recebimento, a gente era muito criança” (Informação verbal - José). Outro destaca: “Era uma professora que eu até hoje tenho muito respeito, gosto muito, sempre relato isso, de ter sido a minha primeira professora, ela, ela tinha só até a sexta serie” (Informação verbal - Manoel). Já a entrevistada Edinha, coloca a professora como exemplo a seguir, se espelhando na mesma: “A professora que mais me marcou, eu me espelhei muito nela, e ela, assim, ela colocava meu ego sempre pra cima, elogiava muito meus textos, ela pegava esses textos e lia pra turma, então ela, me levantou bastante” (Informação verbal - Edinha).

A figura do professor na trajetória escolar foi fundamental para os entrevistados, pois muitos professores serviram como modelos, exemplos a serem seguidos, como alguém importante em quem se espelhar na busca de um futuro promissor, o que Santos & Xypas (2014) caracterizam como modelos positivos. Segundo os autores, “os jovens que têm sucesso escolar, apesar da origem popular, fazem duas escolhas simultaneamente: uma é positiva, em busca dos valores e das normas de pessoas mais favorecidas que servem de modelos; outra é negativa, recusando as normas e os valores que impedem progredir” (SANTOS, XYPAS, 2014, p. 18). Os destaques e reconhecimento dirigidos aos profissionais do ensino, para muitos, servem de base para sua carreira enquanto pessoa e profissional.

A CHEGADA E A PERMANECÊNCIA NA ESCOLA

O deslocamento até escola, seja na cidade, seja em outra comunidade rural, foi um momento de impacto na vida dos entrevistados. Para seguirem os estudos no ensino fundamental (séries finais) e ensino médio, teriam que se deslocar de suas comunidades de origem ou próximas de suas casas, que se limitavam à oferta das séries iniciais do ensino fundamental, em turmas multisseriadas; quando não, em piores casos, nem escola existia.

O deslocamento dos alunos, muitas vezes longo, era feito a pé, de bicicleta, de ônibus e até carro pau de arara2, para assim darem continuidade aos estudos. Relatando sobre o deslocamento, destaca Manoel: “Ia de casa pra Boa Vista de bicicleta e lá pegava uma caminhoneta (carro pau de arara), que ia com os alunos de Boa Vista pra Severiano Melo-RN. Ficava pra dormir, na casa de uma prima, fiz isso até 1989” (Informação verbal - Manoel). Chegar à escola torna-se assim também uma tarefa difícil, sacrificante e desgastante, principalmente, para os que dependiam do transporte escolar, seja no período da escola, seja na Universidade, porque o ônibus escolar também era dividido com os universitários. Dado a irregularidade de manutenção, vivia constantemente quebrado. Mas a situação se tornava mais agravante nos casos em que o transporte se fazia por meio do carro pau de arara, cujos riscos impostos a essas crianças e adolescentes eram latentes. Assim recorda a entrevistada Maria:

Em relação ao transporte escolar, porque eu lembro que quando eu migrei pra cidade (refere-se para estudar) eu tinha o que? Acho que uns dez, onze anos, eu era uma criança, a gente vinha num pau de arara, e eu lembro que papai e mamãe ficavam bastante preocupados, porque era um pau de arara, e era só aqueles bancos assim, uma madeira (explicando), não tinha proteção nenhuma (enfática), nenhuma proteção mesmo (Informação verbal - Maria).

