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Revista Exitus

versão On-line ISSN 2237-9460

Rev. Exitus vol.11  Santarém  2021  Epub 26-Mar-2022

https://doi.org/10.24065/2237-9460.2021v11n1id1559 

Dossiê

“EU REBOLO ATÉ O CHÃO MESMO!”: vidas precárias e corpos de gênero dissidentes no cotidiano escolar

“YOU BET I CAN SHAKE IT!”: precarious lives and gender dissident bodies at school

“¡SEGURO QUE PUEDO SACUDIRLO!": vidas precarias y cuerpos disidentes de género en la escuela

Ivan Amaro1 
http://orcid.org/0000-0002-8813-5510

Dilton Ribeiro Couto Junior2 
http://orcid.org/0000-0002-5221-7135

Bruno Rodrigues Ganem3 
http://orcid.org/0000-0001-8126-1234

1Pós-Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor Associado da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (PPGECC) da FEBF/UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Líder do Núcleo de Estudos Diferenças, Educação, Gênero e Sexualidades (NUDES)

2Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/UERJ). Professor Adjunto da Faculdade de Educação da UERJ e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (PPGECC) da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense da UERJ

3Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Membro do Núcleo de Estudos e Diferenças, Gênero e Sexualidades (NuDES). Professor da Educação Básica nos municípios do Rio de Janeiro e Duque de Caxias


RESUMO

Este artigo, a partir de uma análise do contexto de precariedade das vidas humanas, de suas subjetividades e de um tensionamento entre ofensivas antigênero e as dissidências da cisheteronormatividade problematiza como o cotidiano escolar enfrenta este embate a partir de corporalidades em movimentos desviantes. Discursos de ódio parecem ganhar amplo espaço nos últimos anos e nos colocaram num campo de grandes tensões, embates e disputas que atacam coletivos diversos de mulheres, de indígenas, quilombolas e da comunidade LGBTI+. Esse cenário, embora pareça nos arrastar para um quadro distópico pessimista e derrotista, nos mobiliza na busca por outras estratégias de enfrentamento aos discursos de ódio voltados para a desqualificação de determinados grupos de sujeitos. As disputas constroem narrativas distintas, principalmente, quando pensamos em políticas públicas educacionais voltadas para o enfrentamento das diversas discriminações, preconceitos e violências. Este texto apresenta achados de pesquisa que tomam as práticas pedagógicas de combate à violência de gênero e à lgbtfobia no cotidiano de escolas do Rio de Janeiro focalizando a complexidade das violências de gênero, bem como refletindo sobre potentes perspectivas de redução destas. As análises empreendidas sustentam-se principalmente no diálogo com o campo de estudos de gênero e sexualidade sob uma perspectiva pós-crítica. A formação continuada de professoras(es) tem se mostrado potente para produzir efeitos positivos no combate às diversas formas de violência e para construirmos uma sociedade antissexista, antirracista, antilgbtfóbica e mais democrática em defesa de direitos para toda(o,e)s.

Palavras-chave: Formação continuada; Práticas pedagógicas anti-lgbtfóbicas e não sexistas; Gênero e sexualidades

ABSTRACT

This article results from an analysis of the precariousness of human lives, their subjectivities and the growing tenseness between the anti-gender offensive and dissidents of hetero-cis-normativity. Our research problematizes how school life addresses this dispute, based on the corporeality of deviant bodies. With the increasing propagation of hate speech in recent years, we find ourselves in a field of great tension, conflict and dispute that afflict various groups of women, native tribes, quilombolas and the LGBTI+ community. This scenario, although it might paint a pessimist and defeatist dystopian picture, has mobilized us to search for different strategies to face hate speeches that disqualify certain groups of people. We also believe disputes tend to build distinct narratives, especially regarding educational public policies that target discrimination, prejudice and violence. This text presents research findings that take into consideration pedagogical practices against gender violence and LGBTphobia in the daily life of schools in Rio de Janeiro, focusing on the complexity of gender violence and the prospects for its reduction. Our analyses were mainly conducted in dialogue with gender and sexuality studies, from a post-critical perspective. That being said, the continuing education of teachers has shown potential to produce positive effects in the fight against all kinds of violence towards a more democratic, anti-sexist, anti-racist and anti-LGBTphobic society and human rights for all.

Keywords: Continuing education; Anti-LGBTphobic and anti-sexist pedagogical practices; Gender and sexuality

RESUMEN

Este artículo es el resultado de un análisis de la precariedad de las vidas humanas, sus subjetividades y la creciente tensión entre la ofensiva anti-género y los disidentes de la hetero-cis-normatividad. Nuestra investigación cuestiona cómo la vida escolar aborda esta disputa, basada en la corporealidad de los cuerpos desviados. Con la creciente propagación del discurso de odio en los últimos años, nos encontramos en un campo de gran tensión, conflicto y disputa que afligen a varios grupos de mujeres, tribus nativas, quilombolas y la comunidad LGBTI+. Este escenario, aunque podría pintar un panorama distópico pesimista y derrotista, nos ha movilizado para buscar diferentes estrategias para enfrentar discursos de odio que descalifican a ciertos grupos de personas. También creemos que las disputas tienden a construir narrativas distintas, especialmente con respecto a las políticas públicas educativas que se dirigen a la discriminación, los prejuicios y la violencia. Este texto presenta conclusiones de investigación que tienen en cuenta las prácticas pedagógicas contra la violencia de género y la lgbtfobia en la vida cotidiana de los centros educativos de Río de Janeiro, centrándose en la complejidad de la violencia de género y las perspectivas de su reducción. Nuestros análisis se llevaron a cabo principalmente en diálogo con estudios de género y sexualidad, desde una perspectiva postcrítica. Dicho esto, la educación continua del profesorado ha demostrado ser potencial para producir efectos positivos en la lucha contra todo tipo de violencia hacia una sociedad más democrática, anti-sexista, antirracista y anti-LGBTphobic y derechos humanos para todos.

