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Revista Brasileira de História da Educação

versão impressa ISSN 1519-5902versão On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.20  Maringá  2020  Epub 01-Ago-2020

https://doi.org/10.4025/rbhe.v20.2020.e134 

ARTIGO ORIGINAL

Atuação do Movimento Estudantil da Universidade Federal de Alagoas no processo de redemocratização do Brasil

Action of the Student Movement of the Alagoas Federal University in the democratization process in Brazil

Acción del Movimiento Estudiantil de la Universidad Federal de Alagoas en el proceso de redemocratización de Brasil

Regina Couto da Costa1  * 
http://orcid.org/0000-0001-6180-7017

Laís de Miranda Crispim Costa2 

1Secretaria Municipal de Saúde, João Pessoa, PB, Brasil.

2Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL, Brasil.


Resumo:

Este artigo analisa a atuação do Movimento Estudantil (ME) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) ao final da década de 1970, início do processo de redemocratização do Brasil, sob a ótica de Pierre Bourdieu. Foram utilizados como fontes os depoimentos orais de estudantes do curso de graduação em enfermagem que participaram do ME/UFAL naquele período e a produção bibliográfica sobre a história do ME no Brasil e em Alagoas. Para análise dos dados utilizou-se o método histórico, triangulando uma discussão entre as fontes orais e escritas e com o referencial teórico adotado. Com isso, denotou-se que o ME organizado pela UFAL, pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE), teve relevante atuação na reconstrução do ME dentro e fora do campo da educação, bem como no cenário nacional.

Palavras-chave: atitude dos estudantes; conscientização política; história da educação

Abstract:

This article analyzes the performance of the Student Movement (SM) of the Federal University of Alagoas (FUAL) in the late 1970s, beginning of the process of redemocratization of Brazil, from the perspective of Pierre Bourdieu. The following were used asoral statements from undergraduate Nursing students who participated in the FUAL SM during this period and the bibliographic production on the history of SM in Brazil and Alagoas. For data analysis we used the historical method, triangulating a discussion between oral and written sources and the adopted theoretical framework. With this, it was noted that the FUAL organized SM, through the Central Student Directory (CSD), had a relevant role in the reconstruction of the SM inside and outside the field of education, as well as in the national scenario.

Keywords: student attitude; political awareness; history of education

Resumen:

Este artículo analiza el desempeño del Movimiento Estudiantil (ME) de la Universidad Federal de Alagoas (UFAL) a fines de la década de 1970, comenzando el proceso de redemocratización de Brasil, desde la perspectiva de Pierre Bourdieu. Los testimonios orales de los estudiantes de posgrado de enfermería que participarán en UFAL ME durante este período y la producción bibliográfica sobre la Historia de ME en Brasil y Alagoas se utilizarán como fuentes. Para el análisis de datos usamos el método histórico, triangulando una discusión entre fuentes orales y escritas y el marco teórico adoptado. Por lo tanto, se puede ver que el ME organizado por UFAL, a través de la Dirección Central de Estudiantes (DCE), jugó un papel relevante en la reconstrucción del ME dentro y fuera del campo de la educación, así como en el escenario nacional.

Palabras clave: actitud del estudiante; conciencia política; historia de la educácion

Introdução

O Movimento Estudantil (ME) caracteriza-se como um movimento social tradicional (Dal Ri, 2009), de caráter transitório, que consiste na organização de um grupo da sociedade (os estudantes) a partir de um locus, seja a escola ou a universidade. Diferentemente da grande maioria dos movimentos sociais, esse grupo não configura uma classe social, mas uma categoria social com demandas específicas e gerais dentro de um mesmo local (Rodrigues, 2007), adquirindo com isso a característica policlassista, marcado por heterogeneidade na sua formação e organização a depender do local, da época e das forças que nele atuam e discutindo sobre essa pluralidade do movimento, Mesquita (2003) o denomina de Movimentos Estudantis, no plural.

Por definição, o ME tem como principais reivindicações pautas relacionadas à educação. No entanto, historicamente este movimento tem pautado discussões para além daquelas ligadas exclusivamente à academia, atuando ao lado dos demais movimentos sociais em lutas políticas de outros setores da sociedade. No Brasil, em muitos momentos históricos, o ME foi um importante ator social de mobilização (Ferraro & Dal Ri, 2014).

Sob estas perspectivas, este artigo tem como objetivo analisar a atuação do Movimento Estudantil da Universidade Federal de Alagoas ao final da década de 1970, configurado pela reconstrução e reorganização dos movimentos sociais que marcaram o processo de redemocratização brasileiro. Para desembocar nesse contexto sociopolítico, a princípio buscou-se resgatar brevemente a trajetória de lutas do Movimento Estudantil no Brasil e em Alagoas desde a criação da União Nacional dos Estudantes (UNE).

Metodologia

Trata-se de um estudo qualitativo, de caráter histórico-social, que consiste na investigação de fatos e/ou eventos passados, marcados pelo contexto cultural específico de cada época, adequado ao objeto do estudo (Marconi & Lakatos, 2010), pois “[...] os estudos de natureza sócio-histórica, compreendem o estudo dos grupos humanos no seu espaço temporal e preocupa-se em discutir os variados aspectos do cotidiano das diferentes classes e grupos sociais” (Padilha & Borenstein, 2005, p. 576-577). Na mesma perspectiva, Prost (2014) afirma que a história social leva em consideração o universo das práticas sociais concretas e o das representações, criações simbólicas, rituais, costumes e atitudes diante da vida e do mundo.

