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Revista Brasileira de História da Educação

versão impressa ISSN 1519-5902versão On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.20  Maringá  2020  Epub 01-Nov-2020

https://doi.org/10.4025/rbhe.v20.2020.e140 

Entrevista

Formação de professores e inovação pedagógica em Portugal no século XX: entrevista com Joaquim Pintassilgo

Virgínia Pereira da Silva de Ávila1  * 
http://orcid.org/0000-0002-2634-1474

Sandra Sylvia de Santana Ziegler2 
http://orcid.org/0000-0003-0377-0927

1Universidade de Pernambuco, Petrolina, PE, Brasil.

2 Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.


A entrevista foi realizada em 22 de outubro de 2019, com o professor Joaquim Pintassilgo, em seu gabinete no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Uma inspiradora reflexão sobre a sua vida profissional, a inovação pedagógica entre outros importantes temas dos quais se têm ocupado, em uma linda tarde de outono.

Com referência aos aspectos teórico-metodológicos e de preparação do roteiro, inicialmente foi realizado um levantamento acerca de entrevistas já concedidas pelo entrevistado, com o intuito de se evitar repetições e apresentar ao leitor um trabalho original. Esse processo permitiu localizar dois artigos, ‘Entre a razão e o afeto’, que integra o livro Memórias da Escola Primária Portuguesa, sob a coordenação de Sara Marques Pereira, publicado em 2002, pela Editora Livros Horizontes, Lisboa. Em suas recordações estão presentes a infância, a vida familiar e o ingresso na escola primária, embora confesse que “[...] as minhas recordações da escola primária estão, na verdade, muito esbatidas pelo tempo” (Pintassilgo, 2002, p. 138). A segunda entrevista, ‘Tempo de mudanças’, organizada pela mesma autora e editora, e publicado em 2006, revela um período de descobertas, entre elas o desporto, os clássicos da literatura e a Revolução do 25 de abril de 1974, também conhecida como Revolução dos Cravos. Naquele momento, nos fala Pintassilgo (2006, p. 163),

Demos por nós perdendo a timidez, saltando para cima das mesas do refeitório e falando para as massas. [...] A política penetrou a vida na escola [...]. Novas palavras passaram a estar inscritas em nosso vocabulário: ‘revolução’, ‘classe operária’, ‘ditadura do proletariado’, entre outros [...] (Pintassilgo, 2006, p. 163, grifo do autor).

A entrevista que segue apresenta o que poderíamos denominar de terceira fase. O ingresso na vida adulta, as escolhas profissionais, o acesso ao ensino superior como professor e o seu percurso até tornar-se um dos mais importantes historiadores da educação de Portugal.

Boa leitura!

Sobre o entrevistado:

Joaquim Pintassilgo é natural de Loulé, Portugal (1956). Estudou na Escola Primária de São Luís (1963-1967) em Faro e no Liceu Nacional de Faro (1967-1974).É licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1982),mestre em História Cultural e Política pela Universidade Nova de Lisboa (1987) e doutor em Geografia e História pela Universidade de Salamanca (1996). É atualmente Professor Associado do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.

Exerceu, nesta instituição, em diversos momentos, entre outras as seguintes funções: membro do Conselho de Escola (2014-2017), Presidente da Comissão de Avaliação Interna (2014-2017), subdiretor (2010-2013), Presidente do Conselho Pedagógico (2010-2013), membro do Conselho Científico (2012-2013) e membro da Comissão Instaladora do Instituto (2009). Foi, ainda, membro do Senado da Universidade de Lisboa (2010-2013). É Presidente da Direção da Associação de História da Educação de Portugal (HISTEDUP), tendo sido, entre 2013 e 2016, membro do Comité Executivo da International Standing Conference for the History of Education. Pertence aos Conselhos Editoriais de um conjunto de revistas internacionais e tem sido membro de Comissões Organizadoras e Científicas e conferencista em diversos congressos. Foi, igualmente, Professor ou Investigador Visitante de algumas universidades internacionais, em especial brasileiras.

