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Revista Exitus

versión On-line ISSN 2237-9460

Rev. Exitus vol.10  Santarém  2020  Epub 30-Mar-2022

https://doi.org/10.24065/2237-9460.2020v10n1id1274 

Artigos

CURRÍCULO OCULTO E A ARTE DENTRO DE UM PLANEJAMENTO EDUCACIONAL: estudo de caso a partir do programa Ciência e Arte nas Férias (CAF)

HIDDEN CURRICULUM AND ART WITHIN AN EDUCATIONAL PLANNING: case study from Science and Art on Holidays (CAF) program.

CURRÍCULUM OCULTO Y ARTE EN LA PLANIFICACIÓN EDUCATIVA: el programa Ciencia y Artes en Vacaciones (CAF) como caso de estudio

Alan Isaac Mendes Caballero1 
http://orcid.org/0000-0003-1270-0971

Amanda Leal Oliveira2 
http://orcid.org/0000-0001-7767-6170

Gabrielle Audrey de Sousa Costa3 
http://orcid.org/0000-0002-2195-8547

Ana Elisa Spaolonzi Queiroz Assis4   
http://orcid.org/0000-0003-3759-4845

1Mestrando em Educação na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/UNICAMP). Campinas, São Paulo, Brasil. OrcID: http://orcid.org/0000-0003-1270-0971. E-mail: alanisaac09@hotmail.com

2Bióloga pelo Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB/UNICAMP). Campinas, São Paulo, Brasil. OrcID: http://orcid.org/0000-0001-7767-6170. E-mail: amandaleal.oliveira@gmail.com

3Pedagoga pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE]UNICAMP). Campinas, São Paulo, Brasil. OrcID: http://orcid.org/0000-0002-2195-8547. Email: gabi_aldrey@hotmail.com

4Pós-doutora em Educação. Professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/UNICAMP). Campinas, São Paulo, Brasil. Professora da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Pouso Alegre, Minas Gerais, Brasil. OrcID: https://orcid.org/0000-0003-3759-4845. E-mail: anaelisasqa@gmail.com

Pós-doutora em Educação. Professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/UNICAMP). Campinas, São Paulo, Brasil. Professora da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Pouso Alegre, Minas Gerais, Brasil. OrcID: https://orcid.org/0000-0003-3759-4845. E-mail: anaelisasqa@gmail.com


RESUMO

Este artigo tem como objetivo compreender os aspectos envolvidos na construção de um currículo oculto, através do qual se desenvolvem aprendizagens que não foram previstas no planejamento educacional previamente estipulado. O meio pelo qual realizaremos esta análise é através do relato da experiência docente durante o Programa “Ciência e Arte nas Férias”, promovido pela Pró-Reitoria de Pesquisa (PRP) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), no primeiro semestre do ano de 2017. A interação com quatro bolsistas do ensino médio nos permitiu reflexão tendo como base o currículo oculto, a partir de suas experiências pessoais no projeto “Direitos Fundamentais, Artes e Jogos: um diálogo multidisciplinar”. A centralização do planejamento de ensino nas realidades trazidas pelas bolsistas para a sala de aula, de forma a relacionar o conteúdo do projeto com as experiências vividas, foi recompensado com o empoderamento delas sobre sua atuação política na sociedade, relativizando o capital cultural a favor das bolsistas, para que elas utilizassem sua própria cultura para pensarem o campo jurídico e se posicionarem nele enquanto sujeitos de direitos.

Palavras-chave: Currículo Oculto; Planejamento de Ensino; Direitos Fundamentais; Arte

ABSTRACT

This article aims to understand the aspects involved in the construction of a hidden curriculum for the development of types of learning that were not foreseen in the educational planning previously stipulated. For that purpose, we analyzed the report of the teaching experience during the “Science and Art on Holidays” Program, promoted by the Dean's Office of Research of the State University of Campinas (UNICAMP) in the first semester of 2017. The interaction with four scholarship holders attending high school allowed us to reflect on the hidden curriculum based on their personal experiences in the project “Fundamental Rights, Arts and Games: a multidisciplinary dialogue”. The centralization of teaching planning in the realities brought by the scholarship holders to the classroom, in order to relate the content of the project with the lived experiences, was rewarded with their empowerment over their political performance in society, relativizing the cultural capital in their favor, so that they could use their own culture to think about the legal field and position themselves as subjects of rights.

Keywords: Hidden Curriculum; Teaching Planning; Fundamental rights; Art

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo comprender los aspectos involucrados en la construcción de un currículum oculto, a través del cual se desarrollan aprendizajes que no estaban previstos en la planificación educativa previamente estipulada. El medio por el cual llevaremos a cabo este análisis es a través del informe de la experiencia docente durante el Programa "Ciências e Arte nas Férias” (“Ciencia y Arte en Vacaciones”, traducción libre), programa promovido por la Rectoría de Investigación (PRP) de la Universidad Estatal de Campinas (UNICAMP) en el primer semestre de 2017. La interacción con cuatro estudiantes becados de la escuela secundaria nos permitió reflexionar sobre el plan de estudios oculto basado en sus experiencias personales en el proyecto "Derechos fundamentales, artes y juegos: un diálogo multidisciplinario". La centralización de la planificación docente en las realidades aportadas por los becarios al aula, a fin de relacionar el contenido del proyecto con las experiencias vividas, fue recompensada con su empoderamiento sobre su desempeño político en la sociedad, relativizando el capital cultural en favor de académicos, para que pudieran usar su propia cultura para pensar sobre el campo legal y posicionarse como sujetos de derechos.

Palabras clave: Currículum oculto; Planificación de la enseñanza; Derechos fundamentales; Artes

INTRODUÇÃO

O Programa “Ciência e Arte nas Férias” (CAF) é desenvolvido anualmente durante as férias de verão dentro do ambiente dos campi da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Tendo como público alvo os estudantes de ensino médio das escolas de educação pública, da região de Campinas (Diretorias Leste e Oeste), Limeira e Piracicaba. O projeto visa gerar interesse desses alunos na esfera científica, envolvendo-os em atividades artísticas e de pesquisa.

Dentre os projetos propostos, o estudo de caso em questão refere-se ao intitulado “Direitos Fundamentais, Artes e Jogos: um diálogo multidisciplinar” que foi oferecido pela Faculdade de Educação (FE). Durante o período de atividades foram desenvolvidos conceitos relacionados a direitos humanos, sociais e individuais, através de jogos de tabuleiro e atividades artísticas (colagens, pinturas em tela, desenho com carvão, etc.). O grupo era composto por quatro alunas, três monitores e uma professora orientadora.

O projeto, em termos estruturais, foi elaborado pela orientadora, cujo interesse consistiu em explorar a aprendizagem dos direitos fundamentais a partir do caráter lúdico das artes e dos jogos. Estes dois temas foram trabalhados, separadamente, na edição do CAF do ano anterior por orientadoras diferentes, porém, com o mesmo objetivo de refletir direitos fundamentais. A proposta para este ano, oportunamente, juntou os jogos e as artes para dividirem espaço no projeto, proporcionando outras possibilidades de interação para compreender os sujeitos e seus direitos.

A monitoria foi imprescindível para o acolhimento das bolsistas, uma vez que os monitores foram responsáveis por planejar e construir as atividades a partir das diretrizes elaboradas pela orientadora, além de acompanharem os processos educativos diariamente. Dentre os monitores, havia um coordenador responsável por mediar o contato entre a orientadora e os demais envolvidos, requerer material ou verba à orientadora e acompanhar as atividades com as bolsistas.

Para a construção deste artigo, contamos com a observação e anotação das situações vividas em sala de aula em caderno de campo, material escrito produzido pelos estudantes nas atividades, produções artísticas (colagens, quadros e pinturas) das estudantes, registro fotográfico e os debates e discussões vividos nos ambientes educativos.