Esse deslocamento era motivo de muitas preocupações para os familiares, que ficavam em casa aguardando a chegada da escola. A busca pelos estudos dos filhos tornava-se um verdadeiro desafio para os pais que ficavam em suas residências, porém, preocupados com as situações dos filhos, na estrada, andando a pé, ou em transportes precários. Em outras circunstâncias, tinham que procurar alternativas de moradia para os filhos na cidade, em casas de parentes, no período de enchentes, uma vez que as estradas ficavam intrafegáveis. Para a entrevistada Edinha, a distância da família, e junto com ela a saudade, era o maior desafio. Esta destaca:

Pra mim, isso foi a maior dificuldade foi no ensino médio e a distância da família, porque a gente passava até um mês sem voltar pra casa, dependendo do tempo que o rio fosse cheio. Eu lembro uma vez, que a saudade era tão grande, que nós fomos falar com o prefeito na época, pra ele ceder um carro, pra trazer o pessoal do sítio, pra casa, porque aí era um grupo, e aí ele cedeu a ‘caçamba de lixo’, essa imagem não, não sai da minha cabeça, ele cedeu a caçamba de lixo pra nós, e aí a gente voltaria, só poderia vir a noite, depois que entregasse o lixo, despejasse o lixo, quando fizesse a coleta do lixo. E assim foi feito, nós viemos em cima desse carro, esse carro muito podre, (ênfase) e aí nós viemos, até você deve saber, até o Sabe Muito (Informação verbal - Edinha).

A forma como a autoridade municipal à época tratou a situação de falta de transporte revelam o desprezo e a humilhação sofrida pela entrevistada e demais colegas, fato marcante e impregnado em sua memória, ao enfatizar “essa imagem não sai da minha cabeça”. Mas, a necessidade dos alunos que estudavam na cidade, já que no campo não ofereciam esse nível de ensino, de vir em casa rever os familiares separados pelas distâncias e pelo período relacionado às enchentes, os sujeitavam a aceitar esse tipo transporte, uma “caçamba de lixo”. Uma situação de desrespeito social que afetou as pessoas de modo individual e coletivo, quando submetido a um quadro de humilhação.

O enfrentamento das condições de desrespeito social tem no processo educativo o lugar privilegiado de mudança social (SANTOS, 2012). Para Santos & Xypas (2014), as experiências de desrespeito social podem tornar-se um impulso motivacional para a luta por reconhecimento, considerando que, “a tensão efetiva em que o sofrimento de humilhações força o indivíduo a entrar, só pode ser dissolvida por ele na medida em que reencontra a possibilidade da reação ativa” (HONNET, 2003, p. 244 apud SANTOS & XYPAS 2014, p. 10).

As dificuldades relacionadas aos transportes, justificada pela precariedade ou falta deles, foram as mais recorrentes entre as falas dos entrevistados. Quando chegavam atrasados ao local de onde saía o transporte escolar, muitos deles necessitavam se deslocar a pé até a escola, se não quisessem perder as atividades e provas marcadas pelos professores.

A maior dificuldade pra mim, era a distancia da escola para minha casa, sem falar na dificuldade do ensino multisseriado, professores sem uma formação pedagógica, ne? Mas o que mais marcou mesmo, era a distancia. Eu ia a pe. Eu acho que era uns seis quilômetros a pé, quando eu estudava a terceira e quarta serie [...] O horario também naquele no turno intermediário. Então a gente, as crianças mal alimentadas, que chegava a escola de dez horas, saia de três e meia da tarde, sem a refeição. A merenda escolar era muito precária também. O sol muito quente, no retorno, a gente ainda andava alguns quilômetros na BR, a pé, com o sol esquentando a cabeça da gente (Informação verbal - Ivan).

Além do problema da precariedade do transporte ou a falta dele, a fome também assolava, já que uns não tinham dinheiro para comprar lanches. A escola, muitas vezes, não ofertava merenda escolar, e os alunos ficavam sem se alimentar até chegarem em casa. Os limites não estavam apenas no delocamento até a escola, mas também na sua permanência. Assim, a ausência de escolas no campo para atender aos demais níveis de ensino, como os anos finais do Ensino Fundamental e o Ensino Médio, trouxeram enormes prejuízos para a continuidade dos estudos de muitos, haja vista a falta de condições financeiras para vir estudar na cidade; a falta de um local familiar para ficarem nos períodos de enchentes; o problema com o deslocamento, ou a ausência de transportes, acabavam trazendo a desistência de muitos ao terminarem os estudos nas escolas do campo, conforme averiguamos no depoimento de Manoel:

