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Revista Brasileira de História da Educação

versão impressa ISSN 1519-5902versão On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.20  Maringá  2020  Epub 01-Abr-2020

https://doi.org/10.4025/rbhe.v20.2020.e103 

ARTIGO ORIGINAL

Escolarização kaingang no rio Grande do Sul de meados do século XIX ao limiar do século XXI: das iniciativas missionárias à escola indígena específica e diferenciada

Kaingang schooling in Rio Grande do Sul between the mid 19th century and the turn of the 21st century: from the missionary initiatives to the specific and differentiated indigenous school

Escolarización kaingang en Rio Grande do Sul desde mediados del siglo XIX a comienzos del siglo XXI: de las iniciativas misionarias a la escuela indígena específica y diferenciada

Maria Aparecida Bergamaschi1  * 
http://orcid.org/0000-0002-6028-4039

Cláudia Pereira Antunes1 
http://orcid.org/0000-0002-3386-0504

Juliana Schneider Medeiros1 
http://orcid.org/0000-0001-9615-4634

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.


RESUMO

Resumo: O texto apresenta um panorama histórico sobre os processos de escolarização kaingang no Rio Grande do Sul, Brasil, de meados do século XIX ao limiar do século XXI, a fim de compreender como esse povo se relacionou com as iniciativas escolares propostas por missionários (jesuítas e capuchinhos) e pelo Estado (tanto do governo local, quanto central), destacando como atuaram (e seguem atuando) na relação com a instituição escolar; assenta-se em fontes bibliográficas, documentos oficiais do Estado e publicações de intelectuais indígenas. À luz da Nova História Indígena, conclui-se que os kaingang foram agentes ativos em seu processo de escolarização e atuaram de diferentes formas frente à escola: negando-a, interessando-se por ela e negociando possibilidades.

Palavras-chave: Escola kaingang; História da educação indígena; Educação escolar indígena

ABSTRACT

Abstract: This paper presented a historical overview of the Kaingang people schooling processes in the State of Rio Grande do Sul, Brazil, between the mid 19th century and the turn of the 21st century. It analyzed and reflected on the relations between this indigenous group and school initiatives put forth by Jesuit and Capuchin missionaries and by the state across both local and state levels. The article is based on bibliographical sources, official documents and papers written by indigenous scholars. Drawing on a New Indian History perspective, it can be concluded that the Kaingang people were active agents in their schooling processes, displaying agency by rejecting it, engaging with it, and by negotiating possibilities.

Keywords: school inspection; public education; school legislation

RESUMEN

Resumen: El texto presenta un panorama histórico sobre los procesos de escolarización de los Kaingang en el estado de Rio Grande do Sul, Brasil, desde mediados del siglo XIX a comienzos del siglo XXI, buscando comprender cómo ese pueblo indígena se relacionó con las iniciativas escolares propuestas por misionarios (jesuitas y capuchinos) y por el Estado (tanto del gobierno local, como central), destacando cómo actuaron (y siguen actuando) en la relación con la institución escolar. Se basa en fuentes bibliográficas, documentos oficiales del Estado y publicaciones de intelectuales indígenas. A la luz de la Nueva Historia Indígena, se concluye que los Kaingang fueron agentes activos en su proceso de escolarización y actuaron de diferentes formas frente a la escuela: negándose, interesándose por ella y negociando posibilidades.

Palabras clave: escuela kaingang; historia de la educación indígena; educación escolar indígena

Introdução

Este artigo apresenta um panorama histórico sobre os processos de escolarização dos kaingang no Rio Grande do Sul, Brasil, analisando diferentes momentos da relação deste povo com a instituição escolar na história do contato com a sociedade não indígena. Pertencentes à família linguística Jê, atualmente os kaingang estão entre os povos indígenas mais numerosos do território brasileiro, com uma população total de 37.470 pessoas (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2012), sendo que 17.231 vivem no Estado do Rio Grande do Sul (Portal Kaingang, 2018) e são atendidos por 58 escolas (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [INEP], 2017). A partir de pesquisa bibliográfica esta análise tem por objetivo compreender como o povo kaingang se relacionou com as iniciativas escolares propostas por agentes da igreja e do Estado, destacando os modos como os kaingang atuaram (e seguem atuando) na relação com a instituição escolar. O período estudado se estende desde as primeiras iniciativas de missionários jesuítas na década de 1840, passando pela experiência de freis capuchinhos no final do século XIX e no início do século XX e das agências indigenistas oficiais ao longo do século XX, até o período posterior à Constituição Federal de 1988.

Constatamos a escassez de publicações específicas a respeito das experiências de escolarização vividas no passado pelo povo kaingang. Sobre o tema, destaca-se o livro Educação e sociedades tribais de Silvio Coelho dos Santos (1975), em que o antropólogo publica dados da educação escolar indígena entre os povos do sul do Brasil na década de 1970. Outros trabalhos abordam aspectos específicos dessa história ou apresentam sistematizações parciais (Oliveira, 1999; Bergamaschi, 2005; Belfort, 2005; Antunes, 2012; Medeiros, 2012; Bringmann, 2012; Manfroi, 2012; Ferreira, 2014). A escola indígena específica e diferenciada é recente e tem sua origem na Constituição Federal de 1988, que reconheceu aos indígenas o direito à “[...] utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” (Brasil, 1988, art. 210, § 2o). Essa escola se propõe a romper com o modelo anterior, que ficou conhecido como ‘escola para os indígenas’, em favor de uma ‘escola indígena’1. Neste sentido, torna-se relevante conhecer as experiências históricas promovidas a partir de um projeto colonizador e com as quais se busca romper para pensar a escola específica e diferenciada almejada pelos próprios indígenas.

O artigo traça um panorama histórico, analisando aspectos que evidenciam os modos kaingang de se relacionar com as experiências de escolarização, na interface entre a história e a antropologia e fundamentado na Nova História Indígena, perspectiva que tem por objetivo escrever a história dos povos indígenas evidenciando sua agência2, ou seja, suas ações enquanto sujeitos históricos. Compreende a cultura como um processo dinâmico em constante transformação, e os povos indígenas como sociedades que possuem uma trajetória histórica atravessada por processos coloniais, nos quais suas culturas se modificam no contato com o colonizador e determinam suas formas de se relacionar com o outro. Contudo, estas ‘formas’ de relacionar-se com o outro não se limitaram à submissão ou à resistência: os indígenas ora colaboraram com os colonizadores, ora negociaram com os não indígenas, ora apropriaram-se de práticas ocidentais, ora ressignificaram elementos culturais. Em todos os casos atuaram como sujeitos conscientes de suas ações, foram agentes ativos nos processos vividos (Carneiro da Cunha, 1992; Monteiro, 1995; Almeida, 2010).