Antes de iniciarmos os pormenores acerca das experiências vividas pelas estudantes, faremos uma explanação trazida por meio de bibliografia adequada, sobre teorias do currículo e a etapa de planejamento de ensino. Estas duas temáticas têm o propósito de conduzir o debate à relação educador ↔ educando e a importância do primeiro conhecer as experiências dos educandos, integrá-las ao seu planejamento e garantir aproximação entre o conteúdo proposto e a realidade dos educandos no formato de um estudo de caso.

CURRÍCULO, SABER E PODER

O currículo sugere, inicialmente, uma organização de saberes necessários para viver socialmente. Seu uso pelos profissionais da educação cumpre o papel de socializar as pessoas através de conhecimentos previamente definidos, com função de organizar e processar os indivíduos através da educação recebida (BEANE & APPLE, 1997). Entretanto, o currículo não é atemporal ou trans-histórico, o que implica dizer que ele também não é universal ou estático, e assim se configura por estar relacionado aos saberes.

Charlot (2000) diferencia informação, saber e conhecimento, passagem extremamente útil para pensarmos o que o currículo abarca:

A informação é um dado exterior ao sujeito, pode ser armazenada, estocada, inclusive em um banco de dados; está “sob a primazia da objetividade”. O conhecimento é o resultado de uma experiência pessoal ligada à atividade de um sujeito provido de qualidades afetivo-cognitivas; como tal, é intransmissível, está “sob a primazia da subjetividade”. Assim como a informação, o saber está “sob a primazia da objetividade”; mas, é uma informação de que o sujeito se apropria. Desse ponto de vista, é também conhecimento, porém, desvinculado do “invólucro dogmático no qual a subjetividade tende a instalá-lo”. O saber é produzido pelo sujeito confrontado a outros sujeitos, é construído em “quadros metodológicos”. Pode, portanto, “entrar na ordem do objeto”; e tornar-se, então, “um produto comunicável”, uma “informação disponível para outrem”. (CHARLOT, 2000, p. 61).

Pela abordagem de Charlot (2000), o currículo trata de saberes e não de conhecimentos por comunicar informações objetivas, de outra forma (se fosse intransmissível) seria um aprendizado. Se o saber, assim como o currículo, pertencem ao mundo objetivo, cujas propriedades podem ser compartilhadas, podemos inferir a possibilidade de mudança na estrutura e no conteúdo do saber comunicado.

Para Bourdieu (2009a), Young (2000) e Beane & Apple (1997) o currículo é uma construção sócio-histórica. São os membros de uma sociedade que elegem conhecimentos a serem tornados públicos e difundidos, de acordo com as especificidades culturais do coletivo para formarem nossos indivíduos aptos a viver e reproduzir os valores, interesses e motivações dessa cultura.

Quando abordamos currículo, o caráter formal de educação deve ser ressaltado, bem como as instituições responsáveis por oferecer educação como a escola. A cultura não precisa da escola para se manter, mas adotamos a postura de que ela escolhe determinados conhecimentos para serem repassados às próximas gerações. Essa cultura pode ser entendida enquanto um saber que mantém uma organização social, tradições e costumes de um coletivo, por uma relação imposta aos indivíduos mais novos (que não conhecem os códigos sociais) e pelos mais velhos (detentores dos saberes culturais a serem ensinados).

Todos os sujeitos são obrigados a aprender quando estão no mundo, devem se apropriar dele a qualquer custo (CHARLOT, 2000). Alguns conhecimentos, no entanto, são objetivados, selecionados e configurados como informação para serem transmitidos e incorporados como saber por sua utilidade social, podemos dizer, em outras palavras, que os saberes são socialmente organizados (YOUNG, 2000).

Young (2000) traz um ponto importante para a discussão: a estratificação dos diferentes tipos de conhecimento. Isto significa que “Todo currículo envolve pressupostos de que alguns tipos e áreas de conhecimento são mais “valiosos” do que outros” (YOUNG, 2000, p. 33). A valorização de um mesmo conhecimento difere entre sociedades por elas serem formadas por histórias e culturas diferentes, o que significam experiências, memórias, narrativas e propósitos sociais diversos para fins específicos.

A estratificação do currículo é uma afirmação de poder, já que a decisão sobre os saberes nele organizados não é feita democraticamente, mas confiada a grupos de especialistas ou mesmo impostas por grupos que dispõe de ferramentas institucionais para controlar os conteúdos veiculados aos aprendizes. Saber e poder emaranham-se numa rede tão complexa que seria desastrosa uma análise que os separasse (FOUCAULT, 2007).

A construção do currículo prepara os sujeitos para viver uma realidade, seus saberes estão, portanto, vinculados à realidade pretendida; preparar os aprendizes para viverem na realidade em que esses saberes são úteis. Em contrapartida, como relata Bourdieu (2009a), a escola ao avaliar o estudante, não avalia um conhecimento neutro senão a cultura a qual o estudante se apropriou. Se, determina o currículo quem tem poder, logo, podemos classificar esse grupo como dominantes por inserirem no currículo escolar conhecimentos que perpetuam a história e as práticas que lhe dizem respeito, ao mesmo tempo, desqualificam qualquer outra cultura que não sirva aos seus interesses; excluindo-a do currículo escolar.

Neste cenário de forças, os dominantes aplicam uma dupla violência aos dominados: a) impõe sua cultura como se fosse a única existente, daí a única a ser ensinada e aprendida; e b) ocultam toda a história que reveste essa imposição, fazendo parecer que é tudo natural (BOURDIEU, 2009b; SILVA, 2005).

Os postulados aos quais chegamos são que, os saberes curriculares, em situações assimétricas de poder, dizem respeito a uma cultura específica e a facilidade de aprendê-los viria do contato prévio com esses saberes. Mesmo a interiorização desses conteúdos nos mesmos meios, evidenciou um processo de violência simbólica por negar ao estudante sua cultura de origem a favor da dita alta cultura oferecida pelo currículo (considerado) padrão (BEANE & APPLE, 1997; BOURDIEU, 2009a).

O que é ensinado nas escolas pode, muitas das vezes, ser um saber descontextualizado da realidade de alguns alunos, mas a apropriação de um saber exige que o estudante seja capaz de situar esse novo conhecimento nas suas experiências, significando-o e atribuindo sentido, passando a fazer parte de sua história (CORTELLA, 2008).

Numa abordagem marxista, a prática de um saber é vital para seu aprendizado, se a escola não proporciona isso aos seus aprendizes, eles devem encontrar outras formas de significação para interiorizá-lo (TARDIF & RAYMOND, 2000).

O currículo oculto está presente na realidade de qualquer instituição escolar e sua grande influência afeta a aprendizagem dos alunos e o trabalho dos professores. Representa a natureza inconsciente do cotidiano escolar e modela práticas, atitudes, comportamentos, gestos, percepções de todos os envolvidos no processo de aprendizagem (MELO et al., 2016, p. 2000).

Existem, em alguns casos, pré-requisitos para apreender um saber curricular, como se tratasse de um currículo oculto: todos esses conhecimentos que acompanham os saberes curriculares e não são ensinados pela escola, que cada criança, jovem ou adulto deve ter a sorte de ter vivido uma situação que sirva de suporte associativo para aprender o saber instituído.

PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES

A elaboração do currículo envolve uma etapa de planejamento, cuja função é mediar e articular o trabalho coletivo na educação (SILVA, 2007, p.1). Dentro das arbitrariedades que envolvem qualquer planejamento, nossa concepção de educação está firmada na autonomia do educando, desenvolvimento de senso crítico e de protagonismo sobre suas ideias, características importantes para viver num mundo predominantemente capitalista e de tendências globalizantes.

Ao discutir direitos fundamentais, objetivou-se a construção da identidade dos educandos enquanto cidadãos do mundo e sujeitos de direitos, bem como a compreensão de valores tais quais solidariedade, reciprocidade, cooperação, atividade e responsabilidade. As leituras em conjunto da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) (1945) e de trechos da Constituição Federal (CF) (1988) configuraram-se bases essenciais do projeto.