Este estudo é resultado de ampla pesquisa que investigou a gênese do Movimento Estudantil de Enfermagem em Alagoas; foram utilizados como fontes diretas os depoimentos orais resultantes da transcrição de quatro entrevistas realizadas com representantes do curso de graduação em enfermagem que citaram diretamente a atuação do ME/UFAL no período inicial de retomada e reconstrução das entidades estudantis, ainda sob o regime ditatorial, apresentados no Quadro 1.

Quadro 1 Pessoas entrevistadas para esta pesquisa. 

Fonte: As autoras.

As entrevistas foram do tipo semiestruturada, realizadas no período de maio a agosto de 2019, fazendo uso da metodologia de história oral temática. A história oral é considerada uma metodologia de pesquisa que visa a composição de fontes para o estudo da história contemporânea, a qual se concretiza a partir da realização de entrevistas com pessoas que vivenciaram/participaram/testemunharam um determinado fato/fenômeno (Alberti, 2014). No roteiro pré-elaborado os depoentes foram indagados sobre como se deu sua inserção na UFAL, bem como sobre sua participação no ME.

As fontes indiretas consultadas, por sua vez, foram as publicações acerca da História do Movimento Estudantil no Brasil e em Alagoas. Tal classificação para fontes históricas é proposta por Barros (2012), considerando a posição destas em relação ao processo histórico ao qual se refere. Podendo, assim, ser direta, na qual a informação produzida chega sem intermédios e indireta, quando o fato histórico é informado passando por um intermediário ou mais.

Todas as fontes têm historicidade. Neste sentido, o historiador precisa entender o contexto de produção das fontes e compreender que determinadas imprecisões podem demonstrar os interesses de quem as produziu. Deste modo, o processo de análise dos dados não pode prescindir da realização de uma crítica externa e interna das fontes. Assim, as fontes escritas foram analisadas conforme tais critérios da crítica documental e as fontes orais, depois de transcritas, foram lidas exaustivamente e com base na interpretação dos achados foram elaborados textos explicativos do fenômeno estudado. Portanto, a análise foi realizada em consonância com o método histórico, triangulando uma discussão entre as fontes orais e escritas e com o referencial teórico adotado, tal como proposto por Cardoso e Vainfas (1997).

Propôs-se trabalhar com o referencial teórico de Pierre Bourdieu, tendo em vista que suas análises sobre a sociologia da educação e da cultura resultam em conceitos e reflexões sobre as relações entre atores sociais em determinado lugar e momento, considerando a dimensão histórica dos fenômenos. Ao analisar tais redes de relações entre os atores sociais, as diferentes posições que ocupam e os conflitos e tensões existentes em dado espaço social, Bourdieu denota uma lógica própria de organização nestes espaços e os denomina de ‘campo’. Com esse conceito, o autor apresenta uma perspectiva relacional do mundo social (Bourdieu, 1996). A partir deste entendimento, nesta pesquisa, a Universidade Federal está circunscrita no campo da educação.

O estudo foi desenvolvido conforme a Resolução CNS nº 466 (2012), que estabelece normas para pesquisas envolvendo seres humanos, visando proteção e integridade dos sujeitos que participarão da pesquisa. O projeto foi submetido no Comitê de Ética da Universidade Federal de Alagoas, via Plataforma Brasil e aprovado com Certificado de Apresentação para Apreciação Ética de número 06344619.7.0000.5013

Movimento estudantil no Brasil e em Alagoas: origem e primeiras lutas

No Brasil, há registros de organização e mobilização de pequenos grupos estudantis antes da criação da União Nacional dos Estudantes (UNE), os quais eram regulamentados pelo Estatuto das Universidades Brasileiras, instituído em 1931. Estas entidades, no entanto, eram transitórias e estavam concentradas nas cidades mais desenvolvidas do país, atuando mais localmente na própria instituição onde nasceram e em sua maioria visando quase que exclusivamente o provimento de assistência estudantil, sem, no entanto, articular tais questões às discussões do cenário macropolítico nacional, de modo a atuar neste de maneira efetiva (Azevedo, Braggio, & Catani, 2018; Bessa & Amorim, 2009; Pires & Melo, 2008; Santana, 2014).

Por isso, inicialmente será retratada a trajetória do Movimento Estudantil no Brasil a partir das agitações estudantis que deram origem a UNE. A necessidade de uma entidade estudantil de abrangência nacional e politizada emergiu com maior evidência no final dos anos 1920 em decorrência principalmente das tentativas frustradas de organização estudantil em defesa da Reforma Universitária. Tais mobilizações foram fortemente influenciadas pela reforma universitária argentina, fruto do ME deste país. A descentralização, a transitoriedade e a falta de unidade das entidades estudantis são apontadas como fatores que limitaram a atuação do ME brasileiro nesta luta (Azevedo et al., 2018).

Tal situação se modifica após aproximadamente dez anos, com a criação da UNE, pois não há um consenso entre os autores sobre a data de fundação da entidade. Alguns consideram o ano de 1937, quando foi convocada pela CEB a reunião de instalação do I Conselho Nacional dos Estudantes, com a presença do ministro da Educação e com o objetivo de criar a UNE. Outros, no entanto, argumentam que na ocasião tornou-se explícita a tentativa do governo de controlar a entidade, através do episódio em que o representante do Diretório Central dos Estudantes de Minas Gerais apresentou a proposta de não serem discutidos temas políticos durante o encontro e esta foi aprovada pelos delegados presentes. Este, portanto, não representaria, de fato, o momento de fundação de uma entidade estudantil politizada e autônoma. Isto somente ocorreu no ano seguinte, durante o II Congresso Nacional dos Estudantes (Araújo, 2007; Santana, 2014)

Apesar dos avanços, logo em seguida, no contexto das contradições da ditadura Vargas, em 1943, foi criada a Juventude Brasileira. Esta foi mais uma tentativa de controlar o ME, deslegitimando a UNE. Esse clima de apoio e ataques do governo cercou a atuação da entidade até 1945, sendo um dos fatores para primeira grande divisão do movimento nacionalmente. Com a retomada do regime democrático e a vitória do candidato à presidência, com apoio de Getúlio, essa cisão dentro do ME nacional permaneceu através das disputas internas pela direção da UNE entre os estudantes que haviam apoiado Getúlio no fim do seu governo e agora faziam oposição ao presidente eleito, e os que se mostravam favoráveis ao atual governo do general Eurico Gaspar Dutra (Araújo, 2007; Santana, 2014).