Nesse sentido, nosso objetivo é apresentar um panorama histórico sobre o processo de escolarização do povo kaingang no Rio Grande do Sul, destacando os modos como atuaram (e seguem atuando) na sua relação com as experiências de escolarização, sejam elas no período da ‘escola para os indígenas’, marcadas por tendências assimilacionistas que visavam apagar suas identidades étnicas, sejam elas no período inaugurado pela Constituição de 1988, que reconheceu aos povos indígenas o direito à diferença e de se manterem indígenas. Para isso, analisamos as iniciativas missionárias no século XIX, que visavam à catequização e à ‘civilização’; as políticas do indigenismo oficial (em alguns casos, ainda aliadas a missões religiosas), que agregaram a esses objetivos o intuito de aldear e nacionalizar os indígenas, além de torná-los trabalhadores rurais; e o momento posterior à Constituição Federal de 1988 em que o Estado brasileiro reconhece a educação escolar indígena como específica e diferenciada, em que os indígenas assumem o protagonismo no seu processo de escolarização.

Para o primeiro momento, analisamos principalmente fontes de autoria do jesuíta Carlos Teschauer, escritas com base em documentos deixados pelos padres que conduziram a missão, além de fontes secundárias que abordam esse período. Em relação à missão capuchinha, examinamos textos publicados pelos freis D’Apremont e Gillonay, que participaram diretamente das iniciativas missionárias. Para as escolas do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) foram encontradas escassas informações: reproduções de relatórios do órgão e relatos de indígenas publicados em trabalhos de pesquisa. Para o período inicial da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), analisamos o trabalho do antropólogo Sílvio Coelho dos Santos e da pesquisadora kaingang Andila Belfort. Em relação ao momento pós-Constituição de 1988, foram considerados documentos legais e a produção bibliográfica de pesquisadores indígenas. Destacamos que os textos escritos por indígenas que narram pesquisas e fatos de suas memórias foram considerados como fontes primárias, visto o ineditismo das mesmas no âmbito da história e da educação, como primeiras vozes indígenas registradas por meio da escrita.

As iniciativas missionárias no século XIX

Os kaingang tradicionalmente ocupavam um território que abrangia espaços desde as bacias hidrográficas do rio Tietê até as bacias do Atlântico Sul, além da província de Misiones, na Argentina (Laroque, 2009a). Os primeiros contatos entre os kaingang e os europeus de que se têm registro nos documentos ocorreram no século XVII, na região do Paraná. No Rio Grande do Sul, os contatos ainda eram intermitentes e os indígenas permaneciam à margem do avanço colonizador ao longo do século XVIII (Becker, 1995). Nesse período, iniciou-se o povoamento europeu no Estado, principalmente de portugueses e luso-brasileiros que rumavam ao sul em busca de gado para abastecer a região mineradora. No final do século, uma frente de expansão avançou sobre os territórios kaingang, consolidando um contato permanente em meados do século XIX. Ervateiros e criadores de gado estabeleceram fazendas; imigrantes alemães e italianos chegaram para colonizar terras anunciadas como ‘virgens’ e ‘devolutas’; o governo provincial iniciou uma política oficial de aldeamentos indígenas; jesuítas foram convocados para liderar projetos de catequese; companhias de bugreiros e de pedestres foram instaladas; estradas começaram a ser abertas (Laroque, 2009b).

No século XIX a política indigenista foi marcada pela ocupação dos territórios indígenas e pelo assimilacionismo. As relações com os indígenas tiveram como principais objetivos apoderar-se de suas terras e criar aldeamentos para concentrá-los em espaços reduzidos, dispondo de sua mão de obra para os estabelecimentos coloniais, mas, principalmente, liberando espaços para a colonização. Esse período também foi marcado pela aproximação de interesses do poder central, dos moradores e dos missionários, o que levou ao aumento do poder local nas questões indígenas. Um exemplo disso foi o Ato Adicional de 1834, que passou às Assembleias Provinciais a responsabilidade de legislarem, cumulativamente à Assembleia Geral, sobre a catequese e ‘civilização’ dos índios. Nesse sentido, o trabalho dos missionários, reintroduzido no Brasil na década de 1840, manteve-se estritamente a serviço do Estado. O Regulamento das Missões (1845), único documento indigenista do Império, definiu que a responsabilidade pela administração dos indígenas seria leiga, no entanto, na prática, ela contou com a participação de missionários. Este documento basicamente prolongou o sistema de aldeamentos do período colonial, que tinha por objetivo cristianizar, civilizar e preparar os índios para o trabalho, no sentido da assimilação completa (Carneiro da Cunha, 1992).

Nesse contexto, alguns grupos kaingang passaram a ser alvo de missões religiosas, principalmente de jesuítas3. Essas missões foram convocadas pelo governo provincial a partir de 1845 para compor a política de aldeamentos, como uma tentativa de mediação no ‘convencimento’ dos índios. Segundo consta em documentos da época, os missionários deveriam trabalhar na sedentarização dos ‘selvagens’, fixando-os a um lugar determinado, ensinando-lhes o respeito à propriedade para que deixassem de atacar os colonos, bem como para ajudar na adaptação ao trabalho, tornando-os economicamente produtivos. Os métodos de catequese e ‘civilização’ dos missionários seriam utilizados com essas finalidades.

Segundo Francisco (2006), apesar do trabalho de ‘civilização’ ter sido a prioridade, catequizar os indígenas sempre foi um objetivo dos padres, e a escola vista como um meio para fazê-lo. As intenções de estabelecer uma escola para os kaingang são explicitadas pelo jesuíta Santiago Penteado, em correspondência ao conde de Caxias, ainda em 1843 (apud Francisco, 2006, p. 184): “Seria, pois, mui conveniente que os Padres Missionários logo estabelecessem uma escola para ensinar os menores a ler e escrever; conservando-os assim separados, conseguirão, com o tempo, que trabalhem também separados”.

A catequese foi desenvolvida pelos jesuítas em três aldeamentos: Nonohay, Guarita e Campo do Meio (Teschauer, 1905). De acordo com Francisco (2006, p. 186), a catequese observou a proposta do padre Penteado, porém havia “[...] muitos pais que não permitiram que seus filhos frequentassem as aulas. Assim, este procedimento de isolamento das crianças não se efetivou da maneira como foi proposto pelos padres, sendo apontado com uma das principais causas da ineficiência da catequese destes índios”.

A análise posterior do trabalho do padre Bernardo Parés, junto aos indígenas de Nonoai, por parte do jesuíta Carlos Teschauer (1918, p. 287), confirma que os indígenas não frequentavam as aulas e nem sequer permaneciam no aldeamento dos padres. Retiravam-se ao mato a procurar alimento e a seus toldos4, onde tinham suas roças “[...] nada se tinha feito em favor dos Missionários nem da catequese e muito menos das aulas que são a esperança de um futuro estável”.

Segundo os missionários, os kaingang não abandonaram seus ‘costumes bárbaros’, como a nudez e a poligamia, o que atestava a dificuldade na conversão e na ‘civilização’. Os padres justificavam a dificuldade enfrentada pela ‘natural preguiça e indolência’ dos nativos e também pela ‘suscetibilidade’, “[...] que obrigava os Missionários a tratá-los com muito respeito e uma falta, um desacerto, dizem eles, teria bastado para dispersar outra vez a todos nos bosques [...] nunca podiam obrigar os meninos de escola à aplicação por meio de castigos; não teriam mais voltado [...]” (Teschauer, 1905, p. 146-147). Outra causa destacada pelo padre Villarrubia, em 1851, e que dificultava a catequese dos kaingang era o desconhecimento da língua dos indígenas, que consideravam muito difícil. Para Francisco (2006, p. 186): “[...] através dos relatos dos missionários e dos diretores de aldeias, podemos perceber que os Kaingang preferiam expressar-se em português com os moradores locais, em vez de ensinar a alguém a sua língua”.