Ao explorar o tema da cidadania nos defrontamos com interesses democráticos, pois esperamos que um cidadão esteja ciente sobre direitos sociais e individuais, que mantenha proximidade com o Estado nas diversas instâncias do sistema político e que contribua para uma boa convivência em sociedade (ARENDT, 2010). Deseja-se que o bom cidadão seja um sujeito que compreende a importância do bem comum, vive harmoniosamente em coletivo e não se omite de suas obrigações e deveres. Do mesmo modo, está ciente de que é necessário um grande número de cidadãos engajados com a cooperação e a colaboração entre seus pares e entre a sociedade civil e o Estado (BEANE & APPLE, 1997).

Nosso planejamento pedagógico, no entanto, não encontrou seu fim na pura elaboração de um currículo para a cidadania e a compreensão dos direitos humanos, sociais e individuais de forma lúdica e multidisciplinar. Ao estabelecer relações com as bolsistas e dividir o mesmo espaço educativo, elas compartilharam narrativas pessoais de injustiça e insatisfação com situações cotidianas, algumas vezes naturalizando essas mesmas situações de desigualdade social como incorrigíveis e inevitáveis.

Tardif & Raymond (2000) estabelecem dois tipos de saberes consubstanciais à docência: os saberes pré-profissionais e os saberes profissionais. Os primeiros são apreendidos antes dos indivíduos atuarem profissionalmente, ou seja, são as experiências vividas na infância, família, escola etc.; são fundamentos existenciais que corroboraram para o sujeito pensar sua vida e atribuir-lhe certezas. Já o segundo são os ensinamentos, funções, paradigmas e práticas do trabalho docente.

Com isto, queremos estender a teoria de Tardif & Raymond sobre o saber e a prática docente para refletir sobre os saberes discentes. Segundo os autores, todo saber-fazer - saber necessário à prática profissional - é antecedido por um saber-ser - conhecimentos que constroem uma identidade “aceitável para si e para o Outro” (TARDIF & RAYMOND, 2000, p. 216).

A partir de uma atividade ou trabalho, os sujeitos se transformam e dão sentido à sua existência, assim, o que as bolsistas expressam são sua própria história e o sentido que atribuíram a ela. Mesmo quando defendiam discursivamente princípios como a igualdade e a liberdade, propunham, muitas vezes, soluções que, a nosso ver, tornavam seus princípios inconsistentes.

Um exemplo é a defesa à meritocracia como forma de garantir o acesso à educação pública nas universidades através do vestibular, cujo pressuposto de igualdade avaliativa e não discriminação dos saberes dos avaliados mascara a não neutralidade do saber, mencionado anteriormente, fazendo o vestibular brasileiro (e demais instrumentos avaliativos similares) funcionar como instrumento de exclusão, não garantindo educação a todos, e, por isso, não proporcionando igualdade a todos de forma justa (DUBET, 2004).

Outro bom exemplo são as discussões sobre aborto, saúde e o direito à vida, no qual alguns bolsistas argumentaram a favor da vida do feto e não refletiam sobre os danos à saúde física e psicológica da mulher gestante ou o que significava passar pela experiência de ter um bebê, as mudanças no corpo que alteram significativamente sua imagem de si mesma e o próprio conceito de vida dissociado do bem-estar e da dignidade da pessoa humana5 (SOLOMON, 2013).

Os assuntos discutidos no grupo em questão concentraram-se em torno de aborto, preconceito (mais especificamente o racismo) e conflitos nas escolas, sendo que é impossível desvincular o aparecimento de tais temas nos debates de um contexto socioeconômico em que os alunos estão inseridos. O grupo era constituído por quatro alunas de idades entre 15 e 17 anos, provenientes de escola pública, moradoras da cidade de Campinas e duas delas consideravam-se negras. Todas presenciaram, em algum momento de suas vidas ou cotidianamente, situações abertamente preconceituosas e de gravidez precoce entre os jovens da sua faixa etária, o que levava diretamente a questão do aborto, por exemplo.

De certa forma o projeto acabou adquirindo os temas como parte das discussões diárias, mesmo que não estivessem explicitados no plano educacional inicialmente proposto. Dentro das atividades artísticas, em vários momentos é possível perceber como os temas foram expostos e trazidos à tona de acordo com a discussão permeada por cada atividade.

Praticar a cidadania requer um saber-fazer. Ao ensinar sobre direitos fundamentais, esperávamos que as bolsistas compreendessem a necessidade e o valor dessas práticas para incorporá-las na sua vida. Pensamos o currículo como fator de mudança social e desenvolvimento da criticidade com relação ao mundo de direitos. Para alcançar esses objetivos, precisávamos pré-ocupar os estudantes, no sentido utilizado por Cortella (2008), isto é, encontrar um contato prévio que os bolsistas tiveram com o tema para preocupá-los.

[...] Fica cada vez mais evidente que parte substancial do desinteresse (e da “indisciplina”) encontrado em muitos dos nossos alunos pode ser atribuído ao distanciamento dos conteúdos programáticos em relação às preocupações que aqueles trazem para a escola (CORTELLA, 2008, p. 95).

Destarte, o saber-fazer que nosso currículo pretendia ensinar às bolsistas deveria ser consonante ao seu saber-ser (TARDIF & RAYMOND, 2000). Não cabia a nós somente instruir, como também conhecer e explorar as subjetividades desses sujeitos, para atingir nosso compromisso pedagógico de relativizar a cultura e o poder pela construção de um ambiente democrático de ensino, ainda que os monitores tivessem uma postura investigativa de retroalimentar seu planejamento, enquanto os estudantes adotaram posturas conformadas com o planejamento sugerido.

O início das atividades foi inaugurado com um tour pela universidade, importante para as bolsistas conhecerem os serviços públicos que a Unicamp presta à sua comunidade, como atividades de extensão, as bibliotecas, espaços culturais, localização das faculdades e institutos, visto que as estudantes tinham ciência dela por seu atendimento de saúde do Hospital de Clínicas.

As rodas de conversa acompanharam grande parte das atividades. Percebemos que fazer a roda trazia um conforto maior para trocar experiências e transmitir confiança. Este foi tomado por elas como um momento para falar e ser ouvido, invertendo a tradicional lógica do aluno ouvinte e do professor orador. Foi decidido, num consenso implícito, que aquele era o espaço para opiniões, embora fosse emergencial complementar as falas com “isso é o que eu acho, mas é minha opinião”, como se estivessem se defendendo de uma correção que estivesse por vir.

A desconstrução acompanha a construção em diversas situações de ensino. Para ensinar cidadania precisamos desincentivar práticas que não contribuem para sua formação, mas isto não basta, é necessário, ainda, sugerir uma nova prática que substitui a anterior, devemos sugerir propostas de ação. Desconstruir pode ser visto como deixar lacunas nas visões de mundo para inserir ou construir uma perspectiva mais adequada. Deste modo, reconfiguramos um sentido que existia na relação Eu-Mundo ou Eu-Outro das bolsistas. Vimos que fomos atenciosos em não permitir que as ideias delas simplesmente desvanecessem, perdessem um sentido sem o esforço de elaborar uma nova compreensão sobre o tema desconstruído.

Ao intervir como dialogadores (monitores), questionamos e provocamos as bolsistas a repseito das ideias e discursos que compartilhavam em sala. Esta posição, enquanto praticada por educadores, não deve e nem se justificou pela correção, senão pela relação que o estudante estabelece consigo mesmo num momento de reflexão, autoconhecimento ou autocompreensão. Quando as bolsistas se expressavam, o faziam porque possuíam uma identidade naquele momento e falavam algo sobre si, sobre sua história e suas certezas; quando questionadas reinterpretaram ou reafirmaram suas experiências a partir dos valores que seguiam e do seu senso de justiça.

