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Revista Brasileira de História da Educação

versão impressa ISSN 1519-5902versão On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.19  Maringá jan./mar. 2019  Epub 01-Maio-2019

https://doi.org/10.4025/rbhe.v19.2019.e060 

Dossiê

O ‘grupo de Laerte’ e a escrita da história da educação (1962-1972)

The ‘Laerte’s group’ and the writing of History of Education

El “grupo de Laerte” y la escritura de la historia de la educación (1962-1972)

1Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.


Resumo:

O artigo trata de uma experiência de pesquisa e escrita de história e filosofia da educação, que nos anos 1960 e 1970 tomou lugar na Universidade de São Paulo e nos Institutos Isolados de Ensino Superior, sob a orientação de Laerte Ramos de Carvalho. Esta experiência, que criou uma discernível tradição no campo de estudos historiográficos da educação brasileira, definiu seus temas à luz de problemas educacionais e políticos de seu tempo, assim como de concepções filosóficas, teorias da história, partições epistemológicas e disciplinares que então configuravam o modelo universitário. Pelo modo como se organizou para propor, produzir e divulgar a escrita da história, essa geração marcou esse campo em formação com características particulares, que incluem a preferência por determinados tipos de fontes, modos de periodizar e narrar os eventos históricos. A análise historiográfica proposta combina a compreensãotextual e contextual dessa tradição, considerando as condições institucionais e disciplinares tanto quanto as ambiências social, intelectual e política em que essas narrativas se produziram.

Palavras-chave: historiografia; intelectuais; pesquisa educacional

Abstract:

The article deals with an experience of research and writing in History and Philosophy of education, which took place in the 1960s and 1970s at the Universidade de São Paulo and Institutos Isolados de Ensino Superior under the guidance of Laerte Ramos de Carvalho. This experience, which created a discernible tradition in the field of historiographical studies of Brazilian education, defined its themes in the light of educational and political problems of its time, as well as of philosophical conceptions, theories of history, epistemological and disciplinary partitions that formed the model of higher education of that time. By the way it has been organized to propose, produce and disseminate the writing of history, this generation marked this field in formation with particular characteristics, which include the preference for certain types of sources, ways to periodize and narrate historical events. The proposed historiographical analysis combines textual and contextual understanding of this tradition, considering the institutional and disciplinary conditions, as well as the social, intellectual and political ambience in which these narratives were produced.

Keywords: historiography; intellectuals; educational research

Resumen:

El artículo trata de una experiencia de investigación y escritura de historia y filosofía de la educación, que en los años 1960 y 1970 tuvo lugar en la Universidad de São Paulo y en los Institutos Isolados de Ensino Superior, bajo la orientación de Laerte Ramos de Carvalho. Esta experiencia, que creó una discernible tradición en el campo de los estudios historiográficos de la educación brasileña, definió sus temas a la luz de problemas educativos y políticos de su tiempo, así como de concepciones filosóficas, teorías de la historia, particiones epistemológicas y disciplinares que entonces configuraban el modelo universitario. Por el modo en que se organizó para proponer, producir y divulgar la escritura de la historia, esa generación marcó este campo en formación con características particulares, que incluyen la preferencia por determinados tipos de fuentes, modos de periodizar y narrar los eventos históricos. El análisis historiográfico propuesto combina la comprensión textual y contextual de esta tradición, considerando las condiciones institucionales y disciplinarias, así como el entorno social, intelectual y político en que esas narrativas fueron producidas.

Palabras clave: historiografía; intelectuales; investigación Educativa

Introdução

Faleceu, em agosto de 1972, o diretor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e membro titular do Conselho Estadual de Educação, Laerte Ramos de Carvalho. Seus derradeiros anos foram marcados por graves atribulações profissionais e pessoais, em razão do protagonismo que,como reitor, teve na exoneração de professores e funcionários considerados ‘subversivos’ e na intervenção militar na Universidade de Brasília,que desfechou dramaticamente o ciclo do projeto deAnísio Teixeira, Lúcio Costa e Darcy Ribeiro. Em um cenário de cerceamento ideológico e repressão policial, no qual as posições políticas se tornavam cada vez mais agudas e dicotômicas no campo intelectual, é plausível supor que a identificação de Laerte como interventor, delegado pela coligação civil-militar que tomara o Estado em 1964 para debelar os ‘comunistas’ da universidade (Salmeron, 1999)tenha ocasionadoa rejeição de suas obras, a desconfiança para com as que dela derivaram e a interrupção das trilhas que abriram, ou pretenderam abrir, na historiografia da educação brasileira. Ao menos nesse campo do conhecimento, deu-se o ‘fenômeno peculiar’ ocorrido, e detectado por Warde (1997, p. 2), na criação dos programas de pós-graduação em educação: “[...] eles se instalaram como se inaugurassem a pesquisa educacional. Os esforços investigatórios anteriores não foram absorvidos pela universidade; neles não se apoiou e deles não colheu experiência”.

