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Revista Exitus

versão On-line ISSN 2237-9460

Rev. Exitus vol.10  Santarém  2020  Epub 30-Mar-2022

https://doi.org/10.24065/2237-9460.2020v10n0id1258 

Artigos

A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA NOS TEXTOS E LIVROS DIDÁTICOS NO ENSINO FUNDAMENTAL

THE CONSTITUTION OF BLACK IN TEXTS AND IDENTITY AND TEACHING BOOKS IN FUNDAMENTAL EDUCATION

LA CONSTITUCIÓN DE LA IDENTIDADE NEGRA EM TEXTOS Y LIBROS DE ENSEÑANZA EM EDUCACIÓN FUNDAMENTAL

Marilza de Oliveira Santos1 
http://orcid.org/0000-0002-9675-2754

Francisca Izabel Pereira Maciel2 
http://orcid.org/0000-0003-4751-2890

1Pós doutorado em Educação. Professora da Universidade do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-9675-2754. Email: marilza101@hotmail.com

2Pós doutorado em Educação. Professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais, FAE/UFMG. Belo Horizonte, Minas Gerais. Brasil. Orcid iD. http://orcid.org/0000-0003-4751-2890. E-mail: emaildafrancisca@gmail.com


RESUMO

Este trabalho apresenta resultados de uma pesquisa sobre constituição da identidade negra em textos e livros didáticos, em escolas do Ensino Fundamental. Buscamos compreender quais eram as relações existentes entre os textos e livros didáticos escolhidos pela escola e a construção da identidade de estudantes negros, na disciplina de português no ensino fundamental. Um dos objetivos específicos foi identificar quais eram as representações acerca da identidade negra presente nos livros didáticos e como estas poderiam ou não ser constituídoras de identidades dos/as estudantes na disciplina de português. Os fundamentos teóricos sustentaram-se nas teorias de linguagem, principalmente na teoria crítica de Fairclough (2001, 2003), bem como de estudiosos da linguagem como Soares (1999), Orlandi (2001), Vygotsky (1993), da identidade, do multiculturalismo, do racismo, Hall (2002), Munanga (2004, 2008), Gomes (2003, 2005) e a legislação pertinente ao tema, lei 10639/2003. A metodologia adotada foi a análise documental. Para realizar a pesquisa foi feito o levantamento dos livros didáticos e paradidáticos utilizados na disciplina de Língua Portuguesa. Após a identificação dos livros, buscou-se identificar e analisar nos livros os textos presentes sobre a temática da identidade negra. Os resultados demonstraram que as narrativas a respeito da cultura afrodescente, ainda são poucas, o que demonstra necessidade de maior investimento nesse campo para que os livros didáticos auxiliem os professores em seu trabalho pedagógico de práticas anti-racistas, questionando, assim, um currículo historicamente eurocêntrico.

Palavras-chave: Linguagem; Identidade negra; Didática; Livros didáticos

ABSTRACT

This work presents the results of a research on the constitution of black identity in texts and textbooks in elementary schools. We sought to understand what were the relationship between texts and textbooks chosen by the school and the construction of the identity of black students in the Portuguese discipline in elementary school?. One of the specific objectives was to identify what were the “representations about black identity present in the textbooks and how pedagogical practices of the teachers could or could not be constituted of the identities students in the teaching of Portuguese classes. The theoretical foundations were based on language theories, especially in Furlough’s critical theory (2001, 2003), as well as language scholars such as Soares (1999), Orlando (2001), Vygotsky (1993), identity, multiculturalism, of racism, Hall (2002), Munanga(2004,2008), Gomes (2003, 2005) and the pertinent legislation, law 10639/2003. The methodology adopted was content analysis. To carry out the research we used field notebooks, records of texts and textbooks, observation of textbooks and paradigmatic of the Portuguese Language discipline. The corpus analyzed is composed of narratives presented in texts and textbooks. The results showed that the narratives about afrodescedant cultures are still poorly worked on the discipline and consequently in the classrooms, although there is commitment of the school to develop a choice of textbooks that allows a pedagogical work of antiracist practices thus questioning a historically Eurocentric curriculum.

Keywords: Language; Black identity; Didactics; Didatic books

RESUMEN

Este trabajo presenta el resultado de una investigación sobre la constitución de la identidad negra en textos y libros en escuelas primarias. Intentamos entender cuáles eran las relaciones entre los textos y libros elegidos por la escuela y la construcción de la identidad de los estudiantes negros en la disciplina portuguesa en la escuela primaria. Uno de los objetivos específicos era identificar cuáles eran las representaciones sobre la identidad presente en libros de texto y cómo las prácticas pedagógicas de los maestros podían o no constituir las identidades de los estudiantes en la enseñanza del portugués. Los fundamentos teóricos se sustentaron en las teorías de lenguaje, principalmente en la teoría crítica de Fariclough (2001, 2003), así como de estudiosos del lenguaje como Soares (1999), Orlando (2001), Vygotsky (1993), de la identidad, del multiculturalismo, del racismo, Hall (2002), Munanga (2004, 2008), Gomes (2003, 2005) y la legislación pertinente al tema ley 10639/2003. La metodología adoptda fue el análisis de contenido. Para realizar el estudio, utilizamos cuadernos de campos, registros de textos y libros de textos didácticos y paradidmática del idioma portugués. El corpus analizado está compuesto por narrativas presentes en textos y libros de texto. Los resultados demostraron que las narrativas sobre la cultura afrodescendiente todavia se trabajan poco en la disciplina y, en consecuencia, en las aulas, aunque existe un compromisso de la escuela para desarrollar una selección de libros de texto que permita un trabajo pedagógico de prácticas antirracistas custionando así un currículum historicamente eurocéntrico.

