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Revista Exitus

versão On-line ISSN 2237-9460

Rev. Exitus vol.10  Santarém  2020  Epub 28-Mar-2022

https://doi.org/10.24065/2237-9460.2020v10n1id972 

Artigos

Alienígenas em escolas de fronteira gêmea: práticas curriculares em questão

Aliens in twin-frontier schools: curricular practices in question

Alienígenas en escuelas de fronteira gemela: el caso de las prácticas curriculares en cuestión en el municipio de Jaguarao, Rio Grande del Sur, Brasil

Maiane Liana Hatschbach Ourique1 
http://orcid.org/0000-0002-5042-3648

Renan Cardozo Gomes da Silva2 
http://orcid.org/0000-0002-4131-2233

1Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria/RS. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas/RS. E-mail: maianeho@yahoo.com.br

2Mestre em Educação pela Universidade Federal de Pelotas/RS. Professor da Escola de Educação Infantil Upiá, Pelotas-RS. E-mail: renancardozoo@gmail.com


RESUMO

A presença de alunos estrangeiros em instituições brasileiras está garantida pela Lei nº. 6.815/1980. No entanto, considerando o distanciamento entre o cotidiano fronteiriço e as escolas de fronteira, a presente pesquisa pretende investigar em que medida as práticas administrativo-pedagógicas desenvolvidas nas escolas de fronteira contemplam as especificidades dos alunos fronteiriços uruguaios. Para isso, realiza-se uma investigação de caráter exploratório em escolas públicas do município de Jaguarão/RS. Tem-se como principal problemática o modo como um sujeito oriundo de um outro país e que possui outra língua materna convive e se adapta às práticas pedagógicas institucionalizadas, vivenciando um processo de ensino e de aprendizagem destinados a nativos (brasileiros). O suporte teórico desta pesquisa está, sobretudo, em Santomé (1995) e Sacristán (2000), no que se refere às práticas pedagógicas e ao currículo escolar, Silva (2009) no que tange às relações entre currículo e poder. Percebe-se o quanto algumas normativas do campo da educação poderiam ser vetores de mudanças paradigmáticas em direção à interculturalidade e, ao mesmo tempo, o quanto os currículos das escolas continuam reverberando práticas homogeneizadoras ou, no máximo, multiculturais, que visam integrar sem dissipar os territórios de poder/saber.

Palavras-chave: Escolas de Fronteira; Alunos Fronteiriços; Práticas Pedagógicas

ABSTRACT

The presence of foreign students in Brazilian institutions is guaranteed by Law n. 6.815/1980. However, considering the distance between border daily life and border school, this research aims to investigate to what extent the administrative-pedagogical practices developed in border schools take into account the specificities of Uruguayan border students. To this end, an exploratory investigation is carried out in public schools in the municipality of Jaguarão/RS. The main problem is the way in which a subject from another country who has another mother tongue coexists and adapts to institutionalized pedagogical practices, experiencing a process of teaching and learning intended for natives (Brazilians). The theoretical support of this research is mainly in Santomé (1995; 2011) and Sacristán (2000), with regard to pedagogical practices and the school curriculum; Silva (2009) with regard to the relationships between curriculum and power. It is noticed how some normative of the field of education could be vectors of paradigmatic changes towards interculturality and, at the same time, how the curricula of schools continue to reverberate homogenizing or, at most, multicultural practices, which aim to integrate without dissipating the territories of power / knowledge.

Keywords: Border schools; Border Students; Pedagogical Practices

RESUMEN

La presencia de alumnos extranjeros en instituciones brasileñas está garantizada por la Ley n. 6.815/1980. Considerando el distanciamiento entre el cotidiano fonterizo y las escuelas de frontera, el presente artículo tiene como objetivo explicar en qué medida las prácticas administrativo-pedagogicas desarolladas en las escuelas de frontera contemplan las especificidades de los alumnos fronterizos, especialmente uruguayos. El estudio es de carácter exploratorio realizado en las escuelas públicas del Município de Jaguarão, Río Grande del Sur, Brasil. Se cree que el sujeto que proviene de otro lugar o país, y que posee otra lengua materna, convive y se adopta a las prácticas pedagógicas institucionalizadas experimentando un proceso de enseñanza-aprendizaje orientado hacia nativos brasileños. Se deriva que algunas normas, en el campo de la educación, podrían ser vectores de cambios paradigmáticos hacia la interculturalidad y, al mismo tiempo, en el grado en que los currículos escolares continúan revelandoprácticas de homogeneización y, a lo sumo, multiculturales, cuyo objetivo es integrarse sin disipar territorios de poder y conocimiento.

Palabras clave: Escuelas de frontera; Alumnos Fronterizos; Prácticas Pedagógicas

Introdução

No campo da educação, há algumas décadas, tem-se combatido a metáfora da escola como fábrica – apresentada por Franklin John Bobbitt, um dos precursores dos estudos do currículo escolar – em que cabe aos alunos apenas absorver mecanicamente o conhecimento ofertado nas disciplinas e, posteriormente, inserir-se no mundo do trabalho e contribuir com seu aprendizado para alimentar o sistema produtivo. Com os avanços das teorias educacionais, a escola contemporânea passa a abarcar uma grande diversidade sociocultural que influencia o entendimento de escola e de educação, amiúde, o planejamento destes processos, assim como as práticas pedagógicas de ensinar e de aprender de todos os sujeitos envolvidos.

Desde a Constituição Federal de 1988, em todos os níveis de planejamento educacional – da Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9496/1996) ao Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola - está presente a ideia de participação democrática da comunidade na gestão e nas práticas educativas. Para que as necessidades específicas da região sejam abarcadas, os documentos oficiais resguardam a importância de contar com a participação das equipes escolares, gestores dos municípios e da comunidade. Um modo de orientar sobre a discussão e incorporação de aspectos culturais e políticos locais na filosofia e ações pedagógicas da escola. Certamente, a introdução de determinados conceitos na legislação não basta para que atitudes de respeito e solidariedade com o diferente se difundam. Santomé (2011, p. 162) aponta dois discursos bastante repetidos e incongruentes no campo das políticas e das práticas educativas: “o do currículo aberto e flexível e a necessidade de apostar na aprendizagem construtivista. Discursos que, por sua vez, pretendem-se legitimar sobre a base da obrigatoriedade que as leis, os decretos e as normas lhes outorgam, com os quais se quer atingir a vida nas escolas e nas salas de aula”. Um currículo aberto e flexível implica a valorização dos interesses da comunidade local, partilha de conhecimentos e poderes; aprendizagem construtivista exige respeito aos tempos e conhecimentos de cada estudante. Diante dessas concepções, podeos nos questionar de que forma desenvolver estas concepções quando a listagem de conteúdos e habilidades de um currículo já está bastante alargada?