Na década de 1990, em esforços memorialísticos e analíticos,a tradição historiográfica dos anos 1950 a 1970 começou a deixar o ostracismo em que se encontrava e, em alguns casos, a trazer em primeiro plano a figura de Laerte Ramos de Carvalhocomo autor, orientador e influenciador de uma geração de pesquisadores-autores dedicados à história da educação brasileira, todos vinculados à antiga seção de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, às faculdades de ciências e letras dos Institutos Isolados de Ensino Superior de São Paulo e à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Embora diferenciados pela natureza, analítica no primeiro caso e predominantementetestemunhal no segundo, os escritos de Monarcha (1996) e Tanuri (1999) abordam um conjunto de trabalhos acadêmicos que reconhecemcomo pertencentes a uma mesma geração ou tradição, no caso de Tanuri (1999), a que antecedeu em uma década à instalação dos programas de pós-graduação conforme as diretrizes da reforma universitária de 1968, e, no caso de Monarcha (1996, p. 36), o “[...] reduzido, porém significativo, número de obras matriciais, escritas por pedagogos que se assumiram como historiadores realistas”. Do conjunto de 24 obras arrolado por Tanuri (1999), oito perfazem a produção analisada por Monarcha (1996, p.36), definida como “[...] superfície refletora de obras clássicas, produzidas, por sua vez, por intelectuais que consideravam o método sociológico como método por excelência [...], simultaneamente reformadores do ensino e intérpretes do passado”.

Warde (1998, p. 93), diferentemente, identificanos anos 1950,momento degestação das obras comentadas por Monarcha (1996) e Tanuri (1999), “[...] um projeto de construção de uma História da Educação Brasileira autônoma, apoiada em levantamentos documentais originais, capaz de recobrir o processo de desenvolvimento do sistema público de ensino”. Nesse ponto, converge com Tanuri (1999, p.157), para quem esses homens e mulheres teriam dado “[...] início à construção da tradição de pesquisa no âmbito da História da Educação”. Marta Carvalho (2000), por sua vez, aponta a tese de cátedra de Ramos de Carvalho, de 1955, As reformas pombalinas da instrução pública (1977), como o primeiro trabalho de história da educação brasileira a se distanciar da tradição romântica do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, presente na pioneira tese de história da educação, defendida em 1942, na Universidade de São Paulo, Ensaios sobre a significação e importância de memória sobre a reforma dos estudos da Capitania de São Paulo, escrita em 1816 por Martim FranciscoRibeiro de Andrade Machado, por José Querino Ribeiro (1945).

Perseguindo a hipótese de Warde (1998), e partindo da obra apontada por Marta Carvalho, passei a investigar, desde a pesquisa para a tese de doutorado (Bontempi Jr., 2001), o pensamento educacional e a atuação institucional e política de Laerte Ramos de Carvalho, seu protagonismo na constituição da disciplina acadêmica história e filosofia da educação e na formação da ‘opinião pública’ em assuntos educacionais, como redator de O Estado de São Paulo. Por meio dessas pesquisas, a que se juntaram a de meus orientandos (Maia, 2013; Santos, 2015), foram-se restituindo à história o intelectuale professor, suas obras e, afinal, a tradição historiográfica que ajudou a construir - para a qual alguns de nós fomos atraídos, não por acaso,quando se questionavam as orientações teóricas hegemônicas nos programas de pós-graduação em educação desde meados da década de 1970.

O presente artigo retoma, de modo sintético, os elementos fundamentais e orientadores da escrita da história da educação legada pelo chamado ‘grupo de Laerte’, que terminou por se expressar em trabalhos acadêmicos defendidos nas décadas de 1950 a 1970 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, nas faculdades de Ciências e Letras dos Institutos Isolados de Ensino Superior do Estado de São Paulo e na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Traz à luz informações históricas sobre a composição do grupo original e seu funcionamento, extraídas de fontes, algumas inéditas, a fim de identificar e conjeturar motivações, repertórios analíticos, critérios e modos de periodizar temas e abrangência espaciotemporal que,presentes no ‘programa de investigação’ organizado por Ramos de Carvalho, tornaram-se diretrizes que transcenderam seu núcleo original, para marcar toda uma década de produção.

Lançados em um projeto coletivo que, em 1962, reuniu uma dezena de licenciados sob a orientação do catedrático, suas diretrizes e seu estilo de escrita se disseminaram no correr da década na pesquisa e no ensino de história da educação brasileira, afetando com intensidade variada outrospesquisadores, situados em pontos mais afastados daquela rede primordial. Tornando-se semelhantes em seu estilo, as obras desse período contêm os elementoscaracterísticos de um modo de fazer que, à distância de algumas décadas, remontamao passado da produção do conhecimento histórico na especialidade. Abordam-se neste artigo, além disso, os fatores extratextuais implicados no programa original, tais como o modo de organização, as condições institucionais e o campo educacional, o quadro político-ideológico etc., tendo-se como objetivo apresentar, de modo sucinto e suficiente ao leitor, especialmente ao pesquisador em história da educação, os traços fundamentais de um modo de ver e escrever a história da educação brasileira que se integrou significativamente à história e à memória da construção do conhecimento histórico sobre a educação no Brasil.

‘Grupo de Laerte’ ou ‘tradição historiográfica’: um problema de definição

No relato de Tanuri (1999), declaradamente ‘impressionista’ e calcado na memória e na expectativa de ressaltar as obras que considera mais significativas da década anterior à de formação dos programas de pós-graduação, há um deslizamento significativo da narrativa, que se inicia na definição do grupo original sob a orientação de Laerte, estende-se em seguida a um coletivo maior, por ele informalmente acolhido, para finalmente abarcar uma geração, notadamente de São Paulo, deautores que teriam contribuído para o conhecimento histórico de diferentes níveis de ensino e temas em história da educação. Há,no entanto, que se discernir o ‘grupo de Laerte’, ou seja, aquele que se reuniu para realizar um definido programa de investigação, de um conjunto mais extenso e institucionalmente mais disperso de partícipes da construção de uma tradição de escrita da história da educação que daquele grupo original teria se irradiado.