Isto é denominado como experiência de si6·: são os dispositivos utilizados para tornar-se sujeito.

Uma cultura inclui os dispositivos para formação de seus membros como sujeitos ou, [...] como seres dotados de certas modalidades de experiência de si. Em qualquer caso, é como se a educação, além de construir e transmitir uma experiência “objetiva” do mundo exterior, construísse e transmitisse também a experiência que as pessoas têm de si mesmas e dos outros como “sujeitos”. Ou, em outras palavras, tanto o que é ser pessoa em geral como o que para cada uma é ser ela mesma em particular. (LARROSA, 1994, p. 45)

A opinião, para fins de análise, vem a ser a perspectiva particular do Eu sobre o Mundo. Dar voz à opinião foi fundamental para o envolvimento das bolsistas com as temáticas, atividades sugeridas e até na relação educandas ↔ educadores que se formava a partir daí.

Corrigir envolve muita meditação sobre o ato, pois espacializa os atores entre quem corrige e quem é corrigido. As bolsistas descreveram suas escolas e os ambientes de ensino, que podemos chamar de espaços disciplinadores, logo, a correção é constante (seja sobre o corpo, a fala ou as ideias) produzindo no sujeito a impressão que quem foi corrigido estava errado. Daí, o erro é motivo de vergonha e esta, por sua vez, gera timidez (desmotivação, desconforto, silenciamento) para falar sobre si mesmo.

Nossa postura, no entanto, esteve mais próxima nos debates, de um enunciado foucaultiano sobre a Verdade: “O problema não é mudar a ‘onsciência’ das pessoas ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção de verdade” (FOUCAULT, 2007, p. 14). Ao gerar dúvidas nas estudantes, pretendemos criar um compromisso delas consigo mesmas para a construção de seus sujeitos enquanto produtos de um discurso.

O erro não esteve lá para diminuí-las, pelo contrário, foi tomado como um recurso para as bolsistas refletirem sobre si mesmas. A partir daí, entendemos que elas poderiam situar-se com maior facilidade no campo jurídico. Numa perspectiva tradicional, demonstraríamos como o direito é efetivamente cumprido e normatizado, entretanto, nosso propósito contou com uma dimensão adicional: explorar o que as estudantes esperam dos direitos e promover um diálogo que contribui para incentivar ações transformadoras das estudantes para com seus direitos ao sentirem-se insatisfeitas enquanto sujeitos desses direitos.

Doravante, “Errar é, sem dúvida, decorrência da busca e, pelo óbvio, só quem não busca não erra” (CORTELLA, 2008, p. 93). Permitimos que a sala fosse um ambiente de simulação onde o erro é permitido, discutido, repensado, reconstruído e desconstruído entre os pares, sem preocupá-las com a violência de serem disciplinadas a pensarem de outra forma. Introduzimos conceitos importantes para pensarem o direito sem que elas abandonassem seus valores, princípios e certezas sobre suas próprias vidas e a forma como enxergavam o mundo. Caso sentissem a necessidade de incorporar um acontecimento, fariam-no (e fizeram) porque teriam ressignificado suas próprias experiências acerca de seus direitos.

Pedir um feedback escrito com parabenizações e sugestões de mudanças/reclamações/incômodos nas atividades desenvolvidas ao final da primeira semana de projeto contribuiu para democratizar o planejamento do projeto. Algumas experiências agradáveis para as bolsistas por nós percebidas foram: os sentimentos de viverem a ótima oportunidade de discutirem os assuntos sem o medo de serem repreendidas; perceber como os filmes, além do potencial de divertimento, são uma forma de expressar situações reais; assistirem a palestras de professores convidados; e fazer arte e perceberem seu potencial educativo.

Nas sugestões de mudanças discutidas em sala estão: aumentar a frequência dos lanches; encontrar espaços alternativos à sala de aula, como um gramado, uma biblioteca, e assim por diante; jogos dinâmicos, além dos jogos de tabuleiro do planejamento; otimização do tempo das discussões, visto que as conversas, quando se tornavam relatos pessoais, nem sempre retornavam para o tema inicial, fazendo do espaço da aula mais um momento terapêutico por compartilhar a experiência vivida a um grupo dedicado ao estudo dos direitos do cidadão. Todas estas sugestões foram acompanhadas de uma boa impressão sobre o projeto, elogios e gentilezas das estudantes para os monitores.

Assim, foram discutidas novas propostas a partir dos relatos das bolsistas. Todas as sugestões/incômodos/preocupações foram acatadas, tendo em vista que elas ajudariam a proporcionar um ambiente criado pela decisão delas, portanto, democrático. Também não foram encontrados motivos para não fazê-los, já que todas as sugestões passam a funcionar como propostas didáticas do ponto vista pedagógico deste exercício de “ouvir” as bolsistas. Desde a alimentação e a socialização entre os pares que ela promove até evitar assuntos “aleatórios” ou aparentemente desconexos com o tema inicial, momento em que as estudantes, talvez, queiram dizer “não estamos preocupadas com isso” (o assunto não foi introduzido como conhecimento, mas como saber ou informação) ou “este assunto não é mais preocupante” (o assunto já é conhecimento) (CHARLOT, 2000).

ARTE E SUBJETIVIDADE

Parte do currículo proposto pelo projeto contemplava a arte como forma de expressão e síntese dos conteúdos aprendidos pelas alunas bolsistas. Para realizar este trabalho, foram escolhidos quatro artistas7 cujas obras relacionaram-se aos temas geradores da semana e serviram de fonte de discussão e inspiração aos trabalhos elaborados durante o projeto, através do processo criativo das estudantes. Além disso, tivemos atenção com o uso de diferentes técnicas, visando propiciar o contato com diferentes usos das artes plásticas e visuais.

Nas primeiras obras de colagem executadas, observa-se explicitamente como a problemática do preconceito racial, social, linguístico e cultural é presente na vida dessas estudantes. Estes temas permearam constantemente todas as atividades seguintes, sendo pano de fundo de cada uma das obras artísticas resultantes do projeto.

Sob esta ótica, podemos ver que a ideia de leitura da imagem não deve ser um mero exercício de decodificação de códigos. A interpretação se dá através do uso da metalinguagem, que é definida como a leitura da obra sobre ela mesma. Desta forma, avalia-se as obras a partir de um discurso, às vezes silencioso, gráfico e verbal, apenas na visibilidade primária (BARBOSA, 1989). Em uma de suas obras, Vigotski afirma que:

A arte é para a vida como o vinho para a uva - disse um pensador, e estava coberto de razão, ao indicar assim que a arte recolhe da vida o seu material mas produz acima desse material algo que ainda não está nas propriedades desse material. (VIGOTSKI, 1999, p. 308)

Sendo assim, partimos do princípio da arte como ferramenta de reflexão, exposição de ideias e criação de algo novo a partir da vida em si. Ao desenvolverem colagens e pinturas, as alunas fizeram uso de suas bagagens culturais e sociais para dar origem a uma nova identidade, construir uma narrativa na qual a interpretação é livre e as raízes são palpáveis.

As obras à esquerda da Figura 1 expressam, fundamentalmente, o racismo. Podemos identificá-lo na colagem por frases como “Me ver pobre, preso ou morto já é cultural…” e “A ignorância está em aceitar do jeito que se chega aos olhos”, produzidos por uma das estudantes (à esquerda e abaixo, na Figura 1), e o foco para as imagens de pessoas negras, bem como o faz outra estudante (à esquerda e acima, na Figura 1), em conjunto, ainda que divida em sua colagem o recorte de uma enchente, se preocupando em demonstrar problemas ambientais, numa mesma obra que denuncia “raça” (palavra utilizada na colagem).

Fonte: Acervo pessoal dos autores

FIGURA 1 Trabalhos individuais resultantes da discussão sobre direitos humanos. 