Até 1950, a entidade protagonizou neste período a Campanha em Defesa do Patrimônio Territorial e Econômico com o consagrado slogan ‘O petróleo é nosso’, um dos maiores movimentos de opinião pública do Brasil (Araújo, 2007; Santana, 2014). Todavia, em 1951, os estudantes que assumiram a liderança da entidade, financiados pelo Departamento de Estado norte-americano e organizados na União Democrática Nacional (UDN), iniciaram o que Santana (2014, p. 33) define como “[...] esmorecimento da atuação política do movimento estudantil [...]”, pois restringiu suas lutas à obtenção de empregos públicos e vantagens do governo.

Em 1956, a entidade voltou a participar das frentes de luta política, bem como assumia também agora a discussão acerca da Reforma Universitária, realizando uma sequência de seminários nacionais sobre tal questão a partir de 1961, ano em que foi aprovado o projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que reorganizou o funcionamento do ensino superior. A posição da entidade retomava o debate feito pelos estudantes na Reforma Universitária de Córdoba, Argentina, visando combater o caráter arcaico e elitista das instituições universitárias, exigindo autonomia universitária; participação dos corpos docente e discente na administração universitária, através de critério de proporcionalidade representativa, dentre outros (Fávero, 2009).

Essas discussões ecoaram entre os estudantes universitários de Alagoas, cujas faculdades (direito, medicina, engenharia, odontologia, filosofia e ciências econômicas) se organizavam em uma rede de escolas de nível superior de natureza privada. Eles participaram ativamente organizados em Diretórios Acadêmicos filiados à União Estadual dos Estudantes de Alagoas (UEEA), vinculada à UNE, em prol da criação de uma universidade pública, gratuita e de qualidade para a sociedade alagoana. Inicialmente apoiando a greve que reivindicava a unificação das duas faculdades de odontologia existentes no Estado, critério exigido para a criação da universidade, seguida da publicação do Manifesto pela criação da universidade durante assembleia promovida pela UEEA no Dia Nacional de Estudante de 1960. No ano seguinte, a UFAL foi criada, a partir da reunião das seis faculdades existentes à época (Verçosa & Cavalcante, 2013).

Vale salientar a atuação da UEEA na articulação com o ME nacional logo após a criação da Universidade Federal de Alagoas e antes da criação do Diretório Central dos Estudantes (DCE), quando ocorreu a renúncia de Jânio Quadros e esta entidade junto às demais Uniões Estaduais e à UNE se posicionaram em favor da denominada ‘Campanha da Legalidade’ em 1961, que defendia a posse do vice-presidente João Goulart frente à possibilidade de um golpe militar. A UEEA aderiu à greve nacional por tempo indeterminado, passou a transmitir em sua sede os programas de rádio da ‘Cadeia da Legalidade’, programou manifestações, realizou reuniões com deputados estaduais, vereadores de Maceió e com o governador. Essa situação somente se tranquilizou quando foi aceito o Parlamentarismo pelo Congresso e pelos militares (Verçosa & Cavalcante, 2013).

Em 1962, com a fundação do DCE da UFAL, os estudantes universitários alagoanos que se organizavam na UEEA e nos seus Centros e Diretórios Acadêmicos passaram a construir também mais esta entidade estudantil representativa. Neste mesmo ano, no bojo do debate da reforma universitária como parte integrante das reformas de base, fortalecendo a articulação do Estado com o ME nacional, uma delegação de estudantes alagoanos esteve presente no XXV Congresso Nacional dos Estudantes, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis/RJ (Figura 1).

Figura 1 Delegação alagoana no XXV Congresso Nacional dos Estudantes, em 1962. 

Fonte: Verçosa e Cavalcante (2013).

Assim, a luta junto aos demais setores progressistas da sociedade pelas reformas de base no governo de João Goulart (1961-1964) definiu a atuação política e educacional da UNE e iniciava um período de intensa atividade artística, cultural e política da entidade. Nesse cenário vale destacar a criação do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, que defendia as manifestações artísticas como meios de discussão e formação política para o povo. Ao lado do projeto ‘UNE-Volante’, no qual a diretoria da entidade percorria os Estados brasileiros promovendo assembleias e debates, o CPC se consolidou, levando discos, livros e suas peças e até hoje povoa o imaginário social acerca dessa época do ME brasileiro (Araújo, 2007; Freire, 2008; Medeiros & Castanho, 2014).

Todavia, tal projeto societário ia de encontro ao projeto político conservador da elite econômica do país. De modo que, sob o pretexto de barrar a ameaça de uma ‘república sindicalista’ no governo de João Goulart e com uma retórica moralista, segundo Netto (2014), contra a corrupção e em defesa de ‘valores cristãos e ocidentais’ frente ao ‘perigo vermelho’ que representava a campanha de reformas de base, em março de 1964 os militares assumiram o poder através de um golpe e instauraram a ditadura civil-militar no país.