Nesse período aqui só tinha a quarta série e a gente não tinha condições de sair, não tinha transporte na época também, ainda pra transportar estudante da zona rural, e nesse ano eu parei, porque fiz a quarta série, fiquei, parei, a gente achava que ia parar mesmo, que não ia mais ter condições de estudar, não tinha transporte, não tinha pra onde ir também, tinha até casa de família, mas era aquela coisa difícil [...] Aí eu fiquei parado uns dois anos [...] E num tempo, foi em 85 por ai, M. (irmão) resolveu fazer o supletivo, do primeiro grau pelo, pelo Instituto Universal Brasileiro, estudando em casa, e eu também, eu aproveitei o material. Aproveitava o material, estudava, e me inscrevi no supletivo. Fiz as primeiras provas, em 87, eu ia fazer todas as provas de todas as matérias, mas não podia porque não tinha 18 anos ainda, só podia terminar pelo supletivo com 18 anos, aí fiz algumas matérias, fiquei só, deixei só uma pra 88, no ano seguinte, e terminando aí em 89 é que eu voltei pra sala de pra fazer o ensino médio, na época o segundo grau, (Informação verbal - Manoel).

A interrupção dos estudos não foi diferente para parte dos nossos entrevistados. Manoel destaca que, condições adversas, interromperam seus estudos pelo período de dois anos, porém, ele não deixou de estudar em casa, já que, em sua fala, deixa claro que utilizava o material de um curso feito por seu irmão para estudar também, para não perder, de certa forma, o ritmo dos estudos, demonstrando, assim, o gosto pelo estudo. Entre a experiência de ensino à distância do irmão (Instituto Universal Brasileiro) e seus estudos no Supletivo, uma modalidade de ensino que tem por objetivo suprir ciclos de escolaridade não concluídos por adolescentes e jovens em idade adequada para estudar, há uma propensão quase autodidata.

O exemplo de superação vem das falas em que os entrevistados almejavam “dar a volta por cima” por meio dos estudos, estudar era a única alternativa para eles de “vencer na vida”. Viam o reconhecimento de si, acreditavam em seu potencial e interesse próprio pelos estudos, os esforços em avançar, e a inspiração eram elementos que os faziam continuar e superar os obstáculos no percurso.

Nesse sentido, continuar os estudos para esses sujeitos seria um desafio ainda maior, pois muitos pensavam em dar continuidade à vida estudantil no Ensino Superior, teriam que se deslocar para residir em outros municípios. O acesso à escola se estende ao Ensino Superior. Cursar uma faculdade seria “privilégio”, como alguns afirmaram em suas falas, ou seja, excepcionalidade e acontecimento quase extraordinário em suas vidas. O acesso ao ensino superior como privilégio de classe é decorrente da distribuição desigual do poder político e econômico. Quando tratado como direito, é uma resposta ao cenário de exclusão e desigualdade social.

É interessante ressaltar que os problemas encontrados acerca da falta de transporte escolar, do deslocamento até as escolas, de poucas condições financeiras da família, de infraestrutura das escolas, entre outros, perpassam toda a trajetória dos entrevistados e se repetem quando estão cursando os mais diversos níveis de ensino, no caso o superior.

Cheguei a casa algumas vezes, dizendo pra mamãe que eu ia desistir [...] E nesse tempo, já da faculdade, pela precariedade mesmo, dificuldade financeira de se manter, e eu cheguei, foi esses momentos mesmo, que eu pensei em realmente, em abandonar mesmo, e desistir de uma vez, né? Mas em trancar a matrícula, esperar outro ano. E aí mamãe insistiu muito pra eu não desistir, dava um jeito, vendia uma galinha, qualquer coisa pra pagar alguma despesa. Aí eu consegui, até, aí pronto, aí depois que entrei no PET (Programa Especial de Treinamento), na época vinculado à CAPES. Aí essa dificuldade foi superada. (Informação verbal - Manoel).