Dentre as legislações que regem as práticas educativas, os Planos Municipais de educação (PME), têm como objetivo geral responder as necessidades educacionais dos municípios, de modo a melhorar e aperfeiçoar a qualidade da educação por meio de metas e estratégias de curto, médio e longo prazo (BRASIL, 2014). Tais estratégias influenciam na construção dos Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) e reverberam nos currículos escolares que, por sua vez, devem considerar “[...] as características socioculturais e ambientais, a vocação e a perspectiva de futuro do município” (BRASIL, 2014, p. 08). Em Jaguarão/RS, município localizado no extremo sul do Rio Grande do Sul-BR - que faz fronteira com a cidade de Rio Branco, município situado no Departamento de Cerro Largo-UY - a construção do PME conta com a participação de representantes da gestão municipal, comunidade escolar, direção da Universidade Federal do Pampa, Comissão de Saúde do Município e Câmara de Vereadores.

Nesse contexto, ao considerar, por exemplo, a questão sociocultural, vemos que Jaguarão, por ser uma cidade gêmea3 de Rio Branco, possui alunos uruguaios matriculados nas escolas municipais amparados pela Lei nº. 6.815, de 19 de agosto de 1980 e pelo Decreto nº. 5.105, de 14 de junho de 2004, que permite que cidadãos fronteiriços uruguaios4 possam estudar e trabalhar no lado brasileiro da fronteira. Entretanto, diferentemente do convívio cotidiano, há indícios de que, no espaço escolar, ainda perdura a promoção de uma cultura hegemônica, a brasileira.

Considerando o paradigma complexo em que vivemos no contemporâneo e as novas formas de nos relacionarmos com a produção do saber, identificamos como problemática desta pesquisa o modo como um sujeito oriundo de um outro país e que possui outra língua materna convive e se adapta às práticas pedagógicas institucionalizadas, vivenciando um processo de ensino e de aprendizagem destinados a nativos (brasileiros). Dessa forma, o nosso objetivo principal centra-se em investigar em que medida as práticas administrativo-pedagógicas desenvolvidas nas escolas de fronteira contemplam as especificidades dos alunos fronteiriços uruguaios. Vivemos em sociedades cada vez mais diversas linguística e culturalmente, o que é refletido, de algum modo, nas instituições escolares. Por isso, perceber os desafios e contribuições que o estrangeiro pode trazer não é somente um gesto de inclusão do outro, mas uma estratégia de aceitação da diversidade que há em cada sujeito. Metodologicamente, realizamos uma pesquisa de caráter exploratório, que, conforme Gil (1999), visa proporcionar uma maior familiaridade com um tema que é genérico ou pouco explorado, “tendo em vista, a formulação de problemas mais precisos ou hipóteses mais pesquisáveis para estudos posteriores” (GIL, 1999, p. 43). No caso desta pesquisa, além de poucos estudos sobre a relação pedagógica em classes com alunos fronteiriços, temos hipóteses bastante amplas sobre o quanto as práticas interculturais desenvolvidas nas escolas brasileiras de fronteira são limitadas pelas políticas e orientações normativas que regem as instituições. Por isso, na tentativa de conhecer um pouco mais acerca do cotidiano das escolas municipais que recebem alunos uruguaios, aplicamos questionários, respondidos pelas respectivas gestoras, que nos auxiliaram na compreensão de demandas específicas de acolhida desses alunos uruguaios, os encaminhamentos e as percepções sobre estes procedimentos administrativos e pedagógicos.

Nesta perspectiva, realizamos uma revisão da literatura acerca das relações culturais no contemporâneo, a organização curricular e o entendimento de fronteira neste contexto, analisamos os dados coletados através dos questionários aplicados e refletimos sobre as ações e perspectivas da escola. Assim, dividimos o texto com as seguintes seções: primeiramente, realizamos uma exposição da Lei nº 6.815/1980 e como a questão dos estrangeiros na fronteira é tratada no contexto da escola pública; no segundo momento, discutimos questões referentes a cultura escolar e o currículo das escolas de Jaguarão/RS; por fim, no terceiro momento, discorremos sobre as práticas administrativo-pedagógicas, analisando os resultados obtidos nos questionários aplicados. O suporte teórico desta pesquisa está, sobretudo, em Santomé (1995) e Sacristán (2000), no que se refere às práticas pedagógicas e ao currículo escolar, Silva (2009) no que tange às relações entre currículo e poder.

Ir e vir: a Lei nº. 6.815/1980

O território fronteiriço entre Brasil-Uruguai, sobretudo quando se trata de cidades gêmeas, é caracterizado pelo ir e vir constante de cidadãos dos dois países que atravessam a fronteira para realizar atividades sociais, culturais, comerciais, educativas, etc. Historicamente, conforme as fronteiras foram sendo instauradas, o trânsito de estrangeiros no Brasil se tornou mais frequente e, por conta disso, em 1980 o Governo Federal, através do presidente João Figueiredo, sanciona a Lei nº. 6.815 que regulamenta o trânsito entre os países, assim como cria o Conselho Nacional de Imigração que dá definições jurídicas para a situação dos Estrangeiros no país.

Com a aprovação dessa Lei, fica permitido, por meio de seu Artigo (Art.) 1º, que “[e]m tempos de paz, qualquer estrangeiro poderá, satisfeitas as condições desta Lei, entrar e permanecer no Brasil e dele sair, resguardados os interesses nacionais” (BRASIL, 1980). Além disso, referindo-se ao território fronteiriço, a Lei, em seu Art. 21, aborda que os fronteiriços de nacionalidade uruguaia podem entrar no Brasil e exercer atividades laborais e educacionais5.