Palabras clave: Lenguaje; Identidad Negra; Didáctica; Libros didácticos

INTRODUÇÃO

Este trabalho visa compreender as relações existentes entre os textos e livros didáticos escolhidos pela escola e a construção da identidade de estudantes negros, na disciplina de português no ensino fundamental, em escolas públicas de Belo Horizonte. Apresenta os resultados de uma pesquisa que, especificamente, visa identificar quais são as representações sobre a identidade negra presente nos livros didáticos e como podem ou não ser constituídoras de identidades dos/as estudantes na discipina de português.

O uso da linguagem na vida cotidiana é fator indispensável no processo de comunicação dos sujeitos e na constituição de suas identidades. Os discursos se dão por meio de enunciados e estes se efetuam na forma oral e escrita, mediante aos gêneros discursivos apresentados pelos sujeitos. Segundo demonstra Bakhtin (2003, p. 274), o discurso “só pode existir de fato na forma de enunciações concretas de determinados falantes, sujeitos do discurso”. A linguagem permite ao ser humano se relacionar a partir do processo de comunicação e do pensamento. Sendo assim, ela é o meio pelo qual os indivíduos podem interagir na sociedade, pois permite o diálogo e as trocas de mensagens e de pensamentos. É por meio dela, conforme mostra Vygotsky (1993), que o mundo nos é apresentado através da palavra. Escutar as palavras, portanto, é dar sentido ao mundo que nos cerca. Nesta perspectiva, segundo o autor, o pensamento e a linguagem são indissociáveis.

Sendo a linguagem constituídora de sujeitos, como mostra Bakhtin (2003), interessou-nos investigar como os discuros presentes nos livros didáticos podem auxiliar ou não os professores na construção da identidade de jovens negros. Acreditamos que por meio de instrumentos, como livros didáticos, pode-se romper o silenciamento da cultura negra nos currículos escolares.

Percebe-se que o estado brasileiro adotou medidas de cunho racial, como as ações afirmativas para buscar reverter as desigualdades entre brancos e negros na sociedade. É nesse contexto de lutas, principalmente do movimento negro e de diversas pesquisas educacionais, na década de 80, como de Fúlvia Rosemberg (1985,1987, 2001), Ana Célia da Silva (1995) e Esmeralda Negrão (1987), que apontaram as representações dos personagens negros/as nos livros, como sujeitos ignorantes, subordinados, isolados, escravos, bêbados, entre outros rótulos negativos. Essas representações contribuíam, segundo os estudos para que os/as discentes negros/as construíssem uma imagem negativa de si próprios/as e de seus iguais.

Em busca de luta por igualdade racial surge, no Brasil, em 2003, a lei nº 10639/2003, que tornava obrigatório o ensino da História e da Cultura da África e dos Afro-brasileiros no currículo oficial de ensino das escolas, instituições de ensino fundamenal e médio. Tais ações fundamentais no combate ao racismo e aos preconceitos sociais. Pois como afirma Ribeiro (2002, p.150):

Crianças brasileiras de todas as origens étnico-raciais têm direito ao conhecimento da beleza, riqueza e dignidade das culturas negro-africanas. Jovens e adultos têm o mesmo direito. Nas universidades brasileiras, procure, nos departamentos as disciplinas que informam sobre a África. Que silêncio lamentável é esse, que torna invisível parte tão importante da construção histórica e social de nosso povo, e de nós mesmos?

A estrutura educacional, em sua totalidade, ainda não permite que se tenha uma avaliação geral de como a sociedade trata as pessoas negras no Brasil. Entretanto, nesta pesquisa constatamos que há nos livros didáticos algumas iniciativas de se trabalhar nas escolas a consciência negra, ainda de maneira incipiente. Dessa forma, estudar as narrativas dos textos ou livros didáticos possibilitou identificar que textos podem contribuir para o trabalho com a identidade negra nas escolas na disciplina de português.

Este trabalho, estruturou-se da seguinte forma, resumo, introdução, linguagem e constituição de identidade, percurso metodológico, análise dos textos dos livros didáticos, considerações finais e referências.

Linguagem e constituição da identidade etnicorracial

A linguagem é que constitui os sujeitos, conforme mostra Lacan (1998), a construção da identidade ocorre na interação entre sujeitos, na diferença entre o “eu” e o “outro”. Pois só existimos a partir da linguagem.

Em uma perspectiva sociocultural, segundo Hall (2011), a sociedade é perpassada pelas relações de poder, e estas não estão apenas em um local específico, como os aparelhos do Estado, mas são imanentes ao corpo social e penetram nas práticas cotidianas do sujeito. Nesta perspectiva, é interessante analisar o poder como prática social, historicamente constituída, e como as múltiplas formas de exercício desse poder estão presentes na sociedade e nas práticas discursivas docentes. É preciso compreender que a identidade se constrói em meio às relações de poder e de práticas discursivas. Como afirma Loureiro (2004, p. 67), “quando uma pessoa se identifica como membro de algum grupo, está também assumindo uma posição em um sistema de relações intergrupais culturalmente definido”.

Para se entender a construção da identidade e da cultura negra no Brasil, temos que considerar a história e analisar a relação entre classe social e identidade negra. O que se percebe é que a marginilização da étnica africana foi construída historicamente e desenvolveu-se em um racismo velado, de acordo com Gomes (1995, p. 54) ao afirmar que:

O racismo é, por um lado, um comportamento, uma ação resultante da aversão, por vezes do ódio, com respeito a pessoas que possuem um pertencimento racial observável através de sinais diacríticos tais como: cor da pele, tipo de cabelo, etc., e, por outro lado, é uma ideologia, uma doutrina referente às raças superiores e inferiores. Ele resulta da vontade de se impor uma verdade particular como absoluta, por exemplo: as doutrinas raciais surgidas no final do século XIX, aqui no Brasil, serviam para justificar a escravidão, a exclusão negra.