A autora também destaca que os missionários desempenhavam papel importante nas negociações entre os kaingang e os não indígenas com quem estavam envolvidos: o governo provincial, os diretores leigos dos aldeamentos, os fazendeiros da região. Laroque (2009b) apresenta um exemplo de como os jesuítas serviam de intermediários e recebiam as demandas dos indígenas; relata que após uma visita de duas lideranças kaingang a Porto Alegre, a convite do padre Bernardo Parés e do fazendeiro e tenente José Joaquim Oliveira, no processo de negociações com o governo, alguns kaingang mostraram interesse em terem casas como as dos não indígenas, levantar uma igreja semelhante a que viram na capital e também em ter uma escola.

Mesmo assim, o trabalho dos jesuítasnão trouxe os resultados desejados - pelos missionários, pelo governo e pela ação colonizadora como um todo - e encerrou-se em 1852, devido à agência dos kaingang nas relações estabelecidas com os não indígenas. No que se refere à catequese, a insatisfação dos padres deixa clara a rejeição dos indígenas aos ensinamentos religiosos e à manutenção de seus costumes bárbaros. A não frequência às aulas e o retorno às matas também ilustram a negação a seus intentos e a permanência de seu modo de vida. A crítica à ‘suscetibilidade’ indígena evidencia que os missionários não tinham controle total sobre os kaingang e que estes atuavam também pautando suas demandas e, de certa forma, exigindo respeito por parte dos padres. A função dos jesuítas como intermediários nas relações com o governo e com os fazendeiros revela o papel, e porque não, o poder dos indígenas nas negociações. O fato de os kaingang preferirem aprender o português a ensinarem sua língua também pode ser considerado uma evidência nesse sentido. Pode-se afirmar, com isto, que as iniciativas missionárias do século XIX foram mais intentos do que, de fato, experiências de escolarização.

A escola capuchinha no início da República

Nos primeiros anos da República não houve uma política indigenista definida pelo Estado, embora um decreto federal de 1889 tenha determinado que a responsabilidade pelas atividades de catequese e ‘civilização’ dos indígenas correspondia aos Estados. Assim, no começo do século XX, o governo do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR)5 financiou atividades missionárias direcionadas aos kaingang, num evidente desvio ao positivismo ao qual o partido se filiava, que era contrário a qualquer subsídio a atividades religiosas por parte do poder público. Esta colaboração entre Estado e igreja manteve-se somente até o governo desenvolver seu projeto de assistência aos indígenas.

Em 1896, uma missão de capuchinhos franceses chegou no Rio Grande do Sul. Bruno de Gillonnay e Leon de Monsappey se instalaram na zona de colonização italiana com a função de estabelecer as bases para a criação de seminários e escolas aos colonos. Acabaram entrando em contato com os kaingang do Toldo do Faxinal, na região de Lagoa Vermelha, onde viviam os descendentes do cacique Doble, e iniciaram um trabalho de assistência religiosa aos indígenas. Em 1908, Bruno de Gillonay visitou a região para conferir o trabalho dos missionários e, diante da dificuldade dos capuchinhos em atender os indígenas devido à distância entre o toldo e o povoado e à falta de missionários para o trabalho, frei Bruno entendeu que seria necessário empregar um catequista leigo. Em 1909, interveio junto ao governo do Estado, solicitando auxílio para o trabalho de catequese e para a contratação do pretendido catequista. Na oportunidade, encaminhou um relatório (D’Apremont & Gillonay, 1976, p. 73-74) ao presidente do Estado descrevendo os indígenas de Lagoa Vermelha. Apresentou-os como preguiçosos, miseráveis que moravam em palhoças, viviam da caça, da pesca e de roubos e andavam seminus; mas destacou que pareciam inteligentes, mansos e capazes de sujeitar-se ao trabalho regular quando as circunstâncias exigiam. Diante disso, o missionário solicitou recursos para a construção da escola, o fornecimento de sementes e a contratação de um professor.

c) Será necessário nomear um Diretor encarregado dos índios; poderia ter o título de professor público, deveria ter as funções e ser portador de dotes diferentes dos outros professores. Os índios são volúveis, incapazes de uma atenção prolongada. A função do Diretor deveria ocupar-se com a direção, aconselhamento e a encorajar cada família no trabalho da agricultura e no cuidado dos próprios interesses. Em resumo, deveria ser pai destes índios [...].

Como resposta às solicitações, o governo do Estado contratou o professor Ricardo Zeni e abriu um crédito extraordinário sobre o excedente do orçamento da Instrução Pública, a fim de promover a catequese dos índios de Lagoa Vermelha. O documento oficial revelava os propósitos do governo estadual, ao afirmar que às populações indígenas “[...] chegou enfim o tempo de servir, como fonte de trabalho” (D’Apremont & Gillonay, 1976, p. 75). Percebe-se que, apesar do discurso laicizante do PRR, a aliança entre Estado e missionários no projeto de ‘civilização’ dos indígenas teve continuidade (Pezat, 1997). Nesse sentido, os documentos indicam as intenções de tornar os indígenas trabalhadores rurais produtivos, tanto por parte dos missionários quanto por parte do Estado - embora seja possível que os capuchinhos tenham demonstrado este objetivo somente para conquistar o auxílio financeiro desejado, conhecendo as preocupações do poder público para com os indígenas.

A escola iniciou com 40 alunos indígenas matriculados e o projeto ancorava-se na catequização e na alfabetização, articuladas com a aprendizagem para o cultivo da terra, visando a melhoria das condições de vida dos kaingang “[...] pelos seus próprios esforços” (Stawinski, 1976, p. 256). Conforme as palavras dos capuchinhos, a missão rendia os frutos desejados.

Na escola as crianças indígenas aprendiam a ler, escrever, rezar e cantar e no Toldo do Faxinal começaram a aparecer as primeiras roçadas de milho, feijão e batata. Com a introdução da escola, da catequese e do cultivo da terra, os índios sentiam-se mais tranquilos e felizes, pois estavam certos de que o Governo do Estado se interessava por eles (D’Apremont & Gillonay, 1976, p. 253-254).

Por outro lado, a visão de Carlos Torres Gonçalves, chefe da Diretoria de Terras e Colonização6, sobre o trabalho dos padres era um tanto distinta. O diretor era um positivista devoto e, nesse sentido, era contrário à assistência religiosa aos indígenas e acreditava que não deveria haver interferência no estado mental dos indígenas como, por exemplo, por meio da escola. Em 1910 realizou uma visita ao Toldo do Faxinal e em seu relatório criticou o professor Ricardo Zeni, defendendo que ele deveria ser afastado do meio dos indígenas por não estar à altura do papel para o qual fora investido. Quanto ao ensino da leitura - ao qual Torres Gonçalves era contrário - apoiou-se no testemunho do cacique Faustino, que “[...] em meio de uma risada maliciosa [...] disse-me que o cid. Zeni ensinava era a rezar. Como prova, fez, em seguida, um menino de dez anos papaguear um padre-nosso ininteligível. De fato, nenhuma criança vi que lesse alguma coisa” (Relatório da Secretaria de Negócios das Obras Públicas apresentado ao Presidente do Estado do Rio Grande do Sul no ano de 1910, p. 147-157 apud Pezat, 1997, p. 314). Em que pese a contrariedade de Torres Gonçalves, Ricardo Zeni seguiu atuando junto aos indígenas na comunidade.

