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Revista Brasileira de História da Educação

versión impresa ISSN 1519-5902versión On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.19  Maringá ene./mar. 2019  Epub 01-Mayo-2019

https://doi.org/10.4025/rbhe.v19.2019.e071 

Dossiê

Vinte anos da Sociedade Brasileira de História da Educação: com os olhos no futuro

Twenty years of the Brazilian Society of History of Education: eyes on the future

Veinte años de la Sociedad Brasileña de Historia de la Educación: con los ojos en el futuro

1Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil.


Resumo:

Este texto tem como objetivo a reflexão sobre os vinte anos da SBHE entrelaçando a sua criação (1999) com os caminhos percorridos pelas gerações que nos antecederam para a formação do campo da História da Educação no Brasil. Para escrevê-lo, fiz uso de fontes escritas e também de minha própria experiência. Inicialmente mostro as suas origens na Educação e discuto a sua relação com esse campo e com o da História. Em seguida, destaco questões teóricas relativas à sua produção e concluo que esse campo atravessou o século XX em linha ascendente culminando com a criação da SBHE em 1999. Como desafios, indico o contexto diverso no qual o campo deverá continuar atuando, tendo em vista a demanda por internacionalização e as apreensões quanto à redução da História da Educação no currículo de formação de professores.

Palavras-chave: história da educação; educação; história

Abstract:

This text aimed to reflect on the twenty years of the SBHE interweaving its creation (1999) with the paths taken by previous generations for the formation of the field of History of Education in Brazil. It shows its origins in Education and discusses its belonging both to this field and to History. Theoretical issues are indicated on its production and it can be concluded that this field crossed the twentieth century in ascending line culminating with the creation of the SBHE in 1999 arriving consolidated to the 21st century. Regarding the challenges, it points out the diverse context in which the field should continue to act in view of the demand for internationalization and the apprehensions about the reduction of the History of Education in the teacher training curriculum.

Keywords: history of education; education; history

Resumen:

Este texto tiene como objetivo la reflexión sobre los veinte años de la SBHE (Sociedad Brasileña de Historia de la Educación) entrelazando su creación (1999) con los caminos recorridos por las generaciones anteriores para la formación del campo de la Historia de la Educación en Brasil. Muestra sus orígenes en la Educación y discute su pertenencia tanto en ese campo como en el de la Historia. Destaca cuestiones teóricas relativas a su producción y concluye que ese campo atravesó el siglo XX en línea ascendente culminando con la creación de la SBHE en 1999 y llegando, al final, consolidado. Como desafíos, indica el contexto diverso en el cual el campo deberá seguir actuando teniendo en vista la demanda por internacionalización y las preocupaciones en cuanto a la reducción de la Historia de la Educación en el currículo de formación de profesores.

Palabras clave: historia de la educación; educación; historia

Introdução

Desde o seu nascimento na Antiguidade Clássica, uma das atribuições da História tem sido a dedemarcar o passado, distinguir épocas, períodos, acontecimentos. Soberana, a narrativa de acontecimentos políticos e militares, que se constituiu no primeiro gênero historiográfico que conhecemos, reinou até os séculos XVIII e XIX quando então surgiram as primeiras preocupações com a história da sociedade. O positivismo, como sabemos, atacou duramente os postulados da historiografia em vigor quando Auguste Comte saiu em defesa de uma ‘história sem nomes’; em seguida, Emile Durkheim demonstrou desprezo pelos acontecimentos particulares, enquanto Marx e Engels refutaram a história como coleção de fatos sem vida, trataram da luta de classes e da relação entre essência e aparência. A crítica sociológica, por sua vez, dedicou-se a derrubar o que entendia por ídolos dos historiadores: o ídolo político, o ídolo individual, o ídolo cronológico. Em síntese, críticas ao empirismo, ao idealismo, à história de reis e rainhas, atacavam de todos os lados a historiografia legada por Heródoto, que também poderia ser denominada de ‘o antigo regime da historiografia’.

Herdeira dessas tradições, ela foi reelaborada pela Escola dos Annales (1929-1989) tendo sido Fernand Braudel o seu maior nome. Entre 1935 e 1937, esse historiador francês encontrava-se no Brasil durante um dos intervalos da longa elaboração de sua tese de doutorado quando, em uma praia, à noite, vislumbrou uma imagem inspiradora que depois o motivou a criar a seguinte metáfora: a história dos eventos é como brilho de vagalume, espumas de ondas. Para ele, um apaixonado pelo Mediterrâneo, o pesquisador deveria buscar a essência da história nas profundezas do mar, nas águas mais calmas abaixo das correntes (história quase imóvel, geo-história), pois as ondas são a superfície da história.

Com essa breve incursão, ao tratar de um evento - os 20 anos da Sociedade Brasileira de História da Educação - a minha intenção foi relembrar que o primeiro gênero da historiografia ocidental foi o da narrativa de acontecimentos, isto é, uma forma de elaborar o conhecimento que tem um sentido factual intrínseco mas que, ao mesmo tempo, pode constituir-se em oportunidade para a reflexão crítica sobre tudo aquilo que se constrói em conjunto, já que na sociedade humana não existe ‘eu’ sem ‘nós’(Elias, 1994). O acontecimento, portanto, é um momento da história, o aspecto mais visível de um processo que se desenrola em ritmo mais lento. Para usar os termos de Braudel, o acontecimento é a superfície, a onda agitada que podemos ver de imediato, mas que, no entanto, é provocada por algo que não está à mostra: as calmarias das profundezas do mar. Visto dessa perspectiva, não há contradição ou exclusão entre uma forma e outra. As duas compõem a história: essência e aparência. Aliás, ele próprio, em sua obra monumental, tratou fartamente dos eventos.

