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Revista Brasileira de História da Educação

versión impresa ISSN 1519-5902versión On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.19  Maringá ene./mar. 2019  Epub 01-Mayo-2019

https://doi.org/10.4025/rbhe.v19.2019.e068 

Dossiê

História e historiografia da Educação de Jovens e Adultos no Brasil - inteligibilidades, apagamentos, necessidades, possibilidades

History and historiography of Youth and Adult Education in Brazil - intelligibilities, obliterations, needs, possibilities

Historia e historiografía de la Educación de Jóvenes y Adultos en Brasil - inteligibilidades, borrados, necesidades, posibilidades

Cristiane Fernanda Xavier1 
http://orcid.org/0000-0001-6361-4657

1Universidade Federal de Alfenas, Alfenas, MG, Brasil.


Resumo:

A fixação da CEAA, de 1947, como marco da atuação da União em favor da educação de adolescentes e adultos; a emergência de movimentos de educação popular na década de 1960 e a constituição de uma proposta e um paradigma pedagógico para a EJA, com o trabalho de Paulo Freire; a repressão do regime militar às práticas educativas de orientação freireana e a instalação do MOBRAL, em 1970, constitui a base de uma tradição historiográfica da EJA. O artigo analisa como a efetuação dessa memória obscureceu o processo de incorporação da educação dos trabalhadores ao sistema educacional brasileiro republicano. Discute a necessidade de ampliação do conhecimento histórico na afirmação identitária da EJA e acena para possibilidades investigativas a partir das estatísticas educacionais dos anos de 1930.

Palavras-chave: Ensino supletivo; memória histórica; identidade; estatísticas educacionais

Abstract:

The CEAA's 1947 fixation as a milestone in the Union’s activities in favor of the education of adolescents and adults; the emergence of popular education movements in the 1960s and the constitution of a pedagogical proposal and paradigm for the EJA, with the work of Paulo Freire; the repression of the military regime to educational practices of Freirean orientation and the installation of MOBRAL in 1970 compose the basis of a historiographical tradition of the EJA. The article analyzes how the construction of this memory obscured the process of incorporating workers' education into the republican educational system. It discusses the need to expand the historical knowledge in the EJA identity affirmation and indicates some investigative possibilities based on the educational statistics of the 1930s.

Keywords: supplementary education; historical memory; identity; educational statistics

Resumen:

La fijación de CEAA (Campaña de Educación de Adolescentes y Adultos), en 1947, como marco de la actuación del Gobierno en pro de la educación de adolescentes y adultos; el surgimiento de movimientos de educación popular en la década de 1960 y la constitución de una propuesta y un paradigma pedagógico para EJA (Educación de Jóvenes y Adultos), con el trabajo de Paulo Freire; la represión del régimen militar a las prácticas educativas de orientación freireana y la instalación del MOBRAL (Movimiento Brasileño de Alfabetización), en 1970, es base de una tradición historiográfica de EJA. El artículo analiza cómo la construcción de esta memoria oscureció el proceso de incorporación de la educación de trabajadores al sistema educativo republicano. Discute la necesidad de ampliación del conocimiento histórico en la afirmación identitaria de EJA y presenta posibilidades investigativas a partir de las estadísticas educativas de los años 1930.

Palabras clave: Educación suplementaria; memoria histórica; identidad; estadísticas educativas

Introdução

A história da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil não é tema frequente nos livros de história da educação. Eventos científicos dedicados ao debate e à circulação de conhecimentos sobre a EJA também não costumam eleger a história da educação como eixo temático. Ao que parece, tal invisibilidade guarda relações com a pouca atenção dada à história da EJA no âmbito da produção acadêmica1.

Mesmo ocupando um lugar marginal na pesquisa, nas obras de história da educação e nos eventos científicos, há uma significativa produção que, numa perspectiva histórica, aborda o tema a partir da segunda metade da década de 1940. De modo geral, essa produção compartilha alguns elementos que conformam a base de uma tradição historiográfica da EJA no Brasil. Tais elementos podem ser assim resumidos: a fixação da Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA), de 1947, como marco da atuação da União em favor da educação de adolescentes e adultos; a emergência de movimentos de educação e cultura popular na década de 1960 e a constituição de uma proposta e um paradigma pedagógico próprio para a EJA, com o trabalho de Paulo Freire; a repressão do regime militar às práticas educativas de orientação freireana e a instalação do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), em 1970.

Como efeito, essa base comum favoreceu a construção de uma memória histórica2 dos anos iniciais de 1960 como marco fundador de ações progressistas e de um pensamento avançado sobre a educação de adultos em relação às campanhas oficiais do governo federal. Este artigo analisa como a efetuação dessa memória obscureceu o processo de incorporação da educação dos trabalhadores ao sistema educacional brasileiro republicano. Enquanto discute a necessidade de ampliação da produção de conhecimento histórico na afirmação identitária da EJA como campo de pesquisa e reflexão pedagógica, acena para algumas possibilidades investigativas a partir de dados das estatísticas educacionais dos anos de 1930.

A escrita da história da Educação de Jovens e Adultos no Brasil

Ao passo que a educação de jovens e adultos analfabetos ou com escolarização incompleta nas primeiras décadas da república carece de investigações, a historiografia do tema é significativa quando se trata do período entre 1940 e 1980. Na impossibilidade de sumariá-las todas aqui, citam-se algumas referências: Osmar Fávero (2001, 2006), Osmar Fávero & José Rivero (2009), Osmar Fávero & Marinaide Freitas (2011), Leôncio Soares (1995), Leôncio Soares & Ana Maria de Oliveira Galvão (2005), Leôncio Soares e Osmar Fávero (2009), Carlos Rodrigues Brandão (2002, 2013), Celso de Rui Beisiegel (2004, 2008), Afonso Celso Scocuglia (2003), Luiz Eduardo Wanderley (2010), Luiz Antônio Cunha & Moacir de Góes (2002), Sérgio Haddad & Maria Clara Di Pierro (2000), Maria Clara Di Pierro, Orlando Joia e Vera Masagão Ribeiro (2001), Maria Clara Di Pierro (2005), Jacqueline Ventura (2011). Além compartilharem de uma base comum, como já assinalado, o que também se observa é que a produção desse conhecimento é informada pela obra deVanilda Paiva (2003), fruto de pesquisa concluída na década de 19703.