Palabras clave: Educación continua; Prácticas pedagógicas anti-LGBTphobic y antisexistas; Género y sexualidade

A PRECARIEDADE DE NOSSAS VIDAS: quais delas importam?

O esfacelamento da noção do “homem cordial” (HOLANDA, 2012) escancara a estrutura racista, misógina, homofóbica, preconceituosa, discriminatória e violenta historicamente constituída em nosso país. Nos últimos anos, os discursos de ódio, antes contidos por um conjunto de políticas e defesas de um Estado democrático de direitos, encontram-se hoje autorizados criando uma sensação de “liberdade de expressão” ao mais ignóbil e renitente “cidadão de bem”. Estes discursos produzem realidades e revelam o imenso atraso civilizatório em que nos encontramos. Revelam também a verdadeira face do preconceito, das discriminações e das diversas formas de violência.

Nossa recente democracia e o Estado de direitos têm sofrido sequentes ataques e ganharam um delineado mais substancial a partir das eleições presidenciais e da eleição de alguns governos estaduais em 2018 que, amparados numa onda mundial de avanços conservadores, vêm colocando em prática um conjunto de estratégias de desmonte dos direitos e da cidadania. Inequivocamente, nos apercebemos de uma triste constatação: “o ódio à democracia não é novidade. É tão velho quanto a democracia, e por uma razão muito simples: a própria palavra é a expressão de um ódio” (RANCIÈRE, 2014, p. 8).

Desde o início da década dos anos 2000, há disputas acirradas de narrativas, estratégias e políticas que envolvem as questões de gênero e da diversidade sexual, não sem resistência. Os movimentos políticos, de caráter religioso e conservador, têm intensificado sua ofensiva contrária à inserção dessas temáticas nas práticas escolares. Com isso, cabe buscarmos estratégias “capazes de minar os pilares que sustentam crenças e valores pessoais ainda muito balizados no (entre)cruzamento da religião com o agir político” (TEIXEIRA; COUTO JUNIOR, 2021, p. 212). As ofensivas dirigem-se, principalmente, à caça dos direitos daquela(e)s4 que não se encaixam no padrão da heterossexualidade estrutural: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Não-Binários, Intersexuais. Essas ofensivas são constituídas majoritariamente por pessoas brancas, heterossexuaiscisgêneras, que “lutam para manter seus privilégios, em nome da moral, dos valores, dos costumes e da família tradicional” (CARVALHO; POCAHY; SANTOS, 2017, p. 756).

Estes ataques, interdições, censura e regulação ao caráter democrático da sociedade atingem, também, a escola e impõem a nós, educadora(e)s e pesquisadora(e)s, a necessidade de consolidar maiores práticas de resistências em defesa da produção de conhecimentos contrários aos obscurantismos de discursos religiosos e teoricamente infundados. Pensando no caráter propositivo, nos deteremos na narrativa que nos encaminha para a busca de espaços de fuga, brechas, fissuras, para intensificar e promover a discussão de gênero e de sexualidades nos cotidianos escolares. Ao focalizarmos estas temáticas, contribuiremos para a formação de sujeitos cidadãos mais solidários, mais respeitosos, menos preconceituosos e que, sobretudo, reconheçam e legitimem a multiplicidade de formas de ser/existir. Concordamos com Louro (2014, p. 47) quando afirma ser “no interior das redes de poder, pelas trocas e jogos que constituem o seu exercício, que são instituídas e nomeadas as diferenças e desigualdades”. Neste sentido, o combate à vulnerabilidade a que estamos exposta(o)s exige estratégias outras no reconhecimento das violações a que estamos submetida(o)s e de como podemos enfrentar tais violações. Para Butler (2019), as motivações de medo e luto se consubstanciam à medida em que nos percebemos violados e de que outros corpos podem também ser violados. Há um conjunto de meios diversos que instauram o cenário de vulnerabilidades e de violência. De acordo com a autora, “se estivermos interessados em deter esses ciclos a fim de produzir resultados menos violentos, é sem dúvida importante nos perguntarmos o que pode ser feito como política de luto além de uma guerra” (BUTLER, 2019, p. 10).

O breve panorama apresentado acima caracteriza o triste cenário social experienciado hoje no Brasil e se constitui como o pano de fundo de uma pesquisa em andamento vinculada a um Programa de Pós-Graduação em Educação. A partir de uma análise do contexto de precariedade das vidas humanas, de suas subjetividades e de um tensionamento entre ofensivas anti-gênero e as dissidências da cisheteronormatividade, este artigo problematiza como o cotidiano escolar enfrenta este embate a partir de corporalidades em movimentos desviantes. Para isso, apresentamos algumas discussões dos achados da pesquisa que temos desenvolvido, desde 2016, em quatro escolas públicas da periferia do Rio de Janeiro. Esta pesquisa se realiza no âmbito de um projeto de formação continuada de professora(e)s, com encontros mensais, para tratar de temáticas relativas às violências de gênero e à LGBTfobia5, como estratégia de combater estas violências a partir das práticas pedagógicas desenvolvidas por estas e estes docentes. O trabalho de campo desenvolvido com professora(e)s da educação básica evidenciam as percepções e sentidos que aluna (o, e)s têm produzido sobre conceitos de violência, machismo e homofobia, bem como as táticas (CERTEAU, 2008) de superação destas vulnerabilidades vão se configurando nestas práticas.