Tem coordenado e incluído as equipas de diversos projetos de investigação e cooperação nacionais e internacionais, o mais recente dos quais foi o projeto INOVAR - Roteiros da Inovação Pedagógica: escolas e experiências de referência em Portugal no século XX (2016-2019). É autor, coautor ou organizador de obras diversas, em especial na área de História da Educação, de que se destacam República e formação de cidadãos (Pintassilgo, 1998); História da escola em Portugal e no Brasil: circulação e apropriação de modelos culturais (Pintassilgo, Freitas, Mogarro, & Carvalho, 2006); A história da educação em Portugal: balanço e perspetivas (Pintassilgo, 2007); A Escola Normal de Lisboa e a formação de professores: arquivo, história e memória (Pintassilgo, 2009); A formação de professores em Portugal (Pintassilgo, Mogarro, & Henriques, 2010); Modelos culturais, saberes pedagógicos, instituições educacionais: Portugal e Brasil, histórias conectadas (Pintassilgo, Carvalho, 2011); Escolas de formação de professores em Portugal (Pintassilgo, 2012); O homem vale sobretudo pela educação que possui (Adão, Silva, & Pintassilgo, 2012); Laicidade, religiões e educação na Europa do sul no século XX (Pintassilgo, 2013); O 25 de Abril e a Educação: discursos, práticas e memórias docentes (Pintassilgo, 2014). História da educação: fundamentos teóricos e metodologias de pesquisa (Alves & Pintassilgo, 2015); O Instituto de Odivelas: 115 anos a formar e a educar (Vaz et al., 2017); Roteiros da inovação pedagógica: escolas e experiências de referência em Portugal no século XX (Pintassilgo, 2019); A inovação pedagógica no contexto de uma escola pública portuguesa: o caso do projeto FAROL (Pintassilgo & Andrade, 2019). É, ainda, autor de um conjunto vasto de artigos em revistas nacionais e internacionais e de capítulos em obras coletivas.

VPSA e SSSZInicialmente nós gostaríamos de agradecer imensamente a sua disponibilidade em conversar conosco e contar um pouco sobre sua trajetória pessoal e profissional. Desejamos iniciar esta entrevista revivendo suas memórias pessoais: data e local de nascimento, processo de escolarização: escola primária (local, período, lembranças) e secundária (local, período, lembranças).

Joaquim Pintassilgo Obrigado pelo convite! Boa tarde para ambas! Nasci em Loulé, no Algarve, em pleno Estado Novo. Então, fiz o meu percurso escolar, até ao final do ensino secundário, durante esse período da vida política portuguesa. Frequentei tanto a escola primária como o liceu em Faro, capital de Algarve, cidade para onde os meus pais se haviam mudado. O meu percurso foi o habitual entre as crianças e jovens que frequentavam a escola nesse tempo. Em primeiro lugar, fiz os quatro anos de ensino primário em Faro, numa escola do Plano dos Centenários, que foi uma campanha de construção escolar do Estado Novo que se iniciou pelos anos 40. Frequente ia escola primária entre 1963 e 1967e, depois, o liceu, entre 1967 e 1974. Era esse o nome atribuído às escolas secundárias de caráter geral, liceus, e que funcionavam a par das escolas técnicas (industriais, comerciais ou agrícolas), que eram escolas profissionais. Nessa época o curso dos liceus era de 7 anos, divididos por 3 ciclos. Terminei o liceu, com 17 anos, exatamente em 1974, o ano da revolução do 25 de abril. Os últimos meses passados no liceu, entre abril e julho, apanharam em cheio o período revolucionário.

