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Revista Brasileira de História da Educação

versão impressa ISSN 1519-5902versão On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.19  Maringá jan./mar. 2019  Epub 01-Maio-2019

https://doi.org/10.4025/rbhe.v19.2019.e066 

Dossiê

Festejar aqui e lá: a escrita comparada das festas escolares no Brasil e em Portugal (1890-1920)

Celebrate here and there: comparative writing of school Brazil and Portugal (1890-1920)

Festejar aquí y allá: la escritura comparada de las fiestas escolares en Brasil y Portugal (1890-1920)

Renata Marcílio Cândido1 
http://orcid.org/0000-0002-8032-881X

1Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.


Resumo:

Este artigo propõe a escrita comparada da história das festas escolares no Brasil e em Portugal em um contexto representativo da consolidação dos sistemas públicos e estatais de ensino nos dois países, na viragem do século XIX para o XX. As análises que tecem a escrita foram elaboradas a partir da sistematização de textos publicados em periódicos de ensino. Neste corpus documental, percebe-se que as ‘aproximações’ com relação ao tema referem-se às festas que celebram a escola como parte do projeto modernizador das sociedades brasileira e portuguesa. Já os ‘distanciamentos’ relacionam-se aos temas das solenidades, como as festas beneficentes portuguesas, ou às datas representativas dos ‘heróis’ nacionais e acontecimentos marcantes da história política dos países.

Palavras-chave: festas escolares; escrita da história; história comparada

Abstract:

This article proposes the comparative writing of the history of school holidays in Brazil and Portugal in a representative context of the consolidation of public and state educational systems in the two countries, from the turn of the nineteenth century to the twentieth. The analyses that make the writing were elaborated from the systematization of texts published in educational journals and pedagogical manuals. In this documentary corpus, we can see that the approximations related to the theme refer to the festivities that celebrate the school as part of the modernizing project of the Brazilian and Portuguese societies. In turn, the distances are related to the themes of the solemnities, such as the Portuguese charitable parties or the dates representing the national ‘heroes’ and important events in the political history of the countries.

Keywords: school holidays; history writing; comparative history

Resumen:

Este artículo propone la escritura comparada de la historia de las fiestas escolares en Brasil y Portugal en un contexto representativo de la consolidación de los sistemas públicos y estatales de enseñanza en ambos países, en el cambio del siglo XIX al XX. Los análisis que tejen la escritura se elaboraron a partir de la sistematización de textos publicados en periódicos de enseñanza. En este corpus documental, se nota que las aproximaciones sobre el tema se refieren a las fiestas que celebran la escuela como parte del proyecto de modernización de las sociedades brasileñas y portuguesas. Ya los distanciamientos están relacionados con los temas de las solemnidades, como las fiestas de caridad portuguesas o con las fechas representativas de los "héroes" nacionales y hechos importantes de la historia política de los países.

Palabras clave: Fiestas escolares; escritura de la historia; historia comparada.

Introdução

Festejar é repetir que o presente não é um desvio de rumo e que o futuro está aberto à eternidade (Singer, 1986, p. 33).

A escrita da história da educação comparada apresenta-se como um grande desafio ao trabalho do pesquisador, sempre se conhece uma realidade melhor do que a outra, e esse é um dos limites reconhecidos desse tipo de pesquisa. Ao selecionar dois países, um período e um tema, o pesquisador corre o risco de aproximar-se mais de uma realidade do que de outra. Por outro lado, este tipo de investigação tem se mostrado potencialmente rica para o tratamento de questões e objetos comuns a duas realidades sociais e históricas distintas, permitindo compreensão mais acurada de temas e questões tratadas inicialmente de forma mais demorada nos diferentes âmbitos nacionais. Considerando-se tais limites, faz-se necessário, num primeiro momento, retomar a construção do quadro de referências teóricas e conceituais comuns que possibilitou a comparação entre Brasil e Portugal, com a finalidade de se compreender melhor as comemorações escolares e as suas funções nas diferentes realidades educacionais dos países investigados.

Desde tempos remotos, a prática da comparação em escritos acadêmicos, econômicos, literários e políticos esteve presente na história da humanidade; o ato de se conhecer outra realidade era acompanhado do seu respectivo registro escrito como forma de se marcar essa nova descoberta, bem como para se poder compará-la com outra realidade já conhecida. Acredita-se, desse modo, que a história começou como um ‘relato’,“[...] a narração daquele que pode dizer ‘Eu vi, senti’”, e esse aspecto da história-relato, da história-testemunho, apesar de criticado por alguns estudiosos, “[...] jamais deixou de estar presente no desenvolvimento da ciência histórica” (Le Goff, 1990, p. 09, grifo nosso).

No século XIX, a elaboração de estudos comparativos entre os países ganhou contornos novos como formas de diferenciação, de criação de categorias comparativas e elaboração de rankings entre os países, justificando determinadas ações e ideias acerca dos países ‘superiores e inferiores’ (mais modernos/menos modernos; mais desenvolvidos/menos desenvolvidos) na elaboração de um ‘pretenso’ranking das nações. Compreendia-se uma comparação realizada com critérios ainda pouco refinados, segundo alguns estudiosos, de forma quase intuitiva, atendo-se mais às questões geográficas, políticas e econômicas dos diferentes países e como objetivo fundamental de se estabelecer hierarquias entre os países.

[...] eles operavam evitando o impensável de suas próprias perspectivas, ordenando, classificando e controlando a partir de categorias que tornavam impossível levar em conta fenômenos além de seu alcance (Gvritz, 2001, p. 22, tradução nossa)1.