Compreender como se dão as representações das diferentes culturas no currículo escolar historicamente construído pela etnia branca europeizada é fundamental para entender como as minorias sociais, os “diferentes”, especialmente os negros e os pobres estão representados na cultura escolar. É preciso trabalhar, em sala de aula, de forma a respeitar a diversidade dos sujeitos, em uma perspectiva de uma didática crítica intercultural como proposta por Candau (2012). Como demonstra Silva (2000, p. 83):

Fixar uma determinada identidade como norma é uma das formas privilegiadas de hierarquização das identidades e das diferenças. A identidade normal é “natural”, desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade.

Ao discutir sobre as ideologias do dom, da deficiência cultural e das diferenças culturais, Soares (1996, p.72) demonstra a crueldade da “patologização da pobreza”. E afirma que:

Na área da linguagem, a escola, ao negar às classes populares o uso de sua própria linguagem (que censura e rejeita), ao mesmo tempo que fracassa em levá-las ao domínio da linguagem de prestígio, está cumprindo seu papel de manter as discriminações e a marginalização e, portanto, de reproduzir as desigualdades.

Nesse contexto, a autora reconhece a necessidade de que as camadas populares adquiram o domínio da língua de prestígio, não para que o/a aluno/a “substitua o seu dialeto de classe, mas para que se acrescente a ele, como mais um instrumento de comunicação” (p. 74). Segundo Soares:

Uma escola transformadora não aceita a rejeição dos dialetos dos alunos pertencentes às camadas populares, não apenas por eles serem tão expressivos e lógicos quanto o dialeto de prestígio (...) mas também, e sobretudo, porque essa rejeição teria um caráter político inaceitável, poissignificaria uma rejeição de classe social, através da rejeição da sua linguagem (idem, ibidem).

Nos livros didáticos e em suas narrativas, é preciso observar as práticas discursivas dos sujeitos, pois, muitas vezes, o racismo aparece pelo discurso presente no texto, ou seja, por meio da linguagem. Como mostra Fairclough (1992), por meio da linguagem, o homem significa o mundo ao mesmo tempo em que significa a si mesmo, pois se constitui na e por meio da alteridade.

Nos processos de interatividade com as pessoas, especialmente em sala de aula, os/as alunos/as, quer seja durante as aulas, ou por meio de textos trabalhados, não só constituem suas identidades, mas também internalizam signos, já que necessitam do “outro” para desenvolverem os conhecimentos da norma culta padrão. Isso é o que afirma Geraldi (2002), ao entender que o sujeito se constitui à medida em que é capaz de interagir com os outros, pois segundo o autor, “isto implica que não há sujeito dado, pronto que entra na interação, mas um sujeito se completando e se construindo nas suas falas e nas falas dos outros” (p. 19).

Em geral os enunciados presentes nos discursos docentes e discentes durante qualquer aula, e, principalmente os discursos descritos nos livros, estão repletos da fala dos outros, isto é, de outros enunciados que são assimilados ou empregados de forma consciente ou inconsciente nas práticas discursivas do cotidiano escolar. Ao tomar a linguagem como discurso, como interação social, percebe-se, conforme Bakhtin (2003), que qualquer palavra existe para o sujeito falante em três aspectos:

Como palavra da língua neutra e não pertencente a ninguém; como palavra alheia dos outros, cheia de ecos e de outros enunciados, e, por último, como palavra, a minha palavra, porque, uma vez que eu opero com ela em uma situação determinada, com uma intenção discursiva determinada, ela está compenetrada da minha expressão (p. 294).

Percurso metodológico

Esta pesquisa situou-se em uma abordagem qualitativa (BROWN; RODGERS, 2002). O objetivo geral da pesquisa foi compreender as relações existentes entre os textos e livros didáticos escolhidos pela escola e a construção da identidade de estudantes negros, na disciplina de português no ensino fundamental em escolas públicas de Belo Horizonte, fez-se levantamento e análise dos livros didáticos escolhidos pela escola para a disciplina de português. Optou-se pelo tipo de pesquisa documental, os livros foram as principais fontes, assim como a legislação vigente sobre a lei nº 10639/2003, e a obrigatoriedade e inclusão da Cultura da África e dos Afrobrasileiros no currículo oficial das escolas. O primeiro momento da pesquisa consistiu em fazer um levantamento e organização dos livros didáticos de português escolhidos pela escola e também de livros paradidáticos sobre cultura afrobrasileira presentes na biblioteca da escola. Em seguida selecionar um livro de português dos anos finais do ensino fundamental, único que tinha uma atividade para o trabalho que dizia respeito a cultura afro, e dois livros paradidáticos, intitulados Peppa, da autora Silvana Rando, e o meu crespo é de Rainha, de Bell Hooks, traduzido por Rizzi Nina que tratavam também da temática. Para a análise deste trabalho será usado a atividade e o livro Peppa. Sendo assim, foi realizado a leitura e registro dos livros didáticos e textos a serem trabalhados na disciplina de Língua Portuguesa, do ensino fundamental, nas séries iniciais e finais. Ademais, foram utilizados instrumentos metológicos, como: 1) análise de livros paradidáticos; 2) levantamento de livros presentes na biblioteca da escola. Foram feitas anotações em caderno de campo do que se observou nos livros didáticos.

O método utilizado para a análise dos dados foi o método de análise de conteúdo de Bardin (1977, p.177). O autor considera que a análise de conteúdo é composta por categorias que são rubricas ou classes, que reúnem elementos importantes, com critérios previamente definidos. Para analisar os dados, recorreu-se a categoria de prática social, especificamente às categorias de ideologia e hegemonia propostas por Fairclough (1992).