Esse ano e os dois que se seguiram foram, para mim, um período muito rico em termos de aprendizagem, envolvimento e participação política e social. Muitos jovens, como eu, acordaram para a política nesse preciso momento. O período revolucionário (1974-1976) foi uma fase de transição, de propagação de grandes ideais, e, também, para muitos jovens, de descobertas culturais, musicais e de outros tipos de experiências provenientes dos anos 60. Tudo isso se conjugou, no nosso caso, com a vivência de uma revolução política. Foi uma experiência bem radical, de uma enorme riqueza, e que contribuiu, de maneira decisiva, para a minha formação futura. Tive uma aprendizagem de 3 anos em militância política, entre 1974 e 1977, num partido da esquerda radical da época, o MRPP, de inspiração maoísta. Isso aconteceu com muitos outros jovens, ainda que em partidos diversos da esquerda de então. Em termos práticos, fiz uma interrupção de estudos de 3 anos, sem pensar nas consequências. Tive um ano numa escola do magistério primário, em Faro, mas não continuei; enfim, não era exatamente o meu projeto de vida nesse momento. Estive a trabalhar durante 1 ano numa fábrica de panificação porque, como estava numa organização política que se proclamava da classe operária, enfim, todos nós tentávamos, de alguma maneira, transformar-nos em operários; esse era um dos nossos mitos.

Em 1977 cansei-me da política e decidi continuar os estudos. Vim para o curso de História, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi um pouco ocasional. Antes do 25 de abril eu pretendia ir para Engenharia Mecânica, porque gostava muito de comboios, de carros, de aviões, essas coisas de quando era jovem. Fiz as disciplinas no 3º ciclo do ensino secundário que davam para ir para engenharia. Mas, no 25 de abril, com toda a valorização da dimensão social, até aí escondida, eu, como muitos outros jovens, pensei que era melhor ir para a área das ciências sociais. As hipóteses que coloquei foram, principalmente, Direito, História e Filosofia, mas acabei por escolher História. Ainda não tinha um gosto muito particular por essa disciplina; era mais a ideia de querer usar a História como uma espécie de chave para poder explicar o mundo de modo a poder intervir nele de forma mais lúcida.

VPSA e SSSZ Como se deu o ingresso no ensino superior, a escolha pelo magistério e seu momento de encontro e interesse pela História da Educação?

Joaquim Pintassilgo Em setembro de1977, quando entrei para o curso de História, não sentia nenhuma vocação especial para o ensino; na altura, eu não queria ser professor. Mas acabei por gostar muito do curso. Em especial nos primeiros anos, a Faculdade de Letras ainda vivia os últimos resquícios do período revolucionário. Havia uma grande participação por parte dos alunos, que tinham uma grande influência nos órgãos académicos (como o Conselho Diretivo e o Conselho Pedagógico), realizavam-se assembleias agitadas, o ambiente ainda estava muito politizado. Como tinham sido expulsos os professores ligados ao regime ditatorial e o número de alunos se havia multiplicado, tínhamos professores muito jovens, na maior parte dos casos assistentes (ainda não doutorados), parte deles ainda muito influenciados pelo marxismo ou por abordagens estruturalistas. Além disso, não existiam exames, mas sim trabalhos de grupo, e já fazíamos alguma investigação durante o curso. Então, foi realmente muito estimulante descobrir o gosto pela História nesse ambiente fervilhante. Como era bom aluno pensava depois tentar enveredar pela investigação; só no final do curso é que percebi que isso não seria possível, simplesmente porque não existia carreira de investigação nessa altura em Portugal…

Em todo caso, comecei a dar aulas nos últimos anos do curso numa escola preparatória da margem Sul. Não gostei particularmente; era uma escola complicada, com crianças difíceis, de 11, 12 anos, com matérias muito distantes das da universidade. Não foi assim uma experiência entusiasmante e, nessa altura, ser professor ainda não era muito atraente para mim. Na verdade, o gosto pela profissão foi-se construindo gradualmente, a partir de experiências mais estimulantes em termos letivos. O ano a seguir foi muito enriquecedor, para além de culturalmente muito intenso, pois estive como professor cooperante na Guiné-Bissau. Trabalhei com alunos adulto se essa experiência fez-me começar a gostar de dar aulas, particularmente a jovens adultos, que ainda são o público com o qual eu me dou melhor. Regressado a Portugal, em 1983, estive 5 anos em várias escolas secundarias à volta de Lisboa e gostei bastante de todas elas, em particular no caso da Escola Secundária de Odivelas onde, durante dois anos, lecionei no curso noturno, que tinha principalmente jovens adultos.