Nelas, considera-se que até os anos de 1930 a educação de adultos não se destacava da luta pela educação comum para todos os cidadãos. É que, segundo Paiva, embora entre 1870 e 1880 houvesse classes para a instrução dos adultos em praticamente todas as províncias, em atendimento às determinações do Regulamento de 1854, a baixa frequência dos adultos terminou por extinguir a maior parte das iniciativas oficiais. Paiva informa ainda que a Lei Saraiva (lei 3.029, de 09 de janeiro de 1881), que exigia do eleitor o saber ler e escrever, estimulou o ressurgimento de escolas noturnas para adultos, mas não o suficiente para provocar uma expansão significativa de serviços de educação desses. Já nas décadas de 1920 e 1930, o problema da educação de adultos compareceu no quadro da renovação dos sistemas de ensino, em especial no Distrito Federal. Todavia, até o final do Estado Novo o problema da educação dos adultos era discutido como parte daqueles relativos à difusão do ensino elementar comum.

De acordo com as referências assinaladas, somente a partir dos anos de 1940 a educação de adultos se constituiu como um problema independente da educação popular (no sentido da difusão do ensino elementar) e um tema de política educacional nacional; tendência expressa pela criação do Fundo Nacional de Ensino Primário (FNEP) em 1942, da Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA), em 1947, da Campanha de Educação Rural (CNER), iniciada em 1952, e da Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (CNEA) em 1958.

A CEAA funcionou entre os anos de 1947 a 1963, por meio do Serviço de Educação de Adultos (SEA) do Departamento Nacional de Educação. Nasceu da regulamentação do Fundo Nacional do Ensino Primário (FNEP), na qual a educação dos adolescentes e adultos foi contemplada com amplos recursos. Com o FNEP, os Estados passaram a receber auxílio financeiro da União para a difusão do ensino elementar por meio da expansão da rede física, qualificação de pessoal técnico e manutenção do sistema.

Conforme Paiva (2003, p. 208), a CEAA foi uma campanha de orientação marcadamente ruralista. Teve como fundamento político o crescimento das bases eleitorais associada ao enfrentamento da desintegração social e luta pela paz no sentido de organizar a sociedade brasileira sob a égide da democracia e da liberdade. Como instrumento da democracia liberal, também atuaria no combate às ideologias ‘estranhas e nocivas’ das quais a ignorância das massas tornava estas presas fáceis. Em suma, “[...] tratava-se de sedimentar a ordem vigente ampliando a participação dentro do sistema”.

No âmbito econômico, a campanha esteve pautada na ideia de que a ‘insuficiência cultural’ do país constituía um entrave ao desenvolvimento e ao progresso. Desse modo, apresentou-se como possibilidade de incremento da produção e utilização “[...] ótima das energias populares através da recuperação da população analfabeta que ficara à margem do processo de desenvolvimento do país” (Paiva, 2003, p. 208).

Em relação à abordagem teórica do analfabetismo, a CEAA teve como orientação o argumento de que o adulto analfabeto era incapaz em relação a um adulto alfabetizado. Nesses termos, para além do ler e escrever, a alfabetização de adultos deveria ser colocada ao lado da dimensão profissional para o cumprimento das funções cívica, social e de difusão cultural.

Por volta de 1954, o voluntariado - entendido como um apelo cívico-social de caráter popular -, uma das bases de sustentação da CEAA, se extinguiu. Além disso, outras dificuldades concorreram para a falência da campanha. Segundo Paiva (2003), havia dificuldades para se recrutar professores tanto quanto os analfabetos, altos índices de desistência, evasão e reprovação entre os matriculados, inadequação dos currículos, horários reduzidos, programas de ensino extensos, elevado número de professores leigos, muitos dos quais semianalfabetos, atraso nos pagamentos dos professores, inadequação do calendário da campanha que coincidia com o período das férias escolares e desinteresse das ‘comissões municipais’ por aquela. Havia ainda a interferência de interesses políticos na determinação dos locais de construção das escolas. A autora afirma que Anísio Teixeira, ao assumir a diretoria do INEP em 1952, determinou que fossem adotados critérios técnicos para a definição da localização das escolas, entretanto deputados e senadores passaram a negociar diretamente com os representantes dos Estados no Congresso, discriminando no orçamento a localização das escolas. Com isso, “[...] a execução dos planos da CEAA pelos diversos Estados era frequentemente fictícia e a qualidade do ensino ministrado era extremante precária” (Paiva, 2003, p. 219).

Em 1957, quando os recursos da campanha estavam cada vez mais escassos em função da precariedade dos resultados alcançados, a CEAA tentou recuperar-se por meio da criação do Sistema Rádio Educativo Nacional (SIRENA). Nessa fase de declínio acentuado, a CEAA chegou a ser reconhecida como ‘fábrica de eleitores’, fracassando do ponto de vista educativo (Paiva, 2003).

Em síntese, na historiografia da EJA no Brasil, a avaliação predominante em relação à CEAA é a de que, embora estivesse orientada por uma perspectiva mais ampliada de educação, na prática a campanha foi pautada pela ideia de que o adulto analfabeto era incapaz em relação a um adulto alfabetizado e a superação dessa condição foi restrita à alfabetização e ao domínio de técnicas de trabalho.

Outro traço recorrente na historiografia da EJA diz respeito à emergência de movimentos de educação e cultura popular bem como da atuação de Paulo Freire e a influência das suas ideias em diferentes iniciativas realizadas entre os anos de 1960 e 1964, face ao esgotamento da CEAA. Um tempo “[...] de novas ideias em matéria de educação” (Paiva, 2003, p. 231), “[...] de alvorada para o pensamento renovador em educação” (Cunha & Góes, 2002, p. 15), “[...] um período no qual algo de realmente singular ocorreu na história social de nossa educação” (Freitas & Biccas, 2009, p. 233).

Como características do período, Paiva (2003) aponta que, a partir da experiência da CEAA, o preconceito contra o analfabeto passou a ser rejeitado. Os movimentos voltados para a promoção e valorização da cultura popular e a difusão do sistema Paulo Freire, “[...] desenvolvido a partir do conceito antropológico de cultura [...]”, foram fundamentais na “[...] formação de uma nova imagem do analfabeto como homem capaz e produtivo, responsável por grande parcela da riqueza da Nação [...]” bem como na “[...] fundamentação da luta pelo voto do analfabeto empreendida pelos cristãos”. E, dessa maneira, ficaram expressivamente conhecidas as realizações de Paulo Freire, do Movimento de Cultura Popular (MCP), da Campanha de Pé no Chão também se Aprende a Ler, do trabalho do Movimento de Educação de Base (MEB) e do Centro Popular de Cultura (CPC) (Paiva, 2003, p. 233).

Assim, no contraste entre as realizações da CEAA e as ocorridas nos anos iniciais da década de 1960, a historiografia da EJA converge para a identificação de duas concepções opostas de educação de adultos. Uma de base ‘funcional’, comprometida com o projeto de desenvolvimento nacional dependente, e outra de base ‘conscientizadora’, empenhada na crítica à ordem capitalista e na exigência de mudanças estruturais.