Sendo assim, um dossiê comemorativo como este converte-se em momento especial no qual a balança entre o ‘eu’ e o ‘nós’ pesa para o plural, pois o objetivo é o de refletirmos sobre o que vem sendo construído em conjunto pela comunidade de historiadores da educação brasileira em termos de produção científica e de organização acadêmica. Pensar sobre o ‘nós’ é a inspiração que motiva esta escrita sobre os 20 anos da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE). Na esteira das lições de Braudel sobre a relação entre os três tempos da história (longa, média e de curta duração), ou seja, estruturas, conjunturas e eventos, o meu objetivo não é exclusivamente rememorar um acontecimento em si, mas visar o futuro tendo o passado como retaguarda. Trata-se, portanto, de um exercício no qual presente, passado e futuro estão interligados compondo uma cadeia. O historiador vive e escreve no presente, portanto é do presente que ele indaga o passado. As perguntas que ele faz ao passado são motivadas por preocupações do presente, isto é, da sua época. Como sujeito do presente, ele pensa sobre o futuro com base no conhecimento sistemático do passado e nos elementos objetivos e subjetivos que o presente lhe fornece. Em relação ao passado sobre o qual escreve, ele é o futuro; em relação ao que outros historiadores escreverão no futuro, ele é o passado. Por isso o conhecimento histórico é sempre reelaborado.

Rio de Janeiro, 1999: fundação da SBHE; Belém, 2019: comemoração de duas décadas de ações conjuntas que vêm mudando o campo da história da educação no Brasil. Entre os significados da palavra celebrar constam: lembrar, relembrar, rememorar. Todos eles, com certeza, estão contemplados em um dossiê como este cuja intenção é inspirar reflexões sobre as diferentes experiências de escrita que demarcaram o campo de pesquisa em história da educação no Brasil1.

Emprego neste texto o conceito de campo de Pierre Bourdieu. Segundo a sua definição, ele é um espaço de luta no qual a produção de conhecimento é estruturada e controlada de acordo com uma lógica própria e regras específicas. Essa concepção nos ajuda a compreender a nossa própria prática, as tendências teóricas e temáticas que vêm marcando o campo da história da educação no Brasil, as suas convergências e tensões. Auxilia-nos também a nos reconhecermos dentro do nosso próprio campo. Com essa compreensão teórica, este texto apresenta inicialmente os caminhos percorridos para a construção da História da Educação abrangendo aspectos da pesquisa e também de ensino. Em seguida, trata das suas perspectivas ante o complexo cenário do século XXI. Nas conclusões, serão apresentados os desafios para a continuidade do fortalecimento do campo.

Um campo entre a tradição e a renovação

Visando o futuro com base no conhecimento do passado e nos problemas de nossa época, enxergo os 20 anos da SBHE como parte de uma longa trajetória que retrocede a 1999 e conecta-se a uma história que vem sendo construída por várias gerações que se dedicaram ao campo da História da Educação no Brasil. Se esse campo tem suas origens no ensino dessa disciplina no começo do século XX, esse fato por si só é um dado demonstrativo sobre o quanto somos tributários de um passado e de uma tradição que lastrearam o nascimento da SBHE em 1999.

Herdeira de um campo de conhecimento que tem suas raízes no século XIX, mas com demarcações mais nítidas nas primeiras décadas do XX, a História da Educação atravessou contextos políticos quase sempre autoritários que metaforicamente se assemelham a um samba de uma nota só, chegando ao século XXI qualitativamente distinta de sua trajetória anterior: a organização de sua comunidade em uma entidade nacional. O caminho não foi de bonanças, mas nem só de pedras. Não se constituiu também em uma estrada dividida em mãos excludentes: tradição e renovação; avanços e atrasos. Embora alguns contextos tenham propiciado distinções mais marcantes, ora para avanços ora para retrocessos, a tradição e a renovação vêm constituindo uma especificidade desse campo. Uma tendência não aboliu a outra. Nessa trajetória nenhuma das correntes teóricas que formaram o campo reinou sozinha.

Buscando as origens da formação do campo da História da Educação no Brasil vamos encontrá-las primeiramente no ensino da disciplina, que foi instituído em 1928. Para o meu propósito aqui, não importa tanto a inspiração teórica que embasava esse ensino, o seu currículo ou mesmo os manuais didáticos, mas o fato em si de que, desde o seu nascedouro, a História da Educação teve presença importante na formação de professores, inclusive por razões ideológicas, já que nas políticas educacionais vigentes ela era vista como indispensável para garantir uma visão moral de sociedade.