Foi igualmente em 1983 que me decidi inscrever num curso de mestrado, os quais se haviam iniciado pouco antes em Portugal. Eram mestrados longos que duravam cerca de 4 anos, 2 curriculares e 2 para a dissertação. Optei, desta vez, pela Universidade Nova de Lisboa e pela área de história das ideias. Esse foi um período de investimento na vertente de investigação, no meu caso sobre o período de transição do século XVIII para o século XIX. A dissertação de mestrado, que foi orientada pelo Prof. José Esteves Pereira, a pessoa que mais me inspirou nessa fase inicial, consistiu na biografia de António de Araújo de Azevedo (Conde da Barca), um político e diplomata de formação iluminista que desenvolveu a sua atividade no complexo período da revolução francesa e da expansão napoleónica, e que, na sequência da primeira das invasões francesas, viajou de Portugal para o Brasil com a família real. Depois de um período de afastamento, voltou a ser membro do governo de D. João VI no Rio de Janeiro, onde faleceu em 1817.

Em 1987concluí o mestrado e iniciei o estágio numa escola secundária de Portalegre, no interior de Portugal, mas sempre com a ambição de ir para o ensino superior. Quando houve um concurso para a Escola Superior de Educação de Castelo Branco, outra cidade do interior centro, concorri e entrei ainda em 1987, de onde transitei, em 1989, para a Escola Superior de Educação de Portalegre e onde estive até 1998, ou seja, cerca de 9 anos. As escolas superiores de educação foram criadas, em meados dos anos 80, em substituição das antigas escolas do magistério primário (antigas escolas normais). Acabei por participar no início desse projeto, o que foi muito estimulante. Quanto ao meu interesse pela História da Educação, ele surge nesse período. O trabalho em escolas de formação de professores aproximou-me, naturalmente, do campo da educação, que acabei por interligar com o meu gosto pela investigação histórica. Assim nasceu a decisão de fazer um doutoramento em História da Educação. Como em Portugal não havia ainda doutoramentos organizados em cursos e como vivia numa cidade próxima da fronteira com Espanha, acabei por optar por me inscrever na Universidade de Salamanca, onde sabia existir um bom grupo em História da Educação e que publicava a revista Historia de la Educación. Fiz o doutoramente entre 1991 e 1996, na Faculdade de Educação, viajando permanentemente entre Portalegre e Salamanca, em especial nos dois primeiros anos, em que frequentei seminários curriculares; o restante tempo foi dedicado à tese. Fui orientado por um professor que hoje é um grande amigo meu, José María Hernández Díaz. As estadias em Salamanca, uma cidade onde se respira história e pela qual me apaixonei, foram muito inspiradoras.

Acabei por fazer uma tese conjugando a História Cultural e a História da Educação, dedicada à educação cívica escolar republicana e respetivos símbolos e rituais. O objetivo era refletir sobre as estratégias então desenvolvidas tendo em vista a formação de cidadãos republicanos, laicos e patriotas. A 1ª República portuguesa (1910-1926) foi, desse ponto de vista, um verdadeiro laboratório de experiências sociais. Acabou por ser uma investigação que me entusiasmou e que resultou num produto em que ainda hoje me revejo. Foi publicada em livro, em 1998, com o título República e formação de cidadãos. Entretanto, fui conhecendo, ao longo desse período, as pessoas que trabalhavam em História da Educação aqui em Portugal, como o Rogério Fernandes, a Áurea Adão e o António Nóvoa, que me deram bastantes conselhos que resultaram úteis para a tese. O primeiro evento da área em que participei foi o 1º Encontro Ibérico de História da Educação, organizado pelo António Nóvoa e realizado em 1993 em S. Pedro do Sul.