A teoria de Fairclough (2001, p. 89) tem o objetivo de:

Reunir a análise de discurso orientada linguisticamente e o pensamento social e político relevante para o dicurso e a linguagem, na forma de um quadro teórico que será adequado para uso na pesquisa científica social, e, especificamente no estudo da mudança social”.

Foram realizadas análises de livros didáticos e paradidáticos que seriam utilizados na disciplina de língua portuguesa, com estudantes de escolas públicas, e que trariam a possibilidade de um trabalho com a cultura afro-brasileira. A partir das observações dos livros e textos didáticos e do registro dos materiais, foi possível elaborar registros, tais como: materiais didáticos e modos do seu uso, isto é, se eram textos de conteúdo próprio do programa da disciplina ou textos complementares para se trabalhar a temática da cultura afro com os estudantes. Embora foram observados os materiais de três escolas públicas, elegeu-se, porém, para este trabalho parte dos materiais da escola nomeada ficticiamente de escola branca.

A segunda fase do trabalho investigativo foi o de procedimento da análise do corpus dos documentos recolhidos no intuito de identificar quais eram as representações acerca da identidade negra presente nos livros didáticos e como estas poderiam ou não ser constituídoras de identidades dos/as estudantes na disciplina de português.

Tendo utilizado como método a análise de conteúdo dos textos, buscou-se analisar as categorias oriundas de Fairclough (2001), que utiliza a categoria de prática social, e dentro dela a ideologia e a hegemonia respectivamente, no que se refere aos sentidos das palavras; às pressuposições; às metáforas; às orientações econômicas, às culturais, às políticas e às ideológicas observadas nas histórias dos livros e/ou textos. Para isso buscou-se identificar quais eram os livros didáticos e/ ou textos sobre a cultura negra propostos para o trabalho na disciplina de português de escolas públicas do ensino fundamental em Belo Horizonte. E, a partir destes textos verificar quais representações da identidade negra estavam presentes nos discursos dos livros, a fim de analisar também em que medida as narrativas dos textos estavam voltadas ou não para a valorização da cultura afrobrasileira na disciplina de português. Que ideologias estão presentes nos discursos dos textos e livros sobre o racismo? Podem contribuir para uma mudança da prática social no sentido de minimizar as práticas racistas ainda presentes na sociedade e nas escolas?

Na medida em que, para Orlandi (2007, p. 15), o discurso é a palavra em movimento, a prática de linguagem e uma prática que não engloba somente a representação do mundo, mas, também, uma significação do mundo, constituindo e construindo, portanto, o mundo em significado, e que, para Fairclough (2001, p. 90-91), o discurso é “um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e, especialmente, sobre os outros, como é também um modo de representação”. Desse modo, o método da análise do discurso foi fundamental para o estudo.

A construção discursiva da identidade negra tecida nos discursos presentes nos livros didáticos da disciplina de português

É no âmbito escolar, ou seja, nas disciplinas a serem ministradas nas salas de aula que se decide o sucesso ou o fracasso dos/as discentes, assim sendo, tal ato considerado negativo ou positivo ficará associado à identidade dos sujeitos. Na presente pesquisa tratou-se de livros didáticos e textos de português a serem trabalhados com os jovens negros, estudantes do ensino fundamental, fase em que a interação discursiva nas aulas entre as professoras e alunos/as é um processo de construção de identidades sociais por excelência. No entanto, as relações que se tecem entre os que nela interagem, muitas vezes assumem características distintas de outras, que se fazem no cotidiano. Pois, aquilo que os professores ‘fazem dizendo’, no momento das aulas de português, por meio de textos e livros permite analisar o jogo da trama discursiva, que se estabelece na prática pedagógica, e que possibilita a gestão, ou não, da palavra dos sujeitos.

Quando se ministra as disciplinas, de forma geral, o sujeito do discurso é, ao mesmo tempo, determinado pelos condicionamentos de ordens diversas e livres para operar suas escolhas no momento de focalizar seus dizeres. Também é coagido pelos dados da situação de comunicação – comunicação – contrato de comunicação, conforme mostra Charaudeau (1983, p. 50), considerando que os textos e livros a serem trabalhados são escolhidos pelos docentes e pela escola.

Análise dos discursos dos livros didáticos e paradidáticos de língua portuguesa

Estudar os discursos presentes nos textos de Língua Portuguesa, em escolas do ensino fundamental, tendo como objeto de investigação as representações acerca da constituição da identidade negra em textos e livros didáticos, supõe atribuir um lugar de destaque à comunicação discursiva, que se estabelece entre professores e estudantes nas salas de aulas. Nesta parte, então, pretende-se analisar e refletir sobre os discursos da cultura afrobrasileira presentes nos livros e/ ou textos de língua portuguesa a serem trabalhados nos sétimos e oitavo anos do ensino fundamental de uma escola pública.

Ao analisar os livros e textos observou-se que os livros didáticos de português, em sua essência ainda, estão muito voltados para estudos da língua e suas regras gramaticais. Dessa forma, fragmenta os aspectos culturais, dos saberes das pessoas, no que se refere aos saberes da cultura afrobrasileira, e apresenta, portanto, somente a inserção de textos como suporte, ou seja, ferramenta para trabalhar, especificamente, a língua e sua gramática tradicional.

Em relação à representação da identidade negra nos livros didáticos para o trabalho na disciplina de português, observa-se que foi encontrado, somente, uma atividade no livro didático que tratava da temática. Percebese que em sua integralidade a cultura afro-brasileira não é abordada cotidianamente nos livros das escolas. No livro, estipulado para os anos finais do ensino fundamental, apresentava-se uma canção/texto que trazia em sua interpretação aspectos sobre o racismo; música nomeada negro gato. Esta música traz como atividade uma proposta de trabalho para que os professores possam iniciar um diálogo com os/as estudantes em sala de aula sobre a temática da cultura negra, no sentido de levar os/as alunos/as a refletirem sobre o assunto do racismo presente na sociedade, nos textos e livros didáticos.