No depoimento de Tanuri (1999), aquele grupo, reunido desde 1962, contava com Roque Spencer Maciel de Barros, José Mário Pires Azanha, HelácioAntunha, João Eduardo Villalobos e Maria de Lourdes MariottoHaidar, todos da Pedagogia da USP, além de Casemiro dos Reis Filho, Rivadávia Marques Jr., Jorge Nagle e Tirsa Ragazzini Peres, das faculdades do interior. Em depoimento, Nagle (1999) menciona apenas Casemiro, Rivadávia, ‘entre outros’; por sua vez, Haidar(s.n.) declina os nomes de Maria da Penha e José Eduardo Villalobos, Jorge Nagle, HeládioAntunha, Leônidas Casanova, Casemiro e Rivadávia. Roque Spencer Maciel de Barros (1998) e José Mário Azanha (s.n.), em entrevistas, afirmam não terem feito parte do grupo; já Casemiro, apontado por quase todos os demais como integrante do grupo, omite-o ou o renega em depoimentos e entrevistas (Reis Filho, 1984, 1999), empenhado que esteve em apagar de sua biografia a formação à sombra do interventor da UnB. Roque Spencer, àquela altura livre-docente, não estaria, como não estava, em um grupo formado por licenciados. Orientado por Laerte no doutorado, defendido em 1955, Roque já contava comseus próprios orientandos, cujas teses aparecem nos anos 1970. A despeito das memórias, consciente ou inconscientemente lacunares e contraditórias, é possível definir o ‘grupo de Laerte’, ao menos em seus inícios, com base em vestígios documentais de outra ordem.

Uma carta de 25 de abril de 1961, do licenciado em Pedagogia, Jorge Nagle, a Ramos de Carvalho, catedrático de história e filosofia da educação da FFCL, faz referência a uma reunião de orientação, havida em fevereiro daquele ano, na qual fora discutido o plano inicial de sua pesquisa, a princípio, sobre a ‘Reforma Francisco Campos’. Informava, então, o licenciado que o plano de tese havia sido modificado, em razão das sugestões que recebera. A futura tese já possuía, por isso, outro título: “A Revolução e a Educação: a história da educação brasileira no período de 1930-34” (Nagle, 1961). Mais tarde, em 1996, Nagle defenderia a tese de livre-docência, definitivamente intituladaEducação e sociedade na Primeira República.

Ao final do ano de 1962, Jorge Nagle, que já lecionava no interior do Estado, recebeu de Laerte uma carta, em que o regente da cadeira de história e filosofia da educação mencionavaum ‘programa de investigações’ no qual se empenhavam dez licenciados, assim como ele,atuantes em faculdades do Estado como professores, assistentes e instrutores, que visava a produzir teses de doutorado sobre a história da educação brasileira no período republicano (Carvalho, 1962). Além disso, em cooperação com o Centro Regional de Pesquisas de São Paulo, mirava realizar uma grande pesquisa sobre a história da educação no Estado de São Paulo, a partir dos anos 1920. Sobre esta última, Ramos de Carvalho (1962, p. 1) informa que se encontrava “[...] bastante desenvolvida, prevendo-se o término da parte referente à Reforma Sampaio Dória (1a fase) para breve”.Da lista de títulos e pesquisadores do grupo, constavam os seguintes nomes, instituições e temas de teses:

1. Prof. Casemiro dos Reis Filho Prof. de História da Educação e Educação Comparada da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto Tema: ‘A Organização do Sistema Paulista de Ensino (1890-1900)’

2. Profa. Maria Alice Azevedo Fonseca Profa. de História e Filosofia da Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro Tema: ‘A fundação da Universidade de São Paulo’

3. Profa. Regina Célia Bicalho Monteiro da Silva Assistente da Cadeira de História e Filosofia da Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro Tema: ‘Um estudo dos ideais e da educação no Brasil através da literatura romântica’

4. Prof. Jorge Nagle Prof. de Teoria Geral da Educação e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara Tema: ‘A revolução e a educação’ (A história da educação brasileira no período de 1930 a 1934)

5. Profa. Maria da Penha Villalobos Profa. de Didática Geral e Especial da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro Tema: ‘Didática e Epistemologia’

6. Prof. Heládio César Gonçalves Antunha Instrutor do Setor de História e Filosofia da Educação do Departamento de Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP Tema: ‘A história do ensino normal no Estado de São Paulo’

7. Prof. João Eduardo Villalobos Instrutor do Setor de História e Filosofia da Educação do Departamento de Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP Tema: ‘O problema das Diretrizes e Bases da Educação Nacional do projeto Clemente Mariani e a aprovação de 1961 - movimentos de idéias e a realidade nacional’

8. Profa. Maria de Lourdes MariottoToniolo [Haidar] Instrutor voluntário do Setor de História e Filosofia da Educação do Departamento de Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP Tema: ‘O ensino primário no início da República’

9. Prof. TamásSzmrecsányi Assistente da Cadeira de Didática Geral e Especial da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro Tema: ‘Educação e desenvolvimento econômico’