VPSA e SSSZE sua relação com o Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, começa quando e por quais razões o senhor acaba atuando aqui?

Joaquim Pintassilgo A partir do momento em terminei o doutoramento, tentava estar atento aos concursos que iam aparecendo para o ensino superior. Em 1998 abriu um concurso para o Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, de onde tinha acabado de sair o Prof. Rogério Fernandes, que entretanto se tinha mudado para a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação. Concorri e consegui entrar. Tive de deixar a carreira do ensino superior politécnico, a que pertencem as escolas superiores de educação, e onde tinha acabado de chegar à categoria de topo (professor coordenador). Na carreira universitária tive, naturalmente, de começar pela base (professor auxiliar), o que me penalizou financeiramente mas foi muito compensador nas outras vertentes (contexto institucional, motivação para a investigação, etc.). Foi uma experiência muito enriquecedora a de ter estado na Faculdade de Ciências de 1998 a 2009, cerca de 11 anos, lecionando História da Educação, tanto nas licenciaturas como nos mestrados. Pertenci a vários órgãos de gestão, designadamente ao nível da coordenação do Departamento de Educação e do, a ele agregado, Centro de Investigação em Educação, da direção da Revista de Educação e, também, de órgãos da Faculdade como o Conselho Pedagógico ou a Assembleia de Representantes. O contexto universitário criou outro tipo de condições para desenvolver investigação, para a publicação etc. Esses anos foram, portanto, muito importantes no que diz respeito à construção de uma série de interesses de pesquisa dentro da História da Educação, a minha área de referência.

Quanto ao Instituto de Educação, onde agora sou professor, a sua história é bem mais recente. Em 2009, quando o Prof. António Nóvoa era reitor, impulsionou um movimento, envolvendo principalmente as pessoas do Departamento de Educação da FCUL e do Departamento de Ciências da Educação da FPCE, tendo em vista a criação de uma instituição, no interior da universidade, vocacionada especificamente para a educação. Ele nomeou para o efeito uma Comissão Instaladora, a que tive a honra de pertencer. Foi um privilégio ter participado no processo de construir uma nova instituição, ainda que assente em duas preexistentes. A instalação decorreu ao longo do ano de 2009 e em 2010 o Instituto iniciou o seu funcionamento. Na fase inicial da vida do Instituto integrei diversos órgãos. Fui um dos subdiretores, Presidente do Conselho Pedagógico, membro do Conselho Científico e do Conselho de Escola e, no âmbito da Universidade, membro do Senado.

O reitorado do Prof. António Nóvoa correspondeu a um período de grande transformação da Universidade de Lisboa, em parte decorrente do processo de fusão com a Universidade Técnica de Lisboa que conduziu à duplicação do número de alunos e dos recursos da universidade, transformando-a na maior universidade portuguesa e contribuindo para o reforço da sua internacionalização. Esse período correspondeu também à concretização do chamado processo de Bolonha, que eu também pude ir acompanhando por via dos órgãos em que participava. Foi um processo importante que possibilitou a reorganização das formações oferecidas pela universidade, o que implicou o encurtamento da maioria das licenciaturas (para 3 anos), tendencialmente de ‘banda larga’, e a generalização dos mestrados (de 2 anos), muito mais especializados e, em alguns casos, profissionalizantes. Outra das alterações foi a atribuição de créditos europeus (ECTS) às unidades curriculares de modo a favorecer a circulação de estudantes no espaço europeu. Procurou-se, igualmente, repensar as unidades curriculares, e a respetiva carga horária, tendo como referência o trabalho dos alunos e de modo a valorizar, não só as atividades presenciais, mas, também, o trabalho autónomo daqueles e o acompanhamento tutorial por parte dos professores. Esta seria uma das transformações mais importantes decorrentes do processo de Bolonha, mas a sua concretização ficou muito aquém das expetativas.