Nossas decisões teórico-metodológicas fundamentam-se principalmente no diálogo com o campo de estudos de gênero e sexualidade sob uma perspectiva pós-crítica como condutores do nosso pensarfazer6 científico. Tal perspectiva envolve constante questionamento da trajetória teóricometodológica a trilhar e seu constante movimento de desconstrução e reconstrução. Nestes movimentos, assumimos aqui o risco de me juntar a pesquisadora(e)s em educação que têm a coragem de relacionar pressupostos e premissas que articulam “bricolagens metodológicas” de se pensarfazer pesquisa com os cotidianos, sem, no entanto, cair em armadilhas da superficialidade epistêmica e científica. Para Paraíso (2012, p. 33), a forma de realizar as pesquisas promove a possibilidade de: “cavar/produzir/fabricar a articulação de saberes e a bricolagem de metodologias porque não temos uma única teoria a subsidiar nossos trabalhos e porque não temos um método a adotar”. Assim, lançamos mão de tudo aquilo que nos serve e que serve às nossas investigações de modo a nos informar sobre nosso foco investigativo na perspectiva de produzir algo novo.

O ato de bricolar permite-nos inventar outros territórios. É, portanto, um ato político-epistêmico de desterritorialização e de descolonização! No entanto, a articulação entre saberes e a bricolagem de metodologias exige de nós diferentes deslocamentos, desestabilizações, explosões e desconstruções realizadas pelas teorias pós-críticas. Nesta perspectiva, Paraíso (2012) sugere algumas premissas que julgamos, também, serem contribuintes para nossas pesquisas: a). há mudanças significativas na sociedade e, consequentemente, no campo da educação; b). educamos e pesquisamos em um tempo diferente; c). outras teorias, outros conceitos, outras categorias (inserem-se questões de gênero, sexualidade, raça/etnia, geração, cultura, religiosidade, localidades, multiculturalidades, etc.) são necessárias para compreendermos estas mudanças; d). a verdade não existe; é ilusória, é uma invenção, uma criação; e). os discursos têm função produtiva; e). o sujeito é um efeito de linguagens, discursos, textos, representações, enunciações, das relações de poder-saber; e). compreensão de que nas escolas, em diferentes instituições e espaços, nos currículos e nos mais diferentes artefatos estão presentes relações de poder de diferentes tipos - classe, gênero, sexualidade, idade, raça, etnia, geração e cultura; f). raciocínios operados na educação são generificados; g). diferença e multiplicidade em tensão com a diversidade e identidade.

Buscou-se, também, identificar que práticas esta(e)s professora(e)s têm realizado para combater violências, preconceitos e discriminações, bem como, apreender os sentidos que se colocam nas experiências de alunos e alunas sobre as temáticas de gênero

PRÁTICAS E RESISTÊNCIAS NO COTIDIANO ESCOLAR: saberesfazeres no enfrentamento das violências contra pessoas LGBTI+

A Câmara Municipal do Rio de Janeiro somente colocou o Projeto de Lei do Plano Municipal de Educação em pauta para aprovação em 27/03/2018. O plano deveria ter sido aprovado em 2015, porém, a polêmica sobre a inserção ou não de referências à igualdade de gênero atrasou sua votação. Foram apresentadas mais de 150 emendas pelos parlamentares e o prefeito somente sancionou a Lei nº 6.362 em 28/05/2018.

Estas ofensivas conservadoras buscam, sob o manto de defesa da família, manter a “escola no armário” e “amordaçar professora(e)s”. O campo das políticas públicas educacionais é também espaçotempo de disputas e, portanto, de paradoxos em seus processos de implementação que não são simplesmente determinativos dos fazeres cotidianos escolares. Logo, identificamos que “há também brechas para implementar ações de combate ao preconceito, à discriminação e à violência em relação às diversas manifestações de gênero e de orientação sexual” (AMARO, 2017, p. 142). Com isso, precisamos identificar e desvendar pensaresfazeres que se desencadeiam nestas brechas, nestas fissuras, nestas microestruturas de fuga.

Com o intuito de compreender a complexidade que envolve estes pensaresfazeres cotidianos em escolas de educação básica das periferias urbanas é que esta pesquisa se faz em processo, em movimento. Seu principal objetivo é investigar as configurações das práticas pedagógicas cotidianas que abarcam as relações de gênero e as sexualidades como temas/conteúdos do desenvolvimento do currículo para identificarmos táticas/estratégias utilizadas por professora(e)s para desconstruir estigmas, preconceitos e discriminações relativas à violência de gênero articulada ao seu pilar estruturante que é a heteronormatividade.

Discutimos, neste artigo, os sentidos inscritos nas práticas de quatro (04) professora(e)s que atuam em quatro (04) escolas diferentes localizadas na periferia do município do Rio de Janeiro que realizam um trabalho importante na defesa da igualdade de gênero e do respeito às sexualidades dissidentes da heteronormatividade. Desde 2016, vêm sendo desenvolvidas atividades de extensão e pesquisa7 em parceria com uma das Coordenadorias Regionais de Educação (CRE), da Secretaria Municipal do Rio de Janeiro. Inicialmente, o GT (Grupo de Trabalho) foi pensado para funcionar como espaçotempo de formação continuada para professora(e)s de Língua Portuguesa, com o sentido de refletir sobre as práticas pedagógicas para o ensino deste componente curricular. A partir de 2017, transformou-se no GT Transdisciplinar - Direitos Humanos, Diversidade, Gênero e Sexualidade (afetivamente, chamado por GT Trans) com o objetivo de desenvolver atividades de formação continuada para combater as diversas violências na escola, como foco específico para as violências de gênero e LGBTfobia. Em 2019, participaram 15 professora(e)s de 13 escolas. Em 2020, ampliamos o escopo de atendimento: professora(e)s do Ensino Fundamental I (EF I - 1º ao 5º ano) e II (EF II - 6º ao 9º ano), Professora(e)s do 6º ano Carioca, Professora(e)s do Carioca I e II, Professora(e)s Regentes na Educação Infantil e Professora(e)s Regentes das Salas de Leitura.