Em um relatório de 1911, sobre a situação dos kaingang no Toldo do Faxinal, frei Bruno prestou contas sobre a utilização dos recursos despendidos pelo governo, relatando a aquisição de sementes, ferramentas, machados, enxadas, roupas, gramofone, além da construção do prédio escolar e outras casas, auxílios para doentes e o salário do professor (D’Apremont & Gillonnay, 1976). O frei relatou os resultados obtidos.

O índio é inteligente. Os alunos aproveitam visivelmente. Conversei com meninos da escola, que já falam bem claramente o português. Um deles me entregou uma carta de agradecimento escrita de seu próprio punho. Matricularam-se na escola cerca de cinquenta. Mas, não se pode esperar frequência contínua, porque a índole do índio não comporta a estabilidade. Por natureza e por educação ele precisa de mudança, de viagens. Querer obriga-lo à assiduidade seria afastá-lo para sempre. Mas, procurando atraí-lo com conselhos e persuasão, depois de ter dado de vez em quando o seu passeio no mato por alguns dias, ele volta com gosto para a escola. De maneira que, apesar daquela natureza vadia, o índio é capaz de receber, e de fato ele vai recebendo um desenvolvimento intelectual suficiente (D’Apremont & Gillonnay, 1976, p. 255).

É interessante notar que os capuchinhos reconheciam a inteligência e a capacidade dos kaingang, destacando a fluência na língua portuguesa alcançada rapidamente por alguns alunos e seu ‘desenvolvimento intelectual’. Também chama a atenção a compreensão para a necessidade de relativizar a ideia de assiduidade entre os estudantes indígenas, evidenciando que não eram submetidos à força a escolarização, mas decidiam quando lhes convinha ir à escola, não abandonando seus hábitos de fazer excursões ao mato, o que requeria adaptações de parte da escola e do trabalho do professor (Antunes, 2012). Nesse sentido, o relato revela que os kaingang também tinham papel ativo na relação com os missionários, exigindo esforços e negociações da parte destes.

Para nacionalizar os indígenas e transformá-los em trabalhadores rurais, o ensino da língua nacional através da escola era estratégico, ou assim procuravam demonstrar os missionários a fim de seguir recebendo apoio financeiro do governo estadual (Antunes, 2012).

Enquanto o índio não falar a língua dos brasileiros, viverá isolado dos demais da nação. O conhecimento da língua portuguesa é o meio absolutamente necessário, para que ele possa sujeitar-se às leis do país, recorrer à proteção das autoridades etc. [...] Mas, o único meio para introduzir a língua portuguesa na família indígena, é a escola. [...] E vulgarizar a língua portuguesa é um grande passo dado para nacionalizar o índio (D’Apremont & Gillonnay, 1976, p. 256).

A saída encontrada pelo governador do Estado frente à laicização das relações com os indígenas, a partir do decreto federal de criação do Serviço de Proteção aos Índios, conforme apresentamos na sequência, foi de conciliar partidários da catequese leiga e religiosa, mantendo professores leigos e missionários atuando junto aos indígenas. O governador estaria convencido da eficácia dos métodos religiosos e da precariedade de resultados do trabalho leigo, mas queria evitar parecer ostensivamente contrário ao governo federal. A coexistência entre os dois sistemas educativos, contudo, não dissolveu as divergências de opiniões e conflitos em relação aos métodos a serem adotados no trabalho com os indígenas. Em defesa do trabalho capuchinho, D’Apremont comenta: “Nossos catequistas religiosos ensinam aos selvagens: leitura, religião, escrita, agricultura e alguns elementos de artes e ofícios. No programa dos professores leigos, insistia-se particularmente, sobre a música e a dança” (D’Apremont & Gillonay, 1976, p. 76-77).

A colaboração entre os missionários e o Estado começou a ser abalada, principalmente pela retirada dos recursos para a manutenção da missão por parte do novo governo estadual, que assumiu em 1913. No entanto, alguns documentos apontam indícios de que iniciativas de escolarização se mantiveram. Em carta ao bispo de Santa Maria no ano de 1918, frei Bruno de Gillonay escreveu sobre o novo trabalho de catequese junto aos índios, que realizou nos dez meses anteriores em que visitou os 12toldos existentes no Rio Grande do Sul. Segundo o frei, havia duas razões que apontavam a necessidade de criar escolas: o ensino da língua portuguesa e a instrução religiosa aos indígenas. Com a intenção de colocar seu projeto em prática, Bruno de Gillonay decidiu construir uma escola no posto de Ligeiro, único onde o governo estadual não poderia intervir, por ser administrado pelo SPI. O bispo Valverde promoveu uma campanha de arrecadação de fundos e com os recursos recolhidos a escola foi inaugurada em 1920. Ela foi edificada num terreno cedido pelo governo estadual, e um catequista leigo foi contratado como professor (Pezat, 1997). Em outubro do mesmo ano, em carta ao bispo, frei Bruno escreveu sobre o andamento da escola e citou a existência de outra escola no mesmo local, referindo-se à escola do SPI.

O professor Sr. José Gelain [...], durante a semana dá aulas todos os dias. Os seus alunos fazem progressos rápidos em todas as matérias do ensino primário e mormente no estudo da religião. Porém estes alunos não são muito numerosos, por causa da existência de uma aula leiga criada no mesmo estado e regida pelo funcionário federal (Boletim Mensal da Diocese de Santa Maria, ano VIII, n. 10, outubro de 1920, p. 155-157 apud Pezat, 1997, p. 330).

Uma alteração nos limites das dioceses do Rio Grande do Sul, em 1921, afastou os capuchinhos da região ocupada pelos kaingang, interrompendo a atuação missionária junto aos indígenas. No ano seguinte, o bispo Valverde foi transferido para a arquidiocese de Olinda e Recife e os boletins editados por seu sucessor em Santa Maria não fizeram nenhuma referência à catequese indígena, permitindo supor que a missão capuchinha entre os kaingang havia terminado. Um relatório do diretor do posto indígena de Ligeiro, vinculado ao Serviço de Proteção aos Índios, referente ao ano de 1924, mencionou que a escola construída pelos religiosos haviaincendiado naquele ano, aparentemente por acidente, já que ela se encontrava abandonada (Pezat, 1997)7.

Os registros que se têm da missão capuchinha permitem inferir que os kaingang atuavam de acordo com seus interesses quanto à frequência à escola, na medida em que os religiosos admitiam não poder esperar assiduidade. No entanto, os relatos apresentam informações frágeis sobre como ocorreu a relação dos indígenas com a escola. Os indícios de bom aproveitamento por parte dos alunos nos documentos escritos pelos padres precisam ser lidos com cuidado, na medida em que os missionários precisavam permanentemente convencer o poder público da vantagem de seu trabalho, a fim de manter os subsídios. O registro negativo de Torres Gonçalves, a respeito da aquisição da leitura por parte dos kaingang, também requer cautela, pois evidencia acima de tudo as disputas políticas. Seriam necessárias outras fontes históricas que permitissem acessar a agênciakaingang nas relações com a escola dos capuchinhos8.