10. Riva [Rivadávia Marques Júnior] ‘A influência de Dewey no Brasil’. 1

Além da capital do Estado, representada pelos licenciados em atividade na Universidade de São Paulo, figuravam pesquisadores das faculdades de Ciências e Letras dos Institutos Isolados de Ensino Superior de São José do Rio Preto, Rio Claro, Araraquara. Vários nomes, como se vê, não haviam sido sequer mencionados em depoimentos e artigos sobre essa geração, enquanto outros, embora lembrados em depoimentos, não constam da lista. Dela se depreende, entretanto, o que precisamente se pode nomear como ‘grupo de Laerte’, ou seja, os licenciados que formaram a primeira rede designada para a realização do programa coletivo de pesquisas sobre a educação pública brasileira e sobre o ensino paulista.

Pelos depoimentos nota-se que, a rigor, não havia exatamente um grupo, no que respeita à sociabilidade em relações horizontais de afinidade, ou mesmo de contato pessoal. Talvez em razão das distâncias que separavam fisicamente os integrantes do grupo, o vínculo se dava bem mais entre os licenciados e seu orientador do que entre eles mesmos. Como afirma Maria de Lourdes MariottoHaidar (1998),

Era um grupo de pessoas que se ligavam a ele, mas não muito entre si. Eu, praticamente, em meu trabalho, não tive contato com os outros. O Jorge Nagle, por exemplo, que foi meu colega de turma, fez o trabalho dele, mas estava no interior [do estado], e eu não troquei ideias jamais com ele, sobre o meu trabalho. [...] Nós não estávamos ligados e comprometidos.

O plano deveria cobrir a história do ensino normal em São Paulo, a organização de seu sistema de ensino na virada dos séculos XIX e XX, além da fundação da Universidade de São Paulo. No âmbito nacional, as pesquisas iriam de meados dos Oitocentos (‘ideais e da educação no Brasil através da literatura romântica’) ao ensino primário no início da República, Revolução de 1930,‘influência de Dewey no Brasil’, além do coetâneo projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Duas teses distanciam-se do temário da história da educação, abordando ‘Didática e Epistemologia’ e ‘Educação e desenvolvimento econômico’, e por essa mesma razão deixaram de ser lembradas por contemporâneos e estudiosos como contribuições representativas para a especialidade, não obstante seu valor intrínseco. O projeto de tese de Rivadávia Marques Jr. sobre a influência de Dewey no Brasil foi abandonado por seu autor, cuja tese, defendida em 1967, em Araraquara, tratou da desoficialização do ensino na república; a história do ensino normal, anunciada por HeládioAntunha, não foi por ele realizada, tendo sido substituída pelo estudo da reforma de 1920.

Tinha-se em vista somar monografias sobre a história da educação no Estado de São Paulo, uma vez que ao grupo parecia insuficiente o conhecimento acumulado na matéria. Para Ramos de Carvalho (1956, p. 600), não poderia haver “[...] legítima história sem sério e criterioso levantamento de dados de toda ordem”.Nagle (1999, p. 97) referenda essa convicção, ao recordar que Laerte “[...] julgava que só um conjunto de monografias poderia, com o tempo, possibilitar a formulação de um quadro analítico, teoricamente sustentado [...]”, dando a entender que o catedrático pretendia aguardar os resultados monográficos sobre a empiria para realizar um trabalho analítico fundamentado,além disso, que não havia um quadro teórico pré-estabelecido. Sua definição prévia seria, aliás, avessaàs convicções do orientador. Segundo Barros (1952, p. 520), reportando-se à tese A formação filosófica de Farias Brito (1978), Laerte buscava, “[...] ao invés de adotar uma fórmula [...] e construir uma teoria apressada sobre o nosso passado, debruçar-se sobre este e, com simpatia e ao mesmo tempo objetividade, [...] penetrar na sua intimidade, recriá-lo [...]”.

Além disso, os programas da disciplinahistória da educação brasileira, oferecidadesde 1940 pela cadeira de história e filosofia da educação, eram lacunares e aparentemente superficiais, pois em poucas oportunidades o que estava programado era efetivamente cumprido (Bontempi Jr. 2015). Depoimentos de licenciados em Pedagogia, nos anos 1950, reforçam essa impressão. Tanuri (1999, p. 151) aponta que o programa da disciplina história da educação, “[...] então a cargo do professor Roque Spencer Maciel de Barros, não chegava a contemplar estudos referentes ao Brasil [...]”; Casemiro dos Reis Filho lembra que, no curso de Pedagogia da USP, “[...] só se estudava a Grécia. Isócrates e a retórica grega, só se estudava isso e no fim do curso se estudava o liberalismo, como se o mundo acabasse no século XVII, e aí a gente estudava Rousseau e acabava” (Reis Filho, 1999, p.121). Embora os documentos institucionais comprovemque o programa não era tão restrito, o depoimento de Nagle (1999), de que seus conhecimentos sobre história da educação brasileira eram poucose que foram adquiridos no decorrer do trabalho de tese, reafirmam a incipiência do ensino da matéria nos anos 1950, que a seu modo espelhava a forma dos livros didáticos produzidos nas duas décadas anteriores, nos quais a educação brasileira aparecia em um capítulo ou apêndice ao final do volume (Nunes, 1996).