Uma escrita da história da educação brasileira, tal como a entendemos hoje, propriamente não havia. Registros e coletas de dados, inquéritos sobre questões escolares e textos memorialísticos antecederam a história que viria a ser escrita a partir da década de 1930 e que teve seu início com os intelectuais liberais ligados à Escola Nova, mais embasada na Sociologia e na Psicologia do que na História. Aliás, como sabemos, a História da Educação como campo específico não nasceu da História, mas da Educação e isso não foi exclusividade do Brasil. No contexto político iniciado na década de 1920 com o rol de inovações políticas, sociais e culturais que a caracterizou, o Manifesto dos Pioneiros (1932) foi um marco importante. Na sequência, a obra sociológica de Fernando de Azevedo, A Cultura Brasileira, publicada no início da década de 1940, passaria a ser, por muito tempo, inspiradora de posteriores estudos históricos convertendo-se, ela mesma, em objeto polêmico de interpretações e pesquisas que estavam por nascer. Estudos realizados sobre ela sustentam o ponto de vista segundo o qual o autor instituiu uma interpretação que classificaria a educação brasileira em uma espécie de ‘antes e depois’ da Escola Nova, ou seja, dos autoproclamados renovadores. Não entrarei nesse aspecto específico que já foi sobejamente pesquisado por nossa historiografia e que serve para nos alertar sobre o perigo empobrecedor de classificar a história da educação nesses termos, em qualquer época e lugar, na medida em que tais rótulos suprimem a mediação.

Um sinal promissor nos estudos desse campo, contudo, estava se anunciando. Pois a mesma universidade que produziu a obra de Fernando de Azevedo geraria o primeiro conjunto de pesquisas específicas sobre história da educação brasileira. Foi na USP, no final da década de 1950, com a experiência acumulada no Centro Regional de Pesquisas Educacionais, que Laerte Ramos de Carvalho passou a orientar uma série de monografias que formaram um importante mosaico sobre o nosso passado educacional, constituindo-se em acervo indispensável para futuras pesquisas.

O contexto no qual essas obras foram produzidas - não só as da USP, mas desde a década de 1920 - era marcado, de forma geral, por uma sociedade de formação econômico-social agrária, oligárquica, com um regime republicano tardiamente instituído assim como um longo período de escravidão tardiamente extinto. Em termos políticos, no século XX prevaleceu uma sequência de governos autoritários com curtos períodos de vivência democrática. Autoritarismo e ditaduras, porém, não impediram a organização do campo da História da Educação, o qual, inclusive, tomou impulso desde os anos finais da ditadura militar. Comparativamente, é importante lembrar que nas décadas de 1920 e 1930, a própria Educação como campo específico estava em formação, o que não se constitui em dado que possa ser atribuído a um atraso do Brasil. Algo semelhante acontecia na Inglaterra, por exemplo, onde na mesma época o Instituto de Educação da Universidade de Londres começava a se tornar a instituição mais importante do país para a formação de professores. Na condição de ex-aluno, o historiador Brian Simon descreveu o ambiente desse Instituto e os aspectos do seu currículo em 1937, afirmando que os estudos de educação como disciplina estavam então no seu estágio inicial e a pesquisa era mínima (Simon, 1998).

Nessa mesma época no Brasil, enquanto na Educação começavam a aparecer estudos patrocinados pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos - INEP (1938); na História surgiam as primeiras obras críticas à produção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), marcada por uma concepção elitista e racista sobre a formação histórica brasileira. Quanto à História da Educação, embora ela não tenha se originado diretamente do campo da História, realço aqui alguns pontos de aproximação entre os dois campos a fim de refletirmos sobre a nossa historiografia buscando possíveis similitudes ou distinções que caracterizam uma e outra. Em termos de tendências e padrões de produção da pesquisa em História até a década de 1980, predominaram três esquemas interpretativos: positivismo, marxismo e Escola dos Annales. A partir da década de 1990, tanto no campo da História quanto no da História da Educação, a maioria das pesquisas passou a citar como referencial teórico a História Cultural2. Considerando outro contexto, apenas como exercício para esta aproximação, se tomarmos o marco cronológico de 1930, por exemplo, constataremos que o rompimento da antiga ordem política oligárquica que governava o Brasil desde o início da República provocou importante impacto nos dois campos. Na História emergiram as obras denominadas ‘redescobrimento do Brasil’3 por se contraporem à concepção dominante do IHGB, de matriz europocêntrica, apologética e enaltecedora de eventos e de figuras como o imperador Pedro II. Na Educação, foi elaborado o Manifesto de 1932 propondo escola única, laica, integral para todas as crianças dos sete aos 15 anos de idade. Em ambas as produções encontramos distintas influências teóricas: na primeira elas abrangem desde a visão liberal até o marxismo; na segunda a inspiração foi predominantemente liberal, mas não exclusivamente se lembrarmos de um importante protagonista que foi Paschoal Lemme, um dos 26 signatários do Manifesto de 1932 e cuja formação era marxista. Nessa época, um aspecto que distinguiu a formação do campo da Educação comparativamente ao da História foi a criação da Associação Brasileira de Educação (ABE) em 1924, fator que indica uma característica própria do primeiro, isto é, estar conectado às políticas públicas e às questões do tempo presente.

O pêndulo da balança política no Brasil após a efervescência da década de 1920 oscilou para duas ditaduras (1937-1945 e 1964-1985). No intervalo entre elas e adentrando a década de 1970, surgiram as monografias já citadas, orientadas por Laerte Ramos de Carvalho na cátedra de História e Filosofia da Educação (USP)4. Com base em documentação primária, essas pesquisas tinham como objetivocompor um quadro histórico compreensivo dos séculos XVIII a XX e revelaram a potencialidade da História da Educação no momento em que a pós-graduação começava a ser implantada na universidade brasileira, a partir de 1965. Portanto, elas mostram que a produção acadêmica daquele período não esteve exclusivamente influenciada pela Sociologia.