A Campanha de 1947 deu também lugar à instauração no Brasil de um campo de reflexão pedagógica em torno do analfabetismo e suas consequências psicossociais; entretanto, ela não chegou a produzir nenhuma proposta metodológica específica para a alfabetização de adultos, nem um paradigma pedagógico próprio para essa modalidade de ensino. Isso só viria a ocorrer no início dos anos 60, quando o trabalho de Paulo Freire passou a direcionar diversas experiências de educação de adultos organizadas por distintos atores, com graus variados de ligação com o aparato governamental. Foi o caso dos programas do Movimento de Educação de Base (MEB), do Movimento de Cultura Popular do Recife, ambos iniciados em 1961, dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes, entre outras iniciativas de caráter regional ou local. Embaladas pela efervescência política e cultural do período, essas experiências evoluíam no sentido da organização de grupos populares articulados a sindicatos e outros movimentos sociais. Professavam a necessidade de realizar uma educação de adultos crítica, voltada à transformação social e não apenas à adaptação da população a processos de modernização conduzidos por forças exógenas. O paradigma pedagógico que então se gestava preconizava a centralidade do diálogo como princípio educativo e a assunção, por parte dos educandos adultos, de seu papel de sujeitos de aprendizagem, de produção de cultura e de transformação do mundo (Di Pierro, Joia & Ribeiro, 2001, p. 61).

Com o golpe civil-militar de 1964, os movimentos de educação e cultura popular de base libertadora (ou conscientizadora) foram reprimidos. A partir de 1970, a educação de adultos passou a ser realizada numa perspectiva de suplência da educação formal na qual a maior expressão foi o MOBRAL.

O MOBRAL foi criado em 1967 objetivando a eliminação do analfabetismo no país até 1975. Começou a funcionar, efetivamente, em setembro de 1970 e foi extinto em 1985. Paiva (2003) explica que, na prática, o MOBRAL foi o sucessor nacional da Cruzada de Ação Básica Cristã (Cruzada ABC), financiada pelo governo brasileiro desde 19664. A autora considera que o MOBRAL, de maneira análoga à Cruzada ABC, orientava sua ação pela “[...] legitimação do regime e de minimização das tensões sociais, no entanto como programa nacional e laico”. Ou seja, diferentemente da Cruzada ABC, “[...] montada como contra ofensiva ideológica para neutralizar os efeitos de movimentos anteriores a 1964 [...]”, o MOBRAL se constituiu numa “[...] forma de ampliar junto às camadas populares as bases sociais de legitimidade do regime no momento em que esta se estreitava junto às classes médias em face do AI-5” (Paiva, 2003, p. 346).

Dessa forma, a historiografia da EJA no Brasil, do período compreendido entre os anos de 1940 a meados de 1980, comunga de uma base na qual, enquanto destaca a inadequação da atuação do governo federal na implementação de políticas públicas destinadas aos jovens e adultos analfabetos ou com escolarização incompleta, confere ineditismo às ideias e ações de Paulo Freire e dos movimentos de educação popular dos anos de 1960.

Historiografia da EJA no Brasil: sobre suas inteligibilidades, apagamentos e necessidades

Em que pese a relevância de todo o conhecimento produzido e acumulado em relação à história da EJA, o procedimento historiográfico que permitiu a construção da narrativa acima acabou por instituiruma memória histórica que pouco tem contribuído para a ampliação do conhecimento sobre a história da educação de adultos, especialmente no período que antecede a década de 1940.

Questão semelhante foi observada por Marta M. Chagas de Carvalho (1989) ao analisar a narrativa de Fernando de Azevedo na obra A cultura brasileira. Segundo a autora, a historiografia da educação brasileira foi fortemente informada pela produção de Fernando de Azevedo, um dos principais representantes do movimento renovador nas reformas educacionais dos anos de 1920-1930. A autora aponta que Azevedo construiu a ideia de uma marcha ascendente das reformas, representada pelo novo, sobre as tradicionais formas de atuação no campo educacional, representada pelo velho. No entremeio do novo e o velho, embora Azevedo tenha se referido à existência de uma ‘zona de pensamento perigoso’ em relação às novas ideias que agitaram os círculos educacionais após a Revolução de 1930, ele obscureceu o significado político das divergências e confrontos instalados na ‘zona do perigoso’. Com isso, tal narrativa “[...] expulsou do campo da investigação em história educacional todo um debate que remete para aquela zona perigosa” (Carvalho, 1989, p. 30).

O raciocínio utilizado por Carvalho para explicar os motivos que eliminaram da investigação em história da educação os grupos em confronto e o significado político das divergências presentes nos círculos educacionais após 1930 parece útil para se compreender a pouca atenção destinada à produção de conhecimento histórico sobre a educação de adultos no período que antecede a segunda metade de 1940. Como dito, a historiografia da educação brasileira foi influenciada pela obra A cultura brasileira. Nela foi erigida uma abordagem ascendente e linear do novo, representado pelo movimento de renovação pedagógica, sobre o velho, representado pelas formas educacionais tradicionais, não reservando, portanto, espaço para ideias conflitantes e disputas situadas fora do enquadramento da polaridade ‘novo X velho’.

Por analogia à assertiva de Carvalho, é possível considerar que a obra de Vanilda Paiva cumpriu função semelhante em relação à historiografia da EJA no Brasil. Nelas estão registradas as ideias e ações progressistas desenvolvidas por Paulo Freire e por movimentos de educação popular nos anos de 1960 em oposição às campanhas nacionais de educação de adultos dos anos de 1940-50 e, posteriormente, ao MOBRAL, modelo instituído no regime militar. Ou seja, a produção historiográfica do período, orientada pela mesma racionalidade desenvolvida por Paiva, reiterou os anos iniciais da década de 1960 como marco de origem de um pensamento avançado sobre a educação de adultos e de práticas educativas de resistência às campanhas oficiais. Dessa maneira, o enredo historiográfico da EJA no Brasil foi formulado com base na polaridade ‘regulação X emancipação’.

Como parte dessa operação, Paiva (2003) considera que, embora as reivindicações em favor da educação de adultos apareçam muito cedo no Brasil, os esforços registrados nessa direção nos anos que antecederam a CEAA foram locais, fragmentários e descontínuos. Além disso, afirma que as iniciativas existentes mal atendiam à escassa procura. Como efeito, o processo pelo qual se deu a incorporação da educação dos trabalhadores ao sistema educacional brasileiro republicano foi obscurecido e varrido do horizonte das pesquisas em história da EJA.