Além da motivação explícita, é de supor que houvesse outras para que Ramos de Carvalho buscasse conhecimento histórico fundamentado sobre a educação paulista e brasileira. A primeira delas conecta-se com sua atuação jornalística e política: desde 1947, desempenhava a função de redator da seção ‘Notas e Informações’ de O Estado de S. Paulo (OESP), comentando assuntos educacionais. Evidentemente, para a tarefa a que havia sido designado, de formar a opinião pública nos assuntos da educação, informações históricas convincentes, por exemplo, sobre a criação da Universidade de São Paulo pelos governantes liberais paulistas, haveriam de se tornar, como de fato se tornaram, argumentos a serem repetidos quase cotidianamente em defesa do modelo original, diante das ameaças que surgiriam no decorrer das décadas de 1950 e 1960 (Maia, 2013).

Essa dimensão, por assim dizer, pragmática do investimento intelectual do grupo de pesquisa tem sua expressão mais evidente e imediata na escolha do tema de pesquisa pelo licenciado João Eduardo Villalobos, instrutor de história e filosofia da educação do Departamento de Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP: ‘O problema das Diretrizes e Bases da Educação Nacional do projeto Clemente Mariani e a aprovação de 1961 - movimentos de idéias e a realidade nacional’. A escolha foi evidentemente motivada pela questão educacional mais polêmica da virada da década de 1950: o trâmite de elaboração e aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em que esse grupo se empenhou, não só academicamente, mas de modo militante, ao subscrever o Manifesto dos Educadores, em 1959, e engrossar as caravanas da Campanha em Defesa da Escola Pública.

Por fim, a história da educação que se irradiasse da cadeira de história e filosofia da educação haveria de ser legítima, segundo os cânones da emergente cultura acadêmica universitária. Isso certamente significava abandonar as perspectivas panorâmicas dos ensaios pregressos e adotar a prática de estudos verticais, especializados, que se orientariam em procedimentos científicos rigorosos e teriam seus resultados escrutinados por bancas examinadoras formadas por especialistas. Em outras palavras, a escrita em história da educação deveria assumir a forma e o significado das teses, que passaram a ser as credenciais imprescindíveis para quem, naqueles tempos, aspirasse à carreira acadêmica e, como extensão, àcondição socialmente reconhecida de intelectual.

Gestão de pesquisa

A correspondência de 1962, de Laerte a Nagle, anunciava a reunião de todos os participantes, no dia 10 de dezembro, nas dependências do CRPE, tendo como pautas “[...] fazer um levantamento dos trabalhos já realizados; [...] trocar informações e pontos de vista e, eventualmente, [...] reformular os programas e os trabalhos em andamento, para evitar superposições e repetições” (Carvalho, 1962).Jorge Naglee outros licenciados participavam, portanto, de reuniões com o orientador, em que todos os trabalhos eram discutidos. Segundo ele, embora a orientação de Laerte Ramos de Carvalho fosse ‘bastante livre’, isso “[...] não significava abstenção nas discussões, em geral, nem nas discussões sobre o trabalho de cada um”(Nagle, 1999, p. 98-99).

A preocupação em evitar eventuais ‘superposições e repetições’denota, por sua vez, tanto a ambição do grupo em realizar uma extensa cobertura temática e temporal como a expectativa de haver complementação entre as pesquisas. A certeza de que a ‘legítima história’ só se faria com base em ‘dados de toda ordem’ implicou, obviamente, a recomendação de listar e indicar, em cada referência arrolada, o local em que poderia ser encontrada, considerando-seas dificuldades de localização e acesso (Tanuri, 1999). Por essa mesma razão, entendiam-se como imprescindíveis os recursos e a cooperação dos funcionários do CRPE-SPpara o apoio no manejo dos equipamentos de reprografia, microfilmagem e para “[...] atividades de coleta, análise, armazenamento, recuperação e difusão da informação na área de Educação”. Este ‘setor de documentação’ contava com nove pessoas e mostrava-se racionalmente organizado em três unidades (‘Pergunta-resposta’; ‘Reprográfica’; ‘Arquivamento’) e três ‘equipes de análise’, definidas segundo a natureza da documentação (bibliográfica, legislativa ou de imprensa), além de uma equipe de atendimento, cujas atribuições incluíam ‘orientação técnica do usuário’ e ‘levantamento de bibliografias especializadas’ (Universidade de São Paulo, 1960, p. 1). No caso da documentação a respeito da Reforma de 1920, as palavras de Heládio Antunha(s.n., p. 11, grifo do autor)na introdução da tese espelham, ponto a ponto, o suporte operacional do CRPE, oferecido aos pesquisadores por Laerte Ramos de Carvalho, diretor do Centro entre 1961 e 1965:

[...] com o auxílio de alunos do quarto ano do Curso de Pedagogia [...] e também de servidores do Centro Regional de Pesquisas Educacionais ‘Prof. Queiroz Filho’, postos à nossa disposição, pudemos realizar um levantamento quase que exaustivo de todo o material relacionado com o assunto de nossas pesquisas [...]. Reunimos e pudemos estudar um grande número de artigos de jornais e revistas, bem como a produção bibliográfica mais diretamente relacionada com o objetivo de nossas investigações. Estatísticas do período, relatórios de autoridades escolares, bem como estudos, propostas e sugestões de reformas, vindos de diversas fontes [...]