Art. 21. Ao natural de país limítrofe, domiciliado em cidade contígua ao território nacional, respeitados os interesses da segurança nacional, poder-se-á permitir a entrada nos municípios fronteiriços a seu respectivo país, desde que apresente prova de identidade.

§ 1º Ao estrangeiro, referido neste artigo, que pretenda exercer atividade remunerada ou freqüentar estabelecimento de ensino naqueles municípios, será fornecido documento especial que o identifique e caracterize a sua condição, e, ainda, Carteira de Trabalho e Previdência Social, quando for o caso.

§ 2º Os documentos referidos no parágrafo anterior não conferem o direito de residência no Brasil, nem autorizam o afastamento dos limites territoriais daqueles municípios (BRASIL, 1980).

Com base no Art. 21 e em seus incisos, vemos que a fronteira é vista como um território que ultrapassa as relações territoriais geográficas e passa a ser um espaço intercultural em que as relações de poder seguem em disputa, mas também se criam intercâmbios e respeito mútuo entre as culturas. Os sujeitos que vivem nessa fronteira, por vivenciarem às culturas de ambos países, agregam expressões e costumes tanto de um país quanto de outro. Nesse sentido, vemos que o contexto de fronteira e, consequentemente, a interação entre os sujeitos de ambas nacionalidades, influencia na promoção de intercâmbios sociais, culturais e identitários, cujo cotidiano se torna uma mescla de hábitos plurais que foram se constituindo ao longo do processo histórico e cultural dessas regiões. Segundo Walsh (2009), essas trocas culturais caracterizam um ambiente intercultural, marcados por diálogos e associação de hábitos e vivências realizadas de maneira natural, sem que haja a proeminência de uma cultura ou de outra.

La interculturalidad es distinta en cuanto se refiere a complejas relaciones, negociaciones e intercambios culturales, y busca desarrollar una interacción entre personas, conocimientos, prácticas, lógicas, racionalidades y principios de vida culturalmente diferentes; una interacción que admite y que parte de las asimetrías sociales, económicas, políticas y de poder, y de las condiciones institucionales que limitan la posibilidad de que el “otro” pueda ser considerado sujeto – con identidad, diferencia y agencia – con capacidad de actuar. No se trata simplemente de reconocer, descubrir o tolerar al otro o a la diferencia en sí. Tampoco se trata de esencializar identidades o entenderlas como descripciones étnicas inamovibles. Más bien se trata de impulsar activamente procesos de intercambio que, por medio de mediaciones sociales, políticas y comunicativas, permitan construir espacios de encuentro, diálogo, articulación y asociación entre seres y saberes, sentidos y prácticas, lógicas y racionalidades distintas (WALSH, 2009, p. 45).

Com base nos escritos da pesquisadora, vemos que a interculturalidade não destitui as relações de poder, mas procura amenizálas e permitir, por meio de interrelações, que os sujeitos criem espaços de mediações sociais nas quais suas diferenças sejam reconhecidas. Esta diferença, emerge de uma mudança de paradigma, visto que até a década de 1970 a luta pela igualdade se generalizou e os sujeitos buscavam fatores que os identificassem como iguais, defendendo um único conhecimento, modo de ser e agir. Em contrapartida, nos anos de 1980, os sujeitos passaram a reconhecer que os processos identitários ocorrem distintamente e isso acarreta na constituição de sujeitos que são, pensam e veem os contextos sociais de maneira diferente. Segundo os postulados de Pierucci (1999), os sujeitos desprenderam-se das questões de igualdade e alguns grupos buscaram o direito à diferença, o direito de ser, deixando de se preocupar com as padronizações de igualdade.

Na fronteira de Jaguarão-Rio Branco, as diferenças, sobretudo as socioculturais, são apontadas quando os alunos fronteiriços uruguaios se matriculam nas escolas brasileiras, visto que essa prática rompe com a busca por um espaço de “igualdade”. Junto com esse rompimento emergem novas formas de pensar os currículos escolares contemporaneos, dado a diversidade sociocultural presente nas escolas.

Uma cultura escolar posta em cheque diariamente

Levando em consideração os estudos culturais – alicerçados em campos como o da Linguística, Literatura, Estudos de Gênero e etc. -, a cultura, ligada à identidade, significação e poder, se caracteriza como “[...] um campo onde se define não apenas a forma que o mundo deve ter, mas também a forma como as pessoas e os grupos devem ser. A cultura é um jogo de poder” (SILVA, 2005, p. 134)6.

Diante dos jogos de poder, em que os sujeitos dominantes ditam regras para definir como tudo deve ser, vemos, no âmbito escolar, que os currículos contemporâneos e as práticas pedagógicas que são desenvolvidas nas escolas também se inserem nesse sistema, incorporando micropoderes que são controlados pelos sujeitos das classes dominantes. Nesse viés, tais currículos e práticas podem ser caracterizados como multiculturais, uma vez que o multiculturalismo, partindo de uma concepção pós-estruturalista, está ligado ao “ser diferente”, ou seja, a discursos instaurados em que o sujeito diferente não se encaixa (SILVA, 1999, p. 87). Ainda para o autor,

[...] o multiculturalismo nos faz lembrar que a igualdade não pode ser obtida simplesmente através da igualdade de acesso ao currículo hegemônico existente, como nas reinvindicações educacionais progressistas anteriores. A obtenção da igualdade depende de uma modificação substancial do currículo existente (SILVA, 1999, p. 90).

Com base nos escritos de Silva (2005), vemos que não basta incluir no currículo, questões que englobem gênero, sexualidade e cultura se as relações sociais não forem consideradas e os sujeitos permanecerem apenas integrados ao grupo dos “diferentes”. Neste caso, vemos que na escola ainda perdura uma busca pela igualdade e padronização social, que, por sua vez, tende a reforçar os conflitos, as estereotipias e as lutas por reconhecimento:

Não podemos ignorar que os sistemas educacionais foram e são uma das redes por meio das quais se produz a domestificação das populações, apesar de com uma intensidade muito variável, dependendo do grau de organização e de luta dos distintos grupos sociais que operam no interior de cada sociedade. Os sistemas educacionais são o grande instrumento através do qual se levaram adiante os processos de imperialismo cultural; uma das principais estratégias de opressão (SANTOMÉ, 2011, p. 184).