No campo científico, em finais do século XIX, identifica-se um movimento que reorganiza o campo, trazendo novo fôlego à ideia do comparativismo, e dois conceitos-chave são elaborados para dar conta das questões epistemológicas comparativas que surgem: o conceito de ‘internacionalização’, que se refere a uma questão sócio-histórica relativa à extensão de uma forma específica dada ao conhecimento através do espaço, como, por exemplo, o território de um país, e o conceito de‘universalização’,entendido como a legitimidade dada a determinado conhecimento independente do tempo e do espaço, ou seja, as temáticas que poderiam ser tratadas mundialmente em qualquer momento. Supõem-se, nesta proposta, as constantes interações entre os âmbitos ‘macro’ e o ‘micro’para a análise das temáticas mundiais, ou seja, como elas são elaboradas e divulgadas nos campos científicos, primeiro no contexto dos países e, depois, em âmbito internacional (Charle,Schriewer& Wagner, 2004).

Na definição da micro-história, a alteração de escala surge como forma de apreensão de sentidos novos para os objetos. Segundo Revel (1998), a questão apresentada é o da representatividade de cada amostra em relação ao conjunto no qual ela se integra e dos efeitos de conhecimento associado ou esperado da passagem da escala micro-macro-micro bem como os seus limites. Nesse sentido, não se pode somente explicar o macro pela utilização de um conjunto de estudos micros, tampouco utilizar a perspectiva micro para se conhecer as macro-histórias, mas cabe ao comparativista reconhecer os limites e as potencialidades dos seus estudos e elaborar as relações da comparação.

Se é certo que a Educação Comparada esteve, desde o seu início, sempre vocacionada para compreender a dinâmica dos sistemas educacionais ou de aspectos com eles relacionados por via da comparação, essa ambição não se modificou até ao presente. Todavia, a Educação Comprada não pode deixar de ser um produto duma história e de uma sociedade. A comparação sempre deve ter marcado a evolução do pensamento humano e, por isso, sempre esteve presente na própria construção do saber. No entanto, só num período recente da História a utilizaram de forma sistemática (Ferreira, 2008, p. 125).

A história comparada das festas escolares, concebida como elemento de determinada cultura escolar que se desejou comum a todos os países do Ocidente,foi, e ainda é, permeada pelas questões discutidas acerca da organização do campo (Bourdieu, 2004) educacional. É indelével a sua apresentação como um elemento constitutivo de um modelo que se pretendeu comum em sistemas escolares de diferentes países. Assim como aconteceu com a estruturação do tempo e do espaço escolar (Gallego, 2008), as festas contribuíram para a identificação, no campo educacional, de um modelo considerado moderno de ensino. Por outro lado, a análise das comemorações demonstra que estas não são eventos homogêneos e completamente acomodados em seus contextos de realização, e, apesar da estrutura organizacional que se repete, a máquina festiva (Cândido, 2012) assume novos significados em diferentes contextos sociais e históricos, tornando-se objeto de lutas pelo poder dentro do campo educacional, cuja consolidação beneficiou-se de outras áreas para a sua legitimação (especialmente da psicologia no ideário renovado de ensino).

A escrita dos estudos históricos comparativos deve levar em consideração, além das mudanças de escalas e das trocas entre diferentes territórios científicos e de contextualização, a questão das categorias de estudo, concebida como forma profícua na elaboração da história da educação comparada. Nessa perspectiva, as categorias tradicionais de Estado-Nação e de escola graduada, percebidas como parte desse modelo difundido na modernidade, constituem-se como referência aos estudos históricos comparativos, tanto para as análises mais amplas quanto para os estudos de objetos mais delimitados, como no caso das festas escolares. Neste modelo de referência não existiram padrões uniformes de significação e organização, mas “[...] variantes e multiplicidade dos programas da modernidade” (Nóvoa & Schriewer, 2000, p. 112) que mereceram ser conhecidos. Por outro lado, há que se considerar que

O entendimento de que os educadores comparativistas estudavam o Estado-nação é verdadeiro apenas em parte. Em sua maioria, esses acadêmicos escolhiam uma unidade pessoal de análise como foco de sua própria agenda [...]. Em sua maioria, os demais educadores comparativistas daquela geração utilizaram o Estado-nação como fonte de suas narrativas ilustrativas enquanto elaboravam sua própria problemática central, intelectual ou teórica, como, por exemplo, tornar a educação comparada mais útil em momentos críticos de tomada de decisão. Certamente, tinham muito conhecimento sobre nações específicas, mas havia sempre uma tertiumcomparationis(Cowen, 2012, p. 409).

Os procedimentos de comparação no âmbito historiográfico educacional, assim como propõem Nóvoa e Schriewer(2000), almejam confrontar realidades distintas a partir de unidades analíticas a serem estabelecidas de acordo com as fontes. Não se pensa somente na indicação de ‘semelhanças’ e ‘diferenças’, mas, sim, na análise de formas de criar sentidos capazes de estabelecer ‘proximidades’ e ‘afastamentos’com relação a modelos de implantação de ideias e práticas na área educacional. De acordo com Catani (2007), a escrita da história comparada Brasil-Portugal deve inscrever-se em uma ‘história das relações’, ou, ainda, segundo Nóvoa e Schriewer (2000), em uma ‘história dos sentidos’; a proximidade linguística dos países permite conhecer diferentes temáticas para além da empiria, mas como uma teoria, estabelecida na relação que a história construiu entre esses povos e locais.

Festejar aqui e lá: construindo os sentidos das comemorações brasileiras e portuguesas

O movimento de escolarização das massas, por meio de políticas educacionais e da criação de um modelo escolar - dos grupos escolares2 no Brasil e escolas centrais em Portugal, bem como a elaboração de um discurso moderno sobre o ensino constituem-se em duas referências importantes para a criação de instrumentos de interpretação das relações entre os países no contexto de difusão mundial de um modelo escolar, que acompanharam, em um contexto mais amplo, a afirmação e o desenvolvimento dos Estados-Nação3. A denominada ‘escola de massas’, ou seja, escola para as populações, ministrou o ensino de forma a garantir a unidade nacional, a educação para a cidadania e a promoção da integração política dos seus países por meio de metodologias que visaram normatizar os cidadãos, suas línguas e seus modos de viver. Naquele contexto, as instituições de ensino colaboraram com o projeto do Estado mediante a institucionalização de uma organização e modos de trabalho específicos a ela:

[...] classes graduadas agrupando os alunos; professores atuando individualmente junto a uma turma de estudantes, com perfil de generalistas, no caso do ensino primário, e de especialistas, no ensino secundário; lugares estruturados com arquitetura específica, nos quais a sala de aula sempre foi o espaço privilegiado de estudo; tempos específicos para as atividades e saberes produzidos ‘para’, ‘pela’ e ‘na’ escola, compondo o seu currículo (Nóvoa, 1995, p. 29, grifo nosso).