[...] a negociação patente na interação entre professor e aluno é que vai levar à construção de um conhecimento comum entre eles. Este conhecimento é construído conjuntamente em sala de aula através de um processo que envolve controle, negociação, compreensão e falhas na compreensão entre aluno e professor até que passa a fazer parte do conhecimento partilhado na sala de aula (MOITA-LOPES, 1996, p. 96).

Quando se pensa no livro didático, não se pode negar a ideologia que está posta em toda a sua estrutura, tanto nos textos quanto nas imagens. Os estudos de Choppin (2004), por exemplo, chama à atenção para o quanto um livro didático pode ser responsável pela (re)construção e representação da imagem da sociedade, à medida em que o livro seleciona ou exclui este ou aquele conteúdo didático, e no livro de português silencia as vozes da cultura negra. Assim, Choppin (2004, p. 557) assevera que:

A imagem da sociedade apresentada pelos livros didáticos corresponde a uma reconstrução que obedece a motivações diversas, segundo época e local, e possui como característica comum apresentar a sociedade mais do modo como aqueles que, em seu sentido amplo, conceberam o livro didático gostariam de que ela fosse, do que como ela realmente é. Os autores de livros didáticos não são simples expectadores de seu tempo: eles reivindicam um outro status, o de agente. O livro didático não é um simples espelho: ele modifica a realidade para educar as novas gerações, fornecendo uma imagem deformada, esquematizada, modelada [...].

É mister ressaltar, que não somente os livros didáticos, mas os currículos escolares propostos não se formam por meio das narrativas sociais que contam as histórias sobre nós e os outros. Ademais, descrevem culturas de povos de que são objetos, mas também formam identidades hegemônicas.

O texto que foi analisado era de uma entrevista colocado no livro de português. Tratava-se de uma entrevista com Getúlio Fortes, autor da versão da música negro gato em que o jornalista afirmou que esta seria uma música sobre racismo. A atividade propunha:

“Veja a pergunta e logo abaixo a resposta dada pelo letrista. Negro gato é interpretada por muita gente como uma música sobre racismo. Um dia o Erasmo chegou pra mim e disse que a música tinha duas conotações, que falava da história do negro gato na sociedade brasileira e, instintivamente ela pode ser até baseado no esquema social, na discriminação, mas não tem nada a ver. Eu escrevi por causa de um gato que me perturbava, aí vi que o gato daria um bom tema. Gato sofre pra caramba, diz que dar azar. Eu nunca pertenci a movimento contestador nenhum, aliás quem mais discriminou mais a gente foram estes caras da MPB, que fizeram um monte de gracinha, mas é problema deles. Nós continuamos nosso caminho e estamos há 40 anos, isso que é bom” (GETÚLIO FORTES, 2017, p. 45).

Essa atividade do livro possibilita aos estudantes um debate também acerca das representações sobre o que significa este “negro gato”, e pode evocar discussões acerca do racismo e dificuldades vivenciadas pela população negra dentro da sociedade brasileira, como o texto a entrevista mesmo sugere ao trazer a voz do Erasmo retratando a discriminação racial sofrida pelo negro na sociedade brasileira. Sugere-se que os docentes possam, por meio das estratégias de perguntas, promover um diálogo com os estudantes a fim de que se trabalhe para minimizar as práticas racistas e a discriminação de pessas negras ainda presentes nas escolas, decorrentes da vivência social. O que se percebe é que as vozes presentes no texto são sempre vozes sociais que manifestam consciências valorativas, que reagem a/ou que compreendem ativamente os enunciados compartilhados entre pares. Em relação a discriminação racial Santana apud Munanga (2005, p.63), diz que:

A discriminação racial opera, na nossa sociedade, como um processo que acarreta inúmeras desvantagens para o grupo negro e para toda a sociedade brasileira, direta ou indiretamente. Compreende-se que o reconhecimento positivo das diferentes etnias deve ser proporcionado desde os primeiros anos de vida.

Observa-se que a despeito desta entrevista como atividade, esta é a única atividade presente no livro de português dos anos finais do ensino fundamental que pode vir a suscitar a discussão sobre a cultura afrobrasileira nas escolas. Portanto, avalia-se que nada mais a respeito da cultura africana seria trabalhado na disciplina de português, a não ser que algum docente das escolas em geral se propusesse a criar atividades afins sobre a cultura afro ou o racismo. Essas narrativas sobre o racismo, entretanto, podem ser disputadas, contestadas, questionadas no trabalho com a disciplina de português, considerando que “a produção de conhecimentos envolvida no currículo se realiza por meio de uma relação entre as pessoas” (SILVA TADEU, 1995, p. 194). Neste contexto, é necessário observar as propostas de trabalho docente e as atividades desenvolvidas nas disciplinas, por meio dos livros didáticos, que tratem da inserção da cultura afrodescendente da história da África nos conteúdos abordados nas escolas, como defende a lei nº 10639/2003, para resgatar não só a auto estima dos estudantes negros, como também para o resgaste das raízes desta população historicamente tão excluída e discriminada, pois como afirma o autor “nós fazemos o currículo e ele nos faz” (Idem, p.26).

Nesta perspectiva, percebe-se pela leitura dos textos do livro didático de português escolhido pela escola, a presença de uma linguagem eurocêntrica, de textos que tratam só da cultura branca, sem levar em consideração as desigualdades sociais presentes na sociedade brasileira. Neste sentido, os textos dos livros de português dos anos finais do ensino fundamental não manifestam, ou seja, não discorrem aspectos da cultura afro. Entretanto, a escola tinha livros paradidáticos na biblioteca, cuja opção textual das histórias traziam em suas narrativas uma representação sobre a temática da cultura afro, com um olhar de emancipação, isto é, textos que apresentavam figuras positivas sobre a imagem do negro, isto é, que apresentavam um olhar novo sobre o negro.