Se a escola se orienta para ser, efetivamente, o espaço da pluralidade, as redes de conhecimento que adotam para serem apresentadas em sala de aula não podem ser tão rigidamente ensinadas a ponto dos parâmetros de certeza e moralidade serem usados para apagar as experiências e os traços culturais do outro. Muitas vezes, esses processos de imperialismo cultural mencionados por Santomé são mais visíveis nas condutas dos professores e nas relações interpessoais normalizadas na escola do que nos conteúdos ensinados explícita e didaticamente em sala de aula. A valorização de alguns alunos em detrimento de outros, o foco em alguns acontecimentos e atitudes e não em outros, tudo contribui para que certas manifestações culturais e subjetivas sobreponham-se a outras, fortalecendo, normalmente, um padrão social já legitimado pela maioria e criando imagens, por vezes distorcidas, sobre si mesmo e/ou sobre o outro e suas experiências.

Para verificar como tais questões são abordadas no contexto de Jaguarão-Rio Branco, atentamos para o PME do município, visto que suas metas e estratégias devem ser incorporadas nos PPP e, consequentemente, reverberar nos currículos escolares. O PME em vigência (2014-2024) foi elaborado por meio de uma comissão organizadora escolhida no Fórum Municipal de Educação de Jaguarão que contou com a participação de professores, gestores, funcionários da Secretaria Municipal de Educação (SMED) e gestão da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA).

Dentre as metas de estratégias propostas no Plano, não há menção ao tema da fronteira ou aos alunos fronteiriços uruguaios. Este silenciamento sobre as práticas cotidianas de ir e vir da fronteira podem indicar a demarcação uma posição multicultural, que considera apenas a diversidade cultural nacional. Ainda, desconsiderar as relações fronteiriças pode fortalecer o entendimento de que a tarefa de reinvindicar o seu espaço e o reconhecimento na escola é somente tarefa do aluno fronteiriço uruguaio, retornando aos moldes da escola-fábrica. O Plano, ao assumir perspectiva multicultural se torna ciente da diversidade cultural presente nas escolas, mas, em contrapartida, não fomenta discussões e uma visão crítica sobre essa diversidade, o que reverbera em um espaço sem trocas e que, muitas vezes, desprestigia os alunos caracterizados como diferentes.

Conforme Canen e Moreira (2001, p. 27) o multiculturalismo possui duas vertentes: a primeira trata as diferenças culturais de uma maneira exótica e folclórica, sem problematizar as relações desiguais de poder ou as atitudes que descriminam as diferentes identidades culturais, para os autores essa perspectiva se limita “[...] à promoção de práticas de reconhecimento de padrões culturais diversificados, com seus ritos, costumes, culinária etc.”; a segunda vertente se refere a uma visão mais crítica, na qual “[...] busca-se trabalhar no sentido de abrir espaço para vozes culturais anteriormente silenciadas em currículos e práticas pedagógicas, desafiar preconceitos, identificar origens históricas e promover um horizonte emancipatório de transformador” (CANEN; MOREIRA, 2001, p. 28). A primeira vertente se refere a uma visão multicultural em que as diferenças estão presentes, mas não se vê a necessidade de abordá-las, uma vez que elas são formas exóticas e folclóricas, já a segunda vertente vai ao encontro com os preceitos defendidos pela interculturalidade que busca tratar a diferença não em um sentido negativo e, sim, como um fator agregador, positivo e emancipatório. Isto porque abordar a diferença como forma de ampliar a própria humanidade é também uma atitude política de pensar o todo sem anular as especificidades das partes, criando condições para que a pluralidade fomente outras possibilidades de pensar e vice-versa.

Com base nessas duas vertentes, cremos que a construção do PME e, consequentemente do PPP e dos currículos das escolas de Jaguarão, se pautam na primeira vertente, uma vez que visa a diferença como algo exótico e folclórico. Articulando tal questão com os escritos de Santomé (1995), podemos considerar que a formação de muitos professores que atuam na elaboração e reflexão dos currículos se deu em períodos em que a escola seguia um modelo fordista, ou seja, um modelo de produtivismo e mecanização do ensino. Esta visão está tão arraigada nas práticas discursivas da docência que os professores deixam a cargo de outras instâncias o aprofundamento de questões culturais importantes, não só para a formação humana dos alunos, mas também para a ampliação das habilidades e aprendizagens escolares. Esta compreensão restrita do seu papel como formador e do processo pedagógico como um todo aparece, dentre outros momentos, quando os professores somente se responsabilizam em apresentar o conteúdo programático prescrito nos Planos de Ensino, sem perceber o cenário cultural e político que dá sentido a estas aprendizagens. Segundo Santomé (1995, p. 161):

[e]ssa tradição contribui de forma decisiva para deixar em mãos de outras pessoas (em geral, as editoras de livros didáticos) os conteúdos que devem integrar o currículo e, o que é pior, a sua coisificação. Em muitas ocasiões os conteúdos são contemplados pelo alunado de fórmulas vazias, sem sequer a compreensão de seu sentido.

Ainda para Santomé (1995), o currículo não se detém somente a inclusão por meio dos conteúdos escolares, ele também considera as interações e trocas de experiências que ocorrem no ambiente escolar. Nessa perspectiva, o currículo é visto como “expressão socializadora da escola” (SACRISTÁN, 2000, p. 32), ou seja, todas as práticas sociais imbricadas no ambiente escolar integram o currículo, sendo elas: administrativas, políticas, pedagógicas e etc.

Para colocar esse currículo em ação, utiliza-se, como dispositivo, práticas pedagógicas salvaguardadas pelas instituições do saber, por isso, tais práticas estão encharcadas de noções de controle e de poder. Remetendo ao contexto da pesquisa, estas práticas podem carregar estereótipos e preconceitos sobre manifestações culturais e modelos considerados inferiores, dependendo do ponto de vista em que se está inserido. É comum, no cotidiano jaguarense, nos depararmos com discursos depreciativos sobre os fronteiriços uruguaios. Exemplo disso são as depreciações sobre os modos de se vestir e de agir, hábitos que vão ao encontro da busca por uma cultura hegemônica brasileira defendida pelas escolas.