Em contrapartida, os trabalhos à direita da Figura 1 são menos específicos e expressam diretamente os direitos humanos como vistos na DUDH (1948), como faz uma estudante ao centralizar a frase “Independente da minha cor de pele e/ou sexualidade tenho o direito de ser tratado(a) igual você” numa das colagens, ou a representação do aborto com a foto de uma criança e ao lado escrito “Direito à vida!” e, de forma semelhante, uma imagem de soldados armados com o seguinte questionamento: “Será que é hora de chamar as tropas? E a paz?”.

Nas primeiras produções artísticas, conseguimos destacar elementos metalinguísticos que falam sobre uma possível realidade vivida pelas estudantes, desde a experiência de ser percebida como negra (que ainda não dialogam diretamente com o direito, mas é etapa essencial para afirmar sua posição social, compartilhar sua subjetividade pela arte e refletir sobre seus recursos e impedimentos culturais) até as estudantes que estabelecem uma conexão visível entre sua obra e o direito, ainda que sem relacionar diretamente a colagem com suas experiências pessoais, porém, fazem-no a partir de ideais cultivados numa perspectiva coletiva, do bem comum e universal, como bem discutimos os direitos humanos.

Entendemos que, a princípio, duas estudantes desprendem suas experiências com a pobreza e o racismo nas colagens e se reafirmam nelas, e junto disso aparecem outros temas marginais (por estarem em menor quantidade, como as questões ambientais). Por sua vez, as demais bolsistas mostram uma disponibilidade maior para assumir uma responsabilidade para com o outro, a ponto da igualdade ser mais crucial sob o discurso de sermos iguais perante a lei, enquanto as primeiras estudantes, ao falarem de igualdade, partem de um discurso sobre a própria experiência para dizer que não somos iguais, pois não temos oportunidades iguais: “Somos o que queremos ser ou o que podemos ser?” (Figura 1).

Em um segundo momento, ao trabalharmos direitos sociais a partir da realidade vivida pelas meninas, a temática da segregação urbana surgiu na obra coletiva. Pode-se perceber pelo desenho que a região de periferia é retratada de forma desigual, dividida do restante da cidade, porém, com mais cores. Esta retratação pode estar ligada ao fato de elas, em sua maioria, habitarem bairros periféricos da cidade de Campinas e possuírem uma relação de familiaridade e pertencimento com estes locais.

O tema da liberdade foi crucial, acompanhado da ideia de igualdade. O discurso meritocrático reapareceu incessantemente nos discursos de algumas estudantes. Uma delas sugeriu que os sujeitos, de forma geral, possuem o poder de escolher o futuro que desejam para si, alcançando-o com competência e força de vontade (DUBET, 2004). A partir destes pressupostos, a igualdade aparece como um equívoco conceitual devido ao ocultamento do capital cultural (BOURDIEU, 2009a) e dispositivos de poder que atuam como disciplinadores das ações dos sujeitos (FOUCAULT, 2007).

Na Figura 2, a representação de um ônibus no canto do desenho é uma referência ao filme Na Natureza Selvagem (Direção: Sean Peann, 2007), cujo personagem principal caracteriza-se por um homem branco, heterossexual, de família abastada, ávido leitor e recém-ingressado numa universidade de prestígio, ou seja, possui capitais social, econômico e cultural para uma vida de oportunidades, e até de uma vida digna.

Fonte: Acervo pessoal dos autores

FIGURA 2 Trabalho coletivo resultado da temática de direitos sociais 

Este personagem utiliza de sua liberdade para renunciar aos prestígios sociais conquistados graças aos esforços da família, de sua boa educação, dos contatos e alianças com amigos e conhecidos. Em suma, o começo do filme esboça a possibilidade de uma vida alternativa baseada no poder da escolha que um indivíduo possui sobre a própria vida. O que comoveu as estudantes a refletirem sobre a (im) possibilidade de abandonar a sociedade (como faz o protagonista).

Ao final de sua vida, o protagonista anota em seu caderno uma frase, a mesma escolhida pelas alunas para fazer parte de seu desenho com carvão e canetinhas coloridas: “A Felicidade só é boa quando compartilhada”. A partir desta premissa colocada pelo filme, os direitos sociais passam a fazer mais sentido, dado que é exigida dos sujeitos uma vida coletiva, o pensar a boa convivência, o formar-se a partir do outro. Numa abordagem sóciocultural, nos desenvolvemos a partir do outro, por isso, a defesa aos direitos sociais, ilustrados pelo Artigo 6º da CF, são uma defesa ao direito do outro e, assim, uma defesa ao nosso próprio direito.

As bolsistas, no desenho coletivo, optaram por apresentar criticamente a segregação da favela e da cidade: os direitos sociais divididos (moradia, saúde, cultura etc.), portanto, sem garantias de que haja justiça, a não ser aquela que depende da sorte de nascer numa boa família, pelas exigências morais (em que, muitas vezes, podemos encontrar o preconceito travestido de bons costumes, da boa cultura e da boa aparência) e, em menor medida, pelo esforço pessoal. Porém, há um olho capaz de ver isto tudo, o olhar crítico que abraça a felicidade na partilha, na união e na solidariedade, ao invés de uma separação que marginaliza pessoas pelo lugar onde vivem, pela forma como falam ou pelas escolhas limitadas que encontram em suas vidas (pelo que podem ser, seguindo a lógica de uma bolsista pela sua colagem, já discutida aqui, na Figura 1).

A Justiça, ideia soberana sobre as criaturas vivas, desaparecia aos poucos das conversas em roda para desmanchar-se em justiças menores, dissonantes, com sistemas de pesos e medidas diferentes. A Justiça como uma espécie de Verdade do julgamento foi diminuída para verdades, cada uma com sua justiça. Sendo incoerente que todas fossem iguais; algumas com maior poder de decidir sobre os usos da cultura, dos costumes e da linguagem, gerando uma sensação de falsa liberdade nas palavras das estudantes, representado pela Figura 3.

Fonte: Acervo pessoal dos autores8

FIGURA 3 Trabalho em duplas resultado da temática direitos individuais 

Não significa dizer que o discurso meritocrático deixa de existir no imaginário de algumas estudantes, ele retornava como uma contradição, isto é, uma antítese que reclama uma reformulação da experiência vivida e dos conceitos que constroem o próprio pensamento do sujeito.

A música aparece como um componente de força na formação das meninas, no sentido de que a música, por ser, também, uma produção social, transparece aspectos da realidade vivida pelas meninas e da elaboração do gosto pessoal, o que nos permite deduzir elementos identitários delas, como as resistências contra o racismo, das músicas ouvidas, principalmente, pelas meninas que se afirmavam negras e da favela9·, e contra o sistema político e autoritarismo, até um cenário mais romântico10 e introvertido, nos mais diversos gêneros. As músicas figuravam o rock nacional, o rap, o sertanejo, o pagode, o funk, o reggae e de sucessos internacionais do pop, ainda que nem todas escutem todos esses estilos e gêneros, elas se identificam umas com as outras.

O processo criativo foi acompanhado do uso de um computador com acesso à internet e caixas de som, aberto para consultas, pesquisas e escolha de músicas para serem socializadas em meio às produções artísticas, assim, as meninas eram (re) pensadas a partir de seus gostos e repertórios. Consideramos feliz a intervenção da música, pudemos ver que ela contribui para a troca de experiências, seja por iniciar uma simples conversa, até cantarem junto o trecho de uma música, e posteriormente, escolherem a partir de um acordo mútuo, a próxima música, revezar músicas ou deixar de escutar uma música naquele dia por qualquer razão.

Como participação na socialização das meninas, a música trazia uma percepção sobre a realidade do outro, ajudava a compreender quem é esse outro com quem elas dividiam as salas. Os monitores também escolhiam suas músicas e tornavam seus gostos públicos, o que permitia que elas também soubessem sobre seus professores (os monitores eram sempre professores e professoras para elas).