A UNE foi uma das primeiras entidades progressistas a ser diretamente atacada, tendo sua histórica sede saqueada e incendiada no mesmo dia em que o Exército tomou o poder e sendo formalmente extinta no mesmo ano. Diretórios e centros acadêmicos e coletivos estudantis também foram fechados e professores universitários foram perseguidos e cassados acusados de ‘comunistas’. No âmbito do ME, a lei Suplicy controlava as entidades de base, proibia a realização de qualquer manifestação política e criou-se o Diretório Nacional dos Estudantes em substituição a UNE. Esse movimento faz surgir as denominadas ‘entidades livres’, paralelas às oficiais e que promoviam discussões políticas. Destarte, apesar da repressão, os diretórios e centros acadêmicos resistiam ao regime mobilizando os estudantes universitários. Assim como a UNE, que mesmo clandestina, organizava os estudantes, realizava congressos, manifestações e passeatas (Araújo, 2007; Cavalari, 1987; Fávero, 2009; Netto, 2014).

Durante o governo Costa e Silva (1967-1969), conhecido como ‘Anos de Chumbo’, o ME foi um dos principais alvos dos militares pelas frequentes tentativas de mobilização, a exemplo do XXX Congresso da UNE realizado em 1968 em Ibiúna, São Paulo, onde milhares de estudantes foram presos, dentre eles a estudante da Faculdade de Medicina de Alagoas, Selma Bandeira. Além disso, ocorreram várias invasões, por tropas policiais, a faculdades e universidades no segundo semestre de 1968. Em fevereiro de 1969 foi editado o decreto 477, que literalmente expulsava discentes e professoresque faziam oposição ao regime das instituições de ensino secundárias e superior (Araújo, 2007; Medeiros & Castanho, 2014; Verçosa & Cavalcante, 2013).

Em Alagoas, em meio a essa conjuntura, o então presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) Quilombo dos Palmares, Jailson ‘Bóia’ Rocha, da Faculdade de Engenharia, foi preso e toda a diretoria da entidade foi indiciada após uma manifestação contra o desmantelamento do Congresso da UNE em Ibiúna. Jailson permaneceu preso por seis meses e em seguida foi absolvido. Novamente, em 1973, o DCE é atacado e lideranças estudantis são presas, entre eles o seu presidente Jeferson Luiz de Barros Costa, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Após este fato, o reitor da Universidade Federal de Alagoas, o general Nabuco Lopes, fecha o DCE e silencia o ME. Igualmente ao restante do país, as entidades representativas do ME/UFAL foram cooptadas pela ditadura, na figura de seus representantes locais (Queiroz, 2010; Verçosa & Cavalcante, 2013).

No campo da educação, em 1968 ocorreu a tão sonhada reforma universitária. No entanto, diferentemente do que defendia o ME e acirrando o contexto de autoritarismo, esta foi pautada na consolidação do acordo MEC-USAID (Ministério da Educação - United States Agency for International Development), que tinha como princípios a racionalização, o tecnicismo e a produtividade. Segundo Cavalari (1987), isso significava uma ameaça à soberania nacional. Na mesma perspectiva de análise, Fávero (2009) define esse acordo como uma ‘estratégia de hegemonia’, através da assistência técnica, financeira e militar ofertada pela USAID para reorganizar a educação brasileira. Assim, tal reforma terminou por ser mais uma medida de cerceamento dos anseios do ME adotada pelo regime ditatorial.

Em resposta, grande parte das lideranças estudantis, que não foram presas em Ibiúna, partiu para a luta armada após o Ato Institucional nº 5 (AI-5). No entanto, as organizações armadas não resistiram muito tempo e muitos foram presos, torturados, exilados, assassinados. Para além da luta armada, o ME experienciou um momento de enfraquecimento e reclusão na luta política nas universidades. Qualquer menor manifestação sofria intensa violência policial. Apesar da atuação limitada pelo medo, foram realizados minicongressos da UNE na clandestinidade nos Estados e a diretoria continuava a ser eleita até 1973, quando o então presidente da entidade, Honestino Guimarães, ‘desapareceu’ (Araújo, 2007; Mesquita, 2001).

Nesse clima de terror, a grande massa da população vivia sob forte e mentirosa publicidade que vendia a imagem do regime como mantenedor da ‘ordem’, da ‘segurança’ e do ‘desenvolvimento’ do país. Além da propaganda, outra ferramenta imprescindível para a manutenção do regime militar e todo seu autoritarismo, segundo Netto (2014) foi o crescimento econômico do país. Crescimento esse que ficou conhecido como ‘milagre econômico’, sobretudo por conta da mistificação publicitária do período. De fato, entre 1969 e 1973, o Brasil esteve entre uma das dez maiores economias do mundo. No entanto, este feito firmou-se sob “[...] arrocho salarial (com aumento da massa de mais valia), abertura externa da economia (incentivo às exportações, atração de investimentos externos, inclusive de expansão das multinacionais nos país), e expansão do crédito” (Medeiros & Castanho, 2014, p. 182).

Netto (2014) elenca alguns fatores da conjuntura política, econômica e social que proporcionaram a crise desse regime, como o esgotamento do ‘milagre econômico’, utilizado para legitimar a repressão e o autoritarismo; mudanças no cenário internacional, especialmente pelo posicionamento favorável dos Estados Unidos na defesa dos direitos humanos; e a ‘onda longa recessiva’ do sistema capitalista, que acarretou em uma reorganização da economia mundial. Há que se mencionar também os conflitos internos no governo, entre os militares ditos ‘linha dura’ e os moderados.