No grupo de professora(e)s da rede municipal do Rio de Janeiro e com os grupos de seus estudantes, a conversa foi nosso procedimento teórico-metodológico privilegiado. Assumimos que as conversas são fontes relevantes de conhecimento, pois colocam em processo um conjunto de enunciados de pessoas com pensares, com modos próprios de ver e analisar determinados fatos do cotidiano. Para Morellet (2001, p. 126), “a maioria dos homens, e mesmo aqueles que deram o máximo de cultura ao seu espírito, devem grande parte de seus conhecimentos à conversação”. Acrescenta, ainda, que a conversa é “a grande escola do espírito, não só no sentido de que o enriquece com conhecimentos que dificilmente teriam sido extraídos de outras fontes, mas também tornando-o mais vigoroso, mais justo, mais penetrante, mais profundo” (p. 127). Este procedimento justifica-se por se tratar de um processo em que vários pensamentos são mediados pelas ações reguladoras de discursos diversos constituídos em colaboração. Para Gombaud (2001), a conversa se configura com uma organização do diálogo que se faz entre vários tipos de pessoas

que se comunicam umas com as outras, seja num encontro casual em que se tenham apenas duas ou três palavras a trocar; seja num passeio, ou em viagem com os amigos, ou mesmo com pessoas que não se conhece; seja no encontro à mesa com gente de boa companhia, seja ao se ir ver pessoas de quem se gosta, quando a comunicação é mais agradável; seja, enfim, quando se está em algum lugar de reunião, onde se pensa apenas em diversão, que, com efeito, é o principal objetivo das conversas (GOMBAUD, 2001, p. 4-5).

No encontro com professora(e)s, o espaço para a conversa se torna extremamente potente, tendo em vista que esses profissionais têm se ressentido de que sua formação nem sempre toma a escuta, o respeito à fala do outro, à experiência do outro como princípios formativos. Nossos acordos implicam que todos e todas possuem saberes relevantes para fazer avançar muitas práticas de combate às diversas violências. Neste sentido, nossos encontros, muitas das conversas apresentaram a intenção de tensionar os pilares da formação que colocam pesquisadora(e)s como detentora(e)s de conhecimentos. Ademais, as conversas buscaram abalar as bases que “sustentam o regime (cis)heterocentrado, colocando em debate alegrias, tristezas, sonhos etc., ou seja, suas próprias experiências” (COUTO JUNIOR; BRITO; POCAHY; AMARO, 2019, p. 1217) cotidianas na realização de seu fazer docente.

Em nossos encontros, as conversas têm privilegiado uma postura de colocar em questão os regimes de verdade disseminados pelos discursos que buscam regular comportamentos relativos às questões de gênero. Reforçamos, aqui, que a conversa priorizada como pressuposto metodológico pressupõe fazer pesquisa com professore(a)s e estudantes da educação básica, superando o paradigma tradicional da hierarquia entre pesquisador e sujeitos de pesquisa. Entende-se que esta forma de produzir conhecimento, “ao ser cultivado pelas relações de amizade, de cumplicidade e da horizontalidade da palavra, é capaz de transformar pesquisador e sujeitos, porque cada palavra escrita torna-se um convite para que [...] novos sentidos sejam produzidos sobre as diversas experiências cotidianas” (COUTO JUNIOR; FERREIRA; OSWALD, 2017, p. 31). Pensar numa relação horizontal e colaborativa da pesquisa com o outro é defender que o conhecimento se faz em cruzamentos entre os pensaresfazeres de docentes que atuam cotidianamente em suas escolas e que também fazem perguntas, indagam e questionam o próprio pensarfazer pedagógico. Assim, se faz em processo o exercício de colocar em prática uma “pedagogia da pergunta” (FREIRE; FAUNDEZ, 1985) em que pesquisador e professor são produtores de conhecimento.

As experiências cotidianas compartilhadas no grupo são foco de nossas reflexões e discussões. Neste contexto, temas como violência contra a mulher, igualdade de gênero, machismo, misoginia, bullying, feminismo, homossexualidade, bissexualidade, transexualidade foram constituindo a pauta de nossas conversas. Este movimento comunicacional dinâmico provoca uma construção de que todos são professorespesquisadores e, em suas experiências, produzem conhecimentos outros. Importante se faz nos aproximarmos do cotidiano escolar para perceber que os fios de questionamentos traçados e intrincados nele permitam “indicar os modos como são fabricados os conhecimentos, com os acontecimentos culturais neles incluídos, através dos diferentes e diversos usos que os praticantes dos cotidianos fazem dos produtos colocados para consumo” (CERTEAU, p. 94, 2008). Ademais, é importante frisar que as pesquisas com os cotidianos são marcadas pelas incertezas, pelas imprevisibilidades, pelas invisibilidades que se atam. Dessa forma, os opostos se cruzam, se tecem, se aproximam, se distanciam, indicam rupturas, promovem encontros, convivem nas contradições, criam um movimento difícil de ser percebido, acompanhado e apreendido, interpretado, compreendido, traduzido (ESTEBAN, 2003).

Nossas conversas buscaram, assim, problematizar a forma como as temáticas sobre as relações de gênero e as sexualidade estão demarcadas nos currículos pensadospraticados (OLIVEIRA, 2013) por professora(e)s em seus fazerespensares (FERRAÇO, 2007) procurando identificar como estas temáticas são contempladas e de que forma se apresentam como potentes para descontruir pensamentos e conhecimentos hegemônicos calcados na perspectiva CIS-heteronormativa, buscando constituir uma “ecologia de saberes” (SANTOS, 2010) por meio de astúcias e estratégias desses sujeitos que reinventam e criam outros saberes cotidianamente (CERTEAU, 2008). É neste emaranhado teórico-metodológico que compreendemos essencial fazer a conversa acontecer, pois conversar com praticantes das escolas significa muito mais do que apenas selecionar um procedimento diferente de pesquisa. Significa entender que “as conversas expressam tentativas de aproximação e de mobilização das relações vividas por esses sujeitos nas escolas, na medida em que apostamos na atitude política de pensar com eles e não para ou sobre eles” (ALVES; FERRAÇO, 2018, p. 52).