[...] na maioria das instituições escolares e aquilo que é enfatizado nas propostas curriculares, chama fortemente atenção a arrasadora presença das culturas que podemos chamar de hegemônicas. As culturas ou vozes dos grupos minoritários e/ou marginalizados que não dispõem de culturas importantes de poder costumam ser silenciadas, quando não estereotipadas e deformadas, para anular suas possibilidades de reação (SANTOMÉ, 1995, p. 161).

Com base nas afirmações de Santomé (1995), temos dois tipos de sujeitos, os que atendem os padrões sociais exigidos pela escola e os que podem ser caracterizados como alienígenas (GREEN; BIGUN, 1995). Tais divisões emergem, segundo nossos estudos, de uma formação pautada nos princípios do “sujeito não diferente”, do “sujeito que deve seguir o que é aceito socialmente” e do “sujeito que deve seguir os princípios da classe dominante”, princípios estes que são pautados na construção e padronização de uma cultura hegemônica. Os sujeitos que não se encaixam nessa perspectiva são considerados, aos olhos dos dominantes, alienígenas que, de acordo com Freire (2016,) é um termo atribuído a sujeitos que não são pertencentes a terra, corpos violentos, rasos e sem integridade humana.

Em busca de uma prática pedagógica inclusiva

O termo “alienígenas” é discutido por Green e Bigun (1995), tendo como base a constituição identitária dos jovens na contemporaneidade. Seguindo os postulados de Hall (2006), esses sujeitos contemporâneos ou os sujeitos da pós-modernidade, são descentrados com “identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas [...]” (HALL, 2006, p. 46). Para o sociólogo, esse descentramento se dá em cinco dimensões, engendradas no plano filosófico de Marx, Freud, Saussure, Foucault e dos Movimentos Feministas. O primeiro, Marx, rompe com os teóricos humanistas e com sua visão de essência universal humana; o segundo, Freud, se refere a descoberta do inconsciente, ou seja, diferente da lógica da razão, as identidades, a sexualidade e os desejos, são formados por processos psíquicos do inconsciente (HALL, 2006, p. 36); o terceiro, Saussure, discute os significados das coisas, que nunca alcançarão uma forma final, incluindo o significado das identidades; o quarto, Foucault, se centra no poder disciplinar que as novas instituições empregam nos sujeitos; por fim, o quinto, Movimentos Feministas, aponta para a construção de identidades políticas, para a subjetividade e os processos de identificação (HALL, 2006).

Os estudantes, oriundos desse contexto pós-moderno, são vistos como alienígenas, uma vez que são constituídos a partir de subjetividades, são carregados de incertezas e estão em constantes processos de (re)construção indentitária (GREEN; BIGUN, 1995). A partir da constituição desses alunos, para Green e Bigun (1995), a escola deveria ser um espaço de socialização e subjetivação, com práticas pedagógicas e um currículo que atrelasse as condições sociais contemporâneas, ou seja, as escolas deveriam olhar não só para as questões macro, mas também considerar especificidades regionais e locais.

Dessa forma, considerando esse distanciamento entre cotidiano fronteiriço e escola de fronteira, desenvolvemos um instrumento de coleta de dados para compreender melhor em que consiste as práticas administrativo-pedagógicas desenvolvidas nas escolas que acolhem alunos uruguaios. Segundo a Fundação Economia e Estatística (FEE/RS, 2017), Jaguarão/RS possui 27.589 habitantes e está localizado no extremo sul do Rio Grande do Sul/BR. O município possui sete escolas de Ensino Fundamental no perímetro urbano e, destas, quatro têm alunos fronteiriços uruguaios matriculados. Para a execução da presente pesquisa, aplicamos, no primeiro semestre de 2018, questionários para as gestoras dessas quatro escolas que possuíam alunos fronteiriços uruguaios matriculados, buscando investigar se as práticas pedagógicas desenvolvidas nas escolas fronteira contemplam as especificidades dos alunos fronteiriços uruguaios.

As questões realizadas foram as seguintes: 1) Na escola que você atua há alunos uruguaios? Quantos? Qual série?; 2) Como se dá a adaptação desses alunos na escola?; 3) Os professores/escola desenvolvem alguma metodologia a fim de abarcar as especificidades dos alunos fronteiriços uruguaios?; 4) Há diferenças de aprendizagens entre os alunos uruguaios e os brasileiros? Quais? Como a escola lida com isso?; 5) A Secretaria Municipal de Educação oferece alguma orientação, formação ou material, com vistas a orientar como os professores podem atender um aluno estrangeiro?; 6) Caso a pergunta anterior seja negativa, responda: a sua escola e professores acham necessário que sejam ofertados materiais, formações e orientações, visando o atendimento de alunos uruguaios? Por quê?; 7) A escola propõe alguma iniciativa de integração de brasileiros e uruguaios? Cite exemplos; 8) No cotidiano escolar como você, enquanto escola, vê a integração desses alunos uruguaios? Há conflitos e dificuldades de aprendizagens? Como os alunos e professores reagem a tal integração?; 9) A escola desenvolve algum plano de recuperação específico para os alunos uruguaios? Explique.; 10) A quais motivos você atribui os uruguaios escolherem escolas brasileiras para matricularem seus filhos?.

Com vistas a analisar as respostas dividimos as questões em 6 categorias agrupando-as da seguinte maneira: 1. Mapeamento (perguntas 1 e 10); 2. Adaptação dos alunos (perguntas 2, 7 e 8); 3. Práticas Pedagógicas (pergunta 3); 4. Processo de Aprendizagem (perguntas 4, 8 e 9); 5. Formação de Professores (perguntas 5, 6 e 9).

Analisando os dados da categoria Mapeamento, as 4 escolas investigadas contavam com alunos estrangeiros matriculados, somando um total de 13 alunos fronteiriços uruguaios. Referente ao motivo que leva os alunos a estudarem no Brasil, todas as gestores alegam que os pais, geralmente, moram no Brasil, o que dificultaria levar a criança até o Uruguai para estudar. Uma das gestoras aponta que um dos alunos fronteiriços uruguaios matriculados possui baixa-visão e o Uruguai não oferece materiais especializados, este é um dos motivos da criança estudar no Brasil. Segue a resposta da gestora:

Os pais alegam que moram no Brasil e fica muito longe para as crianças estudarem no Uruguai. Já outra menina que está no 8º ano alegou vir para o Brasil, pois a “escuela” que ela estudava não oferecia atendimento especializado, já que ela tem baixa visão. Em nossa escola a referida aluna recebe material adequado ao seu problema de saúde.