Tal crise anuncia o processo de redemocratização do país, que dadas as circunstâncias nacionais e internacionais era agora inevitável. Assim, a partir de 1974, no governo de Geisel, surge a proposta de autorreforma do regime militar, no qual haveria algumas concessões a oposição democrática, mas que reafirmaria a ditadura militar como forma de governo. De modo que este fosse, então, ‘institucionalizado’ (Napolitano, 2014; Netto, 2014).

Nesse processo, ao contrário do que se possa imaginar, a condução política não foi pacífica, a violência repressiva não cessou, apesar de o governo atender algumas exigências e demandas da dita oposição democrática a fim de institucionalizar o regime sem, no entanto, perder a sua essência ditatorial. A união destes fatores, principalmente a recessão da economia que vinha se agravando em larga escala, afetou inclusive alguns segmentos do empresariado, e propiciou um ambiente favorável aos primeiros passos de reorganização dos movimentos e organizações populares de base na defesa da democracia (Napolitano, 2014; Netto, 2014). É sobre esse contexto sociopolítico nacional efervescente em diversos setores, especialmente na educação, que será tratado a seguir.

Repercussões do processo de redemocratização na reorganização política estudantil da UFAL

Nesse novo cenário, surgiram novos atores que demonstravam insatisfação com o regime militar e começaram a atuar, incluindo a Igreja Católica, através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), partidos de oposição como o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) que se fortalecia no cenário político, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e aAssociação Brasileira de Imprensa (ABI), especialmente através da ‘Missão Portela’ (Araújo, 2007; Mesquita, 2001; Netto, 2014).

Nesse contexto de mudanças internas e externas, aliado a esses novos atores e se reestruturando junto aos demais movimentos sociais, o ME retomava o fôlego e tentava se reorganizar. Abandonou a luta armada e o enfrentamento direto e passou a organizar-se em grupos de diferentes perspectivas (Araújo, 2007; Netto, 2014). Apesar dessas dissidências no campo progressista, a bandeira de luta pelas ‘liberdades democráticas’ consolidou a unidade para derrotar a ditadura junto à massa trabalhadora e o ME conseguiu imprimir a essa luta o radicalismo necessário para avançar sobre o aparelho repressor do regime (Araújo, 2007).

Em meio a essa efervescência de retorno das discussões políticas entre os estudantes, muitos DCEs tiveram eleições diretas realizadas em 1974. Em 1976 ocorreu a importante assembleia geral de estudantes para criação do DCE Livre da Universidade de São Paulo (USP). Araújo (2007) e Mesquita (2001) ressaltam o ano de 1977 como a volta das grandes manifestações estudantis, após quase dez anos de silêncio, com o ato público na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo em represália às prisões de estudantes que participaram de uma panfletagem no 1º de maio na região do ABC paulista. Em consequência desse ato, muitas entidades de base começaram a se organizar, sendo fundado o primeiro centro acadêmico da UFRJ no mesmo ano e refundado o seu DCE em 1978.

Na mesma direção, em 1977 o ME/UFAL também iniciou o processo de retomada das suas entidades representativas. Vale lembrar que, como mencionado anteriormente, tanto o DCE quanto os diretórios acadêmicos estavam sob o controle do reitor e dos diretores das unidades de ensino respectivamente, e não necessariamente foram extintos como mostra a Figura 2, obedecendo ao decreto-lei nº 228 de 1967.

Figura 2 Cópia de um ofício remetido ao Pró-reitor de Assuntos Comunitários pelo setor de Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI), indicando os estudantes que comporiam a chapa para eleições do DCE em 1972. 

Fonte: Verçosa e Cavalcante (2013).

Assim, neste mesmo ano, o grupo de estudantes progressistas que articulavam a reorganização do Movimento Estudantil Livre na UFAL assumiu, dentre os três diretórios de área, a direção do Diretório da Área III (ciências humanas e sociais), tendo como presidente eleito Renan Calheiros, então estudante de direito. No ano seguinte, 1978, tal grupo conseguiu eleger suas chapas para os três diretórios acadêmicos. Abaixo o panfleto da chapa ‘Quilombo’ do ME Livre para eleição do DA da área I, em 1978 (Figura 3).

Figura 3 Panfleto da chapa Quilombo. 

Fonte: Verçosa e Cavalcante (2013).

Esse foi um passo importantíssimo, pois garantiu a reocupação do DCE Quilombo dos Palmares, cujas regras vigentes ainda estabeleciam a realização de eleições indiretas. Assim, em cada chapa eleita para os diretórios de área, havia delegados que votavam entre si para a diretoria do Diretório Central. Assumiu a presidência do DCE o então estudante de arquitetura, Enio Lins, indicado pela importante liderança estudantil de Alagoas, Aldo Rebelo, que se encontrava inelegível para representação oficial pela punição por ‘agitações’ na Residência Universitária, segundo o decreto-lei nº 477 (Verçosa & Cavalcante, 2013).

Com essa vitória, iniciou-se na UFAL o processo de reestruturação política do ME articulado pelo DCE, que, dentre outras coisas, procurou promover espaços de estudos e discussões para a formação e orientações dos seus militantes para atuação nesse levante contra o regime ditatorial e em defesa da democracia. Esse movimento de organização das entidades de base pelo DCE foi muito evidenciado por alguns depoentes:

A gente recebia visitas do pessoal do DCE. Haviam centros acadêmicos de outros cursos, que eu só vim saber depois que entrei no ciclo profissionalizante, porque a gente recebia lá na verdade era a visita do pessoal do DCE quando eles iam panfletar, época de eleição, quando eles vinham dar algum aviso (Lenira).