Os enredos e tramas que unem as histórias políticas, econômicas e culturais de Brasil e Portugal antecedem a data inicial dessa pesquisa no século XIX e têm uma longa narrativa que não pode ser desconsiderada nas comparações realizadas entre os dois países. A interdependência das relações iniciais entre a metrópole e as colônias, que acabaram por transformar os territórios coloniais em lugares de experimentação para tecnologias de governo e, dentre estas, as escolares que, mais tarde, deveriam ser utilizadas nas metrópoles (Nóvoa & Schriewer, 2000) não podem ser omitidas.

Com a ideia recorrente que associou a expansão da escola à distinção dos países entre os exemplos de modernidade a serem seguidos e a de que os outros que deveriam aprender com ‘os mais desenvolvidos’ a organizar seus sistemas de ensino, analisadas à luz das relações entre Brasil e Portugal, é possível assinalar que Portugal não tinha o Brasil como uma ‘sociedade de referência’,ou seja, conhecer as experiências brasileiras era mais uma tentativa de se confirmar a primazia portuguesa na área da educação e da produção de conhecimentos e não de buscar referências ou exemplos (Silva, 2005). Por outro lado, não é possível afirmar a existência de uma organização hierárquica e vertical entre os saberes. Eles não circularam num único sentido, desde as nações mais desenvolvidas para as menos, “Pelo contrário, o global e o local estiveram, nessa perspectiva relacionados mediante padrões complexos que foram múltiplos e multidirecionais” (Popkewitz apud Silva, 2005, p. 14). Desse modo, há que se compreender essas relações em um movimento de troca de ideias, modelos, experiências e não só de imposições e acomodações.

Considerando as investigações históricas educacionais realizadas em Portugal e em outros países, Nóvoa (1998) assinala que a periodização das pesquisas comparadas poderia realizar-se em ciclos de 40 anos, concedendo particular atenção aos grandes momentos de viragem do modelo escolar: décadas de 1880, de 1920 e de 1960. A data para o início da reflexão aqui apresentada, 1890, explica-se pela gradativa organização dos sistemas estatais de ensino nos dois países a partir de finais do século XIX, em anos diferentes e no âmbito desses sistemas do lugar ocupado pelas festas escolares, bem como pela ampla difusão de um discurso modernizador para o ensino em meios como os periódicos de ensino, cujas justificativas teóricas confirmam a realização das festas como atividades de características pedagógicas. Localizam-se, nesse contexto, as primeiras referências às festas escolares em periódicos portugueses e brasileiros. Acreditava-se que era preciso, à medida que fossem surgindo escolas-modelo e grupos escolares, que

[...] também surgisse e fosse logo posta em prática a idéia de tornar bem patente e clara e excelência da nova processologia aplicada ao ensino [...] Surgiu então, a feliz idéia das festas escolares no fim de cada no letivo, pelas quais se pudessem tornar bem frisante o desenvolvimento admirável e real das crianças educadas nas primeiras escolas-modelos e grupos escolares criados (Revista de Ensino, 1908, p. 35).

A data final, 1930, coincide com a diminuição das referências às comemorações escolares nas fontes selecionadas para o estudo, cuja hipótese foi a de que as festas tinham cumprido parcialmente a sua função de disseminação de um modelo de ensino moderno e adquiriram novos significados com a mudança de regimes políticos nos países em questão.

Em Portugal como no Brasil, a imposição do ensino primário e da escolaridade obrigatória fundamenta-se nos princípios de que só assim se formam cidadãos patriotas e cumpridores das leis e cada um dos países se coloca no grande concerto das nações civilizadas. A generalização da instrução primária elementar revela ser uma bandeira política prioritária com vista a forjar a identificação com a Nação enquanto comunidade imaginada (Gallego & Correia, 2004, p. 11).

As relações entre o projeto de instituição da modernidade escolar e a prática das festas escolares não estiveram, muitas vezes, indicadas de forma explícita nos discursos e textos produzidos pelos educadores da época e registrados nas fontes estudadas, mas se associaram, de forma tácita, aos objetivos de formação presentes neste projeto. Como exemplos, a utilização das festas para o desenvolvimento da inteligência, da sensibilidade, da vontade e da disciplina, no reforço dos saberes curriculares aprendidos, na legitimação da instituição escolar, na definição de um habitus4professoral e escolar, bem como na indicação de questões educacionais constituintes do campo. Destacada pela importância da realização das atividades festivas pelos alunos e visando ao desenvolvimento integral destes, as comemorações significaram uma maneira de ensinar mais dinâmica e menos teórica, como propunham as tendências modernas do ensino.

Desse modo, quando se fala das comemorações escolares enquanto práticas das escolas públicas paulistas e portuguesas, tão importante quanto descrever os modos pelos quais elas eram realizadas pelos docentes e alunos, suas temáticas, práticas, as diferentes datas, representações e apropriações (Chartier, 1990) é compreender, também, o papel que elas assumem para a constituição de um modelo escolar engendrado mundialmente pelos Estados-Nações e os sentidos a elas atribuídos (Nóvoa & Schriewer, 2000).