Fonte: Acervo pessoal dos autores

FIGURA 4 Trabalho individual resultado da temática Rótulos Sociais e Sujeitos de Direitos. 

Na última semana, as produções concentram-se na hipertextualização, portanto, são produções que sugerem o uso das palavras em tamanho aumentado, cujo destaque dado à palavra é o artifício principal, obriga a atenção do observador a voltar-se à palavra central para depois demorar-se nos outros contornos da arte. A obra representada na figura 5 tem forte influência do artista plástico Juan Carlos Romero, apresentando através de uma violência gráfica, tanto na escolha das cores quanto nas letras negras contra o papel, a chave para a compressão da brutalidade envolvida nos problemas relacionados aos rótulos sociais.

Fonte: Acervo pessoal dos autores

FIGURA 5 Trabalho coletivo resultado da temática “Rótulos sociais - eu, sujeito de direitos fundamentais?”. 

É possível observar em todas as obras, elementos que remontam a uma relação muito próxima entre as jovens e o mundo virtual. A internet, enquanto espaço virtual, é conhecida e utilizada pelas bolsistas. Todas possuem facebook, whatsapp e participam de outras redes sociais. Aqui foi discutido sobre a imagem tornada pública, o julgamento social e a facilidade com a qual essas redes nos permitem aceitar ou recusar convites de amizade, tornar invisível nosso perfil nas redes, socializar e procurar conteúdos que queremos com pessoas desejadas ou em páginas aparentemente despersonalizadas.

Consumimos nessas realidades alternativas aquilo que nos satisfaz e, exigimos que outros usuários elaborem seus perfis, a partir de um ideal desejável e consumível. Em outras palavras, queremos nossas imagens sendo consumidas, o que gera uma satisfação pessoal por sermos desejados, e rejeitamos feedbacks negativos, ameaças à autoconfiança e ao sentimento de ser desejado, nos transformando em mercadorias na forma de imagens (BAUMAN, 2008).

Este foi o começo para construir uma metáfora entre o mundo virtual e mundo real: no virtual, temos controle sobre os efeitos, as causas continuam incontroláveis, mas é possível minimizar um julgamento feito a partir de um comentário com ações sutis, como bloquear, excluir, silenciar, e ficar invisível, e demais outras. No que chamamos de mundo real, o mundo em que vivem as pessoas de carne e osso, por assim dizer, em oposição ao mundo virtual, os corpos presenciam uma realidade atualizada, cujos efeitos do julgamento social sobre nosso perfil socioeconômico e étnico, dificilmente, são ocultadas algumas características (vestimenta, linguagem, acessórios, cor, gestos e trejeitos) sugerem ao outro algo sobre mim, e por sua vez ele produz um conceito sobre mim a partir do que vê.

Não poder bloquear ou restringir o acesso do outro a nós, como é de costume nas redes sociais, torna-se trágico quando o rótulo social, discurso do outro construído a partir da imagem que ele constrói sobre o que consegue ver em mim, legitima desigualdades sociais. As sociedades mantêm seu funcionamento, afirma Bourdieu (2009b), por um processo de distinção que ocorre pelo consumo da alta cultura, que antes de ser reconhecida como sagrada (em oposto à profana), era um conjunto de práticas, linguagens e ações de um grupo entre tantos outros que se distinguiu pelo uso da força de uma violência simbólica em fazer os agentes do campo gerarem prestígio à cultura em questão, como se ela fosse a única a ser almejada.

A partir desse entendimento sobre a cultura boa (sagrada) e a má (profana), inferimos que os rótulos sociais, inferências qualitativas feitas aos indivíduos sobre suas práticas, gestos, linguagens, roupas, comportamentos etc. (sobre a cultura percebida) são motivo de ridicularização e desqualificação de certos grupos que não se apropriam/apropriaram da cultura legítima, bem como de tentativas de subordinar e excluir práticas culturais dissonantes ao modelo hegemônico, ao capital cultural institucionalizado.

Os rótulos sociais, como discutido em sala de aula, prejudicam a possibilidade de um indivíduo construir sua identidade, visto que ele impõe uma identidade a um sujeito, inibindo o desenvolvimento de sua personalidade a partir de suas raízes identitárias (família, amigos, uma religião desconhecida ou mal vista, região de nascimento, sotaque e outras várias características). Esses rótulos, sobretudo, espacializam o sujeito num imaginário do qual ele não pode escapar, inevitável, como se propusesse um tipo de destino do qual o rotulado não deve orgulhar-se.

O racismo, com a discussão trazida por um palestrante, é um desses imaginários que localiza os grupos negros na condição de pobres, ignorantes, feios, favelados, agressivos e imorais. Imagem difundida no imaginário social graças a um trabalho histórico de profanação da cultura africana e de grupos étnicos reconhecidamente negros (tornam a cultura má, indesejada, ameaçadora). Os esforços concentram-se em desumanizar o negro, negando-lhe dignidade11, tornando apenas a cultura européia (branca) digna de promover o desenvolvimento integral do homem (além de racistas costumam ser visões falocêntricas ou androcêntricas, desconsiderando a mulher nas atividades produtivas e formadoras) (FANON, 2008).

O rótulo social, como fica visível na Figura 4, foi significado, sobretudo, na dimensão da rede social do facebook, evidenciando o mal-estar de uma geração em conseguir relacionar-se entre os pares pelo vício virtual, pintura da bolsista 3 (à direita), e pela angústia de receber um like na foto divulgada, postada para os amigos dessa rede social, pintura da bolsista 1 (à esquerda).

O que justifica a existência do que chamamos de rótulo social é a diversidade de experiências coletivas percebidas e julgadas a partir de uma cultura arbitrária, distinta de todas as outras pelo seu peso sociopolítico, funcionando como estrutura central das instituições sociais. O que alimenta esse funcionamento da cultura no campo é, justamente, a atividade de distinção entre as práticas culturais. Os agentes do campo, dispostos heterogeneamente no campo, competem entre si para obter um bem escasso, a alta cultura, imposta pela força de assegurar que as estruturas objetivas fossem interiorizadas para funcionar como estruturas cognitivas (BOURDIEU, 2009b).

Naturalmente, alguns sujeitos são capazes de interiorizar as estruturas objetivas mais facilmente em decorrência do habitus, as disposições geradas pelo meio sociocultural, cuja aprendizagem primária, a origem do habitus (geralmente a família), possui uma força de determinação maior comparado a outras aprendizagens subsequentes na cronologia das experiências de aprendizado. O próprio funcionamento do campo social consiste em incluir aqueles aptos a reproduzir a cultura dominante, cujo habitus se assemelha à cultura legítima, e em excluir aqueles cujo habitus produz práticas subversivas à organização do campo.

Através de perguntas direcionadas sempre com a reflexão como preocupação, as estudantes compreenderam que ocupavam posições sociais diferentes dentro da mesma sociedade, pode-se dizer, dentro da cidade de Campinas ou proximidades. Suas narrativas pessoais, as histórias que traziam sobre si eram diferentes. Nesse contexto, cabe a afirmação de Monteiro e Siqueira:

As noções de que as identidades discentes são construídas social e culturalmente e que estes processos são permeados pelo poder dão sustentação para a importância do papel político da educação na transformação identitária (2019, p. 310).

A bolsista 2 conta que ao passear com o irmão num shopping localizado num bairro de classe média alta, era seguida por seguranças que trabalhavam ali, como se ela fosse uma ameaça por não vestir roupas elegantes, estar com o irmão que usa boné, ou, simplesmente, por ser negra. O rótulo social que podemos re-conceituar como os atributos do habitus social de um agente, percebidos por outro, excluem esses agentes de espaços públicos por direito. A estudante conta que passou a visitar outros shoppings, cuja clientela compartilhava um capital social semelhante ao seu, ao menos ela percebia o habitus sem que as pessoas dissessem isto explicitamente, o que está de acordo com as estratégias de reconhecimento do capital objetivado.