Nós, através de colegas, a gente foi conhecendo, tendo conhecimento que existia o movimento estudantil e que aquele momento era um momento muito importante de retorno de um processo da ditadura. As pessoas estavam voltando dos exílios. E a gente começou a se reunir numa reorganização do movimento estudantil no Brasil. E foi de uma forma assim, meteórica, eu diria, porque eu já comecei a ir participar de reuniões para criação, a reconstrução da UNE. Aí comecei a participar de reuniões ainda clandestinas [...] muitas reuniões, onde tratava a questão um pouco da educação política, o que era partido de esquerda, o que era ditadura, capitalismo. Todo meu aprendizado desses conceitos foi iniciado aí, em 79, 80 (Wellignton).

E nós começamos a discutir com os grupos mais políticos, mais envolvidos nessa questão, não é? Já com a questão da instalação do Diretório Central dos Estudantes [...]. Aí participamos de todas as discussões dos movimentos estudantis, que eram bem fortes nessa época. Com o DCE no auditório lá da antiga Reitoria, na Praça Sinimbu, aquele auditório ficava lotado de estudantes para se discutir os contextos (Ruth).

Justapondo os depoimentos acima, a conjuntura política e a concepção de Bourdieu (1996), compreende-se neste estudo a Universidade Federal de Alagoas como um espaço social estruturado sob redes de relações entre os sujeitos que o conformam e que se encontram em posições (definidas pelo volume de capital) e possuem disposições (habitus) diferenciadas, ocasionando conflitos e tensões. Neste espaço de lutas, visualiza-se no DCE, pela posição que lhe é conferida por um capital simbólico institucionalizado, enquanto entidade representativa, o papel de porta-voz de um discurso legítimo e autorizado do ME/UFAL. Através dessa legitimação, ele [DCE] consegue impor aos demais agentes do campo sua visão do mundo social (Bourdieu, 1998).

Considerando ainda os trechos dos depoimentos sobre a atuação do DCE na politização dos estudantes por meio de um processo pedagógico, denota-se que esta entidade, através da sua posição de representatividade autorizada, proporcionou a construção de uma nova forma de ver, pensar e agir no mundo social, o que Bourdieu denomina de habitus secundário, por ser adquirido fora do seio familiar em um segundo processo pedagógico ou educativo. Neste entendimento, “[...] os agentes certamente têm uma apreensão ativa do mundo. Certamente constroem sua visão de mundo. Mas essa construção é operada sob coações estruturais” (Bourdieu, 1990, p. 57)

Da mesma forma, a Igreja Católica atuou como importante instituidora de um habitus secundário entre os agentes sociais que vieram a construir o ME/UFAL. Uma vez que, conforme já mencionado, pela sua capacidade de capilarização, teve forte ligação com o processo concomitante de reorganização do ME. Como destacam os depoentes nas falas sobre o seu envolvimento com tal processo:

É. Foi por conta do meu envolvimento, de alguma forma, originário da igreja, que eu fui militante também do movimento de igreja. Com ações também que eu fazia através da Igreja Católica e me remeteu a uma inquietação, a querer conhecer essa questão social e econômica do nosso país. Comecei a me interessar por um contexto das coisas que eu estava envolvido e o ingresso no curso de Enfermagem foi um momento que lá, no curso, eu comecei a pensar a questão das reivindicações da precariedade que existia no curso de Enfermagem (Wellington).

[...] mas também tem algo muito importante que é a influência da Igreja Católica no treinamento de liderança cristã. Porque como eu era muito cerceada de sair de casa, de participar de festa e tudo, quando adolescente, e a minha mãe era muito católica, então eu ia muito com ela para Igreja. E nessa ida para Igreja, eu comecei a participar de grupo de jovens [...] E aí tinha um pároco lá na Paróquia de São Cristóvão, que era perto de onde eu morava, e era onde eu frequentava, Padre Rosevaldo. E ele era uma pessoa muito revolucionária. Depois foi que eu vim identificar que isso tinha a ver com a Teologia da Libertação, Comunidades Eclesiais de Base e tudo. Então, eu vivia era isso, e aí era que eu ganhava coragem e força para lutar dentro da minha própria casa, porque a gente estudava o evangelho, mas estudava numa perspectiva crítica revolucionária mesmo (Lenira).

Por estas falas que se evidenciam os processos de conformação de tal habitus secundário, através da problematização da conjuntura política e organização para atuação neste cenário, compreende-se como e porque determinadas posições são assumidas por tais agentes no campo. Especialmente Lenira e Wellignton que vieram a ser representantes discentes nos órgãos colegiados da época.

O ano de 1977 também foi marcado pelas tentativas de realização do III Encontro Nacional de Estudantes (ENE): a primeira em Belo Horizonte, duramente reprimida pelos militares, acabando na prisão de 800 estudantes; e outras duas em São Paulo, uma na USP e outra, decidida às pressas e realizada clandestinamente na PUC, ambas sofreram violentas repressões. Sendo que esta última tentativa foi vitoriosa ao encaminhar a criação da comissão pró-reconstrução da UNE. O IV ENE ocorreu no ano seguinte e definiu, para 1979, a realização do XXXI Congresso da UNE na cidade de Salvador, evento que contou com a participação de estudantes de Alagoas (Araújo, 2007; Mesquita, 2001; Medeiros & Castanho, 2014).