Indigenismo oficial nos processos de escolarização

O Brasil republicano inaugurou um novo momento no indigenismo oficial, ao criar pela primeira vez um órgão de Estado com a finalidade de estabelecer relações de caráter laico com os povos indígenas. Fundado em 1910, o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, a partir de 1918 seria apenas Serviço de Proteção aos Índios (SPI). O discurso oficial do novo órgão destacava a proteção e a tutela dos índios - em oposição à violência da conquista dos povos indígenas até então. No entanto, segundo Lima (1995), o SPI deu prosseguimento à conquista desses povos, agora sob a forma de poder tutelar, em que eram vistos como incapazes e necessitariam de representantes que administrassem suas vidas. Enquanto aparelho laico, sua principal função era trabalhar na integração dos indígenas - não mais na cristianização ou na ‘civilização’. Integrar significava incluir os indígenas no projeto de nação, transformando-os em trabalhadores economicamente produtivos e desenvolvendo neles um sentimento de nacionalidade.

Nesse sentido, o SPI passou a ser um novo agente nas ações educativas junto aos indígenas, implantando escolas e oficinas em suas sedes construídas nos aldeamentos, agora denominados de postos indígenas. A serviço da integração desses povos à nação brasileira, a escola nas aldeias passou a ocupar papel importante no povoamento de novas regiões, no processo civilizatório e na transformação dos indígenas em trabalhadores rurais. As escolas do Serviço podiam ser desde um prédio até algum tipo de organização, limitada frequentemente a uma professora, em geral a esposa do chefe do posto. Nessas escolas se ministravam “[...] as primeiras letras, em outros casos passando pelo ensino agrícola e até o de numerosos ofícios” (Lima, 1995, p. 190). O ensino do civismo também era uma prioridade, como se pode perceber em fotos da época de salas de aula com um mapa do Brasil ao fundo e de alunos perfilados em frente à bandeira nacional. Embora estivessem localizadas dentro dos postos indígenas, os moradores não índios das proximidades também podiam estudar nelas. Vistos, perante os administradores estatais, como grupos em estado avançado de assimilação à sociedade nacional, os kaingang do Rio Grande do Sul foram alvo deste tipo de projeto que se destinava à transformação dos indígenas em trabalhadores nacionais.

Num primeiro momento, no Rio Grande do Sul, o Serviço assumiu apenas a administração de Ligeiro. Trechos de relatórios de funcionários do SPI, publicados por Pezat (1997), revelam alguns dados a respeito da escola. No ano de 1924, o encarregado do posto registrou que a frequência à escola era reduzida, pois os pais desencorajavam os filhos. No mesmo ano, Alípio Bandeira, quadro importante do SPI, visitou a povoação de Ligeiro e também constatou o mesmo problema, explicando que isso se devia ao fato de que a frequência não era obrigatória. Em um relatório de 1926, o diretor de Ligeiro escreveu que os alunos indígenas eram minoria, comparados às crianças não indígenas que viviam nas proximidades. A partir destas informações, fica evidente que os indígenas pouco frequentavam a escola e, independente do motivo alegado pelo SPI, supomos que pudesse haver uma recusa dos kaingang à instituição.

A ação do SPI em prol da escolarização kaingang se intensificou no Rio Grande do Sul na década de 1940, quando os toldos de Guarita, Nonoai e Cacique Doble, que eram administrados pelo Estado, foram assumidos pelo SPI e transformados em postos. Bringmann (2012) apresenta algumas informações sobre a escola de Nonoai em sua pesquisa. O relatório de 1942, escrito pelo chefe do Posto, registra a construção da escola e a existência de aulas práticas de agricultura. Para o ano de 1943 a escola contava com 56 alunos, dos quais 44 eram índios. No ano seguinte, a escola criou um clube agrícola, denominado de ‘13 de Maio’, representando uma iniciativa pioneira de um posto indígena. Já em 1958, a escola encontrava-se praticamente abandonada, pois possuía somente 22 alunos matriculados, a maioria dos quais não era indígena. De acordo com Bringmann (2012), estes números se explicam provavelmente pela situação conflituosa em que viviam os kaingang de Nonoai nesta época, em função da invasão da área por intrusos e arrendatários. A infrequência, seja resultado do atrito com os invasores não indígenas, seja por outro motivo, era uma realidade no ano de 1958: ou os kaingang negavam-se a ir à escola, ou foram alijados dela pela opressão colonizadora.

Em relação à escola de Guarita, foram encontradas algumas informações registradas por pesquisadores kaingang. Zaqueu Claudino (2013) apresenta relato de seu pai sobre a obrigatoriedade de falar a língua portuguesa na escola - podendo resultar em castigos caso o aluno não o fizesse. Cabe destacar que, apesar desta proibição e da violência à língua kaingang sofrida por décadas, os kaingang seguem ainda hoje falando seu idioma originário9. Bruno Ferreira (2014, p. 49), pesquisador kaingang, registra que “[...] na escola, as crianças aprendiam a escrever o seu nome e então já eram obrigadas a ir aos serviços [...]” nas lavouras de milho e soja onde os indígenas trabalhavam de segunda a sábado. De acordo com este relato, a escola não parecia ser a prioridade, mas o trabalho rural. Sobre a escola de Cacique Doble não foram localizados dados em bibliografia. De modo geral, é possível perceber que há poucas informações publicadas a respeito das escolas do SPI entre os kaingang do Rio Grande do Sul.

No período de atuação do SPI, os kaingang tiveram também outras experiências de escolarização. Um exemplo foi a escola primária inaugurada pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) junto ao posto indígena Guarita (Luckmann, 2011). Esta iniciativa indica que, apesar do discurso laico, o Serviçoatuou em colaboração com grupos religiosos. De acordo com Matte (2009), os indígenas também passaram a ter acesso a escolas públicas e particulares não indígenas, próximas de suas comunidades e cita como exemplo o Internato Rural Pedro Maciel, no município de Ijuí, que, no final dos anos 1950 e na década de 1960, recebeu crianças kaingang, principalmente das comunidades de Inhacorá e Votouro. Irani Miguel (2015), pesquisador kaingang, apresenta relato de um senhor que quando criança foi levado à força de sua comunidade em Inhacorá para este internato. O governo estadual possivelmente também manteve escolas junto aos toldos indígenas.

Em 1967, em um contexto de crise do indigenismo oficial por acusações de maus tratos aos indígenas, corrupção e ineficiência administrativa, o SPI foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que manteve a mesma política indigenista de integração, ao passo que o Estado se expandia Brasil adentro, expulsando os indígenas de suas terras e concentrando-os em reservas. Nesse sentido, a escola continuou exercendo a função de civilizar e integrar os indígenas à nação, principalmente com vistas a formar trabalhadores para o país (Carneiro da Cunha, 1992; Lima, 1995; Bergamaschi, 2005).