No caso do estudo das festas escolares, foi possível construir categorias específicas para a discussão das mesmas em determinada realidade, como no caso das festas beneficentes portuguesas, ou representativas das duas realidades, como as festas que celebraram, de forma associada à natureza, a República no Brasil em Portugal: 1) as ‘festas beneficentes portuguesas’,que apresentam o forte apelo às ações de doação às escolas e aos estudantes, bem como a arrecadação e provisão de recursos materiais para o bom andamento do ensino, as instituições de ensino assumiram para si, nestas festas, a responsabilidade pela formação de valores, dentre eles, alguns considerados cristãos, como a beneficência e a caridade, e 2) as ‘festas da natureza’, representadas nas árvores e nas aves, que almejaram despertar nos alunos o interesse pela natureza como representante máxima das pátrias brasileira e portuguesa. Ao se tratar das distinções entre as temáticas festivas, é possível perceber determinada regularidade nos rituais festivos ou práticas da festa que, segundo alguns estudiosos, seriam os elementos capazes de garantir o fascínio e a adesão popular às festas em geral (Ozouf, 1976).

Os rituais das comemorações escolares eram compostos, na sua maior parte, de homenagens às pessoas ilustres que compareciam nessas ocasiões, como diretores de ensino, inspetores escolares, secretários do interior, prefeitos das localidades, vice-presidentes do Estado e professores; de declamação de poesias pelos alunos, hinos, marchas, apresentações de peças teatrais, passeatas pela cidade; de preparação de banquetes, lunchse soirées pelos professores e alunos; de sessões literárias, exercícios orais sobre as disciplinas estudadas, distribuição dos boletins de promoção e de prêmios oferecidos pelos professores aos seus melhores alunos, torneio ginástico, plantio de mudas, nas festas das árvores, apresentação dos escoteiros, nas festas cívicas, e hasteamento do pavilhão nacional, que depois se tornou uma prática cotidiana das escolas públicas.

Comemoração da Constituição Brasileira - Constou essa festa de um préstito formado de alunos e professores do Grupo que percorreram as principais ruas daquela cidade, sendo saudados por esta ocasião as principais autoridades do lugar. Em seguida, o préstito dirigiu-se para o Grupo, onde após um pequeno intervalo, reuniram-se todos os alunos no salão de honra. Ai foi desenvolvido um programa musical-literário, que agradou muito as pessoas presentes e dissertaram sobre a data 14 de fevereiro o diretor Joaquim de Sant’Ana, professor Julio Marcondes do Amaral e Marcolino Silva (A Eschola Pública, 1897, p.125).

Nos âmbitos social e político, as celebrações escolares tiveram como objetivo deixar bem patentes para a população como um todo, não só a escolar, os progressos e o empenho do governo republicano no âmbito educacional. As escolas representavam, para os dirigentes republicanos, a possibilidade do progresso econômico e social do país, e somente por meio delas a população poderia e deveria instruir-se. As comemorações de aniversário, inauguração e encerramento do ano letivo contribuíam para a disseminação da ideia considerada moderna sobre a importância da instrução e das escolas para os países que se queriam desenvolvidos. Já as festas cívicas evidenciavam a relação com o sistema político então vigente, fosse na celebração dos ideais e valores republicanos, fosse por meio da escolha das datas e temas que deveriam ser comemorados, além dos rituais praticados.

A pertinência do estudo socio-histórico comparado esteve não somente nas descrições mais ou menos exatas e fidedignas do objeto festa em Brasil e Portugal, atentando-se ao fato de conhecê-las para reconstituí-las, mas sua justificativa fundamenta-se na possibilidade de compreensão da sua circulação nas diferentes realidades, suas apropriações e participação na constituição do campo educacional com características públicas e estatais. Trata-se de compreender, nas diferentes dimensões da vida social e individual, qual papel assumiram as festas nos projetos educacionais dos dois países, quais seus elementos comuns, suas representações fundamentais e atitudes rituais, como eles se constituíram e se modificaram no tempo e no espaço.

Entre a moral cristã e a escolar: as comemorações de cunho beneficente em Portugal

As comemorações escolares organizadas nesta categoria tinham como característica distintiva o forte apelo às ações de doação às escolas e aos estudantes, bem como a arrecadação e provisão de recursos materiais para o bom andamento do ensino. Ao lado dos valores cívicos associados às nações e aos regimes políticos que se legitimaram, as instituições de ensino assumiram para si, nesse contexto, a responsabilidade pela formação de valores, dentre eles, alguns considerados cristãos como a beneficência e a caridade. No caso das festividades escolares, a prática da caridade, presente no discurso religioso, tornou-se elemento fundamental para a configuração de dispositivos políticos quando confirmou a solidariedade presente como valor nos discursos, em altruísmo nos discursos psicológicos, garantindo, em todos os âmbitos, o seu sentido de doação (Silva, 2011).

A realização desse tipo de comemoração aconteceu de forma peculiar na realidade portuguesa.Eram comuns notícias desse tipo de festejo escolar nos periódicos de ensino portugueses que, em diferentes situações, como na época do Natal ou no então criado ‘Dia da Bondade’, conclamavam a população escolar e o público em geral ao ato da doação para a ‘grande causa’ da educação. No caso brasileiro, tal categoria não teve grande destaque, aparecendo apenas menções aos temas da caridade e beneficência em algumas festas sobre outros motes e não de forma tão direta e explícita, como foi o caso das solenidades portuguesas.

A presença de ações, como a doação, e a valorização de sentimentos, como a caridade e a solidariedade em um projeto considerado civilizador das instituições de ensino, indicaram os modos pelos quais a escola criou e recriou os significados culturais de determinadas práticas por meio de estratégias de apropriação específicas e que carregaram as marcas do seu projeto (Boto, 2010). As escolas instituíram, por seus ritos, por suas palavras e por seus sinais uma cultura que lhes foi própria e que, em última instância, ao remodelar os comportamentos, atuou na formação do caráter e também das almas, por meio de uma minuciosa disciplina do corpo e direção das consciências (Julia, 2001). O projeto das instituições de ensino consideradas modernas e civilizadoras deveria formar o caráter e a alma, situação que poderia ser considerada ambígua por alguns e que apareceu de forma bastante conciliatória nas festas escolares beneficentes, que tratou dessa temática nos seus rituais de forma bastante ‘natural’ (Cândido, 2012).