No entanto, a fixação dessa cronologia como marco para a compreensão da educação de adultos como um problema nacional e independente fez esquecer que tanto a ideia de uma educação nacional quanto a destinação de recursos da União para o financiamento do ensino primário foram processos graduais. Conforme Cynthia Greive Veiga (2011) aponta, “[...] o projeto de educação nacional, unificador das diferenças regionais e impulsionador de um sentimento de pertença nacional, se fez concomitante com o desenrolar da experiência republicana”. Isto é, “[...] nos primórdios da República o modo de organizar o ensino e de escolarizar o povo se apresentou inicialmente como um problema da política estadual e local e não nacional” (Veiga, 2011, p. 146-147).

Com base na declaração de Veiga, isso significa que nos anos que antecederam a CEAA, somente se encontrarão realizações educativas destinadas aos adultos no âmbito dos Estados e municípios. Ou seja, parece adequado considerar que as pressões exercidas pelos poderes estadual e local (mas também organizações políticas e outros segmentos da sociedade) tenham cumprido papel relevante na colocação da questão da educação dos adultos em nível nacional. Portanto, tornar ‘desimportantes’ as ideias e experiências que antecederam a CEAA e se ater à década de 1940 como marco temporal para as pesquisas em história da EJA terminou por invisibilizar o processo que impulsionou a inclusão da educação dos adultos sem escolarização ou com estudos incompletos no rol das ações a serem assumidas pelo poder público5.

Além disso, a historiografia não designa um mero depositário de recordações de acontecimentos passados visto que a seleção de um acontecimento, extraído das fontes, carrega consigo o risco de obliterar outros. “Pode-se construir de ‘fonte segura’ uma espécie de amnésia” (Farge, 2011, p. 73, grifo do autor). Portanto, a operação historiográfica carrega consigo o paradoxo de produzir apagamentos enquanto constrói inteligibilidades. Nesses termos, a historiografia é uma atividade simbólica e política operada com lembranças e esquecimentos e cuja produção participa na instituição de identidades e com isso assegura a permanência de grupos.

Inicialmente a historiografia separa seu presente de um passado. Porém, repete sempre o gesto de dividir. Assim sendo, sua cronologia se compõe de ‘períodos’ [...] entre os quais se indica sempre a decisão de ser outro ou de não ser mais o que havia sido até então [...]. Por sua vez, cada tempo ‘novo’ deu lugar a um discurso que considera ‘morto’ aquilo que o precedeu, recebendo um ‘passado’ já marcado pelas rupturas anteriores. Logo, o corte é o postulado da interpretação (que se constrói a partir de um presente) e seu objeto (as divisões organizam as representações a serem reinterpretadas). O trabalho determinado por este corte é voluntarista. No passado, do qual se distingue, ele faz uma triagem entre o que pode ser ‘compreendido’ e o que deve ser esquecido para obter a representação de uma inteligibilidade presente. Porém, aquilo que esta nova compreensão do passado considera como não pertinente - dejeto criado pela seleção dos materiais, permanece negligenciado por uma explicação - apesar de tudo retorna nas franjas do discurso ou nas suas falhas: ‘resistências’; ‘sobrevivências’ ou atrasos perturbam, discretamente, a perfeita ordenação de um ‘progresso’ ou de um sistema de interpretação. São lapsos na sintaxe construída pela leide um lugar. Representam aí o retomo de um recalcado, quer dizer, daquilo que num momento dado se tomou impensável para que uma identidade nova se tornasse pensável (Certeau, 1982, p. 15, grifo do autor).

Mas, como adverte Michel de Certeau (1982), as identidades construídas pela seleção dos materiais e acontecimentos produzem dejetos. Resistem, sobrevivem, perturbam e carecem de explicação. E, desse ponto de vista, considerar as variadas ações, ideias e acontecimentos relativos ao modo como o trabalhador foi reconhecido como sujeito de direitos e como a sua educação foi incorporada ao sistema educacional brasileiro possibilitaria reinterpretar as representações da história da EJA disponíveis, oferecendo novas compreensões sobre o seu passado e contribuindo para a sua reorientação no presente.

Os anos de 1930 e a integração da instrução dos trabalhadores no projeto de organização da sociedade brasileira

Como parte dessas reinterpretações é possível considerar que, particularmente a partir de 1934, a educação de adultos não mais se confundia com a educação destinada aos indivíduos em ‘idade escolar’. A constituição da sessão ‘Educação de Adultos’ na Associação Brasileira de Educação (ABE) e a presença do tema nas Conferências Nacionais de Educação bem como a atuação de associações de classe de professores de adultos evidenciavam uma compreensão do problema de modo distinto da educação mais geral. Ademais, a questão foi assumida de modo específico no amplo debate em torno da elaboração do Plano Nacional de Educação (PNE), previsto pela Constituição de 1934, e que deveria incluir entre as suas normas a extensão da oferta do ensino primário aos adultos.

De certa maneira, essas evidências guardavam relações com a agitação da sociedade brasileira da época. A insatisfação com o regime republicano vinha ampliando suas dimensões desde a década anterior. Conforme Lúcia Lippi Oliveira (1980), alguns setores da intelectualidade questionavam o caráter nacional brasileiro, buscavam explicações para as contradições sociais, debatiam aspectos existenciais. Circulava um sentimento de desconfiança em relação à capacidade das nações de concretizarem os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade após o fim da Primeira Guerra Mundial, especialmente com a Depressão de 1929. Por sua vez, a Revolução Russa de 1917 assumiu força política e sua ideologia apresentou-se como uma alternativa ao liberalismo. De base distinta, o pensamento autoritário de direita, inspirado no fascismo italiano, também se colocava como opção ao modelo liberal. Em função disso, o pensamento antiliberal se espalhou e o tema do nacionalismo assumiu destaque no debate6. Nesse âmbito, desenvolveu-se o entendimento de que era necessário compreender o Brasil, sua gente e seus problemas, superar a cópia de modelos estrangeiros e oferecer respostas capazes de colocar a República na agenda do progresso e desenvolvimento.

Como consequência, organizar a sociedade como uma nação moderna foi considerada tarefa urgente e fundamental. A educação fora tida como o caminho para a construção de uma realidade nacional e a instituição escolar assumiu lugar de destaque como irradiadora da modernidade e da civilização.

Em sintonia com o ideário de civilização moderna, comportaram a pauta de reivindicações e lutas pela educação popular temas relacionados ao papel do Estado na oferta pública de ensino, à universalidade, gratuidade, laicidade e democracia. Como alternativa à escola verbalista e ao ensino livresco, a criação de uma ‘nova escola’ foi enfatizada. Tendo em vista as alterações no modo de produzir os bens materiais, as condições e exigências da formação humana colocaram foco nas relações entre trabalho e instrução.