Mesmo já estando no ensino superior, as dificuldades com transporte e os problemas financeiros continuavam e a possibilidade de desistir dos estudos ainda persistia. Agora, com outro agravante: sendo jovens ou adultos, a tomada de decisão era do indivíduo e não dos pais, porque com ela pairava a responsabilidade pelo autossustento ou o sustento da família, muito recorrente nas falas. As possibilidades de autossustento, seja por meio de bolsas, ou por meio de trabalhos esporádicos, eram sinônimos de alívio e esperança para seguir nos estudos.

Quem teve a oportunidade e desperdiçou, é lamentável [...] Então, minha maior motivação foi dos pais [...] Eu fui começando a trabalhar com os professores, com bolsas [...] A questão de estudar, o quanto isso na vida, vai dando oportunidade [...] Ah, é isso mesmo! Vou focar nisso, é isso que eu quero e hoje uma das minhas prioridades é ser professor, após eu terminar o doutorado (Informação verbal - José).

A bolsa aparece como alternativa de dedicação aos estudos, mas, sobretudo, de garantia de permanência no curso de graduação e na pós-graduação stricto sensu. O incentivo financeiro na universidade por meio de bolsas de pesquisa, ensino, extensão ou assistência estudantil tem impacto significativo na permanência na educação superior de estudantes de origem popular. É uma forma de garantir as condições justas de manutenção desses indivíduos no ambiente acadêmico, frente aos desafios da formação científica e da atividade profissional. Até chegar à pós-graduação, as trajetórias seguiram mediante adversidades em busca de superação, de vencer desafios encontrados na caminhada, os quais dependiam, impreterivelmente, das motivações intrínsecas e extrínsecas que os fizeram seguir em frente.

MOTIVAÇÕES INTRÍNSECAS E EXTRÍNSECAS PARA PROLONGAR OS ESTUDOS

Os entrevistados também destacaram os principais motivadores da sua trajetória estudantil. Enquanto instrumentos de análises, pudemos detectar essas motivações intrínsecas, introduzidas pelos fatores internos que advém da família, de sua motivação própria, pessoal e as motivações extrínsecas, oriundas de fatores externos como professores, colegas de estudos, grupos sociais em que participaram, trabalho, atividades acadêmicas, dentre outros.

Assim, percebemos que a família foi fundamental para todos os entrevistados para que continuassem a estudar, destacando a importância do papel da família em seu desempenho escolar e sua trajetória nos estudos. Destaca Maria:

Sem dúvidas, o apoio dos meus pais, porque tanto papai como mamãe sempre foi muito de estimular, sempre foram muito de relatar, de nos apresentar a importância de estudar. Ah você quer ser alguém na vida, você quer ter um pouco mais de qualidade de vida, então, vai ter que estudar! (Informação verbal - Maria).

O apoio dos pais foi fundamental para que esta continuasse a estudar, buscar uma vida melhor, com a ideia de “ser alguém na vida” através dos estudos. Para isso, precisava atravessar a caminhada longa e cheia de obstáculos que para ela não foi fácil, porém, sempre contou com o apoio e incentivo dos pais, que não os deixava desanimarem, nem desistir na caminhada. José, ao perguntar sobre o incentivo recebido apresenta o seguinte relato: “Eu comecei a estudar como qualquer outra pessoa. Os pais botam você na escola, pra aprender, pra ‘tentar ser alguma coisa’ e estudar, pra ter um futuro melhor, ter uma oportunidade” (Informação verbal - José).