A segunda categoria, adaptação, as gestoras afirmam que a integração entre fronteiriços brasileiros e uruguaios se dá de forma natural e quando surge alguma dificuldade no que tange a aprendizagem, o aluno pode saná-la com o uso de dicionários, com apoio do professor ou, por exemplo, com o atendimento do Serviço de Orientação Educacional (SOE). Referente as trocas culturais entre ambos os países, as professoras expressam que para a escola tal prática é muito difícil, pois a prefeitura não oferece transporte para irem até o Uruguai.

Podemos entender o quanto é difícil para as escolas propõem iniciativas que integrem os brasileiros e uruguaios, especialmente quando não se vê um sentido mais amplo - cultural ou formativo - deste acolhimento no sistema de ensino brasileiro. Esta dificuldade gera uma demanda extra aos estudantes uruguaios, que ficam também responsáveis pela busca de materiais e/ou auxílio para sanarem as suas dúvidas. Vemos, assim, um aluno colocado em uma condição de sujeito diferente que não recebe auxílio no seu desenvolvimento intelectual e suas dificuldades ou a busca por auxílio deve ser realizada individualmente, ou seja, possuir outra nacionalidade e ser caracterizado como diferente na escola exige que o próprio estudante se responsabilize pelas suas possíveis dificuldades. Ademais, as escolas não propõem nenhum tipo de acolhida e supervisão desses alunos, visto que o pedido de auxílio deve ser solicitado por eles, não havendo um acompanhamento dos professores.

Santomé (1998, p. 133) aponta uma outra forma de compreender essa pluralidade no contexto currículo escolar:

Um currículo democrático, que respeite a diversidade política, cultural e linguística, tem de oferecer a possibilidade de que todos os alunos e alunas compreendam a história, tradição e idiossincrasia de sua própria comunidade. Isso implica necessariamente em conhecer também a dos demais povos do Estado, no marco de uma filosofia de respeito, colaboração e solidariedade.

Expor as próprias dificuldades da escola e fazer uma abordagem pedagógica mais adequada sobre a pluralidade que é parte do seu contexto pode ser também um dispositivo de integração e compromentimento de todos com o processo individual e coletivo de aprendizagem. O conhecimento das diferentes nuances e contradições que compõe sua historicidade enquanto sujeito pode ser o elo que dá sentido ao que se faz e estuda no currículo escolar.

Sobre a integração dos alunos, as professoras afirmam que as escolas tentam propor iniciativas de integração entre Brasil e Uruguai, mas, por vezes, se torna difícil, pois a prefeitura não oferece transporte internacional. Entretanto, Brasil e Uruguai já estão integrados na escola, uma vez que, como já foi respondido nas perguntas de mapeamento, os alunos fronteiriços uruguaios estudam no Brasil porque sua família, geralmente, mora e trabalha no Brasil, ou seja, os uruguaios fazem parte da comunidade escolar. Conforme Santomé (1995, p.161), “as culturas e vozes dos grupos sociais minoritários e/ou marginalizados que não dispõem de estruturas importantes de poder costumam ser silenciadas [...]”. No caso estudado, como os fronteiriços uruguaios são minoria no ambiente escolar são desconsiderados. Parece haver um entendimento unânime de que a integração exige deslocamento e vivências nos espaços de origem dos alunos uruguaios, evidenciando algumas marcas territoriais invisíveis, relativas aos discursos e entendimentos sobre o que deve predominar/minimizar, espaços de pertencimento e permissão para expressar hábitos e valores identitários.

Tratando da terceira categoria, práticas pedagógicas, uma das gestoras afirma que não desenvolve práticas pedagógicas que contemplam os alunos fronteiriços uruguaios. As demais afirmam que dentro do possível os professores procuram desenvolver práticas que contemplem ambos sujeitos. Segue uma das respostas obtidas: “Busca-se integrar o aluno no qual ele possa falar coisas de sua cultura, palavras que se escrevem de maneira diferente e iguais as nossas, leituras e trocas de experiências. Até mesmo para eles manterem sua língua materna bem fluente”. Ademais, a gestora de outra escola afirma que os professores também tentam mostrar as semelhanças, explicando que vivemos em um território fronteiriço e, por isso, trabalham utilizando jogos e filmes de ambas as línguas.

Diante dessas respostas, notamos que mesmo que os documentos não contemplem e nem proponham que os professores realizem práticas pedagógicas que visem ambos os alunos, alguns, mesmo que de maneira superficial, o fazem. Segundo Sacristán (2000, p. 103-104), os professores, ao realizarem seu planejamento, tomam como parâmetro suas experiências anteriores, considerando-as com a mesma importância que os documentos curriculares oficiais, visto que as orientações dadas pela gestão pouco contribuem para a prática pedagógica.

[...] se entendermos por currículo as suas prescrições administrativas, estaremos falando de uma realidade que não coincide com o currículo com o qual os professores e os alunos trabalham. [...] Desentranhar esse processo de “construção curricular” é condição não apenas para entender, mas também para detectar os pontos nevrálgicos que afetam a transformação processual, podendo assim incidir mais decisivamente na prática (SACRISTÁN, 2000, p. 104).

Assim, por mais que encontremos currículos que privilegiem e visem a construção de uma cultura hegemônica, a prática pedagógica de algumas escolas e/ou dos professores procuram realizar atividades que contemplam os alunos fronteiriços uruguaios. Isso ocorre no dia a dia, ainda que de forma dispersa ou não planejada. Muito embora isso seja um fator importante para o fortalecimento de práticas pedagógicas cada vez mais plurais, Santomé (2011, p. 185) alerta sobre outras dimensões envolvidas ao tratar da diversidade cultural:

Os professores precisam ser conscientes de que quando se fala de “cultura” e, efetivamente a partir das instituições escolares, da mesma forma que de “diferenças culturais”, estamos utilizando categorias de análise e de valoração que carregam, implicitamente, em maior ou menor grau, funções políticas. As distintas culturas presentes em um mesmo território não comportam valorações e funções semelhantes; mas sim, ao contrário, traduzem relações de poder assimétricas entre os diferentes grupos sociais que geram e avalizam.