Nesse sentido, para os educadores da época, tão importante quanto ensinar as primeiras letras e as operações matemáticas foi investir na moralização como pré-requisito ao progresso da civilização. A lei moral seria, então, para o sujeito racional e autônomo, um mandamento incondicional, um imperativo universal do dever, e, deste, por sua vez, decorreria, necessariamente, a ação prática (Boto, 2004). O conceito e a ação se completariam e aí estaria todo o esforço da educação escolar. O termo ‘moralização’ é entendido aqui como a moral destinada a ser incorporada pelos indivíduos, o poder sobre si mesmo exercido a partir do interior (Silva, 2011). Para o ensino daquela, foi necessário que as representações acerca do conceito de ‘moral’ saíssem da abstração e fossem transformadas em práticas, como, por exemplo, nas festas cívicas e beneficentes, bem como na disseminação de um discurso legitimado pela ideia de autocontrole, de Deus e de nação (Silva, 2011).

Nesse sentido, as festas beneficentes assumiram um duplo papel: ensinar a moral escolar aos alunos e aos participantes dos eventos e atenuar as condições materiais precárias de ensino de algumas escolas portuguesas. Para a concretização desse projeto, as iniciativas de professores, diretores e inspetores de ensino, bem como de políticos e de alguns comerciantes, em outros momentos, na organização dos eventos festivos, foram fundamentais para “[...] minorar muito desgosto, muita tristeza - porque a carência de auxílio é manifesta - ainda em muitas escolas, devido à tenacidade de muitos colegas, elas se realizam” (A Escola Primária, 1927, p.04).

A função de prover materialmente as crianças e as famílias mais necessitadas concretizou-se na festa de Golegã, em Portugal, como foi noticiado no periódico A Escola Primária: “[...] realizou-se há dias uma festa encantadora: uma distribuição de vestuário, calçado e livros, etc., por 62 crianças pobres das escolas dessa vila, tudo no valor de dois mil escudos, gastos pela Caixa Escolar” (1929, p. 100). Além de roupas, calçados e livros, outras localidades ofereceram refeições para os alunos; depois da cerimônia, em “[...] alegre romaria, todos os presentes se encaminharam para uma improvisada sala de jantar ornamentada pelos alunos. A todas as crianças da escola foi servida uma suculenta refeição e ainda, a algumas delas, foram distribuídos gêneros alimentícios para levarem para suas casas” (A Escola Primária, 1929, p. 249).

Já em Alcaçovas, nas palavras do professor Oliveira Charrua, “[...] foram distribuídos prêmios de aproveitamento e peças de vestuário a 36 alunos, assim como bolos e rebuçados a todos” (A Escola Primária, 1930, p. 49). Aos rituais estabelecidos para as festas escolares foram acrescidos outros, característicos desse tipo de acontecimento, como a distribuição de materiais escolares, vestuário e alimentos aos alunos desfavorecidos. A utilização da festa com função de suprir materialmente a vida escolar nos dá indícios das dificuldades enfrentadas pelos primeiros governos republicanos para consolidar o aparato público e estatal de ensino.

Para auxiliar as crianças matriculadas nas escolas públicas primárias brasileiras e portuguesas foram instituídas as Caixas Escolares ou Infantis. Tais iniciativas foram implementadas com a ajuda dos pais e mestres com o objetivo de minimizar as dificuldades financeiras de algumas famílias de alunos. Para isso, tais instâncias escolares poderiam promover festas em dias não determinados pelos calendários escolares oficiais com o intuito de exercer a beneficência para os alunos pobres, além de realizar outras ações, como conceder prêmios aos melhores alunos como forma de emulação (Revista Infantil, 1922, p. 191). Os recursos provenientes das comemorações escolares constituíam os fundos de auxílio aos mais necessitados, que poderiam ser gastos na compra de material escolar, roupas ou uniformes escolares, calçados, benfeitorias para a escola e compras de prêmios a serem distribuídos nas festas.

As doações às instituições escolares e aos alunos foram realizadas não somente em festas com esses propósitos definidos, mas ocorreram em outros momentos dos calendários social e escolar, especialmente nas comemorações natalinas, ou nas cerimônias de encerramento do ano letivo, com a apresentação de trabalhos escolares. Na época do Natal, associavam-se ao ‘espírito de caridade cristã’ as dificuldades pelas quais passavam os alunos e suas famílias, tornando-se ocasiões bastante propícias aos atos de doações, mesclando-se, desse modo, e mais uma vez, os calendários e a moral cristã aos escolares. No Natal, outras crianças, além das regularmente matriculadas, poderiam se beneficiar do ‘espírito de caridade’ que envolvia toda a sociedade:

A nossa festa [...]

É dia de festa nesta casa no próximo dia 24. Vinte e duas crianças pobres aqui virão receber os seus fatinhos, os seus brinquedos e terão um lunch em que não faltarão as guloseimas. Solenizaremos assim, ao mesmo tempo, o Dia do Nascimento de Cristo e o da nossa Revista. E fa-lô-emos porque boas almas acudiram generosamente ao nosso apelo [...] (Revista Infantil, 1922, p. 240).