Um dos aspetos muito positivos da transição para o Instituto foi o facto de ter sido possível juntar-me num grupo de investigação e ensino com outros colegas de História da Educação, que já pertenciam à antiga FPCE, nomeadamente os Profs. Justino Magalhães, Jorge Ramos do Ó e Ana Isabel Madeira. No Departamento de Educação da FCUL eu era a única pessoa de História da Educação. Isso permitiu fortalecer o doutoramento em História da Educação, que passou a ter um primeiro ano curricular (algo também associado ao processo de Bolonha) e que, durante vários anos letivos, conseguiu captar um número elevado de candidatos, situação que entretanto se alterou bastante.

VPSA e SSSZ Na sua trajetória, quais foram os intelectuais que influenciaram a sua formação teórica, principalmente na área da história? E, em particular da história da educação?

Joaquim Pintassilgo Bom, não é fácil, mas, pensando no caso português, foram dois, embora de maneiras diferentes, o Prof. António Novoa e o Prof. Rogério Fernandes. Em relação ao Prof. Rogério, havia uma maior proximidade; tornámo-nos mesmo amigos. Era uma pessoa com quem tinha uma grande cumplicidade tanto no plano pessoal como no académico. Fizemos várias coisas juntos, participações em congressos, publicações etc. Foi, para mim, uma referência como mestre e intelectual. Quanto ao Prof. António Novoa, foi o grande protagonista, no caso português, do movimento de renovação, nos planos teórico e metodológico, da História da Educação. Para a minha geração o seu trabalho, a partir da publicação da sua tese (Le temps dês professeurs), em 1987, teve um enorme impacto. Influenciou muito a maneira como passámos a trabalhar em História da Educação.

No contexto espanhol, onde, como disse, fiz o meu doutoramento, duas pessoas influenciaram-me muito fortemente. O meu orientador de então, o já referido Prof. José María Hernández Díaz, que tem uma produção muito rica e diversificada, e aquele que foi o presidente do meu júri (‘banca’), o Prof. Agustín Escolano Benito, uma das grandes figuras da História da Educação em termos internacionais. Ele foi, por exemplo, pioneiro no desenvolvimento em Espanha, e não só, dos temas ligados à cultura e ao património escolares e foi, igualmente, o fundador do CEINCE, o conhecido centro internacional de cultura escolar situado em Berlanda de Duero. Ambos construíram uma forte relação com a comunidade portuguesa e eram uma presença habitual em muitas das nossas inciativas (e vice-versa).

Pensando em termos mais gerais, no que se refere à minha formação historiográfica, creio que a influência maior, numa fase inicial, foi a da Escola dos Annales, muito em voga, no contexto português, na fase em que fiz a minha licenciatura (graduação) em História. Seguiu-se a História das Ideias, a abordagem mais presente no mestrado que frequentei e que serviu de inspiração, em boa medida, à minha dissertação que, não obstante ter sido uma biografia, enfatizou as ideias políticas e económicas do Conde da Barca. O teórico mais presente entre os professores de mestrado era o espanhol José Luis Abellán, para além do português José Sebastião da Silva Dias, que havia sido o criador do mestrado. Com a iniciação à História da Educação, na época do doutoramento, acabei por produzir uma tese no cruzamento desta disciplina com a História das Ideias, daí a importância que atribuí a temas como o republicanismo, o laicismo, o patriotismo, o positivismo, o civismo, entre outros, mas, também, já às ideias pedagógicas presentes nesse contexto (em particular, as relativas à Educação Nova). Tornou-se necessário, também, algum diálogo com contributos provenientes da Antropologia, tendo em conta a relevância que acabaram por ter as questões ligadas aos rituais e símbolos presentes na educação cívica republicana, com destaque para a festa da árvore, os batalhões escolares, a bandeira e o hino, os heróis nacionais etc. Pensando em autores, não poderei deixar de realçar a grande influência que tiveram em mim, quando estava a fazer a tese, os trabalhos brilhantes e inspiradores de Fernando Catroga sobre o laicismo republicano e as suas fontes doutrinárias. Devo-lhe, muito em particular, a sugestão de um conceito que se tornou central na minha tese, o de religiosidade cívica.