As conversas não pressupõem um alinhamento de pensaresfazeres. Pelo contrário, envolve um conjunto de confrontos, explicitações, pensares, concordâncias, discordâncias. As conversas são acontecimentos que não preveem um fechamento concordante ou discordante. Como afirma Larrosa (2003, p. 212-213),

[...] o valor de uma conversa não está no fato de que ao final se chegue ou não a um acordo... pelo contrário, uma conversa está cheia de diferenças e a arte da conversa consiste em sustentar a tensão entre as diferenças... mantendo-as e não as dissolvendo...e mantendo também as dúvidas, as perplexidades, as interrogações... e isso é o que a faz interessante... por isso, em uma conversa, não existe uma única palavra... por isso uma conversa pode manter as dúvidas até o final, porém cada vez mais precisas, mais elaboradas, mais inteligentes... por isso uma conversa pode manter as diferenças até o final, porém cada vez mais afinadas, mais sensíveis, mais conscientes de si mesmas... por isso uma conversa não termina, simplesmente se interrompe... e muda para outra coisa... (LAROSSA, 2003, p. 212-213).

Os achados, neste texto, referem-se às conversas realizadas nos encontros com docentes e referem-se às práticas de quatro professora(e)s das quatro escolas participantes. Apresentamos, também, as conversas realizadas nas escolas com aluna(o)s do 1º e do 2º Segmentos do Ensino Fundamental, com a nossa participação em parceria com as(os) professor(as)es. A Profª Dandara8 atua com o componente disciplinar Língua Portuguesa em duas turmas de 9º ano (EF II) e o Prof Paulo com Projetos Especiais na Sala de Leitura. Ambos atuam na Escola Municipal NP (EMNP). A Profª Lélia, também de Língua Portuguesa, é regente em turmas de 6º ao 9º (EF II) na Escola Municipal RO (EMRO). A Profª Marielle trabalha com uma turma de 5º ano (EF I) da Escola Municipal JM (EMJM).

Nossa proposta de formação se sustenta em três dimensões: os conhecimentos tecidos no cotidiano, o caráter investigativo da ação docente e os saberesfazeres desses docentes. No processo de pensarfazer cotidiano, os encontros mensais, juntamente com visitas às escolas, são momentos de narrar experiências, de vivências e de conversas. Estes aspectos ajudam-nos a estabelecer uma rede de afetos e de “proteção pedagógica”, como disse uma das participantes, em um dos encontros. As atividades seguem o processo de reflexão/problematização/percepção/leitura do cotidiano que acabam por disparar problematizações potentes.

A Profª Dandara é uma dessas professoraspesquisadoras e nos coloca suas reflexões sobre a própria prática que desenvolve ao afirmar que os encontros no “GT Trans” têm sido enriquecedores na sua formação como pesquisadora. Ela desenvolveu, ao longo de 2018, uma série de atividades com o foco na violência contra a mulher. No início do ano, trabalhou a partir da Campanha “Não é Não”, disseminada nos blocos do carnaval de rua no Rio de Janeiro. O trabalho utilizou uma série de reportagens em vídeo que trataram das atitudes de homens importunando as mulheres no carnaval, bem como outras que trataram de violência doméstica, do feminicídio e da homofobia. Em um dos encontros, Dandara contou o que a mobilizou a trabalhar a partir da campanha:

O ano letivo começou uma semana antes do carnaval. Antes disso, estava assistindo ao programa “Encontro”9 e vi uma atriz falando da campanha “Não é não”. Achei superinteressante. A partir daí, fui pesquisar sobre o assunto e encontrei diversos vídeos no YouTube tratando do movimento de mulheres contra o assédio no carnaval.

[...] Como estava planejando o meu trabalho para o bimestre e pensava em elaborar atividades para a produção textual, vi na campanha uma possibilidade de discutir a violência que nós mulheres sofremos cotidianamente, aliada a possibilidade de municiar minhas turmas de informações para produzirem textos de gêneros diversos, com o objetivo de combater este tipo de violência (Profª Dandara).

O Prof Paulo reforça a importância de compreender que concepções a(o)s aluna(o)s possuem sobre as diversas formas de violência para orientar sua intervenção pedagógica. Ele aplicou o questionário por meio eletrônico10 a 58 estudantes e obteve a resposta de 49. Para ele, o questionário aplicado ajudou a provocar seu olhar investigativo e forneceu elementos para melhor refletir sobre o que suas turmas pensam sobre a violência, machismo, homofobia, racismo. Ao sistematizar as respostas, surpreendeu-se pelo nível das respostas. Não localizou respostas evasivas e curtas, pelo contrário, as(os) estudantes forneceram respostas detalhadas e com importantes entradas de problematização. Afirmou que ao confrontar os dados dos questionários com as conversas posteriores, eles sabiam outras coisas sobre as violências na escola. Ele socializou esta experiência no coletivo:

Pesquisador: Então, como foi o mês? Contem o que aconteceu de interessante (ou não) nas atividades desde nosso último encontro... Paulo: eu gostaria de falar o que aconteceu na minha escola. No nosso último encontro, saí daqui pensando em como começar meu trabalho e planejar minhas ações junto às turmas de 7º e 8º anos... Não sabia por onde começar... Mas, a ideia de saber o que meus alunos pensam foi o que mexeu comigo. Depois dos dados apresentados aqui sobre feminicídio, machismo e homofobia, decidi aplicar um questionário, inicialmente...E fiquei surpreso como eles sabem sobre os assuntos e como se posicionam. Não imaginei que tivesse um retorno tão grande... foi uma experiência que eu me repensei sobre o “preconceito” que eu tinha sobre eles... Achava que eles não estavam nem aí... Percebi que eles sabem muito e tem posição a respeito... Este foi o meu pontapé para o trabalho deste ano. Me deu todas as diretrizes sobre como devo trabalhar... (Prof Paulo).