Ainda neste contexto, em 1970, a Funai pôs em funcionamento o primeiro curso de formação de monitores bilíngues do país, Projeto Escola Normal Indígena Clara Camarão, que serviu de referência para a criação de cursos semelhantes e para a introdução do ensino bilíngue em escolas indígenas de outras regiões do país (Santos, 1975). A experiência foi realizada em parceria com o Summer Institute of Linguistics (SIL), com apoio da IECLB que já mantinha uma escola em Guarita. O curso formou três turmas de monitores bilíngues kaingang e Guaranino Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná até o ano de 1980, totalizando 53 monitores formados, sendo a maioria pertencente ao povo kaingang.

Sob a perspectiva da tutela, a Funai simplesmente ordenou que os jovens indígenas ingressassem no curso, sem consultar os alunos ou os pais sobre seu interesse. De acordo com o depoimento de ex-alunas do curso, que funcionava em regime de internato, este foi marcado por um forte caráter religioso, bem como pelo rigor disciplinar e punições que desrespeitavam profundamente os modos de vida kaingang. Contudo, isso não impediu que os alunos desenvolvessem estratégias para escapar à vigilância da direção, sendo ilustrativo o caso de uma ex-aluna que relatou saídas furtivas do internato para participar de reuniões com as lideranças de Guarita (Antunes, 2012).

Buscando realizar o propósito que levou à formação de monitores indígenas, o de facilitar a alfabetização das crianças indígenas na língua portuguesa, a Funai contratou a primeira turma de monitores formados, que passaram a atuar em escolas kaingang e guarani da região Sul a partir de 1972. A metodologia do SIL consistia na prática de um ‘bilinguismo de transição’ (D’Angelis, 2017), no qual a alfabetização na língua indígena servia de base para a alfabetização e adoção da língua portuguesa, visando ao progressivo abandono das línguas nativas. Mas, em que pese os intentos assimilacionistas do órgão indigenista, ao longo do tempo muitos monitores passaram a trabalhar orientados para o fortalecimento da língua originária.

Santos (1975), ao pesquisar sobre a oferta de escola para indígenas entre 1973 e 1974, identificou 28 instituições, situadas nos 19 postos da região Sul do país. Nessas escolas atuavam 16 monitores bilíngues. Do total de 1.646 alunos matriculados nos postos pesquisados, 457 (27,7%) estavam matriculados nos sete postos do Rio Grande do Sul (Antunes, 2012). Santos relata que, com exceção das escolas onde atuavam monitores indígenas, no geral a escola funcionava de acordo com o padrão das escolas não indígenas, tanto no que diz respeito aos materiais didáticos, ao currículo, ao calendário e aos horários rígidos, quanto ao ensino monolíngue ministrado por professores não indígenas, configurando um quadro onde a evasão e a repetência eram comuns. Santos (1975) e Belfort (2005) destacam que, apesar das dificuldades representadas pelo preconceito, por discriminações e desconfianças, os monitores passaram a ter muito mais sucesso na alfabetização das crianças que os professores não indígenas.

Embora o curso intencionasse a formação dos monitores para atuarem como auxiliares na escolarização das crianças indígenas com o propósito de modificar seus modos de vida, integrando-as à ‘comunhão nacional’, muitos deles encontraram nessa formação um espaço de valorização da língua indígena. De acordo com Bergamaschi (2006, p. 184), naquele momento a Funai “[...] não apostou nos índios como professores. Mesmo assim, o efeito foi de potencialização do idioma originário, fortalecendo lideranças jovens [...]”. Andila Belfort assevera que a contratação dos monitores pela Funai, ao longo do tempo, também possibilitou o despertar para os limites do ensino ministrado nas escolas indígenas: se por um lado contribuíam para a valorização da língua indígena, por outro perceberam que o modelo de escola no qual atuavam os colocava “[...] a serviço da desintegração cultural [...]” de seu povo (Belfort, 2005, p. 13). Ainda que ao longo de quase todo o século XX, as escolas das agências indigenistas do Estado tenham trabalhado para a integração dos kaingang à sociedade nacional, é possível constatar que os indígenas mantiveram papel ativo nesta relação, seja pela infrequência das primeiras décadas, seja pelas estratégias encontradas para a valorização de sua língua nos anos 1970 e 1980.

A escola indígena específica e diferenciada: ‘kainganguizando’10 a escola

Na década de 1970, emergiu um movimento de luta pela demarcação das terras indígenas e pelo reconhecimento e preservação das diferenças étnicas. Inserida nesse movimento, a educação escolar indígena passou a ser debatida. Na década seguinte, organizações indígenas, ONGs, universidades e setores da igreja, começaram a desenvolver projetos de educação escolar em territórios indígenas diferentes do modelo da Funai, bem como a promover encontros e discussões que sistematizaram muito do que viria a ser contemplado, posteriormente, na legislação específica referente à escola indígena (Ferreira, 2001). Foi esse momento de intensos debates, ao final da ditadura civil-militar, que possibilitou a atuação dos indígenas na Assembleia Constituinte e abriu uma nova fase também para a educação escolar indígena, com a aprovação da Constituição Federal de 1988. O direito à diferença pôs fim, pelo menos oficialmente, à política integracionista do Estado, garantindo legalmente aos povos indígenas o respeito à organização social própria, costumes, línguas, crenças e tradições. Também foi garantido aos indígenas o direito a uma escola específica e diferenciada, ao reconhecer o uso de suas línguas maternas e seus processos próprios de aprendizagem (Brasil, 1988, art. 231 e 210).

A nova Constituição abriu caminho para a construção de outros referenciais legais relativos à educação escolar indígena11, determinando que a escola deve ser comunitária, bilíngue/multilíngue, intercultural, territorializada, específica e diferenciada. Às comunidades indígenas deve ser assegurada autonomia quanto às propostas pedagógicas e ao uso dos recursos financeiros da escola. A escola é pensada para ser bilíngue/multilíngue, porque deve ensinar o português, para possibilitar o diálogo com o mundo nãoindígena, mas, principalmente, a(s) língua(s) indígena(s) da comunidade, fundamental para a sua reprodução cultural. O princípio da interculturalidade é entendido nesse mesmo sentido: a escola deve promover o reconhecimento e a manutenção da diversidade cultural e linguística de sua comunidade, além de uma situação de comunicação com a sociedade não indígena. Esta escola é territorializada em função da forte ligação dos povos indígenas com o seu território e porque ela está construída em terras indígenas, com possibilidades de adequar-se à política dos territórios etnoeducacionais. Ela é específica e diferenciada, por ser concebida e planejada como reflexo das aspirações e necessidades particulares de cada povo e cada comunidade indígena.

Conforme mencionado acima, o povo kaingang acompanhou o movimento nacional de tomada da escola para si. Sendo assim, no começo da década de 1990, os professores kaingang passaram a ocupar espaços de participação criados pela Secretaria da Educação na coordenação das ações de educação escolar indígena, como a Comissão de Educação Indígena e o Núcleo de Educação Indígena. Também nesse período, as lideranças indígenas ampliaram sua participação e intervenção na educação escolar e, em especial, na formação de professores bilíngues, através da criação da Associação dos Professores Bilíngues Kaingang e Guarani (APBKG), em 1991, com o propósito de ser um “[...] instrumento de luta pela oferta e garantia do ensino diferenciado e de qualidade” para os povos indígenas (Belfort, 2005, p. 16).