Uma maior inserção no campo da História da Educação, que se seguiu à conclusão do doutoramento, conduziu-me à valorização da abordagem da História Cultural, então em franca ascensão. Foi a partir de meados dos anos 90, em particular a partir de uma famosa conferência proferida por Dominique Julia na ISCHE de Lisboa (1993), publicada em 1995 na Paedagogica Historica e profusamente citada nos anos subsequentes, que os temas ligados à cultura escolar entraram na agenda da investigação. Simultaneamente, começaram a ser conhecidos e lidos os trabalhos de Roger Chartier, que vieram dar centralidade a conceitos como representações, práticas e apropriações, a par dos trabalhos, entre outros, de Peter Burke. Tanto em Espanha como no Brasil, com cujas comunidades já mantínhamos um forte intercâmbio, o conceito de cultura escolar foi aprofundado por autores como Agustín Escolano, Antonio Viñao ou Diana Vidal, entre muitos outros. Em Portugal posso igualmente destacar os contributos de Rogério Fernandes e de João Barroso. Foi esse contexto, e a trajetória por mim seguida, que me levaram a articular a História da Educação, a História das Ideias e a História da Cultura, algo que, segundo creio, está muito presente no meu trabalho. Como, durante alguns anos, dediquei-me, em particular por via da orientação de diversas teses e dissertações, à história das disciplinas escolares, uma das mais frutuosas linhas de pesquisa que se desenvolveu no âmbito da cultura escolar, é fundamental destacar aqui o contributo de André Chervel, um autor que se revelou fundamental para esse tipo de pesquisa.

Em todo o caso, como tenho feito questão, ao longo do meu percurso, de não me fechar, nem em termos temáticos nem em termos de abordagens, preferindo situar-me numa área de um relativo ecletismo, isso possibilita a identificação de várias outras fontes de inspiração presentes no meu trabalho como investigador. Por exemplo, já coordenei dois projetos centrados em instituições escolares - um sobre escolas de formação de professores e outro sobre escolas inovadoras - daí que contributos teóricos como os de Justino Magalhães e de João Barroso se tenham revelado de grande importância. Durante alguns anos trabalhei sobre as histórias da profissão docente e da formação de professores, tomando como referência maior os trabalhos de António Nóvoa. Como vários dos meus estudos foram estudos de caso, ou seja, objetos de estudo recortados a uma escala micro, isso levou-me a aproximar da abordagem micro histórica, pela qual tenho grande simpatia, e a ler os textos de Carlo Ginzburg ou de Giovanni Levy, para além do olhar mais abrangente de Jacques Revel. Em particular no último projeto que coordenei - projeto INOVAR - recorremos abundantemente aos testemunhos orais, o que me conduziu a fazer leituras diversificadas sobre a chamada História Oral, uma abordagem que me tem vindo a entusiasmar, naturalmente sem qualquer tipo de exclusivismo ou fundamentalismo. Neste último projeto, e noutras pesquisas mais recentes, tenho vindo a aproximar-me da atualidade, o que me obrigou a tomar consciência das especificidades da História do Tempo Presente. No mais recente projeto que candidatámos a financiamento - o projeto GENESE - e em que nos propomos fazer uma genealogia das práticas educativas e dos modelos pedagógicos inovadores em Portugal entre os séculos XX e XXI, a abordagem genealógica de Michel Foucault e a sua proposta de uma História do Presente serão, naturalmente, fontes de inspiração decisivas. Como coordenei, em colaboração com Marta Chagas de Carvalho, um projeto CAPES/GRICES, para além de estar a orientar várias teses de doutoramento, em que a questão da circulação internacional do conhecimento pedagógico é central, o recurso às abordagens transnacionais e globais foi algo que surgiu como óbvio. Para além disso, fui-me dedicando a domínios tão diferentes como a história das escolas militares, as relações entre a educação e a religião (católica, em particular) ou a experiências no âmbito da educação popular (como asilos, universidades populares, campanhas de alfabetização etc.). Em termos temporais, as minhas pesquisas situam-se entre os finais do século XVIII e a atualidade, embora, na maioria dos casos, se centrem no século XX. Em síntese, creio que a diversidade temática e o ecletismo ou hibridismo teórico e metodológico são, de alguma maneira, uma das principais características do meu trabalho.