Esta sensação de “não pertencimento” acontece também nas universidades. As estudantes, sem exceção, contaram seu interesse por entrar na universidade, como se ela só pudesse ser acessada pelo vestibular, e antes disso estivesse fechada. No primeiro dia em que conhecemos as estudantes, pedimos que imaginassem e escrevessem onde poderiam estar daqui um ano, cinco anos e dez anos, numa perspectiva realista, de acordo com sua trajetória de vida.

Deste exercício de projeção do futuro, temos as seguintes respostas de como se imaginam em um ano12: “Me imagino concluindo os estudos e trabalhando” (Bolsista 2, registro físico); “(...) estar no 3º ano, trabalhando no meu TCC13 e dando tudo certo no final” (Bolsista 1, registro físico); “Terminar a escola e entrar em uma faculdade” (Bolsista 3, registro físico); e “Eu quero estar na 3ª série do ensino médio, ter passado no Enem e fazendo o meu curso de Administração e Informática e estar no PIBIC ou trabalhando” (Bolsista 4, registro físico).

A faculdade aparece como uma preocupação nesse primeiro ano ou na projeção de 5 anos. Todas elas, ao final de 10 anos, esperavam estar com seus diplomas universitários, trabalhando e viajando, como podemos ver na projeção da bolsista 3: “(...) ter uma casa e um carro, ainda estar cursando algo maior na faculdade e trabalhando e estar bem estabilizada” (registro físico), cuja ambição, nos parece, alcança a pós-graduação, o que é notável por ser, nos parece, a estudante com condição socioeconômica mais desfavorecida.

Depois foram perceber de outra forma a universidade, sob o ponto de vista do direito, como um espaço político que o rótulo social busca camuflar com o enraizamento do sujeito num território pré-estabelecido. Há um momento em que esses atributos sociais que carregamos são apenas marcas num sujeito, podem ser apagadas, esquecidas, encobertas, até que o rótulo transforma-a numa cicatriz, perpetuação indefinida do horror, o trauma em si. Cuja reversão, acreditamos, está no uso da experiência de si do sujeito de direitos.

E OS JOGOS?

As artes compartilharam espaço com alguns jogos. Na primeira semana, para resgatar a história dos direitos humanos, recriamos um cenário de uma guerra com o jogo de tabuleiro “War”. Neste jogo, a vitória é conquistada cumprindo objetivos, por sua vez, é realizado a partir de ataques a tropas inimigas para conquistar regiões inimigas. A vitória acontece com a morte (ou massacre) de soldados (cuja representação é dissolvida na imagem inofensiva da ficha).

Quanto mais soldados-fichas, maiores as chances de atingir o objetivo e tornar-se vencedor. Na vida real, a guerra consome pessoas de carne e osso, humanas, portanto, dotadas de dignidade, atendendo por objetos no campo de batalha, que ao final da guerra acabam em números (de mortos, feridos, deficientes, traumatizados, sobreviventes) e até heróis, sem nunca terem deixado de serem objetos, portando, objetos no campo de batalha. São objetos, a partir do momento em que é exigido tirarem a vida de outro soldado ou civil. Desumanizados pela própria ação de matar, as nações vivem, dentro deste arquétipo de Marte, situações de medo e angústia. Disto surge a inquietação: Onde vivem os monstros? (Em nós ou nos outros?). E a importância dos Direitos Humanos garantidos pela DUDH (1948) para determinar que os signatários dela, participantes e não participantes da guerra/vitoriosos e arrasados, devolvam a condição humana para a vida coletiva, compreendam a importância da solidariedade e incentivem a cidadania como uma solução para evitar reviver um período trágico na história.

O “War”, desta forma, apresenta-se como suporte lúdico que, desde que orientado, perpassa o pensamento ético sobre a barbaridade, do contrário, é revisitado apenas como um jogo sem importância. A guerra comercializada na forma de diversão.

De forma parecida, o jogo “Banco Imobiliário” foi o suporte durante a segunda semana para pensar o monopólio econômico, noções de propriedade e direitos à moradia, e se mostrou suficiente para demonstrar como o acúmulo de propriedades e o investimento nelas (representado pelo aumento dos preços dos aluguéis pela construção de casas e de hotéis). Cria estabilidade econômica para este jogador, e só poderá ser desapropriado de seus terrenos mediante dívidas, e ainda, se endividado, o proprietário negocia dinheiro, para depois negociar suas propriedades, pois elas é que geram dinheiro para pagar suas dívidas ou amealhar outras propriedades.

O jogador com menos propriedades, como muitas bolsistas e monitores experimentaram durante o jogo, está numa posição instável, mesmo quando tem dinheiro, espera ser engolido pelos jogadores com mais propriedades e mais casas/hotéis. Atendendo a críticas contra o capitalismo, nesta perspectiva, que poderia muito bem ser denominada de marxista, os jogadores atentam-se apenas ao contexto econômico para apropriar-se de riquezas, o que não seria possível de ser pensado ao tratarmos de direitos sociais (saúde, cultura, educação, moradia, transporte etc.).

O “Jogo da Vida”, utilizado na terceira semana, junto com os direitos individuais, não possui uma dinâmica tão diferente do Banco Imobiliário. Sua proposta é de, no início do jogo, fazer o jogador escolher entre cursar a universidade ou ir para o mercado de trabalho, o que refletirá num salário maior ou menor, respectivamente. Vence quem for o jogador com mais bens no final do jogo. Neste cálculo estão a casa, os seguros (de vida, de carro, por exemplo), o dinheiro conquistado durante o jogo e até os filhos. No final, tudo deve ser convertido em dinheiro para conseguir indicar um vencedor. No restante do jogo, predominam a sorte (como ganhar na loteria, herdar uma fortuna, poder cursar a universidade de novo se você escolheu ir para o mercado de trabalho, casar, ter filhos) e o azar (como pagar uma dívida antiga, consertar o carro que acabou de quebrar, pagar a mensalidade da escola dos filhos, herdar um comércio falido, comprar cavalos).

O “Jogo da Vida” procura recriar situações possíveis da vida real, sendo o casamento uma obrigação no jogo, refletindo uma postura social de desejar uma relação matrimonial à mulher e sua obrigação a ter filhos. No jogo, os homens são representados pelas peças azuis e as mulheres pelas peças rosa. O casamento e a sexualidade atribuída às peças são ressignificadas pelos casamentos homossexuais fictícios, proposto pelas jogadoras. Por exemplo: quando duas peças rosa juntas representam casamentos entre duas mulheres lésbicas ou quando, na escolha da peça dos filhos e filhas elas dizem “Minha filha vai ser sapatão” ou “Meu filho é gay!”.

Os jogos, assim percebemos, ficaram em segundo plano no projeto “Direitos Fundamentais, Artes e Jogos: um diálogo multidisciplinar”. Não encontramos maneiras de explicar a partir dos materiais recolhidos e nem esteve presente no feedback aluno-professor (que também não acontecia na relação educador ↔ educando), as estudantes não se interessaram com afinco pelos jogos, ao contrário das artes. Outros jogos, por outro lado, como o “Cara-a-Cara”, cumpriram seu papel com a temática proposta, pois algumas estudantes, sem orientação alguma, jogaram-no fazendo perguntas como “Tem cara de puta?”, “Fuma maconha?”, “Foge da polícia?”, “Dá rolezinho?”, seguido de apontamentos a partir da resposta dada pelo outro jogador, por sua vez, os apontamentos são: “Então é homem!”,” Olha a cara dele, todo brisa!!”, “Tinha que ser branco, quem corre é preto!”,” Esse aqui não parece favelado…”.