Segundo Bruno Ferreira (2014, p. 24), um dos fundadores da APBKG,

[...] a associação de professores propiciou nossa organização para pensar uma educação escolar que possibilitasse manter o povo Kaingang com suas diferenças e especificidades, sem, contudo, deixar de acessar os conhecimentos não indígenas. Visamos, dessa forma, a construir uma escola que contribua para promover um processo educativo fundado nas práticas, conhecimentos e valores culturais; que oriente a apropriação crítica de bens e recursos tecnológicos externos e que esteja voltado para o desenvolvimento de respostas condizentes aos desafios contemporâneos e futuros, colocados pelas relações com outras sociedades [...].

A professora e pesquisadora kaingang Maria Inês Freitas comenta que a associação “[...] teve função determinante nas discussões propostas para a educação escolar indígena, especialmente na formação de professores [...]”, atuando na promoção do primeiro curso de formação de professores bilíngues de ensino médio no Rio Grande do Sul em 1993, Curso Supletivo de Formação de Professores Indígenas Bilíngues - segundo grau - habilitação magistério, que formou 22 professores kaingang (Freitas, 2009). A APBKG também atuou na organização de novo curso de formação de professores bilíngues na década de 2000, o Vãfy12 - Curso de Formação de Professores Kaingang ou Guarani para o Magistério em Educação Escolar Indígena - anos iniciais do ensino fundamental, tendo formado cerca de 80 professores kaingang.

No começo dos anos 2000, os professores kaingang reuniram-se em encontros estaduais de formação promovidos pela Secretaria da Educação para a construção coletiva do projeto político-pedagógico e do regimento escolar de suas escolas. Essas ações se inscreveram num processo de construção participativa de diretrizes político-pedagógicas das escolas através da Constituinte Escolar, programa de referência que orientava as políticas de educação no Estado na gestão de 1999-2002. Um resultado importante dessas ações foi, além de fortalecer a presença de professores kaingang nas escolas, a criação de currículos próprios, sendo que a maioria deles incluiu disciplinas diferenciadas que envolvem o universo cultural kaingang como, por exemplo, técnicas agrícolas, artesanato, valores culturais e língua kaingang.

Nesse mesmo período, as escolas em funcionamento no Estado passaram a ser rebatizadas pelas comunidades indígenas, substituindo antigos nomes, que referenciavam personalidades políticas sem identidade com as comunidades, por nomes de lideranças ou expressões indígenas. Como exemplo, podemos citar a Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Davi Rygjo Fernandes, que na sua fundação chamava-se Escola Indígena Marechal Rondon. O novo nome faz referência a um antigo kujã (xamã) que teria sido o primeiro morador da localidade onde a escola está situada. Ou seja, a partir do fim da tutela estatal, os kaingang passaram tanto a ocupar, quanto a criar espaços de atuação para a construção de uma escola própria, quer seja assumindo papéis de representação na condução da política pública de educação escolar indígena, quer atuando na formação de seus próprios professores, bem como na construção dos currículos e projetos pedagógicos de suas escolas.

Outro ponto a ser destacado está no interesse que a população kaingang passou a mostrar também pelo ensino superior. A busca de formação nesse nível de ensino por parte dos kaingang remonta à década de 1990, quando os primeiros indígenas ingressaram na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ) por meio de convênio com a Funai. Outras instituições de ensino superior de cunho comunitário também passaram a receber estudantes indígenas, como a Universidade de Passo Fundo (UPF) e a Universidade Regional Integrada (URI). O Programa Universidade para Todos (PROUNI), a partir de 2004, ampliou as possibilidades para estudantes indígenas estudarem em instituições privadas. Em 2008, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Universidade Federal de Santa Maria se anteciparam à lei de cotas (lei 12.711/2012) e criaram vagas especiais para estudantes indígenas por meio de programas de ações afirmativas.

Uma iniciativa inovadora no ensino superior surgiu com o Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Indígenas, PROLIND, coordenado pelo Ministério da Educação (MEC). Esta ação teve forte impacto na formação de professores indígenas em todo o país e, em especial, para os kaingang da região Sul, com a criação da Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 2011. Além da formação inicial, os kaingang passaram a buscar também a pós-graduação. Entre 2011 e 2012, a UFRGS promoveu o PROEJA INDÍGENA - Curso de Especialização em Educação Profissional Integrada à Educação Básica na Modalidade de Jovens Adultos - Proposta Diferenciada para Indígenas, formando 19 especialistas kaingang. No âmbito strictu sensu, cinco kaingang já possuem o título de mestre pela UFRGS, quatro deles em educação.

Desde 2013, a Ação Saberes Indígenas na Escola, programa de abrangência nacional do MEC, executado no Estado do Rio Grande do Sul, pela UFRGS, vem dando importante contribuição à formação continuada dos professores kaingang. Desenvolvido com um forte protagonismo dos professores indígenas, o programa associa a construção de materiais didáticos à pesquisa, contribuindo para qualificar as escolas kaingang no Estado. A formação inicial de professores kaingang também ganhou importante reforço a partir de 2014, com a inauguração do Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo Manhká Miguel, na terra indígena kaingang Inhacorá, município de São Valério do Sul, com oferta regular de vagas para o curso de magistério indígena.

Desde 2001, a Secretaria de Estado da Educação do Rio Grande do Sul passou a realizar concursos com vagas e provas específicas para professores indígenas, o que vem possibilitando que um número significativo de professores kaingang ingresse na carreira do magistério estadual, embora grande parte das vagas de professores indígenas ainda seja preenchida por contratos temporários. O ingresso desses professores na carreira da rede estadual possibilitou também que indígenas ocupem cargos de gestão das escolas, que contam atualmente com sete diretores e três vice-diretores kaingang.

Esses movimentos são indícios fortes da crescente agência do povo kaingang na relação com a escola e na efetiva transformação dessa instituição conduzida pelos próprios indígenas.Embora apareça um constante questionamento dos kaingang em relação ao papel da escola atual em suas comunidades e de tudo o que ainda é preciso mudar, há também a crença de que a presença da escola é necessária e que ela deve ser cada vez mais por eles apropriada para, de fato, se tornar específica e diferenciada e, quiçá, uma instituição kaingang, num processo que podemos denominar ‘kainganguizando’ a escola.

Considerações finais

Embora ainda haja muito a aprofundar nos estudos sobre a história de escolarização entre os kaingang no Rio Grande do Sul, os dados obtidos até o momento permitem tecer um panorama histórico desses processos e afirmar que os indígenas foram agentes ativos nas relações com a instituição escolar. Os kaingang atuaram de diferentes formas frente à escola: negando-a, interessando-se por ela, negociando possibilidades. Tanto a escola missionária quanto a escola estatal não atingiram os objetivos que tinham de fazer com que os kaingang deixassem de ser indígenas e abandonassem seu modo de vida, transformando-os seja em ‘cristãos’, em ‘civilizados’ ou em ‘trabalhadores nacionais’.