Além das advindas dos familiares, temos também as motivações pessoais, próprias de cada um, da sua vontade própria de buscar, de se superar e tentar uma vida melhor no futuro. Sabendo que os estudos não trazem resultados em curto prazo, visto que exigem esforços em longo prazo, assim destacam: “Eu acho que meu incentivo talvez seja o interior, interno [...] porque eu sempre, eu acho que desde criança eu sempre quis obter alguma coisa pelo estudo, então eu acho que sempre me impulsionava era isso” (Informação verbal - Dezinha). Para Totonho, a perspectiva em estudar estava em conexão com a melhoria de vida: “Eu acho que a motivação maior mesmo, foi por acreditar, porque pelos estudos, eu poderia ter uma qualidade de vida melhor” (Informação verbal - Totonho).

Quanto aos fatores externos, passamos a destacar as influências e motivações extrínsecas, advindas dos professores, colegas e outros atores que também deram suas contribuições motivacionais aos pesquisados: “Quando eu vi que as professoras me fizeram acreditar que eu era capaz, as professoras me incentivavam, eu era sempre muito elogiada, eu tirava sempre a primeira nota, as notas muito boas e aí as professoras divulgavam isso (...) (Informação verbal - Edinha).”. A maioria dos entrevistados via nos professores um modelo a ser seguido, um espelho em que admiravam e pensavam um dia querer ser igual aos professores(as), como relatam Luiz e Edinha: “Quando a gente é criança, a gente sempre procura se espelhar em alguém, e quando a gente via C. dando aula lá e tudo mais, a gente sempre se espelhava nele, sempre dizia: eu vou estudar pra ser igual a C. pra dar aula e tudo mais” (Informação verbal - Luiz).

Outros fatores externos que despertavam a motivação, são aqueles advindos dos colegas, enquanto companheiros de sala de aula. Os relatos, mais diversos possíveis, mostram a forma como em variadas situações, uns estavam ali, naqueles momentos difíceis, para apoiar os demais e não desanimarem nos estudos. “Com o tempo, as amizades que a gente ia fazendo com os professores, os professores viam e tudo mais, aí, eles também passaram a me incentivar” (Informação verbal - Luiz). Outro, ainda destaca a união da sua turma em que todos se ajudavam mutuamente, o que contribuiu bastante para que fossem até o final do ano letivo e não desistissem da caminhada estudantil, apesar das adversidades. Assim disse José: “Tem uns amigos meus também, hoje eu to aqui em Minas Gerais, por causa de dois amigos meus, que me motivaram, me apoiaram, pra fazer, prestar o doutorado aqui, e me deram assistência pra vir morar também” (Informação verbal - José).

Ademais, ainda como fatores externos, percebemos que alguns dos nossos entrevistados participaram de grupos sociais, a saber: grupos de jovens das igrejas católicas, grêmios escolares, Diretório Central do Estudante, sindicatos, entre outros. Esses grupos em sua grande maioria foram relevantes para a formação dos alunos em variados aspectos e, consequentemente, para a consolidação da ideia de que era importante continuar estudando até a realização do que almejam. Essas formações trouxeram aprendizados diversos como valores humanos, espírito de criticidade, humanidade, conhecimentos políticos, dentre uma gama de saberes formados no cotidiano das organizações que extrapolaram os muros da escola.

A motivação pelos estudos de forma extrínseca vinha também em variados momentos de suas trajetórias pelo que categorizamos de reconhecimento dos outros. As pessoas costumavam ver o potencial, o desenvolvimento dos alunos, os talentos que eles tinham e começavam a projetar uma carreira de sucesso nos estudos, seja no reconhecimento da relação com o outro (pais, professores, colegas), seja nos esforços individuais em favor da independência financeira e carreira profissional, principalmente acadêmica:

Até o ensino médio, eu achava importante mas, era importante assim, pra estudar, fazer o vestibular, fazer uma faculdade, pra seguir uma carreira, que não necessariamente fosse acadêmica, meu pensamento era: depois da graduação, você vai seguir sua carreira e não precisa mais estudar [...] A partir da graduação que eu comecei a me interessar de fato, pra continuar, pra fazer mestrado, doutorado (Chico - informação verbal)

Aos fatores extrínsecos, acrescentamos as condições materiais e oportunidades que surgiram ao longo da formação acadêmica, como bolsas na graduação e na pós-graduação e inserção profissional na universidade e na educação básica. A continuidade nos estudos é, pois, construída através de alternativas concretas materializadas no desejo de “vencer na vida”.