A iniciativa de Laerte Ramos de Carvalho de reunir licenciados atuantes no ensino superior em um grupo articulado para a cobertura de tema amplo, mediante produção de pesquisas verticais com base em documentação primária e tendo como suporte operacional um centro de documentação, assemelha-se bastante àatual configuração tanto dos grupos de pesquisa como dos denominados ‘projetos temáticos’ patrocinados por agências de fomento. Em uma época na qual a pesquisa em ciências humanas simplesmente não contava com apoio financeiro, a estratégia mutual instituída, pela qual o apoio material e de recursos humanos aos pesquisadores era garantido pelo CRPE-SP, sustentado em verba federal, mostrou-se tão criativa quanto oportuna. Na apresentação do livro que estampa sua tese, volume da ‘Coleção Estudos e Documentos’,o trabalho de Antunha (s.n., p. 7) é assinalado como o primeiro projeto de pesquisa realizado “[...] na fase de estreita colaboração que houve entre essa instituição e professores do Curso de Pedagogia da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo”.

Concepções de história e partições disciplinares

Daevidente mutualidade entre o grupo de Laerte e o CRPE-SP, entretanto, não deriva uma presumível aproximação para com a sociologia, campo do conhecimento que pautara a proposta de articulação e as iniciativas dos Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais e dos centros regionais (Xavier, 1999). Seja pela análise das obras, seja pelo recurso aos relatos de experiências dos sujeitos envolvidos, não se confirmaa conjetura de Warde (1998, p.93, grifo nosso) de que “[...] aquele projeto parece ter contido uma iniciativa de redefinição das relações entre a História da Educação e a Filosofia da Educação ‘através da abertura de diálogo com a Sociologia da Educação’”. Isso porque não se verifica a presença de sociólogos no programa de investigações se porque não há, nas propostas de tese do grupo primordial, interlocução direta com a sociologia, tampouco com a sociologia da educação, cuja cadeira, desde fins da década de 1930, compartilhava a mesma Seção de Pedagogia. Não por acaso, para reafirmara diminuta importância que a experiência como estudante e pesquisador na órbita da cadeira de história e filosofia da educação da FFCL teve em sua formação, Casemiro dos Reis Filho (1999, p. 122)dirá que só veio a descobrircom Florestan Fernandes e Antonio Candido “[...] que era possível estudar as coisas importantes [...]” e que, ao terminar a graduação, prestou concurso em São José do Rio Preto como professor de sociologia. Para José Mário Pires Azanha (s.n.), que ingressara no CRPE ainda na gestão de Fernando de Azevedo, as relações de força e status entre o centro e a Faculdade de Filosofia pendiam claramente para esta última:

O centro regional era quase que um primo pobre da Faculdade de Filosofia. A impressão que se tinha em termos da programação de pesquisa, das conversas que havia, em termos das perspectivas de trabalho, e até pela figura do Fernando de Azevedo, que de vez em quando circulava pelo CRPE, [...] era que aqueles que não haviam conseguido um lugar ao sol dentro da própria Faculdade de Filosofia, tinham um subúrbio de atividade acadêmica no CRPE.

Para Azanha (s.n.), foi justamente na administração de Laerte que a relação entre as instituições foi posta em outros termos, pois

Ele transformou as atividades de pesquisa do centro [em] uma oportunidade de trabalho acadêmico [...]. O trabalho acadêmico [era] quase sempre desenvolvido pelos assistentes dele, e o trabalho do centro de pesquisas, ‘muito mais voltado para uma atuação prática’, colocada em função das necessidades da Secretaria da Educação, das redes de escolas (grifo nosso).

Na gestão de Laerte, portanto, não só o CRPE foi deslocado de sua pretensão original de guiar as políticas educativas,para que fosse mais responsivo às demandas do sistema público,como o próprio encargo do ‘trabalho acadêmico’ - ou seja, as pesquisas em educação - foi tomado porseus assistentes, todos oriundos da filosofia e da pedagogia.Em fins de 1962, quando deu início ao programa de investigações com o grupo de licenciados, Ramos de Carvalho havia transferido o curso de Pedagogia da FFCL para as dependências do CRPE (Bontempi Jr. 2015). A partir de então, seus docentes e assistentes passaram a coordenar divisões e cursos oferecidos pelo centro, a proferir ciclos de conferências e a mudar o perfil editorial do periódico Pesquisa e Planejamento, sua publicação periódica, com artigos de cariz filosófico sobre Aristóteles, Comenius, Rousseau (Bontempi Jr., 2001). Por fim, a pouca importância que o Departamento de Educação, criado em 1962 por Laerte, Roque e seus assistentes e instrutores, dava à sociologia é evidente: nas matérias de História da Educação do ‘conjunto’ de que se encarregavam, um dos três pelos quaisos estudantes de Pedagogia podiam optar após o primeiro ano, não havia tópicos, nem mesmo autores desse campo do saber (Barros, 2001).