Dois fatores combinados entre si contribuíram para o delineamento do campo da História da Educação tal como hoje o conhecemos: a criação da pós-graduação (1965) e o ambiente de contestação à ditadura militar. Até a década de 1980 eram poucos os Programas de Pós-graduação em Educação existentes no Brasil, mas foi neles (e não nos de História) que a História da Educação veio a se firmar. O contexto político contribuiu, pois a resistência à ditadura militar gerou uma fértil gama de manifestações sociais, culturais e artísticas que resultaram em uma nova leitura sobre o país. A luta pela democracia não transcorria apenas nas ruas, mas também no âmbito acadêmico onde pesquisas em História da Educação passaram a focalizar o sistema educacional e suas políticas, a escola e os movimentos de resistência ao regime ditatorial, como os de educação popular, por exemplo, o que contribuiu para que esse campo de conhecimento fosse reconhecido em sua capacidade de evidenciar que em todo processo histórico há mudanças, mesmo naqueles submetidos a regimes ditatoriais. De forma geral, é possível afirmar que esse contexto efervescente requeria que o passado fosse submetido a novos questionamentos e interpretações. Inicialmente, as abordagens críticas sobre o papel da escola tiveram como matriz teórica o marxismo, o que não quer dizer que ele tenha sido hegemônico, pois a pós-graduação, obviamente, herdou as epistemologias anteriores, isto é, das pesquisas que eram realizadas antes de sua existência, já que, como citado, elas começaram basicamente na década de 1930. Era o caso, por exemplo, de estudos descritivos, mais preocupados com arrolamento de dados, genericamente denominados positivistas. Diferentemente, a pesquisa realizada nos programas de pós-graduação assumiu o tom de crítica ao sistema capitalista, ao Estado e à escola.

A criação dos programas de pós-graduação mudou o perfil dos dois campos: o da História e o da Educação. Em ambos, contudo, o fator em comum foi o expressivo crescimento do número de pesquisas que até então eram realizadas. Analisando os primeiros frutos da produção de dissertações e teses em História na década de 1970, Carlos Guilherme Mota afirmou que, se por um lado, havia aumentado essa produção, por outro, predominava baixo teor de criatividade e inexistência de projetos articulados de pesquisa (Mota, 1977). Para ele, os estudos permaneciam orientados para a elaboração de monografias relativamente desimportantes e desarticuladas de problemas maiores, em sua maioria inspirados por um empirismo rústico, cultivado tanto na universidade como fora dela. Em parte isso se devia ao fato de que a produção realizada na pós-graduação não permitia tratamento mais generalizado exigindo territórios e períodos muito demarcados e, com isso, reforçando o caráter empírico que, segundo ele, na maioria das vezes constituía-se em um amontoado de dados sem sentido. Por outro lado, nas décadas seguintes, essa produção, até mesmo pelos critérios de delimitação cronológica e geográfica que passou a adotar, propiciou o conhecimento sobre realidades até então desconhecidas.

Quanto aos temas, a partir da década de 1990, de acordo com Fernando Novais, a crise dos paradigmas em História resultou em mudança de assunto e o interesse deixou de ser Estados, estruturas, produção, consumo e poder, deslocando-se para os modos de sentir, os amores e os humores. Nas Ciências Humanas em geral, segundo ele, verificou-se o abandono desses conceitos e passou-se a acentuar o lado não analítico, o lado narrativo (Novais, 2011).

Diferentemente da pesquisa em História, a pesquisa em História da Educação não tem a mesma longevidade no Brasil. Se considerarmos a produção específica da USP como a primeira a ter adotado critérios propriamente historiográficos, podemos afirmar que o marco inicial do campo é a década de 1950 tendo alcançado maior dimensão e importância no final do século, mais precisamente a partir da década de 1980. Nos três casos - História, Educação, e História da Educação -, o divisor de águas foi a criação da pós-graduação (1965), que trouxe para o âmbito da universidade a pesquisa que até então se realizava fora dela. Esse período foi marcado também pela própria expansão da universidade no Brasil e, com ela, o crescimento e interiorização da pós-graduação. Nesse processo, a História da Educação como campo específico cresceu substantivamente. O impulso aumentou na década de 1990 período durante o qual ocorreram importantes mudanças de contexto: no plano internacional, o fim dos regimes socialistas (1991), fato que gerou interpretações otimistas segundo as quais o capitalismo, sem opositor, era vitorioso; no plano nacional a reorganização da sociedade segundo o ordenamento democrático decorrido da Constituição de 1988, o que incluía a criação das instituições que lhe dão base; no plano acadêmico-científico, a expansão da pós-graduação e a influência de novas correntes interpretativas. Novos temas passaram a compor o rol de interesses da pesquisa em História da Educação e, da mesma forma como ocorria no campo da História, o interesse passou das estruturas socioeconômicas às manifestações superestrutrurais, mentalidades, cotidiano etc. Em síntese, a passagem do porão ao sótão, como definiu de maneira emblemática Peter Burke.

Um sinal evidente do fortalecimento da História da Educação a partir de então é o fato de que, em meio à grande produção de dissertações e teses que vêm sendo realizada desde a década de 1970, ela passou a ser uma das linhas de pesquisa mais presentes nos Programas de Pós-Graduação em Educação, figurando em terceiro lugar em um levantamento realizado por Elizabeth Macedo e Clarilza Prado de Sousa. Na busca por regularidades, as autoras encontraram: política e gestão da educação (41); formação e trabalho docente (39); história da educação (27)5.