Segundo Paulo, o objetivo do questionário, como instrumento inicial, foi identificar como adolescentes percebiam as diversas violências na escola e as ações que propunham para o combate às mesmas. O instrumento foi uma sugestão para que cada docente adaptasse conforme suas necessidades e à realidade de suas(seus) aluna(o)s. Foi organizado com questões abertas em quatro blocos: 1. Concepções de violência e sua tipologia; 2. Concepções sobre Racismo; 3. Concepções sobre Violência de Gênero, Homofobia, Machismo e, 4. Proposições para o Combate às Violências. No retorno dos questionários, o coletivo se reuniu e discutiu as informações fornecidas e, a partir daí, organizamos os dados nestes quatro blocos. Sobre a concepção de violência, de modo geral, há uma associação como agressão física ou verbal. Algumas poucas respostas apontam para a ideia de violência psicológica ou moral. Sobre o racismo, o entendimento geral está articulado ao preconceito e à discriminação pela cor da pele.

Para efeito de nossas reflexões aqui, no entanto, nos deteremos nas respostas fornecidas sobre a violência de gênero, homofobia e machismo. Neste bloco, percebem-se que as noções de violência de gênero foram organizadas em dois eixos: relações de poder e identidade de gênero/orientação sexual. No primeiro eixo, os entendimentos focalizam as desigualdades de gênero, no entanto, apontam algumas confusões que parecem não indicar uma ideia de poder do homem sobre a mulher. A violência de gênero está relacionada ao uso da força física e à manipulação psicológica como formas de exercício do poder do homem sobre a mulher. Trata-se de constranger, obstruir a liberdade e impedir que a mulher se manifeste por vontade própria. Para Saffioti (2015), a violência de gênero está articulada à naturalização social da violência de homens sobre mulheres que corresponde à estrutura patriarcal, cultural e socialmente constituída. Apenas as respostas (3)11, (4) e (5) parecem indicar uma compreensão de que o poder exercido do homem sobre a mulher consubstancia-se na ideia do que seja “violência de gênero”:

(1) Um gênero agir de forma hostil a outro gênero; (2) Atacar o gênero diferente do seu; (3) Quando homem inferioriza e humilha a mulher; (4) É quando o homem quer ser superior à mulher, quando o homem não aceita que a mulher possa ser chefe dele;(5) É uma discriminação que o homem faz da mulher, bate na mulher;

A partir daí, partimos para o planejamento e execução de ações para tratar do enfrentamento das violências que se refletem no cotidiano escolar: violência de gênero, racismo, homofobia, lgbtfobia, machismo, sexismo, bullying, intolerância religiosa, etc. Dessa forma, a formação continuada promove práticas pedagógicas em que os sujeitospraticantes estejam munidos de ferramentas teóricas, políticas e culturais para combaterem o preconceito e as discriminações de diversas ordens no espaço da escola, assim, o que é discutido e compartilhado no coletivo transforma-se em elemento para conversar com a prática.

A Profª Lélia desenvolveu um projeto a partir do enredo “História para ninar gente grande”, que rendeu o título de campeã à Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, no desfile do Grupo Especial das Escola de Samba do Rio de Janeiro em 2019. Com o intuito de levar o samba para a sala de aula, ela trabalhou a letra do samba-enredo. As discussões se deram sobre as personagens importantes da História do Brasil que foram apagadas pela elite dominante e que foram retratadas no samba. Em um dos trechos, faz alusão às mulheres que não têm reconhecido protagonismo na construção de nossa história: “Brasil, chegou a vez/De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês”. Assim, foram desenvolvidos projetos que permitissem aprender sobre as histórias de Leci Brandão, Luisa Mahin, Dandara, Marielle Franco, dentre outras. Em outra etapa, pesquisaram sobre mulheres, preferencialmente, brasileiras, que tivessem contribuído para a nossa história. Após a pesquisa, em trios, a(o)s aluna(o)s produziram um pequeno texto que resumia a história de cada uma.

Em seguida, discutiu com suas duas turmas do 9º ano, a partir de várias reportagens, a violência contra a mulher e a importância do empoderamento das mulheres. Marielle Franco foi a inspiração. Neste momento, foram realizadas “rodas de conversa” com as turmas um pouco sobre a história dela e o fato de ser mulher, negra, lésbica e defensora dos direitos humanos acabou provocando um conjunto de temáticas relativas ao machismo, à lgbtfobia e ao racismo. As conversas focalizaram questões relativas às identidades de gênero/orientação sexual, relações com a homofobia, com o machismo, algumas reflexões sobre o entendimento de feminismo e o marcador social de gênero. Inicialmente, a professora perguntou o que pensavam sobre machismo. Este foi o disparador para o debate:

Professora Lélia: A partir da letra do samba, por que vocês acham que, historicamente, as mulheres são apagadas?

Bel: Eu acho que é por causa dos homens. Eles se acham muito poderosos e aí eles não deixam as mulheres aparecerem.

Patrícia: é por causa do machismo. O machismo mata as mulheres... Pedro: acho que as mulheres estão muito assanhadas... [é interrompido...]

Marcela: tá maluco??? As mulheres são fortes e melhores do que os homens...

Pedro: elas querem ser homem... essa Marielle era sapatão... quer agir como homem... dá nisso!

Em outubro de 2018, foi realizado um ato na Cinelândia, no centro do Rio, em homenagem à vereadora. O protesto condenou a destruição de uma placa simbólica com o nome dela que foi rasgada por Daniel Silveira, eleito deputado federal pelo PSL, e por Rodrigo Amorim, deputado estadual mais votado do Rio, também do PSL durante um ato de campanha à eleição. candidatos, à época, a deputado estadual e federal12. Os(as) manifestantes receberam mil novas tabuletas simbólicas com o nome da vereadora, imitando placas oficiais de ruas.