Não se encontraram, portanto, suficientes indícios que confirmassem a hipótese de que nesse período tivesse havido uma aproximação significativa entre a sociologia educacional e as pesquisas em história da educação, mas há vestígios que denotama existência, no interior do ‘grupo de Laerte’, de certa tensãoentre história da educação efilosofia da educação, ameaçando dilacerar os laços que as atavam nos antigos currículos normalistas (Carvalho, 2000). Na redação de seu plano de tese, José Eduardo Villalobos(1962) apresentouao grupo um resumo do que fora discutido, na reunião anterior, a respeito do item ‘significado da tese e o método’. As afirmações peremptórias que enuncia parecem indicar que ele tenha recebido críticas ou cobranças dos colegas, talvez, para o uso de ‘categorias’ históricas na interpretação das ideias oupara a admissão da natureza conjuntural dos discursos. Em resposta, Villalobos(1962, p. 1, grifo do autor)esclarece:

A tese será de filosofia. O quadro histórico a ser apresentado [...] servirá de material para reflexões de natureza especificamente filosófica [...] Nessas condições, a tese se desobriga de qualquer compromisso com as ‘categorias’ explicativas usuais de tendência cientificista, inclusive as históricas [...]. Por esta razão, a convicção do autor de que se a história tiver qualquer sentido predeterminado (entendida como ‘teologia’ou ciência do absoluto) anula-se por isso mesmo a ideia de uma razão e de uma vontade criadoras e consequentemente a convicção, que é também uma esperança, de que a história há de ter o sentido que o homem lhe queira dar.

A resposta reúne elementos que marcam as diferenças entre a filosofia idealista que Villalobosesgrimee a história como ciência: o entendimento de que esta última teria função meramente auxiliar, ao dispor o ‘material’ para as reflexões do filósofo; que as ideias, seu objeto, transcendem os episódios vividos e não se explicam por referência a eles; que a própria explicação mediante categorias ‘cientificistas’ seria espúria, por atribuir à história sentidos predeterminados e independentes da vontade humana.Tudo indica que o entendimento prevalente no grupo não era o mesmo. Embora sendo filósofo de formação, como apontou Roque Spencer Maciel de Barros (apud Piletti, 1988, p. 250)em seus estudos sobre o pensamento brasileiro, Laerte

[...] procurou tanto quanto possível ver essas idéias na sua coerência e na sua conexão internas, naturalmente sem desligá-las do ambiente e do local em que elas haviam aparecido. Em segundo lugar, [...] procurou compreender o pensador dentro da sua situação, do seu tempo, da sua história. Em terceiro lugar, ele acrescentou [...] a preocupação em determinar com precisão as fontes utilizadas por nossos pensadores.

Para Ramos de Carvalho (1977), sendo as formas históricas da educação manifestações concretas dos ideais que animaram as ações dos sujeitos, o nexo e a ação recíproca dos fatos históricos devem ser buscados na filosofia. Admite, pois, a inter-relação e a conexão entre os fatos, mas recusa a determinação mecanicista, por enfatizar as mediações tanto do historiador que a escreve quanto dos sujeitos que, portadores de uma ‘filosofia’, não escapam “[...] do jogo fortuito dos interesses que, na ordem temporal, condicionam as ações humanas” (Carvalho, 1977, p.35). A pedagogia, por sua vez, é,para Ramos de Carvalho,uma das formas de tradução de ideais societários, cabendo ao historiador captar seu nexo e sua implicação com os fatos históricos e as manifestações da vida social. É muito provável que tenha sido essa concepção - idealista, mas não descarnada e transcendental - que Laerte procurou transmitir ao grupo em suas orientações.

Ao abraçar a História da Educação como objeto de pesquisas, com As reformas pombalinas da instrução pública (1978), Ramos de Carvalho deu um passo significativo em direção ao estudo histórico das realizações, do fato educativo, ou seja, das ideias materializadas em políticas de largo alcance. Com isso, inaugurou a temática das reformas educativas nos estudos históricos da educação brasileira, entendidas como momentosdecisivos e explicativos, posto que haveriam de expressar uma ‘filosofia política’. Nisso, Laerte teve como seguidores diretos Nagle e Antunha, enquanto seus antigos assistentes, Roque Spencer e João Villalobos, seguiram trilhando o caminho de estudo dos pensadores e das ideias pedagógicas.

Diretrizes e características da escrita da história

Para a pretendida construção de uma ‘legítima história’, o grupo se movimentou em direção à cobertura fatual, apoiada em sólida documentação comprobatória, de extensos períodos da educação paulista e brasileira. Os tipos documentais utilizados foram dominantemente escritos; nesse universo, destacam-se leis e decretos, debates parlamentares, manifestos, obras literárias, periódicos, artigos jornalísticos, atas de congressos, programas escolares e livros didáticos. Como afirma Tanuri (1999, p. 165), nesse particular a produção denota sua pouca familiaridade para com “[...] a revolução documental que já começava a ocorrer no âmbito da História [...]”; mas, se a comparação é mesmo válida, cabe apontar que, se em outros domínios a história do Brasil já acumulava décadas de pesquisas apoiadas em documentação escrita, em história da educação muitos desses documentos encontravam-se ainda inexplorados ou intocados.

A natureza dos objetos de investigação, por sua vez, talvez tenha determinado o caráter ‘oficialista’ das fontes usadas: como a expectativa do grupo era cobrir os diversos níveis de ensino oferecidos pelos poderes públicos, em São Paulo e no Brasil, o Estado se configurou como o produtor majoritário do conjunto documental manejado. Essa preferência pelas fontes oficiais manteve-se quase inabalada até o final do séculona historiografia da educação brasileira, ainda que sob críticas a seu viés monumental e à incapacidade de desvelar práticas. Trata-se de um legado que, consciente ou inconscientemente apropriado,permanece vigoroso entre os pesquisadores.