Quanto à organização acadêmico-científica, após a ditadura militar, o campo da História da Educação alcançou o seu maior desenvolvimento e foi então que ele adquiriu perfil mais nítido dentro da grande área da Educação. Essa organização teve início em 1984 ainda sob a ditadura militar quando foi constituído o Grupo de Trabalho de História da Educação no âmbito da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (GT/ANPEd). Uma de suas fundadoras, assim considerou a sua importância:

Os estudos sobre a produção do GT-HE nesses 30 anos de história revelam que sua contribuição para a consolidação do campo é inestimável. De uma disciplina que constava dos currículos das escolas normais e dos cursos de pedagogia com o objetivo principal de transmitir valores, de contribuir para a formação dos novos professores (o que, diga-se, não é nada desprezível), tornou-se, pelo esforço e dedicação de muitas pessoas, um campo de investigações e produções conceituado, prestigiado (Buffa, 2016, p. 416).

Em 1986, no contexto de efervescência política que marcou a década de 1980 foi criado na UNICAMP, por Dermeval Saviani, o Grupo de Estudos e Pesquisas ‘História, Sociedade e Educação no Brasil’ (HISTEDBR) que teve rápida expansão, passando a contar com grupos locais, regionais, uma revista e eventos periódicos.

Esses dois Grupos (HISTEDBR e GT-ANPEd/HE) constituíram a base para a criação da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE), tendo sido Dermeval Saviani o seu primeiro presidente (1999-2001). Esse foi um significativo momento de convergência e um passo decisivo para o fortalecimento do campo. Isso porque a fundação da SBHE lhe conferiu visibilidade, inclusive com a criação da Revista Brasileira de História da Educação - RBHE (2001) e a realização de congressos bianuais com grande participação, pois o campo faz interface com vários outros que convergem no aspecto de que, em geral, os trabalhos apresentados, independentemente da temática, são tratados sob perspectiva histórica.

Tendo sido herdeira de uma história construída por várias gerações, a SBHE nasceu em ambiente de participação, intensos e acirrados debates que, no entanto, escassearam gradativamente. Esse dado está nos indicando a necessidade de pensarmos não apenas em nossa produção, mas também nos silêncios e ausências. A SBHE chega, enfim, aos seus vinte anos de existência desempenhando papel muito importante para a consolidação da História da Educação no Brasil e com grandes desafios pela frente.

Uma História da Educação para o século XXI

Depois de termos adentrado brevemente pelos caminhos que levaram à formação do campo da História da Educação no Brasil e da SBHE, é preciso pensarmos sobre as perspectivas futuras nesta época qualitativamente distinta das anteriores. Que implicações essa nova sociedade marcada pela revolução tecnológica e pela globalização trazem para o campo da História da Educação?

No atual contexto caracterizado pela aceleração, pela conexão e por uma sociedade definida por Zygmunt Bauman como ‘modernidade líquida’ (Bauman, 2001), já que, metaforicamente, em oposição ao que é sólido, ela não conserva as suas formas por muito tempo, é necessário refletirmos sobre o lugar e o papel da História da Educação, sua natureza, objetivos e métodos. A criação da SBHE coincidiu com o final do ‘breve século XX’ (Hobsbawm, 1990) e com reflexões sobre essas questões teóricas em vários países, incluindo o Brasil. Em decorrência da reconfiguração do capitalismo, essas preocupações no âmbito acadêmico vêm focalizando a importância das Ciências Humanas para a compreensão da sociedade já que a sua própria existência vem sendo colocada em questão. No caso específico da História da Educação, ocorre redução de sua carga horária e, em casos mais drásticos, extinção da disciplina nos currículos de formação de professores. No Brasil, embora ainda obrigatória, a sua presença vem sendo diminuída, fato que acendeu o sinal de alerta: estaria começando uma trajetória descendente da disciplina tendendo ao seu desaparecimento, em contraste com sua ascensão no século XX?6.

Estudos em âmbito internacional vêm se dedicando a levantamentos sobre essa nova situação. Segundo alguns, a relevância ou prestígio da História da Educação nos estudos pedagógicos tende a diminuir. De acordo com essa compreensão, em tempos passados, durante o desenvolvimento e consolidação institucional da disciplina, predominou a tendência de acreditar que ela desenvolveria atitudes e disposições dos futuros educadores. De um exagerado otimismo, chegou-se a uma posição pessimista: de um lado, a crença de que nas últimas décadas ela se perdeu no caminho e se tornou repetitiva; de outro, que ela ainda tem grande potencial. Outros julgam necessário evitar tanto o pessimismo quanto o otimismo e conferir à História da Educação uma amplitude de horizontes que muitas vezes não lhe é dada. De forma axiomática, segundo essa compreensão, a natureza da atividade educacional, seja formal ou informal, é tal que a história não pode ser apropriadamente estudada sem referência à política, ao Estado, à economia, à religião, à ética e assim por diante. Levar essas dimensões em conta significa lembrarmos que ficou no passado o entendimento segundo o qual escola e educação são conceitos equivalentes.Pois, hoje é amplamente entendido que o sentido da história da educação não se limita exclusivamente ao que concerne à escola, e que a educação (e também a escola) é parte de uma complexa cadeia social, econômica e cultural.