O sucesso escolar é resultado da criação de condições, em meio ao improvável, para que esses sujeitos oriundos de escolas do campo permanecessem e persistissem nos percursos do Ensino Superior e, mais adiante, na pós-graduação stricto sensu. Nessa criação e recriação de condições, esses sujeitos se sentem responsáveis, mas não os únicos, pelo sucesso e pelo papel ativo que desempenharam nesse processo.

Assim, essas trajetórias de estudos prolongados que se encontram os sujeitos da pesquisa, não foram planejadas de imediato pela maioria dos entrevistados. À medida que surgiam as oportunidades, abriam caminho para uma aposta na escola e na universidade como um ambiente que favorece a mobilidade social: de família de origem popular à ascensão para uma camada social que tem acesso a bens e serviços como saúde, educação, moradia e transporte, em condições diferenciadas e superiores aos dos pais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como observamos, o prolongamento dos estudos depende de vários fatores, circunstâncias, desafios, barreiras superadas para se chegar ao lugar almejado ou à situação considerada de sucesso. A conquista de um lugar social diferente não é uma simples questão de trabalho individual e de "dons", nos moldes de Bourdieu (2005), mas resulta de esforços individuais e coletivos dispendidos. O apoio dos pais produziu um efeito marcante no estímulo e na decisão desses indivíduos em seguir com os estudos. A valorização da escola e da formação em nível superior pelos pais, apesar da baixa escolaridade, possibilitou um contexto positivo nos indivíduos em favor da luta pela superação das desigualdades escolares. A atitude de estímulo dos professores, das oportunidades de estudo e de trabalho, surgidas ao longo da trajetória, aparecerem como fatores preponderantes para a permanência desses sujeitos na escola e na universidade.

A abertura, às camadas sociais mais pobres, do acesso às universidades brasileiras, historicamente voltadas às elites, tem contribuído de maneira significativa para as mudanças nas trajetórias dessas pessoas, através das conquistas advindas pelos estudos. Mas é preciso garantir as condições para o acesso e a permanência. A partir de 2003, durante o governo Lula, diversos programas implementados e/ou ampliados colaboraram com a democratização da Educação Superior no país, como a expansão das universidades e institutos federais, estímulo à modalidade à distância, a política de cotas, além de programas de bolsas e financiamento estudantil para universidade privada.

O fato é que o gosto pelos estudos vai se dando quase natural e irresistível à medida que os novos desafios, em busca do prolongamento da escolarização, vão se apresentando em suas vidas. Estudar não é um peso, um fardo, é uma conquista. É consequência de um processo em que se adquire reconhecimento e que possibilita ter alternativas perante a vida. Assim, os estudos dão o tom da possibilidade de escolha, da independência, da liberdade, da decisão de seguir os próprios caminhos. Seguir nos estudos é aventurar-se pela capacidade de superação da condição imposta socialmente.

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1O Projeto Logos II, ofertado em módulos e a distância, foi implementado pelo Governo Federal na década de 1970, em estados brasileiros, com objetivo de formar professores leigos, em nível de segundo grau, para o exercício do magistério.

2Nome dado ao carro adaptado para levar os alunos às escolas, geralmente utilizado para carga, que ganhava assentos de madeira, sem encosto e, algumas vezes, sem lona para proteção de chuva ou sol.

Recebido: 13 de Novembro de 2018; Aceito: 20 de Agosto de 2019

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