No que se refere à relação entre trabalho e instrução, a educação ativa das escolas novas e a instrução técnico-profissional se entrelaçaram, assumindo o trabalho como elemento formativo capaz de produzir indivíduos socialmente úteis à nação. No entanto, Mario AlighieroManacorda (2010) observa que essa relação foi encaminhada de maneira bastante distinta. A educação ativa se concentrou no desenvolvimento da criança a partir da percepção da infância como etapa particular da vida em relação à vida adulta. A espontaneidade da criança e a necessidade de aderir à evolução de sua psique solicitavam da educação o desenvolvimento das habilidades sensório-motora, intelectual e afetiva por meio de formas adequadas como o jogo, a livre atividade, a socialização. E a instrução técnico-profissional, em substituição ao aprendizado artesanal, deslocou-se do aprendizado ‘no trabalho’ para realizar-se ‘na escola’, buscando atrelar preparação profissional e desenvolvimento industrial para a transformação social.

Com essa distinção, Manacorda afirma que no contexto do grande e variado movimento de renovação pedagógica, desenvolvido na Europa e na América desde fim do século XIX ao início do XX, sustentou-se a disputa entre se construir um sistema de instrução adequado capaz de mudar as condições sociais ou mudar as condições sociais para se criar um sistema adequado de instrução.

No âmbito das reformas educacionais do Distrito Federal dos anos de 1920-1930, por exemplo, prevaleceu o investimento na construção de um sistema de ensino capaz de operar sobre as transformações sociais necessárias ao desenvolvimento da nação. Contudo, formar ‘pelo’ trabalho, como típico da escola ativa, ou formar para o trabalho, como propósito da educação técnico-profissional, não implicava, necessariamente, considerar a educação do adulto analfabeto ou com escolarização incompleta. Na escola ativa, formar ‘pelo’ trabalho foi uma proposição que conferiu centralidade à infância. No caso da instrução técnico-profissional, em que se supõe uma correlação entre a fase adulta e o trabalho, ao contrário do que se possa imaginar, as reformas educacionais objetivavam alcançar a população em ‘idade escolar’.

Tomando-se como referência os editais de admissão nos cursos profissionais, fartamente publicados no Jornal do Brasil, durante a administração de Fernando de Azevedo na Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal, uma das exigências era a apresentação do certificado de conclusão do curso primário de cinco anos. Com isso, os egressos dos cursos populares noturnos, que tinham a duração de três anos, não estavam aptos a matricularem-se nos cursos de ensino profissional. Na gestão de Anísio Teixeira, para a admissão em curso profissional, havia a exigência da idade mínima de 11 anos bem como a apresentação da certificação de conclusão do 5º ano do ensino primário. Aqui, no entanto, já era possível ao candidato que não tivesse concluído o primário de cinco anos prestar os exames de admissão que constavam das seguintes matérias: português, aritmética, geografia e história do Brasil, ciências físicas e naturais. Ainda assim, os cursos profissionais estavam submetidos à legislação federal (Decreto 20.158, de 30 de junho de 1931), a organização do ensino profissional era altamente rígida em relação à apuração do aproveitamento escolar e de frequência às aulas, tornando limitada a presença do adulto trabalhador nos cursos profissionais.

Assim, como dito, à época das reformas educacionais, formar para o trabalho no sentido de formar para o desenvolvimento produtivo e do progresso econômico não comparecia associado à educação do trabalhador adulto analfabeto ou pouco escolarizado. Ao invés disso, foi o reconhecimento da figura do trabalhador como portador do direito de participar da vida política e social e de usufruir das riquezas materiais e simbólicas que ajudou a construir, que impulsionou a inclusão da educação dos adultos sem escolarização ou com estudos incompletos no rol das ações a serem assumidas pelo poder público.

Esse processo, de longa data, teve no império dois importantes marcos: a promulgação da lei 3.029 de 1881 (Lei Saraiva) e o fim do regime escravista em 1888. De acordo com Alceu RavanelloFerraro (2009), os debates suscitados pela reforma eleitoral colocaram em evidência a questão do analfabetismo e o voto do analfabeto. Isso porque nos dois projetos de reforma apresentados à Câmara havia a exigência de que o eleitor soubesse ler e escrever. As defesas dessa exigência giravam, basicamente, em torno da incapacidade do analfabeto em ‘ajuizar dos negócios públicos’. Para alguns, a presença de 3/4 dos homens adultos analfabetos apontados pelo censo nacional 1872 era o indicativo de que, antes do sufrágio universal, seria preciso universalizar a instrução. Para outros, as estatísticas não eram confiáveis e, mesmo que estivessem certas, ‘a ignorância e a cegueira’ deveriam ser governadas pelos poucos que soubessem ler e escrever. No entanto, algumas figuras como Saldanha Marinho, Joaquim Nabuco e José Bonifácio causaram ‘alvoroço’ nas sessões da Câmara ao se manifestarem contrárias à exclusão do direito ao voto do analfabeto. Argumentavam que as condições do voto eram o discernimento e a vontade e não, exclusivamente, o conhecimento. Questionavam a representatividade nacional constituída de uma fração mínima da população. Outros defendiam que, enquanto não houvesse instrução ao alcance de todos, os analfabetos deveriam ter assegurado o direito de votar. Em meio aos trâmites dos dois projetos, o debate sobre o voto do analfabeto prosseguiu. Não aspirando à introdução do sufrágio universal, a reforma não era tida como democrática. Sendo aprovada a proposta de José Antônio Saraiva, em janeiro de 1881 a lei foi promulgada e os analfabetos, excluídos do direito de voto.

Por sua vez, o fim da escravidão conferiu destaque às classes trabalhadoras tanto no que se refere à necessidade de disciplinar o trabalhador livre quanto em relação à sua atuação em associações de ofício, auxílio mútuo e resistência. Conforme Ângela de Castro Gomes (2005), se a escravidão tornara o trabalho manual um símbolo de degradação, com o seu término, tratava-se de afirmar o papel do operário no movimento de industrialização e de valorizar o trabalho como atividade moralizadora e saneadora socialmente. Enquanto o trabalho foi tido como fator de regeneração social na medida em que garantia uma ocupação, tirava os homens da miséria e os afastava dos vícios, a instrução dos trabalhadores era considerada a via para a participação.

Ao lado da defesa de que a instrução era o caminho para a participação, desenvolveu-se um crescente apelo por reformas educacionais e de combate ao analfabetismo. Nesse espírito, diferentes Estados brasileiros organizaram movimentos em prol da alfabetização de adolescentes e adultos como a criação da Liga Brasileira Contra o Analfabetismo, na capital da República em 1915, e da Liga Nacionalista de São Paulo, de 1917. Enquanto isso, a atuação das esquerdas no movimento operário e, posteriormente, do Ministério do Trabalho ampliou a visibilidade dos trabalhadores como sujeitos de direitos bem como estimulou a demanda pela extensão da oferta de educação aos adultos. Tal realce encontrou eco nas demandas por modernidade e civilização e nas questões relativas à democratização do ensino que embalavam o movimento de renovação pedagógica brasileiro. A partir daí a instrução dos adultos passou definitivamente a integrar o projeto de organização da sociedade.