Por outro lado, está em debate também a própria função desse campo de conhecimento. De acordo com Pere Sola: “A ideia da História da Educação como uma disciplina intelectual ou acadêmica faz sentido apenas se ela disser algo não somente aos educadores, mas ao público em geral” (Sola, 1993, p. 12). Segundo ele, desde a década de 1970, a riqueza de perspectivas combinada com a crise que cercou modelos explicativos do passado gerou certa confusão entre os historiadores, mas o aspecto essencial é que o interesse na história não material, como temas ligados a emoções dos indivíduos, passou a prevalecer. Dessa perspectiva, a história da educação pode oferecer elementos de história e informações culturais ao público em geral e à futura geração de professores. Precisa eem profundidade, a informação históricacontextualizadaé absolutamente necessária parauma verdadeira compreensãoda condição humana. Educação e democracia, igualdade sexual, problemas relacionados ao bilinguismo, discrimanações raciais, aspectos de guerras passadas e atuais que repercutem diretamente nas famílias etc., todos esses problemas são de interesse de ambos - educadores e público em geral. Da mesma forma, o papel desempenhando pela educação não escolar ou pelas atividades não intencionais na educação dos cidadãos, da criança, do adolescente ou do adulto.

A escrita de uma História da Educação conectada a essa forma de compreender a sociedade requer um alargamento de fronteiras que deve considerar pelo menos três campos: a História, a Educação, as Ciências Sociais. No entanto, a História da Educação, entendida como subdisciplina da História no sentido de que a sua preocupação central deve ser com a mudança e não com fatos, localizada no grande campo da Educação, tem explicitado e praticado pouco essas abordagens. A própria relação entre História e Educação precisa ser repensada no sentido de que diferentes metodologias e teorias são necessárias para a compreensão do passado educacional, para produzir mais estudos interdisciplinares e projetos nos quais pesquisadores de várias formações possam se engajar e quebrar a binária divisão entre elas. A História da Educação opera com as ferramentas da Oficina de Clio; portanto ela está no território da História, mas tendo como objeto de estudo a Educação, é requerida a dar atenção não apenas à formação humana passada, mas também àquela que se processa hoje, nas complexas relações de uma sociedade conectada em redes. Compreender como os processos de formação humana transcorreram no passado e em que medida ainda são necessários para a compreensão da formação humana hoje é tarefa da História da Educação e essa tarefa não é bem realizada sem as teorias formuladas nesses dois campos (História e Educação). Da História, o conceito essencial é o de mudança, isto é, a compreensão de quea transição de uma época para outra não é um evento, mas um processo. A mudança pode ser rápida ou lenta, mas sempre leva tempo. Não é instantânea, como escreveu Caio Prado Jr. ao considerar o conceito de mudança como a essência da História. Criticando metodologias quantitativas, ele afirmou que arrolar dados é passo preliminar da elaboração de conhecimento. Isso porque, a maior parte das circunstâncias que concorrem na configuração e dinâmica do processo histórico, que é o assunto central da historiografia, não são por natureza quantificáveis. O que cabe à historiografia tornar conhecida é propriamente o movimento, a dinâmica da qual e por força da qual se configuram os fatos como simples instantes ou momentos daquele movimento. Não se trata, portanto,

[...] da imprecisa pretensão de inspiração antropológica e alimentada pela visão metafísica da realidade de articular os fatos entre si, mas exteriormente apenas, em sequência de causa e efeito. Trata-se sim da passagem e transição, da progressão de umas para outras situações, do processo histórico em suma, e da maneira como se realiza uma tal mudança e transformação (Prado, 1976, p. 17).

Em outras palavras, nada é mais estimulante na História do que saber que as coisas não eram como são hoje e que, portanto, serão diferentes no futuro. Perdendo essa compreensão, a História deixa de ser História.

Voltando ao aspecto sobre a necessidade de a História da Educação ter algo a dizer ao público em geral, é preciso levar em conta a contribuição das Ciências Sociais na medida em que, entre outras, a dimensão política e ideológica são intrínsecas ao ato de educar desde tempos imemoriais. Parafraseando Mario Alighiero Manacorda, a história da educação coincide com a própria história da humanidade, pois desde que o ser humano existe, ele está em formação, educando-se e educando a outros. (Manacorda, 1989). Nesse processo, é impossível excluir a dimensão política. De acordo com tal visão, como ignorar os modelos formativos que geraram as primeiras filosofias da educação? A relação entre cidade (Estado), política e educação que teve origem na elaboração teórica de Aristóteles? Em nosso ofício de escrever sobre a história da educação temos, portanto, um rico celeiro de teorias que não devem ser negligenciadas. Esse exercício, contudo, não é fácil, implica em esforço individual e também do campo como um conjunto, pois é preciso enfrentarmos questões como a especialização e a fragmentação em contraste com a necessidade atual de tratarmos o objeto da história da educação de forma transnacional. Em resumo, há um difícil caminho a ser trilhado para o manejo necessário com fontes, empiria e teoria. Por isso, um dos desafios teóricos para a formação de novos pesquisadores é tratar as evidências e as interpretações como uma relação simbiótica.