As festas de encerramento dos trabalhos escolares, em Portugal, também emergem como oportunidade para o exercício da caridade e do altruísmo entre os escolares. Tal foi o caso da festa realizada na localidade de Ameixoeira (Portugal), levada a efeito no primeiro domingo do mês de janeiro de 1934, logo após as férias de final de ano daquele país, “[...] uma simpática e instrutiva festa na escola no 67 [...]”, que, segundo o autor, era acompanhada “[...] todos os anos, por esta época, temos o prazer de assistir a esta mimosa festa organizada com todo o carinho pela ilustre diretora daquela escola” (A Escola Primária, 1934, p. 249). O motivo principal da reunião das muitas crianças que frequentavam aquela escola era a exposição dos trabalhos realizados durante as aulas, ocasião “[...] para desenvolver a observação e expressão dos alunos [...]”, e, para complementar este “[...] ato verdadeiramente instrutivo há a festa de confraternização entre os alunos e os muitos amigos da escola” (A Escola Primária, 1934, p. 249), sendo sempre aproveitada a oportunidade “[...] para a distribuição aos alunos, dum fatinho completo e igual para todos” (A Escola Primária, 1934, p. 249), oferta “[...] delicada e carinhosa conseguida com o esforço da bondosa professora que dirige aquela escola e com a dedicação inexcedível de seu Exmo. Esposo e do auxílio deveras apreciável dos muitos subscritores do fundo escolar” (A Escola Primária, 1934, p. 249). Após a exposição dos trabalhos, houve os discursos das autoridades presentes e, ao final, “[...] depois do Hino da Escola, tivemos o prazer de ouvir algumas canções alegres e próprias para as crianças” (A Escola Primária, 1934, p. 249).

As ações beneficentes indicativas da moral escolar e organizadas em ocasiões solenes poderiam realizar-se por meio de doações, refeições, provimento material das escolas, quantias em dinheiro em beneficio das Caixas Escolares e criação das Cantinas Escolares. Mais do que prover materialmente as escolas, as festas beneficentes incitaram sentimentos de solidariedade e de abnegação constituintes de uma moral escolar a ser disseminada. As comemorações realizadas nas escolas pelos professores e alunos constituíam situações peculiares para angariar os donativos necessários para o desenvolvimento do ensino. Desse modo, um dos aspectos sociais mais importantes das comemorações era o seu caráter solidário, que “[...] fazia com que a Escola, através da festa, assumisse o papel de instituição de caridade social”. Nessas ocasiões, os mestres tentavam suprimir as lacunas materiais dos alunos, contribuindo para o aumento da população escolar, que percebia, na escola, possibilidades de melhorias materiais e intelectuais e, em um projeto maior, a “[...] formação duma Nação letrada e culta [...]”, criando, ainda, nos alunos, sentimentos nobres e altruístas (Pereira, 2006, p.85).

A República representada pela natureza: as festas das aves e das árvores

Representadas pelas árvores e aves, as festas da natureza foram realizadas em diferentes contextos educacionais durante o período estudado, em escolas públicas ou particulares, confessionais ou leigas; todas deveriam celebrar, fosse por iniciativa individual ou coletiva, as datas indicadas ao culto da natureza, seguindo um ritual previamente determinado, bastante semelhante aos das demais solenidades. Fazia parte dessas solenidades despertar nos assistentes (alunos e comunidade) os apreço e zelo à natureza, representada como a riqueza do país, cujo desmatamento só deveria ocorrer em caso de extrema necessidade. Entretanto, às funções propostas inicialmente pelo Estado de incutir valores relacionados ao cuidado com a natureza num contexto de crescente urbanização e industrialização, como aconteceu no século XIX (Souza, 1998), foram acrescidas outras, com o advento das repúblicas brasileira e portuguesa associadas à concretização de conceitos abstratos como pátria, nação, república e civismo por meio dessas comemorações. A árvore, acionada como mecanismo simbólico nessas solenidades, passou a representar o ‘lugar de memória’, a recordação do passado às gerações vindouras, o símbolo de regeneração, representativa da capacidade de renovação característica da natureza, do mesmo modo que a república se apresentou como regeneradora de uma pátria (Catroga, 2000).

A escolha da árvore e a posterior associação entre a natureza e a pátria foram concretizadas nas festividades realizadas por ocasião da Revolução Francesa (1789 - 1799), a quem coube as primeiras tentativas organizativas do imaginário republicano e de disseminação de valores associados a ele por meio de signos concretos e, dentre estes, a árvore. O movimento revolucionário instituiu como uma das formas de se evitar o esquecimento dos fatos que o constituíram a criação das comemorações e, por meio delas, da disseminação de símbolos como a bandeira, representante da nação, e das árvores, como imagem da renovação social pretendida. A partir daquele momento, estas foram selecionadas para fazer parte de todas as festividades que homenagearam a república (Ozouf, 1976). Caberia aos eventos festivos associados à árvore “[...] ligar, no espírito da criança que as semeou ou plantou, e que mais tarde as irá encontrar crescidas e frondosas, o passado com o futuro” (Catroga, 2000, p. 281), bem como permitir a visualização de um futuro promissor, revigorado e progressista.

Manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministério da Instrução Pública, que em todas as escolas de ensino primário normal, de ensino primário superior e ensino primário geral, dependentes deste Ministério, se escolha um dia do próximo mês de Abril destinado a celebrar a festa da árvore, que deverá ser realizada com a cooperação de todos os professores e alunos e acompanhada de preleções de feição patriótica e educativa (Revista Escolar, 1923, p. 96).

A árvore, assim como a bandeira, pretendia a formação do cidadão por meio de percepções sensíveis, ao mesmo tempo em que simbolizavam a república e o seu ideal de liberdade de escolha nos destinos das nações. Sendo assim, o culto da árvore poderia ser entendido como uma prática simbólica, chamada para a socialização política dos cidadãos no modelo político republicano. Apesar de serem os eventos menos noticiados nos periódicos educacionais dos dois países, as festas da natureza destacaram-se no corpus documental pela sua possibilidade de construção de um novo referencial social e político, não mais associado à monarquia e à Igreja católica, mas, sim, aos valores laicos e à formação do cidadão republicano. Entretanto, a substituição dos símbolos religiosos pelos laicos nas escolas não aconteceu de forma consonante, mas contraditória e ambivalente, de adesão e repulsa a estes elementos, de acordo com o regime político que se vivia.