Perscrutando caminhos para a história da educação de jovens e adultos nas pistas deixadas pelas estatísticas educacionais

Diante de tantos acontecimentos, por certo a pesquisa documental tem importante papel a cumprir na ampliação do conhecimento sobre a história da EJA. Em verdade, é sabido que as fontes documentais ocupam um lugar primordial na pesquisa em história da educação. É possível apreender das fontes a multiplicidade do campo educacional, das facetas dos processos educativos e a relação destes com a sociedade de uma época. Nesse sentido, os documentos são ferramentas necessárias para se poder interpretar, criticar a fonte pesquisada e, consequentemente, construir conhecimento histórico.

Para tanto, considera-se que a história como conhecimento e o documento como fonte de produção do conhecimento histórico são representações do real visto que resultam de um processo de conquista e relações de poder. Em função disso, Jacques Le Goff (1990) argumenta que os documentos contêm uma dimensão monumental. Isso porque apresentam um caráter intencional prescrito por um conjunto de interesses que terminam por evidenciar alguns elementos da realidade vivida e por silenciar outros, no esforço de construir e de impor determinada imagem da sociedade e dos grupos que a constituem para ser perpetuada. Nas palavras de Le Goff, o documento é, portanto, “[...] resultado de uma montagem, consciente ou inconscientemente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver [...]” (Le Goff, 1990, p. 537).

Nesse sentido, o documento deve ser desmontado para que seja possível evidenciar suas condições de produção. Afinal, não se trata de buscar a verdade nas fontes documentais. Trata-se de desvelar a dimensão monumental do documento reconhecendo-o como expressão de relações de poder e como fruto de escolhas, seleções e formas intencionais (ou não) de deixar registrados os conteúdos da realidade.

No caso das estatísticas educacionais da República7, utilizadas neste trabalho com as finalidades de evidenciar a configuração do campo daquela época e destacar a necessidade de expandir os estudos sobre a educação dos trabalhadores nos anos anteriores a 1947, o problema da veracidade é entendido nos mesmos termos. Ou seja, além de aspectos relativos à confiabilidade e consistência técnica pelos quais passou todo o processo de organização e consolidação do sistema nacional brasileiro de coleta e tratamento dos dados estatísticos sobre educação, Natália Gil (2007) também explica que a interpretação das estatísticas educacionais não é consequência objetiva da existência de dados exatos e corretos, “[...] mas antes objeto da disputa simbólica entre os profissionais envolvidos na produção, análise e divulgação dessas informações com vistas à imposição de uma interpretação legítima” (Gil, 2007, p. 124)8.

As questões a serem consideradas na pesquisa com fontes estatísticas são fecundas e certamente caberia interrogar sobre os interesses envolvidos na discriminação dos dados sobre o ensino supletivo para a divulgação dos números do ensino no Brasil. E, uma vez divulgados, o que revelavam?

Por exemplo, o termo ensino supletivo tem sido frequentemente utilizado na literatura especializada para referenciar a oferta de uma educação compensatória, ou seja, um ensino ‘superficial e incipiente, de caráter assistencialista’ às pessoas jovens e adultas. No entanto, pela classificação geral adotada pelo Ministério da Educação e Saúde (MES) para a divulgação das estatísticas educacionais não é possível sustentar tal assertiva visto que designava toda uma rede de instituições ou cursos destinados à formação dos adultos nos mais diversos níveis e modalidades.

Por essa classificação, em 1931, o ensino apresentava-se organizado em torno de duas matrizes: ensino comum e ensino especial. O ensino comum era composto do ensino não especializado ou geral, ensino semiespecializado, ensino especializado. Já o ensino especial era composto do ensino emendativo e do ensino supletivo. O ensino supletivo, propriamente dito, subdividia-se em formação de caráter geral e de caráter particularizado. O de caráter geral compreendia os níveis elementar (para adultos analfabetos, para soldados - escolas regimentais-, imigrantes, detentos, asilados do Juízo de Menores); de autocultura (cursos por correspondência, rádio difusão, pela gramofonia); de extensão universitária; de continuação (escolas de oportunidade, escolas de continuação, propriamente ditas); de aperfeiçoamento e de alta cultura. Já o ensino supletivo de caráter particularizado compreendia cultura física (ginástica, natação, esgrima etc.), profissional (universidades populares), de línguas/idiomas, religioso (curso de catecismo, escolas dominicais etc.)

Ainda em conformidade com a classificação geral do ensino adotada pelo MES, dados do Anuário Estatístico do Brasil (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 1939a) informam que em 1936 havia 166 estabelecimentos de ‘ensino não-primário’ no Brasil dedicados ‘exclusivamente ao ensino supletivo’. Desse total, 57 estabelecimentos localizados no Estado de São Paulo; 30, em Minas Gerais; 24, no Distrito Federal; 11, na Bahia; dez, no Rio Grande do Sul; e nove estabelecimentos em Pernambuco. Os demais estavam assim distribuídos pela federação: quatro estabelecimentos (Rio de Janeiro, Piauí e Amazonas), dois estabelecimentos (Ceará, Alagoas e Sergipe), um estabelecimento (Pará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Espírito Santo, Santa Catarina, Mato Grosso e Goiás).

Considerando-se dados sobre a duração/extensão dos cursos de ensino supletivo no Brasil, observa-se, ainda, que a educação de adultos nem sempre esteve relacionada à oferta de um ensino aligeirado, comumente utilizado para informar sobre um dos aspectos da educação de adultos nas campanhas oficiais. Pela diversidade de tempos formativos dos cursos supletivos no Brasil daquela época, tal como divulgado nas estatísticas do ensino, é possível supor a existência de outras racionalidades relativas às necessidades de aprendizagem dos adultos nos anos que antecederam a CEAA9.

Quadro 1 Ensino supletivo no Brasil (1933). 

Fonte: IBGE (1942).

Em relação ao Distrito Federal, lócus de importante realização no campo da educação de adultos durante a administração de Anísio Teixeira10, os dados são abundantes e detalhados e dão conta de alguns interessantes aspectos da educação de adultos na capital brasileira dos anos de 1930.

Quadro 2 Ensino supletivo no Distrito Federal (1932-1936). 

Fonte: IBGE (1939b).