Outra ordem de preocupação teórica diz respeito ao fato de que o termo educação na história da educação tem diferentes significados para diferentes pesquisadores. Para uns, na esteira de Durkheim, ela é aquele rico e complicado processo pelo qual os jovens adquirem as características e potencialidades que identificamos como humanas e se tornam membros da sociedade na qual vivem. Para outros, educação é, primeiramente, senão exclusivamente, limitada à organização, propósitos e atividades nas escolas. Se a escola deve ser a maior preocupação do historiador da educação, ele não deve negligenciar aqueles que passam tanto tempo nas escolas - professores e alunos. Isso porque a História deve ser mais que fatos e dados. Ela trata de pessoas. Estudantes e professores têm importantes e informativas histórias. Além disso, contribuem para definir os objetivos, estruturas e organização das escolas. Há uma legítima razão para vermos a História da Educação mais amplamente que a história da escola, e, ao mesmo tempo, ao tratarmos da escola, ela não deve ser vista como uma instituição vazia. Sem estudantes e professores, não há escolas nem história da educação. Assim, se por um lado a nossa atenção não deve ser restrita à escola ignorando a sociedade na qual ela se insere, por outro lado, não é desejável que se preste muita atenção a outras instituições educacionais - igreja, família, local de trabalho, várias mídias - e pouca ou nenhuma atenção à escola. Isso porque não se pode negar que essas outras instituições são instâncias educativas valiosas para a história da educação, mas também devemos lembrar que ao termos em mente uma sala de aula, a sua maioria atuará como professores e, por isso, espera aprender algo sobre a sua futura profissão e sobre a instituição na qual vão trabalhar. Em síntese, como responder à questão sobre o que pertence à História da Educação como objeto e o que não pertence? Certamente, dentre as diferentes respostas que podem ser dadas, uma delas é: o que contribuir com o nosso entendimento sobre como as pessoas são educadas em diferentes épocas e lugares, como elas usam as agências e instituições para fins educativos, e como escola e sociedade se relacionam uma com a outra é objeto próprio da História da Educação. É sua atribuição essencial mostrar como esses processos ocorreram no passado, o que não se espera de outras disciplinas como a Sociologia, a Filosofia ou a Política, por exemplo.

Um dos objetivos propostos por este dossiê foi o de refletir sobre a escrita da história. Entendendo que essa escrita decorre de opções teórico-metodológicas as quais, por sua vez, não deixam de estar conectadas de alguma forma com os contextos políticos de cada época, inspiraram-me a elaborar esta reflexão as ideias de dois historiadores britânicos que se propuseram esse mesmo exercício intelectual: Roy Lowe e Richard Aldrich. No artigo Do we still need the history of Education? Is it central or peripheral?, publicado em 2002, Roy Lowe pôs em questão a importância da História da Educação no final do século XX considerando as diversas tendências teóricas que marcavam o campo naquele momento. Segundo ele, três aspectos afiançam a sua centralidade. Em primeiro lugar, o conhecimento do passado pode evitar que o próprio passado seja mal usado para interesses atuais; em segundo, não saber o que aconteceu antes de nós é permanecer criança para sempre; e em terceiro, uma sociedade que não conhece o seu passado é uma sociedade à deriva (Lowe, 2002). No ano seguinte, Richard Aldrich (2003) publicou The three duties of the historians of education, artigo no qual expôs seu entendimento sobre os compromissos que devem caracterizar o ofício do historiador da educação, os quais, segundo ele, são essencialmente três: com o passado, com a sua geração e com a verdade. Ao defendê-los, afirmou que a sua abordagem poderia parecer ultrapassada, mas que seu propósito era exatamente gerar esse tipo de reflexão.

Esses três compromissos formulados por Richard Aldrich foram os que motivaram a minha reflexão sobre os 20 anos da SBHE e sobre as perspectivas de seu futuro, tendo em conta que a nossa trajetória é herdeira das gerações que nos antecederam pois, sem elas, não chegaríamos até aqui. Por outro lado, como sujeitos do presente e comprometidos com os problemas de nossa época, podemos realizar a conexão com as gerações futuras. Continuar escrevendo a história da educação é tarefa da nossa geração assim como o será daquelas que virão. Se entendermos a verdade não como um dado definitivo e acabado, não como um dogma, mas como conhecimentos cumulativos, podemos nos indagar então: por que a história deve ser sempre reinterpretada? Acredito que ela possa ser reescrita com base em três condições: 1. A descoberta de novas fontes; 2. O impacto de novas teorias, novos métodos ou disciplinas; 3. A formulação de novas perguntas às fontes históricas, sejam essas fontes inéditas ou antigas.

Considerações Finais

Ao propor este dossiê, a SBHE pretendeu problematizar a escrita da História da Educação identificando tendências e perspectivas do campo científico e disciplinar. Com base nele, apresento as minhas conclusões em duas chaves de leitura interligadas entre si. A primeira, relativamente à situação do campo no Brasil e suas perspectivas nacionais; a segunda, sobre os desafios da internacionalização.

Parto da constatação de que o campo da História da Educação no Brasil chegou ao século XXI consolidado, fruto de uma construção coletiva. As condições para que isso ocorresse não foram fáceis se considerarmos os contextos políticos e a própria afirmação das Ciências Humanas em geral no quadro mais amplo do campo científico no Brasil. Contudo, o cenário futuro parece ser mais difícil e complexo. De um lado, precisamos considerar que, se o campo científico tem uma lógica própria, um dos aspectos distintivos dessa lógica atualmente é a internacionalização. De outro lado, a situação preocupante da disciplina nos cursos de formação de professores. Se a força da pesquisa em História da Educação no Brasil foi favorecida pela constante presença da disciplina nos Cursos Normais e de Pedagogia, como pensar um futuro no qual essa presença é incerta? Dito de outra forma: reduzindo-se o ensino de História da Educação, continuaremos a ser um campo de pesquisa expressivo? Eis uma questão que não se limita ao Brasil e para a qual pesquisadores de vários países têm dispensado atenção nas últimas décadas.