Os textos do livro didático e paradidático a serem trabalhados na disciplina buscavam discutir com os estudantes quais são as possibilidades das pessoas negras na sociedade, quais são os direitos, quais são as preocupações, ou dificuldades que as pessoas negras têm que enfrentar, as lutas que travam, os conflitos vividos dentro da sociedade. Um dos objetivos trazidos na atividade do livro, a partir da canção negro gato era dar espaço aos discentes da disciplina de português para que pudessem perceber sua cultura, os conflitos presentes na sociedade, as práticas racistas, e, empreenderem para suas vidas as suas lutas no contexto social.

Ao discutir essas questões na língua portuguesa, por meio de uma única atividade proposta no livro didático sobre a cultura afro, acredita-se que o grande desafio dos professores, na prática pedagógica, é fazer com que os estudantes do ensino fundamental possam se perceberem dentro desta identidade negra. Por isso, cada vez mais, há necessidade de se estudar a história da África e da cultura afrodescendente nas escolas, no sentido de trazer textos que abordem sobre a cultura, sobre a identidade negra, para que os/as estudantes possam fazer um exercício de se perceberem pertencentes a esta cultura, ainda silenciada nos livros, nos textos trabalhados na maioria das disciplinas.

Para um trabalho com a cultura afro no sentido de trabalhar a identidade negra na disciplina, encontrou-se ainda na biblioteca dois livros, paradidáticos intitulados “o meu crespo é de rainha”, e outro denominado “Peppa”, que trabalhavam com a temática dos cabelos de pessoas negras. Em relação a este tema vejamos os discursos trazidos nas narrativas da história:

PEPPA

Peppa nasceu assim, linda e cabeluda. Bem no alto da cabeça, lá estava ele, um chumaço de cabelo preto e volumoso. Ah, mas não era qualquer cabelo não, tratava-se do cabelo mais forte do universo. Resistente como aço. Graças a ele Peppa era capaz de coisas incríveis. O tempo foi passando, Peppa foi crescendo e ele também. Ela adorava dias de ventania. Dias de feiras. Brincar de cabo de guerra. Um belo dia Peppa andava pela rua quando de repente, oh! Na frente do salão de beleza havia o seguinte cartaz: “Tratamento intensivo! Alisamos e tratamos qualquer tipo de cabelo, inlusive o seu! Satisfação garantida ou seu dinheiro de volta”. A cabelereira, um pouco espantada, avisou que daria muito trabalho, mas era possível se obter um ótimo resultado. Peppa saiu do salão o com um enorme sorriso, uma enorme sacola de produtos para o cabelo e a parte chata da história: uma enorme lista de proibições. É isso mesmo, para manter as madeixas lisinhas e reluzentes, Peppa estava proibida de:

  • Nadar na piscina;

  • Andar a cavalo;

  • Entrar no mar;

  • Saltar de paraquedas;

  • Andar de montanha russa;

  • Rolar na grama;

  • Tomar chuva;

  • Transpirar demais;

  • Pular demais;

  • Correr demais;

  • Rir demais;

  • Abrir e fechar a porta da geladeira mais de dez vezes ao dia...

A feira ficou um tédio. A vida de Peppa não era mais a mesma... ai que pena, Peppa mal mexia o pescoço, parecia uma múmia. E, tudo foi ficando muito chato. Tchibuuummm!!!! (HOOKS, 2018).

Na capa do livro observa-se que o cabelo da Peppa é longo e crespo, todavia a imagem da criança apresentada não é de cor negra e sim branca. Na página seguinte, em que fala do cabelo da menina, o texto mostra a personagem fazendos coisas incríveis com o cabelo, dentre elas, o cabelo é usado para puxar um berço de criança e não se arrebenta. Neste sentido, pode se inferir pela imagem do livro de que se trata de um cabelo do tipo aço, e esta metáfora é escrita no livro assim “Resistente como aço” (p.2).

Tal fato demonstra a ideologia presente na sociedade ao tratar os cabelos de pessoas negras como “palhas de aço”, referindo aos cabelos como sendo crespos, e apontando em seguida no texto de que estes tipos de cabelos obtem melhores resultados sendo alisados, como segue a história ao retratar o espanto da cabelereira para arrumar o cabelo de Peppa. Retrata ainda a alegria da criança ao sair do salão com o cabelo alisado e com produtos e recomendações para que o cabelo permanecesse sempre arrumado. Entretanto, o que se percebe com o conteúdo do texto é uma tentativa ideológica, de na primeira parte da história de apresentar, demonstrar que quem nasce com cabelos crespos, ao crescer pode mudálos, pois na sociedade existem produtos que fazem com que se tornem lisos, e tão lisos que podem trazer alegria para as pessoas. Neste sentido, o que se valoriza é o cabelo liso em detrimento do cabelo crespo natural.

As escolas, de forma geral, não têm um trabalho para trabalhar a valorização dos cabelos das crianças. De acordo com estudos demonstrados por Nilma Gomes (2010), “o corpo, como suporte da identidade negra” ainda não tem sido trabalhado no campo educacional. Segundo a autora é por meio da educação que a cultura introjeta os sistemas de representações e as lógicas construídas e reconstruídas na vida cotidiana.

Outra parte do livro apresenta também o cabelo da Peppa sendo usado como “cabo de guerra”, e a criança não se importando em ter seu cabelo puxado por outra criança para ganhar uma brincadeira de força. A imagem mostra Peppa com uma criança medindo forças com outras duas crianças que estão a puxar seu cabelo, caracterizando o fato como “brincadeira de criança”. Esta parte da história retratra que a menina tem tanto cabelo e que este ao ser tão resistente como aço não dói ao ser puxado. Ora, como isso é possível?