Assim, oportunizar que as diferenças se expressem nos momentos de confraternização ou apenas para ceder a uma demanda de fala que foi calada antes, continua sendo uma atitude de poder da maioria. Apoiar o pensamento crítico e a cidadania dos estudantes, ampliando-os cada vez mais, requer que as diferenças sejam valorizadas nos diversos momentos da rotina escolar e isso, certamente, extrapola as orientações e regulamentações previstas, pois depende de cada contexto educativo.

Referente ao mesmo questionamento, outra escola investigada se denomina como intercultural, segundo a resposta dada pela gestora: “A escola é intercultural de fronteira, por isso desenvolve projetos que visam a integração entre Brasil e Uruguai, valorizando a cultura de cada povo”. Entretanto, segundo os postulados da interculturalidade, as culturas devem se interrelacionar e visar o rompimento das relações de poder, diferentemente do que é apresentado em respostas anteriores, quando a cultura dos alunos fronteiriços uruguaios é colocada como algo distante e que só é abordada em determinados momentos ou em disciplinas específicas, como nas aulas de língua espanhola.

Com base na resposta da professora e na definição de interculturalidade proposta por Walsh (2009), acreditamos que as escolas se ancoram em uma perspectiva multicultural. Para Moreira (2012, p. 18), “tal perspectiva restringe-se a identificar as diferenças e a estimular o respeito, a tolerância e a convivência entre elas. Não inclui, em seu horizonte, o propósito de desestabilizar as relações de poder envolvidas nas situações em que as diferenças coexistem”. A escola visa valorizar a cultura de cada povo separadamente e não as interrelaciona, deixando prevalecer, assim, as relações de poder.

Na categoria Processos de Aprendizagem, todas as entrevistadas afirmam que os alunos não possuem dificuldades, assim como não se faz necessário elaborar um plano de recuperação específico para os mesmos. Em contrapartida, mesmo que algumas atividades sejam contextualizadas, nos intriga pensar que alunos fronteiriços uruguaios, cuja língua materna é o Espanhol, não apresentem dificuldades ao serem alfabetizados e expostos a um ambiente de aprendizagem de Português como língua materna. O processo de aquisição oral de uma língua estrangeira, sobretudo para crianças, se dá de forma natural (KRASHEN, 1982), ou seja, os fronteiriços uruguaios, devido ao seu constante contato com a língua portuguesa, em tese, adquirem com facilidade o idioma, entretanto, na escola, o aluno também é exposto a um processo de aprendizagem de língua portuguesa, composto por regras, sobretudo gramaticais, que diferem da sua língua materna. Estas nuances de compreensões léxicas são indicadas por uma gestora ao responder a questão 4: “Tem algumas diferenças no significado das palavras, ex. em Português significa um sentido e em espanhol outro totalmente contrário. A escola tenta mostrar o certo e o errado”.

Diante da resposta apresentada, nos questionamos o que seria certo e errado, sendo que há alunos que tem como língua materna o português e outros o espanhol. Sabemos que currículo não se restringe a apresentar o conteúdo das disciplinas, mas abrange todo o contexto cultural e político em que esta aprendizagem ganha sentido. Com estas atitudes bastante rígidas sobre a língua e como expressar o pensamento, esta escola, talvez, esteja colocando os alunos fronteiriços uruguaios em uma posição de marginalização, já que sua língua é negada e sua maneira de falar é regulada conforme os preceitos sociais exigidos. Com isso, consideramos importante lembrar o apontamento de Santomé (2011, p. 185): “Quando falamos de minorias linguísticas, culturais ou étnicas, o que toda instituição escolar precisa é não ignorar os significados e as valorações que se atribuem nessa sociedade a cada um desses grupos sociais”.

A categoria 5, Formação de Professores, faz alusão a necessidade de formações e materiais de apoio que ajudem a orientar o atendimento dos alunos fronteiriços uruguaios. Todas as escolas lamentam-se que a Prefeitura, assim como a SMED, nunca ofertaram ou disponibilizaram materiais de orientação e formações sobre o tema. Uma das gestoras relata a seguinte problemática: “A SMED não apresentação (sic) nenhuma orientação. Em relação a documentação, várias vezes tivemos que recorrer a Secretaria do Estado para nos dar informações concertas”.

Seguindo a problemática da documentação, a professora responde o seguinte: “Sim. Principalmente em relação a documentação=histórico, traduzir essa documentação, a fim de matricular o aluno uruguaio no ano correto”. No município, há casos de alunos que estudavam no Uruguai e vão estudar em Jaguarão, mas como as etapas da educação básica do Uruguai são diferentes, as gestoras das escolas brasileiras têm dificuldade de alocar o estudante no ano correspondente.

Com base em todos estes dados colhidos, vemos que as professoras consideram em suas práticas pedagógicas algumas especificidades dos alunos fronteiriços uruguaios, desenvolvendo atividades que dialoguem com a cultura uruguaia. Entretanto, ainda perdura uma visão imperialista da cultura em que, por exemplo, o falar em espanhol em aula pode ser considerado errado e os professores devem mostrar para os alunos a maneira “correta” de falar utilizando a língua portuguesa.

Com relação a interação aluno-aluno (brasileiros e uruguaios), não identificamos nenhuma relação que possa ser caracterizada como conflituosa, ou seja, as gestoras não citam nenhum caso de preconceito, discriminação, conflitos, etc. Diante disso, questionamos por que os alunos podem ser considerados os alienígenas da escola se as interações entre os pares acontecem de maneira natural, independente da nacionalidade dos sujeitos.