Em Oeiras realizou-se em fins de Maio, uma festa escolar e nela um senhor orador, referindo-se à Festa da Árvore, afirmou o antigo espírito com que tal festa dantes se fazia, e que, em seu entender, era, nem mais nem menos, afastar a criança da ideia de Deus e aproximá-la da natureza. Aqui confessamos que nunca demos por isso, nas muitas Festas da Árvore a que assistimos. Por mais de uma vez promovemos a realização dessa festa e aqui juramos que nunca nos passou pela cabeça afastar as crianças da ideia de Deus. Portanto, quem deve andar afastado da verdade dos fatos é o senhor orador de Oeiras (A Escola Primária, 1934, p. 05).

Uma das primeiras notícias sobre as festas das árvores nos documentos brasileiros foi registrada sob o mesmo título da festa norte-americana Arbor Day nas páginas da Revista de Ensino em 1902. A organização dessa comemoração em homenagem às árvores foi levada a efeito pelo então engenheiro-chefe do 2º distrito agronômico, Exmo. Sr. Dr. João Pedro Cardoso, e aconteceu na cidade de Araras, nos primeiros dias do mês de junho. O programa da solenidade contava com alocuções acerca da importância da natureza como símbolo da pátria brasileira, o plantio de alguns gêneros de plantas e, como registrado no final, a distribuição de cartões comemorativos aos alunos e convidados. O evento ocorrido na cidade de Araras foi muito apreciado pelos editores da Revista de Ensino e se tornou modelo para as solenidades que se seguiram. No ano seguinte, 1903, registrou-se uma festa das árvores parecida, na cidade de Itapira (São Paulo). A comemoração iniciou-se com a apresentação da banda tocando o Hino Nacional, depois as crianças cantaram o hino das árvores; houve, ainda, o plantio de mudas diversas, os discursos de personalidades ilustres da sociedade local e a devida homenagem ao precursor desta atividade nas escolas do Estado de São Paulo.

O gentilíssimo povo de Itapira acaba de realizar mais uma imponente festa de educação. Como festa de educação a consideramos, a festa das árvores, essa instituição yankee, já transplantada para alguns países europeus e que em boa hora, foi brilhantemente iniciada no nosso Estado, pelo zeloso inspetor do 2º distrito agronômico, Dr. João Pedro Cardoso. No belíssimo parque, [...], achavam-se em alas cerca de 400 crianças, alunas do grupo e das outras escolas depois de terem efetuado uma deslumbrante passeata pelas ruas da cidade, por entre a admiração e as aclamações do povo (Revista de Ensino,1903, p. 121).

O culto da árvore foi idealizado no contexto escolar como uma grande lição de moral e um auxílio valioso na formação do caráter e na orientação da inteligência das crianças; mediado por sua intenção pedagógica, ritualizava-se a lição de historicidade e solidariedade que estava implícita nos manuais de educação cívica e moral (Catroga, 2000). No discurso do professor José Victorino da Silva, em 1915, a festa da árvore em Miragaia, Portugal, foi a realização da mais ‘bela das religiões’, a do culto da natureza, considerada uma ‘festa do amor, genuinamente popular’ que poderia ‘mais de perto tocar a alma nacional’, permitindo que nela desabrochassem ‘as flores mimosas da inteligência infantil’. No que diz respeito ao aprendizado, logo as crianças perceberiam, por meio das festas, a noção prática de utilidade que se pode tirar da terra. Para Silva (1915), o valor educativo dessas celebrações era prático e seguro, já que radicaria no “[...] espírito das crianças uma agradável impressão viva e duradoura sobre o amor consagrado às árvores” (O Magistério, 1915, p. 03).

Aos mestres caberia, além da sua missão científica de promoção do ensino laico por meio de métodos de ensino apropriados, a tarefa de ser o ‘sacerdote’ da religiosidade cívica que a república pretendia socializar; ser o modelo de um verdadeiro republicano e de um patriota (Catroga, 2000). e marcar, nos eventos celebrativos, a fusão da ideia de pátria com a de república, construindo, assim, novos cidadãos e, a partir deles, a própria democracia. A escola primária passou a celebrar a liturgia política da república, divulgando seus feitos e corporificando símbolos, valores e a pedagogia moral e cívica que lhe era característica. A festa da árvore, como prática simbólica e educativa, tornou-se, desse modo, uma das expressões do imaginário sociopolítico das repúblicas brasileira e portuguesa (Souza, 1998).

Em suma, ao buscar enfatizar aspectos das naturezas brasileira e portuguesa, como as árvores e as aves, as festas destinadas a esse fim visaram ensinar às crianças o verdadeiro amor à pátria, contribuindo para o desenvolvimento do sentimento nacionalista e do patriotismo. O conceito abstrato de pátria tornava-se concreto na realização e desenvolvimento da festa e na participação das crianças e comunidades nestas. O patriotismo exibia-se como a ideologia capaz de suscitar o consenso necessário à consolidação da república, cumprindo a mesma função integradora que a religião católica no tempo da monarquia em Portugal e do império no Brasil. A árvore era concebida, nas fontes estudadas, como um símbolo da religiosidade cívica fomentada pelo republicanismo e a força de regeneração que o novo regime pretendia instaurar.