Na segunda parte da história, observa-se uma tentativa da autora de trabalhar a questão da identidade negra, no sentido de uma valorização do cabelo natural da Peppa, pois apresenta no texto a imagem de Peppa infeliz após o alisamento do cabelo. A menina ao olhar as crianças brincando e se divertindo na praça fica muito triste, pois em sua lista de recomendações está escrito que não pode correr, nem pular, nem nadar, dentre outras atividades próprias de crianças. Sendo assim, mostra Peppa rompendo com todas as recomendações e molhando o cabelo ao entrar na piscina cheia de água. Esta imagem do texto aponta para o que se pode chamar de um contra discurso de uma hegemonia social, no sentido de provocar uma mudança social de discurso, pois ao entrar na piscina e molhar os cabelos a personagem rompe com as prescrições sociais hegemônicas de uma sociedade que valoriza apenas um tipo de cabelo, isto é os cabelos lisos em detrimento de cabelos “resistentes como aço”, como demonstra a história. Neste sentido, o texto e imagens do livro paradidático ao serem trabalhados na disciplina de português podem suscitar discussões muito importantes para a construção da identidade negra das crianças, pois diversas pesquisas, como de Nilma Lino (2010) revelam que existe uma não aceitação das crianças negras nas escolas em relação aos seus cabelos crespos e esta questão precisa ser trabalhada e contemplada nos livros didáticos.

As representações sociais de que cabelo liso é que é bonito e de que cabelo crespo precisa ser alisado precisam ser trabalhadas, pois são práticas sociais construídas historicamente. Sendo assim, a discussão sobre o corpo negro no cotidiano da escola poderá ser uma contribuição não só para o desvelamento do preconceito e da discriminação racial na escola e na sociedade, como também, poderá ajudar aos docentes de língua portuguesa a construir estratégias pedagógicas alternativas que possibilitem compreender a importância do corpo na construção da identidade étnicoracial não só de estudantes, mas de professores negros, mestiços e brancos, e também discutir como esses fatores interferem nas relações estabelecidas entre diferentes sujeitos no ambiente escolar.

Na escola, não só se aprende, mas também pode se reproduzir representações sobre o cabelo crespo e o corpo negro. Neste sentido é preciso se trabalhar com a valorização de todos os tipos de cabelos, e proporcionar um trabalho com a disciplina de português a respeito da autoaceitação do cabelo crespo e natural, pois isto implica necessariamente na aceitação do corpo negro, historicamente tão negligenciado nos currículos escolares e nos livros didáticos. Como afirma Laraia (2001, p.68):

O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura.

Esta valorização dos cabelos, poderia, por exemplo, ser proposta para atividades de língua portuguesa como trabalho não só para o dia da consciência negra na escola, mas como um trabalho com projetos na escola, pois possibilita o debate de estudantes sobre a história da cultura afro-brasileira, no sentido de ajudar os educandos a refletirem sobre a cultura e a identidade negra. Isso ajudaria a todos os discentes negros a não só se afirmarem como negros, mas também se reconhecerem como negros, a partir de textos que narrem suas histórias de forma afirmativa.

O trabalho com o livro paradidático pode vir a evocar no trabalho em sala de aula os preconceitos reveladores de uma prática social, em que há um discurso hegemônico sobre a cultura negra, práticas preconceituosas sobre os negros em que os/as estudantes estão inseridos, pois escutam, cotidianamente, vivenciam e sofrem com o racismo ainda presente nas escolas e nos meios sociais. As atividades com a leitura deste texto pode fazer surgir representações sociais negativas a respeito dos negros, até então, presentes na sociedade, e à medida que tais práticas racistas aparecerem os professores, em suas práticas pedagógicas, podem intervir, questionar e trabalhar para a mudança discursiva, no sentido de construir práticas de valorização da população negra e não de discriminação.

Todavia, a não discussão das questões étnico-raciais e da cultura africana nas escolas é inconcebível em um currículo escolar e em uma sociedade, na qual a diversidade é um fato inegável. Crianças brasileiras de todas as origens étnico-raciais têm direito ao conhecimento da beleza, riqueza e dignidade das culturas negro africanas. Jovens e adultos têm o mesmo direito. E essas discussões devem estar presentes também nos cursos de formação docente. Mas o que se percebe, muitas vezes é um silenciamento dessas discussões ou quando ocorrem se limitam a textos que não retratam aspectos valorizativos da cultura afro. No dizer de Ribeiro (2002), muitas vezes, durante a pesquisa também nos perguntamos: “Que silêncio lamentável é esse, que torna invisível parte tão importante da construção histórica e social de nosso povo, e de nós mesmos? (RIBEIRO, 2002, p.150).

Pensar a diversidade cultural no contexto escolar significa abrir espaços que permitam a transformação da escola em um local em que as diferentes identidades são respeitadas e valorizadas, consideradas fatores enriquecedores da cidadania. Neste sentido, é preciso que os livros didáticos de língua portuguesa tragam propostas de atividades sobre a temática a fim de que os/as docentes possam lidar com a diferença, a partir do exercício do magistério como uma vantagem pedagógica (CANDAU, 2008) e não como algo ameaçador que precisa ser silenciado. Isso é muito para a construção da identidade negra dos /as alunos/as porque como afirma Gomes (2002, p. 39):

Neste sentido que entendo a identidade negra como construção social, histórica e cultural repleta de densidade de conflitos e de diálogos. Ela implica a construção do olhar de um grupo étnicoracial ou de sujeitos que pertencem a um memso grupo étnico-racial, sobre si mesmo, a partir da relação com o outro. Um olhar que, quando confrontado com o do outro, volta-se sobre si mesmo, pois só o outro interpela a nossa própria identidade.