Há relações difusas com as pessoas transgêneras ou com a ideia de identidade de gênero. De modo amplo, estas concepções não deixam de estar articuladas ao conceito de violência de gênero. No entanto, emerge o desconhecimento das concepções, o que acaba por sustentar uma atitude de preconceito. O preconceito é um pré-julgamento sem fundamentação científica, criado a partir de crenças e entendimentos superficiais que, por vezes, fundamental atitudes e comportamentos de ódio e repúdio a determinados grupos:

(1) Quando a pessoa troca o seu gênero; (2) Quando você ofende alguém por ser daquele sexo ou por ela ter mudado de sexo; (3) Quando você zoa aquela pessoa por ela mudar de gênero; (4) É um tipo de violência com pessoas gays e lésbicas; Homofobia, machismo e feminismo;(5) Chamar o homossexual de veado, gayzinho e bater nesta pessoa por ela ser lgbt;

Apesar das confusões, ao serem questionados sobre a concepção de homofobia, a(o)s aluna(o)s têm uma noção bastante lúcida relacionada às ideias de discriminação, não aceitação, preconceito, rejeição, perseguição, aversão e ódio:

(1) Pessoas que não gostam de homossexuais, e que não aceitam; (2) A pessoa discriminar a outra por conta do gênero dela chamando o de gay; (3) É a rejeição da homossexualidade; (4) É quando a pessoa não gosta ou tem ódio dos LBGTs; (5)) Pessoas que não gostam de gente homossexual, não consegue ficar perto, às vezes, muita gente confunde uma agressão verbal com homofobia, homofobia é quando a pessoa não consegue ficar perto de homossexuais.

Na etapa seguinte, em parceria com a professora de Artes Plásticas, as aluna(o)s confeccionaram placas como as que foram feitas em homenagem a Marielle Franco. As placas foram confeccionadas em papelão, com tinta azul e, depois, a(o)s estudantes escreveram os nomes das mulheres pesquisadas. As placas foram penduradas nas grades do 1º andar da escola, conforme podemos observar na figura 1:

Fonte:http://prefeitura.rio/web/rioeduca/exibeconteudo/?id=9747601

FIGURAS 1 to 2 Placas em Homenagem às Mulheres 

Os resultados foram tão relevantes que, logo depois, três alunas pediram à professora para produzir cartazes com frases ressaltando o empoderamento feminino para serem afixados nos três banheiros femininos da escola. Conforme uma das alunas, a realização do trabalho enriqueceu muito os conhecimentos de todos sobre as conquistas das mulheres, além de ter sido bastante relevante para as meninas da escola. A figura 2 mostra o material produzido pelas alunas, indicando que há um movimento para melhor entender as questões que envolvem o enfrentamento da violência de gênero.

Fonte:http://prefeitura.rio/web/rioeduca/exibeconteudo/?id=9747601

FIGURAS 3 to 4 Cartazes de Empoderamento Feminino 

A Profª Dora organizou um portifólio a partir das respostas dos alunos ao questionário. Em seguida, foi realizada uma Oficina com seus 30 aluna(o)s, na escola. Inicialmente, foi realizada uma dinâmica em que as crianças de 10 a 12 anos deveriam atender às orientações relativas à inclusão ou exclusão. Num quadrado desenhado no chão, a cada comando, aquela(e)s que tivessem relação com a direção deveriam entrar para o quadrado. Os demais, deveriam ficar fora. Ex: Quem nasceu no Rio de Janeiro? Neste caso, os que atendiam o requisito entravam. Seguiram-se outras... Assim, foi se construindo a ideia de que somos pessoas diferentes e que essas diferenças devem ser respeitadas.

Na sequência, foram perguntados sobre machismo e homofobia.

Algumas respostas foram interessantes:

(1) “O machismo é quando os meninos não respeitam as meninas”; (2) “Aqui na sala, tem alguns meninos que são machistas, pois vivem diminuindo as meninas”; (3) “homofobia é quando você sofre preconceito por pessoas que são diferentes de você”; (4) “quando uma pessoa se declara homem e o outro é gay”, (5) “quando alguém gosta de pessoas do mesmo sexo e é xingada”.

No momento em que um dos alunos responde à questão sobre homofobia, outro faz o seguinte comentário:

(6) “Homofobia é quando os colegas riem dos outros porque parecem mulher, igual o Sílvio que fica rebolando na hora do recreio, os meninos riem e zoam ele”.

Neste momento, o Sílvio levanta e diz:

(7) “Eu rebolo até o chão mesmo e ninguém tem nada a ver com isso! Eu sou o que sou e não acho certo quando ficam me zoando, mas não tô nem aí”.

Este comentário é fundamental para perceber a relevância de trazer a discussão sobre homofobia/lgbtfobia para o ambiente da escola: as crianças aprendem a respeitar o outro e, ao mesmo tempo, aprendem a experienciar sua sexualidade enfrentando o preconceito. Rompem padrões e ousam estar no espaço que, constantemente, é afirmado como não permitido para viver sua corporalidade.

Outras ações têm sido desenvolvidas nos cotidianos das escolas que mostram que as temáticas que envolvem as discussões de gênero e as violências são de interesse de aluna(o)s e professora(e)s. Ademais, percebese que não só as prescrições institucionais curriculares são importantes para que práticas não sexistas, não lgbtfóbias sejam desencadeadas na escola. Há microsubversões acontecendo cotidianamente.

APONTAMENTOS FINAIS: por uma pedagogia não sexista e anti-lgbtfóbica

A pesquisa tem indicado que, mesmo não explicitada nos documentos oficiais, a abordagem de gênero e sexualidade tem acontecido na escola. Não como gostaríamos, caso fosse inserida no Plano Nacional de Educação (PNE), no Plano Municipal de Educação (PME), na BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e nas demais políticas públicas educacionais. Nossa luta para que estas temáticas estejam explícitas nos documentos oficiais continua como forma de combater toda e qualquer forma de violência de gênero direcionada à população LGBTI+.