Assim, em 1979, reuniram-se entre 29 e 30 de maio na Universidade Federal da Bahia (UFBA), 2.304 delegados estudantis de diferentes Estados e tendências políticas. Dentre estes, estiveram presentes representantes de destaque do ME/UFAL como Aldo Rebelo, eleito por voto direto em todo país como secretário-geral da UNE neste ano, e presidente da entidade no ano seguinte, sendo lembrado como grande articulador nacional do movimento. Em meio à Reforma Partidária aprovada naquele ano que permitia o retorno do pluripartidarismo, esse congresso marcou, não somente a volta oficial da UNE ao cenário político, mas também, o acirramento entre as tendências do campo progressista, que se intensificaria na década de 80 (Araújo, 2007).

Com isto, Alagoas evidenciou-se como importante local de resistência no processo de consolidação da reorganização do ME. Demonstrando sua capacidade de mobilização, os estudantes da UFAL entraram em greve em 1979, exigindo do reitor o afastamento do professor do curso de Engenharia, Arlindo Cabús, em razão dos níveis de repetência nas disciplinas ensinadas por ele. Em consequência a essa mobilização, Edberto Ticianeli (presidente do DCE da UFAL de 1981-1982) relembra que “[...] foi realizada a primeira passeata de rua desse período de retomada dos movimentos sociais em Alagoas. Centenas de estudantes se concentraram na Rua Boa Vista, em frente ao Jornal de Alagoas, e saíram em marcha pelo centro de Maceió” (Ticianeli, 2015).

Como já mencionado, para além da reconstrução das suas entidades, o ME reafirmava-se como importante ator social e político no cenário brasileiro, atuando junto aos demais movimentos sociais organizados em suas entidades de luta e abraçando suas reivindicações. Especialmente junto ao movimento dos trabalhadores, pois estes sentiam mais diretamente o impacto do modelo econômico adotado pelo regime ditatorial, que desde o início da década de 1970 demonstrava suas fragilidades e aprofundava a concentração de renda. Essas condições foram se agravando no decorrer da década, de maneira que se tornou insustentável para a classe trabalhadora, especialmente no que tange à política salarial, propiciando a organização desta em seus sindicatos, num movimento de grandes greves de 1978 e 1979 (Medeiros & Castanho, 2014).

Corroborando esse posicionamento do ME, as bandeiras de luta aprovadas no Congresso de Reconstrução da UNE abarcavam tanto os interesses propriamente estudantis, ligados à educação (contra o ensino pago; por mais verbas para a educação; pela filiação de entidade de base - diretórios e centros acadêmicos - à UNE), bem como as lutas políticas de outros setores da sociedade (pela anistia, ampla, geral e irrestrita; por uma Assembleia Nacional Constituinte, soberana e livremente eleita; pela defesa da Amazônia) (Medeiros & Castanho, 2014).

Neste contexto, o movimento grevista dos trabalhadores alcançou a UFAL no início da década de 80 com grandes greves unificadas. Na época, os docentes estavam iniciando sua organização sindical em torno do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes), com a Associação dos Docentes (Adufal), e os servidores técnicos na Associação dos Servidores (Assufal), vinculada à Federação das Associações de Servidores das Universidades Brasileiras (Fasubra) (Verçosa & Cavalcante, 2013).

Dentre as reivindicações constavam desde salários dignos até a defesa da universidade pública brasileira, pautas que se uniam às do ME, conforme o que foi discutido no XXXII Congresso da UNE em 1980, que aprovou, dentre outras coisas: luta contra o repasse de aumento de salários de professores para as anuidades; percentual de 12% do Orçamento da União destinados ao ensino; contra aumentos extorsivos de anuidades; suplementação imediata de verbas para o ensino público superior; democratização da universidade (Verçosa & Cavalcante, 2013; Medeiros & Castanho, 2014). Por sua grandiosidade e impacto nas mobilizações da época, tal articulação foi citada por três depoentes:

A minha turma terminou as atividades em dezembro de 80. Só que a gente só colou grau em fevereiro de 81, porque foi quando houve a primeira greve dos docentes das instituições federais de ensino superior. Uma greve bem longa, bem organizada. Então, a gente inclusive estava no estágio quando começou a greve. A minha turma estava no estágio do último ano e a gente conseguiu mobilizar a turma, éramos dezoito pessoas no estágio e a duras penas a gente conseguiu mobilizar todas elas para que a gente apoiasse a greve dos professores. E aí a gente foi comprar murim, comprar tinta, fazer as faixas, pintar as faixas todinhas e sair em passeata apoiando os professores da enfermagem para a greve dos docentes, entende? (Lenira).

Foi o momento em que se teve a primeira greve de professores no Brasil e a gente estava lá, apoiando, junto com os professores, fazendo campanha para angariar recursos junto com eles e no combate. [...] E isso faz com que fortaleça também os estudantes. Se o professor que está lá, lutando por uma causa... porque não tinha greve estudantil, as greves que houveram, não é? Eu acho que a primeira foi em 81, a primeira grande greve que paralisou a Universidade como um todo, naquele ginásio de esportes era lotado de professores (Ruth).

[...] antes de eu entrar no Centro Acadêmico, o Thomaz era diretor do DCE e todas as reuniões que ele ia, eu também ia. E a gente vivia nessa, aí teve a greve dos professores, a construção da Adufal, com o Carlos Henrique, aí teve uma grande greve geral lá da Universidade, que foi a greve que mais juntou os estudantes com os professores todos em assembleia. A gente tinha muita assembleia, muito grande. A Universidade era muito politizada, sabe? Muito aguerrida (Mônica Beltrão).