Por meio dos livros e dos textos pesquisados, caso sejam trabalhados nas escolas nas aulas de português podem contribuir para a construção das identidades dos estudantes e o conhecimento da história e da cultura afrobrasileira como propõe a lei nº 10639/2003. Ajudá-los/as a questionarem sobre a opressão que os têm vitimados, mas ao mesmo tempo mostrar-lhes as conquistas e a afirmação de seus direitos e cidadania. Neste sentido, retrata-se politicamente que a ênfase na identidade negra deriva do reconhecimento de que este grupo social tem sido alvo de, inaceitáveis, discriminação racial e preconceitos ao longo da história, todavia tem se travado lutas constantes na afirmação da cidadania plena.

Como observa Orlandi (2001, p.20), “as palavras simples do nosso cotidiano já chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se constituíram e que, no entanto, significam em nós e para nós”. Neste sentido, as narrativas sociais que contam as histórias sobre o mundo e as pessoas e as diferentes culturas precisam ser inseridas nas atividades escolares e nos textos trabalhados pelos docentes. É preciso ainda entender, como afirma Silva Tadeu (1999, p. 26), que a hierarquização, estabelecida pelo currículo produz as diferenças, à medida que “determina o que é superior e o que é inferior a partir de posições de poder”.

Assim, as escolas, ao escolherem os livros e textos didáticos para serem trabalhados na disciplina de português precisam buscar compreender como as minorias, os diferentes, especialmente os negros e os pobres estão representados nesta sociedade e estigmatizados por ela, mas muitas vezes pelo próprio discurso docente e discente em sala de aula. Por esse motivo, é interessante debater, questionar e trazer discussões acerca destas questões, pois é uma possibilidade para que práticas antiracistas sejam trabalhadas nas escolas.

Pelo pouco número de textos sobre a cultura negra que foi encontrado na escola, acredita-se que a temática ainda é discutida de uma maneira muito superficial na disciplina de português. Dessa forma, percebe-se que os conteúdos das relações étnico-raciais têm que ser trabalhados de forma mais efetiva e tem que fazer parte do contexto escolar, não somente de português, mas de todas as outras disciplinas.

Nesta perspectiva do estudo das questões étnico-raciais, percebe-se que em alguns livros antigos há uma representação do negro quase desumanizada, como se ele fosse alguém, um objeto a ser analisado pelo branco, pelo discurso hegemônico presente no currículo escolar.

Ao discutir sobre o discurso na construção de representações, papéis e identidades em contextos socioculturais Fairclough (2008, p.209) mostra que:

As formas pelas quais as sociedades categorizam e constroem identidades para seus membros são um aspecto fundamental do modo como elas funcionam, como as relações de poder são impostas e exercidas, como as sociedades são reproduzidas e modificadas.

Os textos e livros analisados possibilitariam o trabalho com a cultura afrobrasileira nas escolas de ensino fundamental, no sentido de ajudar os estudantes nas aulas a lidarem com as diferenças, a se enxergarem como negros/as e a se valorizarem e serem valorizados/as, e consequentemente a ajudar para práticas antiracistas nas escolas de ensino fundamental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da categoria de prática social no tocante à questão da ideologia e da hegemonia revelam como os discursos da cultura negra presentes nos textos e livros didáticos podem ser constituídores de questionamento e de empoderamento dos sujeitos negros na sociedade. No que se refere às discussões sobre o cabelo de afrodescendentes trazidas no livro pardidático, observa-se que ao serem trabalhados na disciplina de português podem servir tanto para a reprodução e manutenção de práticas racistas e preconceituosas ainda presentes nas escolas e nos currículos escolares, quanto para o questionamento dessas práticas sociais. Além disso, de inserção da cultura afro nas atividades de linguagem e para o trabalho com os educandos de práticas antiracistas.

A estratégia discursiva dos textos trabalhados na disciplina de português podem promover o questionamento e o conhecimento dos estudantes acerca também de escritoras negras, mulheres negras que alcançaram no campo social uma imagem positiva. Todavia, cotidianamente, devido ao silenciamento provocado pelo currículo tais temáticas não são apresentadas nas disciplinas de português aos discentes, a não ser por um ato político de professores adeptos à luta contra o racismo nas escolas e / ou por serem temáticas de objeto de pesquisas realizadas nas escolas, como mostram as pesquisas a respeito da temática.

Percebe-se, pela análise dos textos que o processo de mudança das práticas sociais quanto às representações da identidade negra precisam ser questionadas no cotidiano escolar, bem como as práticas discursivas racistas, que ainda permeiam na sociedade e nos discursos sociais, principalmente por meio dos textos e livros didáticos, impedindo os estudantes de se enxergarem e reconhecerem sua cultura negra e seus direitos, considerando que esta cultura ainda está silenciada nos livros didáticos de português.

Portanto, conclui-se que, apesar da temática étnico-racial ainda ser pouco discutida nos livros didáticos, é preciso considerar que o trabalho com os conteúdos da história, da África e da cultura afro-brasileira é essencial na disciplina de português, no sentido de promover a resistência e a luta, a fim de se fazer concretizar nas escolas e na sala de aula um currículo heterogêneo, que respeita as diferenças e que ajude não só nos trabalhos de ações antirracistas, mas também contribuir para minimizar e descontruir o racismo nas escolas e consequentemente na sociedade. Ademais, poderá ainda promover mudanças sociais, por meio de um contra discurso, e reverter práticas sociais racistas, por meio das escolhas de livros didáticos e textos que trabalhem a cultura afrobrasileira de forma positiva.

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Recebido: 28 de Fevereiro de 2019; Aceito: 09 de Dezembro de 2019

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