O que pudemos apresentar sobre os jogos são um panorama do que surgiu nas discussões orientadas em sala, uma vez que não encontramos nas obras de arte os jogos e suas representações em menções nítidas que nos permitissem fazer uma associação segura. Nos sentimos impossibilitados de afirmar que algo nas obras correspondia ao jogo porque o jogo proporcionou esta perspectiva.

Esta análise dos jogos cumpre o papel de elucidar o propósito original deles nos projetos e de que forma eles foram utilizados dentro de seus propósitos. As estudantes jogaram (quando quiseram, e o fizeram na maior parte das vezes) e se divertiram enquanto jogavam14. Não encontramos evidências explícitas de que os jogos contribuíram para a formação das bolsistas, entretanto, nos parece difícil imaginar que elas jogarão esses mesmos jogos (na mesma edição ou em edições diferentes), sem associá-los aos direitos fundamentais, à DUDH (1948), à CF (1988) e, sobretudo, ao CAF 2017, à imagem da sala, ao formato das mesas e cadeiras, às colegas, às comidas, às músicas, enfim, ao contexto no qual ocorreu, dentro de uma universidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao trabalhar com a produção artística como uma das metodologias de ensino no projeto de Direitos Fundamentais, não a consideramos apenas como um momento de lazer ou uma atividade de pura distração, aspecto da Arte difundido no senso comum. Por outro lado, acreditamos ser um facilitador para o desenvolvimento da comunicação, da exposição e organização de ideias e do empoderamento das alunas e sua identidade a partir dos temas pretendidos para discussão.

O momento artístico teve fundamental importância para a integração das alunas entre si e com o meio acadêmico. Mostrar-lhes outro viés de construção científica, a partir da arte realizada através do que se discutia e da realidade em que vivem, além de inseri-las, deixando-as livres para produzir, mas orientando o trabalho, assim como demandando desenvolvimento das atividades em grupo. Mostraram-se práticas pedagógicas fundamentais para que as alunas afirmassem uma identidade ao projeto de 2017. A partir das discussões, exposições de ideias, filmes e dinâmicas, produzir arte tanto individualmente como em grupo foi um exercício fundamental para que as alunas se familiarizassem como colegas (nem sempre se gostavam, embora se prestassem ao exercício de ouvir e compartilhar experiências, conseguindo criar momentos em que o interesse pelo que o outro dizia era mútuo), trabalhassem os temas inicialmente planejados e pudessem compartilhar o seu capital cultural com os demais participantes.

Além disso, as vivências experimentadas pelos monitores desencadearam uma série de reflexões acerca do empoderamento das alunas bolsistas sobre sua atuação política na sociedade, o que gerou importantes discussões a respeito da violência simbólica que o currículo oculto torna possível. Por isso, a importância de pensar o currículo como prática discursiva do dito (explícito) e do não dito (oculto).

As experiências como monitores de um projeto científico para alunas do Ensino Médio sobre, principalmente, direitos fundamentais fez com que a importância e essencialidade de se considerar o contexto, carga social e cultural dos indivíduos ficasse evidenciado, já que todo o projeto seguiu os parâmetros daquilo que era, dia a dia, realçado como necessário.

A expressão artística que acompanha o ensino da cidadania contribuiu positivamente para a integração das alunas com as discussões propostas e entre elas mesmas. Com a adoção das produções coletivas, o desenvolvimento da identidade e do trabalho em equipe (que demorou para consolidar-se e mostrou-se frágil ao fim do CAF 2017), demonstrou um maior e melhor aproveitamento do espaço acadêmico, tanto para as alunas como para os planejadores do projeto.

Para finalizar, citamos novamente Vigotski quando afirma que “A arte é o social em nós e, se o seu efeito se processa em um indivíduo isolado, isso não significa, de maneira nenhuma, que suas raízes e essência sejam individuais." (Vigotski, 1999, p. 315), ou, ao menos, não emergem apenas do indivíduo em si, mas das relações que perpassam esse indivíduo no encontro com o outro. A partir da socialização podemos atribuir uma categoria de diferença para o indivíduo, diferença formada graças a uma herança cultural, em que ele deixa de se igualar à cultura para ser um sujeito nela com propriedades ativas, criadoras e inovadoras, fazedor de cultura, de um projeto compartilhado e coletivo.

5Em todo caso, houve consenso entre as alunas com relação ao aborto em casos de estupro. O conflito surgiu quando o aborto caracterizava casos em que não houve qualquer espécie de crime contra a mulher.

6Termo foucaultiano

7Foram eles: Néle Azevedo; JR; Banksy e Juan Carlos Romero. Estes artistas unem a arte à questões sociais como a memória construída sobre nossos heróis nacionais (alguns, facilitadores da colonização do território brasileiro); a pobreza das favelas e sua exclusão simbólica da cidade; a autoridade nas relações interpessoais provocadas pela guerra, internet ou poder do Estado; a afirmação de si mesmo pela fala (discurso) e o silenciamento direcionado à grupos (acompanhado pela resistência de falar mais alto que o silenciador).

8O primeiro quadro, em questão, é uma releitura do final de um episódio da série Black Mirror - “Quinze Milhões de Méritos” (Dirigido por Eylos Lin), cuja discussão foi orientada e planejada pelos monitores.

9E tomavam a liberdade de dizer minha quebrada ao referir-se à favela. Nas rodas de conversa chegaram a questionar o uso comunidade dirigido somente à favela, argumentando que todo lugar/espaço tem comunidades, a comunidade não está só nas favelas.

10Romântico designando a relação erotizada, no sentido psicanalítico, da música que fala sobre o desejo do eu-lírico através da poesia (com a intenção de sê-la) interpretada a partir de uma relação libidinal consensual. Dividindo espaço com o funk, por exemplo, em que o eu-lírico, tipicamente masculino, apresenta sem rodeios suas intenções de obter prazer com seu objeto de desejo, e pode ser interpretado de forma agressiva e independente da vontade do objeto, um outro personagem. Ao menos na sala de aula foi nítido, um contraste, entre as letras e os eu-líricos trazidos por elas, cujo contraste já era esperado ao reconhecer o gênero musical.

11Um dos palestrantes, ao explicar sobre Direitos Humanos, definiu dignidade como “a capacidade inata de todo ser humano de criar e amar”, que reproduzimos aqui no formato de citação livre, com ênfase nas palavras criar e amar.

12Os registros consistem em folhas de papel com 15x10 cm, para que a escrita fosse sucinta, precisa e rápida de ser socializada. Escrever, no exercício de projeção, foi a primeira tentativa de fazê-las pensar as narrativas pessoais: os lugares que ocupam e os lugares ocupados para pensar suas possibilidades de lugares a ocupar, que ao fim do projeto foram vistos menos como possibilidades frente a direitos enquanto forem sujeitos de direitos.

13Para a conclusão de seu curso técnico.

14War, Banco Imobiliário e Jogo da Vida são jogos de tabuleiros com duração mínima de 40 min (segundo os livros de regras desses jogos), podendo atingir 2h ou mais. Chegamos a jogar por quase 4h uma partida de Jogo da Vida. Estas longas durações dos jogos cansavam todos, às vezes formava uma atmosfera tediosa, mas em geral as meninas se divertiam.

Agradecimentos:

Agradecemos à Pró-Reitoria de Pesquisa – PRP, ao Fundo de Apoio ao Ensino, à Pesquisa e Extensão – FAEPEx, à Comissão Permanente para os Vestibulares – Comvest e à Fundação de Desenvolvimento da Unicamp – FUNCAMP, todos órgãos da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP; bem como à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo -FAPESP, pelo suporte na realização do Programa “Ciência e Arte nas Férias” e pelo financiamento do projeto “Direitos Fundamentais, Artes e Jogos: um diálogo multidisciplinar”.

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Recebido: 29 de Abril de 2020; Aceito: 14 de Maio de 2020; Publicado: 22 de Julho de 2020

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