A inexistência de estudos pregressos confiáveis, nos quais os licenciados pudessem ancorar o ponto de partida de seus objetos, além do impacto que eventualmente resultava da exumação de fontes insuspeitadas, produziu em alguns casos um movimento muito característico, que terminou por definir escolhas de períodos históricos e abrangências espaciotemporais nas teses. Foi visto que Jorge Nagle (1961) definira seu recorte primeiramente no período de 1930 a 1934, para depois se fixar na Primeira República (1889-1930). Já Haidar (2008, p. 12) relata que,

[...] tendo escolhido inicialmente para objeto de nossas investigações as primeiras reformas da República, percebemos, em contato com documentos dessa fase, que dados imprescindíveis à compreensão da problemática educacional da época deveriam ser buscados no momento imediatamente anterior.

A fim de evitar quemovimentos como esses se repetissem ao infinito, Laerte (1971)recomendava o estabelecimento de balizas temporais propriamente educacionais para as pesquisas em história da educação brasileira, de vez que, ao iniciar um novo trabalho, o pesquisador não precisasse recomeçar a busca de datas, pontos de referência e fontes documentais sobre o objeto. Colateralmente, a praticidade dessa orientação reforçava a autonomia do fato educacional com relação a outros, notadamente, aos eventos da história política, de modo a isolá-lo das determinações exógenas pelas quais se deduzissem as formas históricas de organização, os conteúdos escolares e métodos de ensino, tornando a história da educação um domínio auxiliar de campos do conhecimento dotados de teorias mais totalizantes e abrangentes, como a economia e a sociologia.

Quanto à periodização, portanto, as diretrizes de Ramos de Carvalho não impactaram a escrita da história da educação produzida nos programas de pós-graduação em educação nas décadas de 1970 e 1980, dominantemente orientada pelas marcações macropolíticas e macroeconômicas (Bontempi Jr., 1995). Ao recusarem-se a partir do conhecimento já acumulado em obras que haviam se orientado pelo “[...] ideário liberal-escolanovista - consubstanciado na crença de uma escola emancipadora dos indivíduos e promotora da igualdade social” (Tanuri, 1999, p. 165), os novos pesquisadores buscaram sua atracagem, majoritariamente, em historiadores e sociólogos marxistas, como Edgar Carone e Octávio Ianni (Bontempi Jr. & Toledo, 1993), cuja interpretação da história e da sociedade brasileira fosse coerente com suas convicções político-ideológicas. A geração dos anos 1970 e 1980 guardou, entretanto, da tradição anterior, a preferência pelo século XX, notadamente, pelos anos 1920 e 1930, além do pouco apreço pela época colonial (Bontempi Jr., 1995).

Considerações finais

Além do aspecto político apontado ao início deste artigo, cujo peso recaía sobre a figura do ex-reitor da Universidade de Brasília, o deslocamento da tradição historiográfica ligada a Laerte, da posição central em que se encontrava na década de 1960, radicou-se em questões de ordem institucional, com a implantação do sistema nacional de pós-graduação, acompanhado da circulação e apropriação de novos referenciais teóricos que nos anos 1970 e 1980 passaram a responder tanto à configuração coetânea do espectro político como à redefinição da autoimagem do intelectual acadêmico, relativamente à que marcara o período de redemocratização. O esvaziamento, pelos governos militares, de instituições como o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) fez dos cursos de pós-graduação os focos irradiadores da pesquisa educacional, terminando por se estabelecerem como principais produtores de conhecimento sobre a educação no país (Warde, 1984).

Acompanhando a maré montante da apropriação de Gramsci pelos cientistas sociais brasileiros, iniciada na década de 1970 e consolidada na década seguinte (Vieira, 1993), ambientes como o Programa de Filosofia da Educação, da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP), e o Instituto de Estudos Avançados em Educação (IESAE-RJ)passaram a produzir um vasto conjunto de dissertações e teses fundadas no materialismo histórico, em que os sistemas de ensino e as ideias pedagógicas foram interpretados à luz das teses reprodutivistas e estruturalistas, notadamente, dePasseron, Bourdieu e Althusser (Vieira, 1993). Esse conjunto, analisado por Barreira (1995) eBontempi Jr. (1995), edificou e consolidou outra tradição de escrita em história da educação brasileira, tão relevante e marcante quanto aquela, e que igualmente estendeu, por longo tempo - e, dado o contínuo processo de expansão territorial do sistema nacional de pós-graduação, por vários pontos do país -, suas diretrizes, caracteres e preferências a sucessivas gerações de pesquisadores da especialidade.

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1 Do arquivo de Jorge Nagle. O item 10 foi escrito à mão no original, com dados incompletos.

3Como citar este artigo: Bontempi Jr., B. (2019). O ‘grupo de Laerte’ e a escrita da história da educação (1962-1972). Revista Brasileira de História da Educação, 19. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v19.2019.e060

4Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Recebido: 28 de Fevereiro de 2018; Aceito: 16 de Abril de 2019

E-mail: bontempi@usp.br

Bruno Bontempi Jr é historiador, doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com pós-doutorado no Programa de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e orientador pleno do Programa de Pós-Graduação em Educação da USP. É bolsista produtividade CNPq e líder do Grupo de Pesquisa Intelectuais da educação brasileira: formação, ideias e ações. E-mail: bontempi@usp.br http://orcid.org/0000-0002-8524-2652

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