Quanto à tendência de internacionalização, ela é um dado objetivo. Hoje é intensificada pela revolução tecnológica, mas importantes intercâmbios internacionais começaram antes. Lembremos dos doutorados realizados na década de 1970 quando vários de nossos colegas estabeleceram sólidas relações acadêmicas com países como a França, por exemplo. Assim, a internacionalização acadêmica é um resultado cultural da globalização e de políticas estatais, mas também dos nossos desejos e interesses, pois ela é uma das formas de nos reconhecermos como pesquisadores em nosso campo e como cidadãos de um mundo globalizado, interligado. Como membros da SBHE, estamos conectados ao Congresso Ibero-Americano de História da Educação Latino-Americana e ao Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, desde 1996. Essa participação foi uma importante motivação para a própria criação da SBHE (1999). Nesse período também cresceu a nossa presença no International Standing Conference for the History of Education (ISCHE). Esses intercâmbios têm provocado o alargamento do leque temático das pesquisas, concretizando-se em projetos e chegando às salas de aula por meio de livros e artigos. Todavia, neste aspecto, a ênfase dessas conclusões recai sobre o contraste citado anteriormente, ou seja, o modo desigual tomado pelos caminhos do campo nesse começo de século: a consolidação e prestígio da pesquisa ao lado da redução do ensino, fato que sinaliza incerteza sobre o futuro.

Reexaminando o passado e mirando o futuro, que agenda precisamos adotar para a continuidade e fortalecimento dessa conexão, isto é, entre ensino e pesquisa? Qual é a nossa posição ante as crescentes exigências de intercâmbio com países de língua inglesa? Em que medida as políticas de internacionalização contribuem para ampliar nosso raio de visão, fortalecer o campo disciplinar e colaborar para a democratização da educação? Enfim, que tipo de integração buscamos em um mundo cada vez mais globalizado? O tempo, como acreditava Fernand Braudel, avança com diferentes velocidades, mas na sua época era improvável imaginar o quanto hoje ele seria acelerado e o quanto esse dado de realidade nos impõe desafios ao tratarmos de história.

Voltando à relação entre o ‘eu’ e o ‘nós’ que motivou a minha interpretação sobre como nós nos reconhecemos nesse campo, concluo com alguns desafios a serem enfrentados tendo em vista o fortalecimento da SBHE e as perspectivas da escrita da história da educação: 1. O revigoramento da teoria; 2. A recuperação da ambição da síntese e da visão de mudança; 3. O distanciamento de dois perigos: a generalização abstrata desvinculada do real e a mera descrição de casos singulares; 4. A valorização da diversidade epistemológica e das diferentes gerações que compõem a SBHE como condição essencial para a democracia interna da entidade e sua relação com o Estado.

Finalmente, além desses desafios, é fundamental considerarmos que o futuro da História da Educação está ligado à necessidade de ela dizer algo não somente aos educadores ou especialistas, mas ao público em geral.

Referências

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1É importante distinguir os dois significados da palavra história: o processo vivido e o ato de registrar esse processo, ou seja, a história vivenciada e a história escrita. Ambas as formas serão grafadas em minúsculas. Maiúsculas serão adotadas para referir-se à disciplina e ao campo.

2Essa afirmação baseia-se em levantamentos que venho realizando sobre a produção elaborada na Pós-graduação em Educação bem como em projetos de pesquisa apresentados em processos seletivos para Mestrado e Doutorado.

3Os principais autores dessa nova interpretação foram Caio Prado Jr., Roberto Simonsen, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre.

4As autorias mais conhecidas são Roque Spencer Maciel de Barros, Jorge Nagle, Maria de Lourdes Mariotto Haidar, Leonor Tanuri, Heládio C. G. Antunha.

5Levantamentos realizados no âmbito do FORPRED/ANPEd e especificamente artigo de Macedo e Sousa (2010) arrolado nas referências.

6Baseio-me aqui em levantamentos específicos que venho realizando desde 2014 no âmbito do Standing Working Group ‘Mapping the History of Education’ (ISCHE). Esse mapeamento tem mostrado a situação da disciplina (ensino, pesquisa, revistas) em diferentes países fornecendo dados para a reflexão sobre o seu futuro.

8Como citar este artigo: Bittar, M. Vinte anos da Sociedade Brasileira de História da Educação: com os olhos no futuro. Revista Brasileira de História da Educação, 19. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v19.2019.e071

9Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Recebido: 30 de Março de 2018; Aceito: 16 de Abril de 2019

E-mail: bittar@ufscar.br

Marisa Bittaré doutora em História Social (USP) e Professora Titular de História, Filosofiae Políticas da Educação. Atua na Graduação e na Pós-Graduação em Educação(PPGE/UFSCar), âmbito no qual foi Coordenadora (2007 - 2010). Em 2004, fundou o Grupo deEstudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil - HISTEDBR/UFSCar, do qualé Coordenadora. Participa do Grupo de Trabalho “Mapping the History of Education” (ISCHE).Recebeu o Prêmio CAPES 2008 pela melhor tese orientada na área da Educação. Épesquisadora bolsista do CNPq desde 2008. E-mail:bittar@ufscar.br http://orcid.org/0000-0002-3990-3210

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