Se se comparar os dados nacionais (Quadro 1) com os do Distrito Federal (Quadro 2), verifica-se que grande parte das unidades escolares, número de professores e matrícula do ensino supletivo está concentrada na capital do país. No que se refere às conclusões de curso, os números apresentam crescimento, mas são sempre muito inferiores em relação às matrículas e de frequência. Ou seja, o quantitativo de concluintes do ensino supletivo é sempre menor do que o da frequência e essa última sempre menor do que o de matriculados. Dado indicativo de uma questão histórica no campo, ainda hoje em vigência. Portanto, ao invés de o poder público tratar a evasão escolar na EJA como justificativa para o fechamento de turmas e redução de investimentos, seria o caso de reconhecer a questão como sendo própria da modalidade e cujas especificidades demandariam propostas educativas mais afinadas com o público a que se destina.

Quadro 3 Ensino supletivo primário no Distrito Federal (1932-1937). 

Fonte: IBGE (1939b).

Dentre os resultados do Quadro 3, chama atenção a oscilação entre os dados de uma mesma especificação ao longo dos anos. Isto é, embora as taxas de analfabetismo entre pessoas de 15 anos ou mais apresentassem queda no Distrito Federal - 37% em 1900, 25,8% em 1920 e 13,8% em 1940 (IBGE, 1941) -, o ensino supletivo primário não se desenvolveu numa marcha ascendente em número de unidades escolares, matrícula e frequência. Diante disso, é possível supor que, além do poder público, outros segmentos tenham atuado na alfabetização da população jovem e adulta daquela época. Quais interesses representariam? Que concepções defenderam e quais práticas teriam desenvolvido?

Observa-se também que o maior número de unidades escolares, matrícula, frequência e conclusão de cursos estava concentrado em área urbana. Mas é interessante perceber que 1/3 das unidades escolares, em média, estava localizado fora da região central da capital. Em que medida o dado se articularia com a política de democratização do ensino, tema central no âmbito das reformas educacionais daquela época?

Outra interessante questão é que o ensino supletivo primário atendia, sobremaneira, mas não exclusivamente, as pessoas acima de 14 anos. Aliás, o atendimento aos indivíduos de 14 a 21 anos era preponderante. Ou seja, ao longo dos anos de 1930 o ensino supletivo atendeu principalmente à parcela jovem da população ainda que na literatura especializada a questão da juventude na EJA seja considerada um fenômeno dos anos de 198011.

Em suma, os números do ensino sustentam a existência de possibilidades na produção de conhecimento histórico sobre a educação de adultos no Brasil ainda pouco exploradas. Haja vista a variedade de modalidades educativas destinadas à população jovem e adulta, as estatísticas demonstram que o ensino supletivo não surge exclusivamente associado à oferta de instrução dos adultos analfabetos ou pouco escolarizados. Também demonstram que a forma escolar de educação era apenas mais uma dentre os múltiplos espaços formativos possíveis para a educação dos adultos. Em relação à diversidade dos tempos do ensino supletivo, os números do ensino sugerem que a ideia da educação dos trabalhadores como mera reposição de escolaridade, baseada na instrução elementar, de viés técnico, voltado para o trabalho e para o desempenho profissional, não é um dado natural. A relação entre ensino supletivo e instrução elementar é fruto de uma construção social e política difundida posteriormente e para o qual as campanhas oficiais de educação de adultos contribuíram decisivamente.

Considerações finais

Neste trabalho, a discussão sobre a necessidade de se expandir a compreensão sobre a EJA no Brasil foi processada a partir do reconhecimento de uma base comum sobre a qual se assenta uma tradição historiográfica da EJA. Com isso, foram destacadas suas inteligibilidades e os apagamentos que produziu para, então, se tratar de algumas possibilidades para a pesquisa em EJA a partir das estatísticas educacionais da década de 1930.

Ao se apontar para uma agenda investigativa sobre a história da educação dos trabalhadores no Brasil, a aposta é a de que o conhecimento histórico concorre como elemento essencial na afirmação da identidade da EJA como campo pedagógico e investigativo, campo este que historicamente vem ocupando uma posição marginal não somente nas pesquisas, mas também nas políticas públicas, na destinação de recursos, na formação de professores, dentre outros. Nesse sentido, se a escrita da história é tarefa inscrita no campo político, o entendimento é o de que pesquisar a história da EJA é também resistir a esse estado de coisas.

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1Em pesquisa coordenada por Sergio Haddad (2002) sobre o estado do conhecimento na EJA no Brasil, consta que, entre os anos de 1986 e 1998, das 222 teses e dissertações defendidas nos programas nacionais de pós-graduação stricto sensu em Educação, somente oito trabalhos (07 dissertações e 01 tese) foram classificados pelo estudo no subtema História da EJA.Em publicação mais recente, Fabiana Marini Braga e Janira Rodrigues Fernandes (2015, p. 177) apresentam pesquisa bibliográfica sobre temas, abordagens e proposições referentes à EJA, identificados em 79 artigos disponíveis em periódicos brasileiros indexados na base SciELO no período de 2010 a 2014. No balanço das autoras, em que pese “[...] o quantitativo de publicações do quinquênio superar o da década anterior [...]”, é possível verificar que há apenas um trabalho sobre a história da EJA. Também é preciso considerar as ponderações de José Gonçalves Gondra (2007) sobre os limites subjacentes aos balanços de produção intelectual. Dentre as questões discutidas pelo autor, uma diz respeito àquilo que é produzido às margens da disciplina e que, por vezes, não é detectado. Assim, embora estudos sobre a educação de adultos nos anos que antecederam a CEAApossam ter sido desenvolvidos em outros programas de pós-graduação como história ou sociologia, os exemplos parecem suficientes para se demonstrar a invisibilidade da história da EJA no meio acadêmico.

2A memória histórica, segundo José D’Assunção Barros (2009, p. 44 grifo do autor), “[...] não deve ser naturalmente confundida com ‘historiografia’. A ‘Memória Histórica’ seria aquela que é partilhada por todos os indivíduos da sociedade, de modo resumido e esquemático, independente (e mesmo por oposição, diriam depois certos historiadores) da Historiografia profissional”. Isso porque “[...] a Memória Histórica é também produzida nos meios políticos, com vistas a determinados interesses, nos grandes sistemas de comunicação- em uma ‘Cultura Histórica’, enfim, que embora inclua a historiografia não se resume a ela, encontrando ainda muitos outros lugares de produção como os museus, os monumentos, as comemorações, a difusão de mitos, dentre outros”. Mas o autor acrescenta que a historiografia é também um ‘lugar de memória’ e, portanto, historiografia e memória histórica guardam relações. Nas suas palavras, “[...] da qualidade da Historiografia desenvolvida pelos historiadores, dependeria a sofisticação desta Memória Histórica disponibilizada para os diversos indivíduos da sociedade” (Barros, 2009, p. 44-45).