Green e Bigun (1995) apontam que os educadores e pais geralmente veem os jovens como alienígenas, visto que eles pertencem a uma geração diferente, na qual as formas de construir conhecimento e se relacionar são atravessadas, por exemplo, por questões tecnológicas. Ao passo que as tecnologias atravessam esses alunos, redes de interações são realizadas por aproximações de interesse, independente do lugar em que esses sujeitos estão. Diante disso, os autores supõe que os pais e os educadores possam ser os verdadeiros alienígenas desse processo, já que são os adultos que encontram ou fortalecem as barreiras/problemas entre os sujeitos. No contexto da nossa pesquisa, as gestoras relatam que a relação entre os alunos sempre se deu de forma natural, a cultura, a língua e a nacionalidade nunca foram barreiras para que eles não se integrassem. Entretanto, como vimos no decorrer das análises, as docentes, por mais que tentassem inserir em suas práticas pedagógicas e atividades que contemplassem ambas nacionalidades, há momentos em que a cultura escolar, as diferenças, o silenciamento e a propagação da cultura brasileira se sobrepõem as demais.

Canen e Moreira (2001, p. 31-33) abordam que não há receitas que transformem o currículo das escolas em plurais, heterogêneos e dialógicos, contudo, com base na perspectiva multicultural crítica7, os autores sugerem 04 pontos. O primeiro procura evidenciar a pluralidade cultural e identitária que está presente tanto na sociedade como em sala de aula, dessa forma, pode-se evidenciar a diversidade cultural que estamos expostos, além de exibir e analisar as desigualdades, silenciamentos e exclusões. O segundo focaliza, primeiramente, nas diferenças e processos de construção de culturas diversificadas e, posteriormente, na desconstrução de mensagens racistas e discriminatórias. O terceiro destaca a importância da prática curricular multicultural, visando sensibilizar os alunos e professores para atividades que discutam visões estereotipadas e um currículo ativo. O quarto volta-se para uma visão afetiva, no qual é necessário atingir a “mente” e o “coração” dos docentes para transformar os valores, sentimentos e emoções.

Com base nessas sugestões, acreditamos que os currículos dos municípios de fronteira e, sobretudo, de Jaguarão, poderiam contemplar os alunos fronteiriços uruguaios se fossem realizados trabalhos coletivos e conscientes no sentido cultural e político desta integração. Isso contribuiria para o desenvolvimento de práticas pedagógicas menos focadas na distinção entre a cultura brasileira e a uruguaia e mais centralizadas em atividades contextualizadas e comprometidas com o acolhimento da pluralidade e a ampliação de possibilidades formativas que priorização as suas dimensões cognitivas, éticas, estéticas e políticas, não focando, somente, na comparação.

Considerações finais

Ao longo da pesquisa, tivemos a intenção de investigar se as práticas pedagógicas desenvolvidas nas escolas de fronteira contemplam as especificidades dos alunos fronteiriços uruguaios. Para alcançar este objetivo discutimos sobre a Lei que autoriza os alunos fronteiriços uruguaios a estudarem em escolas brasileiras de fronteira gêmea e realizamos uma revisão da literatura sobre o sentido cultural e político do currículo, e as práticas pedagógicas que integram o currículo escolar.

No decorrer das análises, realizamos discussões a partir de cinco categorias, sendo elas: Mapeamento, Adaptação, Práticas Pedagógicas, Processo de Aprendizagem, Formação de Professores. Focando nas práticas pedagógicas, percebemos que os professores têm a intenção de contemplar as especificidades dos alunos fronteiriços uruguaios, entretanto, esse esforço parece pouco planejado pedagogicamente, o que reverbera em atividades que se limitam a comparar ambas as culturas ou apresentar filmes em língua espanhola.

Diante das tentativas relatadas, refletimos sobre a construção de um currículo escolar que se ancore em uma perspectiva multicultural crítica (CANEN; MOREIRA, 2001), visando práticas promotoras que reconhecem a pluralidade cultural da escola. Por todos os elementos já trazidos no texto, assumimos claramente o entendimento já defendido por Santomé (2011, p. 185) de que as instituições escolares “[...] são um elemento a mais na produção e reprodução de discursos discriminatórios”, mas que também podem “[...] desempenhar um papel muito mais ativo como espaço de resistência e de denúncia dos discursos e práticas que no mundo de hoje e, de fato dentro de seus muros continuam legitimando práticas de marginalização”. A consciência dos professores de que os alunos fronteiriços uruguaios por mais que possuam outra língua materna, com sons e letras que não há no português, por exemplo, estão na escola não apenas para aprender a ler e escrever, mas formarem-se integralmente em suas diferentes dimensões pode ser um passo importante para produzir, efetivamente, um ambiente ancorado na perspectiva intercultural.

Por fim, acreditamos que alguns dispositivos legais no âmbito da educação podem acarretar situações que as escolas não estão preparadas para abarcar, entretanto tais medidas podem ser um vetor para que currículos plurais sejam construídos. Em contrapartida, mesmo com as exigências, os currículos das escolas continuam ratificando processos de imperialismo cultural, o que não colabora na formação para a cidania e no respeito às diferenças.

3De acordo com Mazzei (2012, p. 34) este termo é aplicado a “[...] aglomerados urbanos binacionales divididos por una línea fronteriza seca o fluvial pero unidos por obras de infraestructura de vinculación – puentes o paseos binacionales – que son condiciones para el desarrollo de actividades económicas complementarias y de interacción social diária”.

4Ao longo do texto, vamos nos referir aos cidadãos fronteiriços como brasileiros e uruguaios, visto que ambos vivem na fronteira e cabe distingui-los pela sua nacionalidade.

5Cabe salientar que a Lei 6.815/1980 autoriza o estudante fronteiriço a estudar no lado brasileiro de fronteira, entretanto é omissa sobre as possibilidades desse aluno ser contemplado com outras políticas de assistência estudantil, por exemplo, auxílio para transporte público, bolsas de estudo, estágios remunerados.

6Esse jogo de poder se dá, segundo Silva (2005), devido a produção de significados e de sentidos, contestados e disputados. O poder, nessa óptica, não é emanado por um único sujeito ou instituição e, sim, existem poderes que se estabelecem em diversas relações.

7A perspectiva multicultural crítica visa “[...] promover o respeito pela diversidade e preparar os alunos para o trabalho coletivo em pról da justiça social” (CANEN; MOREIRA, 2001, p. 32). Sua intenção também se aproxima da perspectiva intercultural crítica e, em alguns casos, há pesquisadores que utilizando ambas nomenclaturas se referindo ao mesmo conceito.

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Recebido: 27 de Janeiro de 2020; Aceito: 01 de Junho de 2020; Publicado: 02 de Setembro de 2020

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