Analisando esta aliança ao movimento de greve dos docentes e técnicos da UFAL, cumpre notar a construção de uma classe ‘real’ segundo a teoria de Bourdieu, ou seja, uma ‘classe unificada’. Isto posto, classes ‘reais’ não existem, são ‘criadas’ a partir das lutas simbólicas para impor certa classificação do mundo social a determinados agentes que ocupam posições próximas no espaço social e mobilizá-los em um objetivo comum que configura essa ‘classe’ (Bourdieu, 1996), no presente caso uma greve geral. Assim, para o sociólogo francês

O que se chama de lutas de classes são, na verdade, lutas de classificação. Mudar esses princípios de classificação não é simplesmente realizar uma ação intelectual, é também uma ação política na medida em que os princípios de classificação fazem classes, as quais são passíveis de mobilização. Durante as guerras de religião, podiam-se mobilizar exércitos com base em uma imposição de categorias. O que está em disputa no jogo político é o monopólio da capacidade de fazer ver e de fazer crer de uma maneira ou de outra (Bourdieu, 2011, p. 206).

Portanto, as características sociopolíticas desse momento histórico do país ecoaram com bastante intensidade na UFAL e seus agentes sociais, unificando-os em uma classe a partir do trabalho político de mobilização das suas entidades organizacionais instituídas de poder para impor esta classificação no campo. A atmosfera que rodeava a reorganização dos movimentos sociais no espaço da universidade na passagem da década de 1970 para a década de 1980 é sintetizada na fala da depoente Ruth Trindade.

Foi um momento, assim, a gente tinha, digamos, um objetivo muito comum, que era a questão política daquele momento e tudo que ela representava para o universo do Brasil e o universo estudantil. Então era um momento, assim, que a gente tinha um objetivo muito concreto pelo quê lutar. Então foi um momento de muito fomento dessas questões. Tanto é que depois muitos dos grupos que depois se formaram e tal, continuaram envolvidos na Associação, no Sindicato. Quer dizer, porque tinha fortalecido essa vertente de defesa dos direitos dentro da própria Universidade (Ruth).

Esse relato sugere que o curso de enfermagem, visto como mercado simbólico, operasse como um espaço instituidor de competências essenciais aos agentes para atuar em diferentes campos, a exemplo da inserção dos discentes a posteriori, já graduados, em entidades representativas da enfermagem.

A redemocratização, no entanto, somente concretizou-se de fato após a realização da Assembleia Nacional Constituinte em 1988. Apesar da grande mobilização pelas diretas, o Congresso Nacional não declinou e manteve a eleição indireta para presidência, pois, com a extinção do bipartidarismo em 1979, antigos e novos partidos políticos começaram também a se organizar e a conjuntura política se reconfigurava aos poucos8.

Assim, depreende-se que em consonância com o cenário nacional, o ME organizado da UFAL, em seu locus de atuação, emergiu para a década de 1980 como um importante ator social e político de mobilização no início do processo de redemocratização do país.

Considerações finais

Contar a trajetória do Movimento Estudantil no Brasil é, certamente, relembrar grandes momentos históricos do país. Desde as primeiras tentativas de organização estudantil nacional, este movimento plural esteve presente e atuante de forma emblemática nas mais diversas lutas do campo progressista da sociedade, não somente acerca da educação e dos modelos de universidade. Desse modo, configurou-se em alguns momentos como o ator social de maior força e organização, assumindo a vanguarda dos movimentos sociais.

Em relação ao Movimento Estudantil em Alagoas, este artigo buscou apontar a sua relevante atuação desde antes da fundação da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Enfatizando o momento de reconstrução do ME, marcado por novos ‘modo de fazer’ a mobilização estudantil, em que Alagoas assumiu importante papel no espaço universitário, através do DCE da UFAL, bem como no movimento em âmbito nacional.

Ao analisar tal atuação sob a ótica do sociólogo Pierre Bourdieu, afirma-se que esta entidade representativa, dotada de capital político institucionalizado, definido como “[...] uma espécie de capital de reputação, um capital simbólico ligado à maneira de ser conhecido” (Bourdieu, 2011, p. 204), atuou como instituidor de um habitus secundário entre os estudantes da UFAL, por meio de um processo político-pedagógico de formação, organização e mobilização. Concomitantemente, acontecia o trabalho de base realizado pelas entidades de classe dos docentes e técnicos, conformando, assim, no campo da educação, a organização em uma classe em defesa da democracia e de um ensino público e de qualidade.

Este é um estudo preliminar sobre uma temática ainda pouco abordada na literatura, que em grande parte ao se referir ao ME, tanto no Brasil como em Alagoas, trata da sua emblemática resistência ao regime ditatorial que se instaurou sobre o país entre 1964 e 1985. Assim, torna-se de extrema importância para compreensão dos rumos e desafios enfrentados por este movimento após a redemocratização do Brasil.

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3Como citar este artigo: Costa, R. C.; Costa, L. M. C. Atuação do Movimento Estudantil da Universidade Federal de Alagoas no processo de redemocratização do Brasil. (2020). Revista Brasileira de História da Educação, 20. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v20.2020.e134

4Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Recebido: 10 de Dezembro de 2019; Aceito: 29 de Abril de 2020

* Autora para correspondência. E-mail: coutocosta3@gmail.com

Regina Couto da Costa é enfermeira graduada pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), pós-graduanda em Saúde da Família e Comunidade pela Secretaria Municipal de Saúde de João Pessoa. Integrante do Grupo de Estudos D. Isabel Macintyre - GEDIM. E-mail: coutocosta3@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-6180-7017

Laís de Miranda Crispim Costa é Professora Adjunta do setor de Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem (EENF) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem (Mestrado) da UFAL. Doutora em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Líder do Grupo de Estudos D. Isabel Macintyre - GEDIM. E-mail: laismcc@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-4997-567X

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