Considerações finais

A retomada da história das instituições de ensino no Brasil e em Portugal, no contexto de organização dos seus sistemas públicos e estatais de ensino e no âmbito destes de um dos elementos das culturas escolares dos dois países, as festas escolares, permite identificar ‘aproximações’ e ‘distanciamentos’ nas representações e concretizações dos eventos festivos nas duas realidades (Nóvoa & Schriewer, 2000; Catani, 2007). As aproximações puderam ser constituídas a partir do momento no qual os dois países assumiram como parte do projeto modernizador da sociedade o investimento na constituição do aparato estatal e público de ensino, e, para demonstrar tais avanços, instituíram comemorações que celebraram a instituição escolar (construção de prédios, inauguração e aniversários de escolas, formaturas e encerramento do ano letivo), ou o aprimoramento destes (criação de cantinas e bibliotecas escolares); ou, ainda, quando promoveram, por meio das festas das árvores, a constituição de um imaginário político e social associado ao regime republicano, as festas da natureza. As nações serviram-se de uma mesma técnica para alcançar objetivos bastante parecidos que foram dar visibilidade ao aparato público de ensino que se constituía e ao imaginário associado ao regime republicano que almejava legitimidade.

Os ‘distanciamentos’ ficaram por conta dos temas das solenidades, ou de algumas situações vividas em um país e não no outro, como exemplo, as festas beneficentes com dias específicos para a sua celebração, recorrentes no contexto português, os dias cívicos (representativos dos ‘heróis’ nacionais e acontecimentos marcantes da história política de cada um dos países) e as de encerramento do ano letivo com a ênfase que foi dada nas escolas brasileiras. Nestes casos, a maquinaria manteve as suas técnicas e engrenagens, mas para finalidades distintas, a partir do que pode ser observado pela análise das fontes escolhidas para o estudo. Entretanto, mais do que aproximações e distanciamentos, a história aqui elaborada deve permitir a construção de sentidos atribuídos às celebrações nas duas realidades.

Os saberes disciplinares foram reorganizados e apresentados de formas novas nas situações festivas, buscando, por meio delas, não somente o aprendizado dos conteúdos escolares e das formas de se comportar como estudantes, mas também a moralização da infância. Este primeiro elemento da moralização, a disciplina, permitiria que os comportamentos dos alunos, ao penetrarem na ‘maquinaria escolar’ (Varela, & Alvarez-Uria, 1992), fossem refeitos segundo um código: as boas tendências eram reforçadas e transmutadas em espírito de disciplina; as más tendências, transformadas em faltas (Fernandes, 1994). Boas e más tendências cujas definições poderiam variar entre os autores e professores do período. Como outro elemento pertencente ao conceito de moralidade, de acordo com Fernandes (1994), esteve a vinculação a um grupo social permitido pelas festas, primeiro à categoria estudantes e posteriormente ao conjunto de cidadãos que compuseram a pátria. Nessas ações, hábitos e pensamentos organizados coletivamente seriam capazes de gerar o ‘gosto da vida coletiva’, ligando os alunos aos fins coletivos (Fernandes, 1994).

Dessa forma, é relevante perceber a potencialidade ritualística de conformação e instauração das festas sociais. As variantes de temas das festas foram e são capazes de determinar hierarquias e posições sociais; materializar conceitos abstratos; retomar a cultura; sugerir representações sociais legítimas a serem incorporadas; consentir uma nova compreensão do tempo (o calendário escolar, por exemplo) e do espaço social (as instituições escolares, como modelo); foram consideradas, por esses motivos, potentes mecanismos de congregação e de instauração do coletivo (Gallego & Cândido 2015). Na sua reminiscência conhecida e segura, porque comprovada na história, entreveram-se as mudanças para o futuro (projetos). Era um tempo/espaço privilegiado de reunião das diferenças, de composição das figurações sociais, de assembleia coletiva e de sociabilidade que, ao mesmo tempo em que conformavam, estimulavam o homem na sua capacidade de imaginar e de usar disfarces para investir contra a resistência do mundo.

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1“[...] operabansoslayandoloimpensable desde sus propias perspectivas, ordenando, clasificando y controlando a partir de categorias que impedían dar cuenta de fenómenos fuera de su alcance”.

2Os grupos escolares paulistas (escolas graduadas cujo método de ensino é o simultâneo), criados em 1893, marcaram a organização dos sistemas públicos e estatais de ensino, especialmente por estabelecerem mudanças importantes na organização administrativa e pedagógica da escola primária, dentre estas a organização das festas (Souza, 1998; Gallego, 2003). Nestas escolas, as crianças eram agrupadas por faixa etária e os currículos e programas escolares seguiam uma ordem gradual dos conteúdos.

3Tanto em Portugal como no Brasil, a imposição do ensino primário e da escolaridade obrigatória fundamenta-se nas premissas de que só assim se formam cidadãos patriotas e cumpridores das leis e cada um dos países se coloca no grande concerto das nações civilizadas. A generalização da instrução primária elementar revela ser uma bandeira política prioritária com vistas a forjar a identificação com a Nação enquanto comunidade imaginada (Gallego & Correia, 2004).

4O conceito de habitus é definido por Bourdieu (1990) como um conjunto de esquemas de percepção, pensamento e ação, capazes de orientar ou coagir práticas e representações; o habitus indica a disposição incorporada, ‘quase postural’, de um agente em ação (Bourdieu, 1990), além disso, a noção refere-seao funcionamento sistemático do corpo socializado (Bourdieu, 1990).

6Como citar este artigo: Cândido, R, M. (2019). Festejar aqui e lá: a escrita comparada das festas escolares no Brasil e em Portugal (1890-1920). Revista Brasileira de História da Educação, 19. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v19.2019.e066

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Recebido: 29 de Março de 2018; Aceito: 16 de Abril de 2019

E-mail: remarcilio@gmail.com

Renata Marcílio Cândido é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Departamento de Educação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Possui graduação em Pedagogia pela Universidade de São Paulo (2003), Mestrado em Educação (2007) de Doutorado em Educação (2012) pela mesma universidade. Atualmente integra o Grupo de Pesquisa 'História da Educação: Intelectuais, Instituições, Impressos" (Unifesp) e é vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas históricas sobre a escola e docência (Unifesp). E-mail:remarcilio@gmail.com http://orcid.org/0000-0002-8032-881X

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