Nesse sentido, destacamos que a ‘escola para os indígenas’, com currículo e práticas protagonizadas pelos não indígenas, à qual nos referimos no começo do texto, abriga uma multiplicidade de iniciativas, missionárias e do Estado. Ainda que de cunho colonizador, estas, muitas vezes, tiveram que se adaptar aos modos e interesses indígenas como, por exemplo, convivendo com a infrequência dos estudantes, buscando perfis diferenciados de professores para trabalharem nessas escolas ou formando monitores bilíngues. Nas últimas décadas, nesta escola que passou a ser reconhecida como ‘dos indígenas’, viu-se uma forte atuação política dos kaingang no movimento pela educação específica e diferenciada. Uma perspectiva teórica, dada pela Nova História Indígena, permite reconhecer que os kaingang foram agentes ativos em seu processo de escolarização e, igualmente, possibilita reconhecer suas ações como sujeitos históricos que são. Esta perspectiva reforça e amplia as possibilidades de sonhar e construir a escola desejada. São movimentos que apontam um novo momento histórico na escolarização kaingang, marcado, talvez, por um processo de kainganguização da escola, em que eles próprios vêm tomando as rédeas da educação escolar, buscando apropriar-se desta instituição de modo que possa fortalecer o seu povo.

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1 Estes termos têm origem na distinção que Bartomeu Melià (1979) fez entre ‘educação indígena’ e ‘educação para o índio’. Conforme o autor, a primeira é a educação como socialização integrante, que ocorre na coletividade e conta com momentos, materiais e recursos específicos para formar a pessoa enquanto indivíduo de uma comunidade determinada. A segunda, é a educação escolar imposta aos indígenas com base nos padrões europeus com o objetivo de civilizá-los e assimilá-los, processo que motivou o pesquisador a cunhar esta diferenciação, marcada por uma preocupação de que a educação tradicional dos povos originários fosse substituída ou perdesse espaço para a ‘educação para o índio’ que ocorria em territórios indígenas. Atualmente, a figura da ‘escola indígena’, protagonizada pelos povos indígenas, é frequentemente afirmada como alternativa à ‘escola para os indígenas’, que corresponde ao que Meliá denominou ‘educação para o índio’ (Bergamaschi & Silva, 2007).

2A noção de agência procede do inglês, agency, e pode ser traduzida como ‘ação consciente’ (Monteiro, 2001).

3Os kaingang tiveram contato com a catequese jesuítica ainda no século XVII nas reduções do Guairá (Veiga, 2006). Depois de sua expulsão em 1759, jesuítas vindos da Argentina se estabeleceram no Brasil no período de 1845 a 1867, quando foram oportunamente aproveitados pelo governo estadual (Laroque, 2009a).

4Para o contexto do Rio Grande do Sul, a expressão ‘toldo’ encontrada nos documentos do século XIX, refere-se às aldeias tradicionais ocupadas por indígenas,em oposição aos aldeamentos que buscavam ser criados pelo Estado. No início do século XX, quando o Estado do Rio Grande do Sul começa a demarcar as terras indígenas, estas passam a ser denominadas oficialmente de toldos. Quando o Serviço de Proteção aos Índios ingressa no Estado e assume a administração de algumas dessas terras reservadas, passa a denominá-las de postos, assim havendo a distinção entre as reservas controladas pelo governo estadual (toldos) e pelo governo federal (postos).

5Fundado em Porto Alegre, em 1882, o PRR defendia o regime republicano e um governo federativo, presidencial e temporal. Profundamente marcado pela filosofia positivista de Augusto Comte, o PRR defendia uma política laica de proteção aos indígenas em que deveriam ter garantida a posse de seu território e ser incorporados ao convívio nacional (Pezat, 1997).

6A Diretoria de Terras e Colonização foi criada em 1907 para regulamentar a distribuição de terras aos colonos, assim como para fiscalizar as ações das companhias de colonização e controlar os conflitos no campo. Ela estava organizada em comissões que tinham como principal função organizar a distribuição de lotes e informar sobre a possibilidade de abertura de novas colônias em áreas que tinham forte presença indígena e, portanto, conflitos entre indígenas e colonizadores. Assim, coube à esta diretoria resolver esses assuntos, sendo uma das formas a demarcação de terras para os indígenas (Bringmann, 2012).

7O incêndio também é referido pelo frei Stawinski (1976, p. 257-258), porém como crime: “Mal, porém, os indiozinhos começaram a receber o primeiro banho de civilização e evangelização, mãos criminosas, talvez em nome de uma liberdade mal-entendida, atearam fogo à escola e à moradia do professor, reduzindo tudo a cinza”.

8Missionários luteranos também atuaram junto aos kaingang em áreas de colonização alemã no norte do Estado a partir de 1900. Chegaram a receber auxílio do governo do Estado, mas em 1904 começaram a enfrentar obstáculos, que os levaram a encerrar a missão (Laroque, 2009a).

9Estimativas da Secretaria da Educação do Estado do Rio Grande do Sul relativas a 2018 apontam que 30% dos alunos das escolas kaingang têm a língua originária como primeira e única até ingressarem na escola; 40% dos alunos já chegam à escola bilíngues (kaingang e português); os demais são falantes apenas do português e, em geral, adquirem na escola a língua indígena.

10Termo usado por Rosa (2013, p. 116), ao expressar que o propósito da escola específica e diferenciada do povo kaingang será alcançado pela atuação dos próprios kaingang ao construir um currículo “[...] através da conexão epistemológica entre cosmologia e ritual, oralidade e escrita, floresta e escola”.

11Entre os quais, destacamos: o decreto 26/1991, que transfere da Funai para o Ministério da Educação a coordenação das ações de educação escolar indígena e sua execução às secretarias estaduais e municipais de educação; as Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, de 1993; o parecer CNE/CEB 14/1999 e a resolução CNE/CEB 03/1999, que estabelecem diretrizes curriculares e de funcionamento das escolas indígenas, respectivamente; o decreto 6.861/2009 que estabelece a organização da educação escolar indígena em territórios etnoeducacionais; e o parecer CNE/CEB 13/2012 e a resolução CNE/CEB 05/2012 que determinam as novas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena.

12Vãfy significa artesanato no idioma kaingang.

Recebido: 18 de Janeiro de 2019; Aceito: 24 de Novembro de 2019

*Autor para correspondência. E-mail:cida.bergamaschi@gmail.com

Maria Aparecida Bergamaschi possui pós-doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, professora associada na Faculdade de Educação e no Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Integra a coordenação do Núcleo UFRGS na Ação Saberes Indígenas na Escolas (MEC). Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq) PEABIRU: Educação ameríndia e interculturalidade. E-mail: cida.bergamaschi@gmail.com

Cláudia Pereira Antunes é técnica em Assuntos Educacionais com atuação na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre e Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Grupo de Pesquisa Peabiru Educação Ameríndia e Interculturalidade (CNPq), (FACED/UFRGS). E-mail: claudia.antunes.poa@gmail.com

Juliana Schneider Medeiros é doutoranda em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestra em Educação (2012) e Licenciada em História (2007) pela mesma universidade. É professora em uma escola indígena da rede pública estadual no Rio Grande do Sul. Integra a equipe do Núcleo UFRGS na Ação Saberes Indígenas na Escolas (MEC). Participa do Grupo de pesquisa (CNPq/UFRGS) PEABIRU: Educação ameríndia e interculturalidade. E-mail: jusmedeiros@yahoo.com.br

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