De forma importante, é preciso pôr em relevo que a escola está aberta para estas questões. Professora(e)s, em seus saberesfazeres, escolhem trajetórias íngremes e nada fáceis para tratar das relações de gênero e das sexualidades no espaçostempos das escolas em que atuam. A formação continuada tem sido um espaçotempo possível para trocas de experiências e de conhecimentos que podem auxiliar na prática de uma pedagogia não sexista e anti-lgbtfóbica. O que impulsiona esta(e)s docentes para avançar em seus próprios conhecimentos e nos conhecimentos de suas(seus) aluna(o)s é a potência de constituir, cotidianamente, práticas de liberdade, conforme afirmam Freire e Faundez (1985, p. 27), “a pedagogia da liberdade ou da criação deve ser eminentemente arriscada. Deve ousar-se ao risco, deve provocar-se o risco, como única forma de avançar no conhecimento, de aprender e ensinar verdadeiramente. [...] Se assim não fosse, alcançaríamos o conhecimento absoluto, e o conhecimento absoluto não existe”.

Nas práticas cotidianas, não há a intenção de chegar a alguma “verdade”, mas de vislumbrar os significados, os indícios de informações aparentemente negligenciáveis e irrelevantes para as práticas pedagógicas escolares. Assim, podemos perceber que as “verdades” sobre gênero e sexualidades devem e podem ser provocadas, desestabilizadas, abaladas. Estes recortes do cotidiano das práticas dessa(e)s quatro professora(e)s não se presta a qualquer tipo de universalização, mas de mostrar recortes de realidades potentes. Nossa intenção é transgredir o que a modernidade considerou como “modo de ver a realidade”, buscamos perceber que sentido os diversos sujeitos enunciam sobre as realidades.

Os cotidianos possuem rotas de fuga e potências para desestabilizar os regimes de poder e as normalizações impostas sobre corpos e sujeitos. Nos cotidianos escolares, as brechas e fissuras de escape permitem transgredir o caráter estabilizador da ordem que se coloca nos currículos e nas práticas da escola e na sala de aula. Assim, os recortes das práticas aqui apresentadas dão sinais de que há possibilidades de, a partir do currículo pensadopraticado que materializa seus pensaresfazeres, promover transgressões e subversões às lógicas dominantes e hegemônicos que impõem discursos normalizadores, heteronormativos e homofóbicos. E, inspirado no comentário do aluno Sílvio, de 10 anos, é que encerramos este texto: “nós vamos rebolar até o chão mesmo” em busca de uma sociedade menos violenta e mais respeitadora das diferenças. Para isso, faremos das experiências dissidentes de ser-viver nosso norte para ampliar cada vez mais nossas margens de liberdade, expondo os limites e contingências de normas que buscam precarizar corpos, gêneros e sexualidades que não se enquadram nos padrões culturalmente inventados pelo regime cisheteronormativo.

4Utilizaremos esta conformação na escrita para respeitar, prioritariamente, o gênero feminino em detrimento do masculino, na perspectiva de subverter a lógica também patriarcal e machista que impera na gramática normativa da língua portuguesa. Buscamos respeitar as diversas identidades que superem o essencialismo binário. Ademais, buscamos construir uma linguagem mais inclusiva, principalmente, de pessoas com deficiência visual ou cegas, que ao utilizarem softwares de leitura digital, enfrentam problemas no entendimento do uso corrente do @ e X nos textos que tratam de gênero. Este alerta nos foi feito por mestranda(o)s cegos de nosso programa.

5Utilizaremos aqui o termo LGBTfobia em respeito às denominações dadas pelos movimentos LGBTs. No entanto, cabe elucidar que, do ponto de vista teórico, temos utilizado largamente o conceito “homofobia” para indicar a violência e discriminação desferidas contra pessoas que desviam-se da heterossexualidade tomada como padrão e única forma de expressão da orientação sexual, conforme Borrillo (2010) e Junqueira (2017). Ademais, tem sido utilizado nos documentos oficiais, no movimento de ativistas e no campo teórico. Para Junqueira (2017), não é prudente o abandono imediato do conceito “homofobia” e “abandonar o conceito de homofobia pode comportar o risco de jogarmos fora a criança junto com a água do banho” (p. 18).

6A opção pelo uso de determinadas expressões em itálico no texto diz respeito à nossa intenção “de transgredir as dicotomias herdadas pelo modelo de pesquisa produzido dentro do discurso hegemônico do paradigma moderno” (FERRAÇO; ALVES, 2018, p. 47).

7Nota omitida para garantia de avaliação às cegas. Será incorporado no texto final, caso seja aprovado pelos pareceristas.

8Os nomes designados são fictícios e fazem uma homenagem a mulheres e educadores importantes de nossa história.

9Programa Encontro com Fátima Bernardes, veiculado de segunda a sexta-feira, de 10:30 às 12:00, na Rede Globo.

10No encontro inicial, as orientações focalizaram a perspectiva de ser fazer um conhecimento prévio das posições de alunos e alunas sobre as temáticas relativas à violência: violência de gênero, bullying, homofobia, machismo, racismo, etc. Cada docente poderia criar formas diferenciadas de acessar estas informações. Neste caso, o procedimento escolhido foi o da aplicação de questionário.

11Para cada aluna(o), o Prof Paulo determinou um número para a identificação. Mantivemos esta mesma determinação por entendermos que é o resultado de seu trabalho como professorpesquisador.

12 Importante ressaltar que o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) foi preso no dia 16/02/2021 depois de publicar um vídeo em que proferia ataques e ofensas aos ministros do Supremo Tribunal Federal, além de fazer apologia ao AI-5, instrumento mais duro de repressão do regime militar.

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Recebido: 21 de Setembro de 2020; Aceito: 12 de Março de 2021; Publicado: 26 de Abril de 2021

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