3A própria autora, ao prefaciar a 6ª edição do seu livro História da educação popular no Brasil, reconhece a influência deste trabalho sobre a produção que o sucedeu. Conforme Paiva, na época em que o seu estudo foi publicado “[...] inexistia qualquer fonte sistemática sobre a questão”. Com isso, “[...] se tornou consciente de que este livro sobreviveria por um bom tempo. Cheguei a imaginar, com otimismo, que ele seria reproduzido e utilizado por pelo menos vinte anos. Errei no cálculo” (Paiva, 2003, prefácio).

4A Cruzada de Ação Básica Cristã (Cruzada ABC), movimento de educação de jovens e adultos, liderado por religiosos protestantes norte-americanos, foi instalada no Nordeste do país. Nas palavras de Afonso Celso Scocuglia (2003), a “Cruzada ABC se mostrou como uma vigorosa reação ao legado político-pedagógico progressista de esquerda e que nos anos de 1960 se lançou contra o Sistema Paulo Freire e projetou-se como o braço pedagógico do Estado militar, tornando-se, posteriormente, uma das forças embrionárias da formação do Mobral” (Scocuglia, 2003, p. 79-80).

5Vale registrar a emergência de uma historiografia da educação de adultos orientada pelo interesse nos períodos que antecederam a CEAA. Esse é o caso das investigações sobre a escolarização de adolescentes e adultos no Estado de São Paulo, inclusas na pauta do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (Vidal & Biccas, 2008). Outro exemplo são estudos sobre a formação dos trabalhadores em Minas Gerais ‘no alvorecer da República’, desenvolvidos por Irlen Antônio Gonçalves e Vera Lúcia Nogueira (2018).

6A recolocação do nacionalismo no debate também foi motivada pelo grande movimento de imigrantes que aportaram no país nas primeiras décadas do século XX. Isso porque, de acordo com Rodrigo Patto Sá Motta (2002), a leva de imigrantes teria sido a grande responsável pela disseminação do comunismo no Brasil visto que, nas décadas de 1920-30, boa parte da classe trabalhadora urbana era composta por imigrantes e, dentre eles, um número expressivo de adeptos do Partido Comunista. Além disso, a doutrina e os militantes comunistas eram acusados de serem elementos estrangeiros e suas proposições não teriam nenhuma relação com a realidade nacional (Motta, 2002).

7As estatísticas educacionais da República foram instituídas face aos compromissos firmados pelo Convênio Interadministrativo de Estatísticas Educacionais e Conexas. O Convênio de 1931, como ficou conhecido, foi celebrado em 20 de dezembro de 1931, por ocasião da IV Conferência Nacional de Educação da ABE (Gil, 2008).

8Aliás, sobre a suspeita de fidedignidade dos resultados, o próprio presidente do IBGE em 1939, José Carlos de Macedo Soares, ao prefaciar o Anuário Estatístico do Brasil - que inclui, em separata, o Anuário Estatístico do Distrito Federal -, adverte o leitor para que o material seja interpretado com certa relatividade em função de resultar das ‘primeiras e precárias explorações’ em diversos campos de estudo sobre a realidade brasileira. Esclarece que a insuficiente especialização e inexperiência dos agentes municipais de estatística, a extensão territorial coberta pela pesquisa, os inúmeros aspectos tabulados, a escassez de prazos e a insuficiência na uniformidade dos critérios adotados pelos 22 órgãos estatísticos envolvidos no levantamento dos dados demandam que se atribua um sentido parcial aos algarismos apresentados no anuário. Por fim, assume que possivelmente o material, embora oficial, careça de retificações ulteriores.

9Sobre este aspecto, vozes representativas da intelectualidade nacional se pronunciaram sobre o tema em diversas ocasiões, colocando em relevo diferentes proposições e modos de se pensar o adulto analfabeto ou pouco escolarizado e as suas necessidades de aprendizagem. As “escolas nacionaes”, propostas por Lourenço Filho em 1932, as “universidades populares”, por Everardo Backheuser em 1936, e o projeto para a organização da educação de adultos no Estado do Rio de Janeiro, defendido por Paschoal Lemme em 1937, são exemplares da circulação de diferentes modelos e concepções sobre os adultos e a escolarização destes. Embora analisadas na pesquisa de doutorado da qual provém os dados deste trabalho, essas proposições não são discutidas aqui.

10Em linhas bastante gerais, a educação de adultos do Distrito Federal, organizada e dirigida por Paschoal Lemme, foi estruturada de modo a oferecer simultaneamente ‘cursos elementares’, ‘cursos de continuação, aperfeiçoamento e oportunidade’ e ‘cursos de extensão cultural”, com base na flexibilidade em função dos interesses de grupos de alunos, sem formalidades especiais de matrícula, sem seriação rígida de matérias, sem horário fixo e com duração variável, segundo as necessidades e situações a que tinham de atender (decreto 3.763, de 01 de fevereiro de 1932). Aliás, Paiva (2003, p. 200) faz alusão à experiência do Distrito Federal como tendo sido “[...] decisiva na difusão de ideias contrárias à ordem estabelecida”. Mas curiosamente esse aspecto não foi suficiente para despertar o interesse pela educação de adultos do período. No caso, como dito, o fato de a educação de adultos ter se configurado como um problema de política pública nacional somente em meados de 1940 é que preponderou como marco na delimitação temporal na historiografia da EJA.

11No que se refere à juventude na EJA, Nogueira (2009) chegou à conclusão semelhante. Isto é, de que a convivência intergeracional não é uma novidade na história da educação de adultos. E, sendo assim, uma abordagem histórica da questão geracional poderia, por exemplo, jogar luz sobre o processo pelo qual o jovem foi sendo percebido como um problema no cotidiano das escolas onde funcionam turmas de EJA.

13Como citar este artigo: Xavier., C. F. (2019). História e historiografia da educação de jovens e adultos no Brasil - inteligibilidades, apagamentos, necessidades, possibilidades. Revista Brasileira de História da Educação, 19. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v19.2019.e068

14Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Recebido: 10 de Março de 2019; Aceito: 16 de Abril de 2019

E-mail: cristianefx@yahoo.com.br

Cristiane Fernanda Xavieré pedagoga, mestre e doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora adjunta do Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG). Membro do Centro de Pesquisa em História da Educação (GEPHE/UFMG). Atua como pesquisadora nos grupos de pesquisa: História dos Processos Educadores (FAE/UFMG); Sociedade e Culturas Contemporâneas (UNIFAL-MG). E-mail:cristianefx@yahoo.com.br http://orcid.org/0000-0001-6361-4657

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