VPSA e SSSZ Conte-nos sobre seus estudos, as suas pesquisas iniciais, quais são suas principais parcerias, os projetos que movem atualmente a sua atenção.

Joaquim Pintassilgo Eu tenho o privilégio de me dedicar à formação de professores há cerca de 33 anos, mais concretamente desde que em 1987 entrei para a Escola Superior de Educação de Castelo Branco. A partir de certa altura interessou-me, não só como uma experiência de trabalho, mas também como objeto de estudo e investigação. A ideia de ser professor foi, como já vos disse, algo que fui construindo e que passou a fazer parte de mim também como pessoa. Fui descobrindo o gosto pela profissão e continuo a retirar muito prazer das minhas aulas e da permanente interação com os alunos, da graduação ao doutoramento. Mas tenho um carinho muito especial pelas disciplinas que leciono nos mestrados em ensino, os nossos cursos de formação profissional de professores, que vão do 3º ciclo do ensino básico ao ensino secundário. Como leciono duas disciplinas da formação educacional geral - Escola e Sociedade e História da Educação em Portugal - que são transversais aos vários cursos, tenho alunos que são provenientes das mais diversas áreas - História, Geografia, Matemática, Ciências, Línguas, Artes, Economia, Informática, etc. - o que resulta em turmas muito diversificadas, participativas e estimulantes.

Para além disso, desde um primeiro texto elaborado para o III Encontro Ibérico de História da Educação, realizado em Braga no final dos anos 90, que comecei também a tentar investigar e refletir sobre a história da profissão docente e da respetiva formação, tanto ao nível do ensino primário como do ensino secundário. A principal pesquisa que realizei nesse âmbito foi a que se concretizou por via de um projeto coletivo dedicado às escolas de formação de professores para o então ensino primário - escolas normais ou do magistério primário - o qual foi desenvolvido entre 2010 e 2013, tendo resultado na publicação de um conjunto de monografias dessas escolas. Mas também me interessei por outros aspetos ligados ao trabalho docente, na sua historicidade, designadamente no que se refere às categorias e metáforas que têm sido propostas para caracterizar esse trabalho como, por exemplo, as que têm por base as noções de profissão, vocação, missão, ofício, artesão, intelectual, de ontologia, entre outras. Também me dediquei, em vários momentos, ao trabalho de análise dos manuais de formação de professores, das conceções pedagógicas que lhes estavam subjacentes, da forma como se apropriaram das ideias em circulação internacional ou dos perfis de professores para que eles remetiam. Igualmente me interessaram as revistas vinculadas a associações ou grupos de professores como foram os casos das revistas Labor ou Palestra, ambas ligadas ao ensino secundário. Como em várias outras pesquisas, foi muito o presente da profissão e da formação que me conduziu a estudar o seu passado na tentativa de tornar mais lúcido e profundo o meu olhar sobre os problemas que se colocam hoje aos professores.

VPSA e SSSZAtualmente tem se dedicado aos estudos sobre inovação pedagógica. Como surgiu o interesse e seus desdobramentos em termos de projetos, parcerias e publicações?

Joaquim Pintassilgo Acho que esse interesse começou no âmbito da tese de doutoramento, que continha um capítulo sobre as ideias pedagógicas que circularam no período republicano, em particular as propostas que elas continham em relação à educação moral e cívica, ou seja, à formação do cidadão que era o meu tema central. O debate a esse propósito foi muito intenso com iniciativas desenvolvidas pelo campo, digamos assim, do republicanismo oficial, como a disciplina de educação cívica e os respetivos manuais ou as festas cívicas a que já me referi, e as propostas provenientes dos educadores ligados ao movimento da Escola Nova, como António Sérgio, Faria de Vasconcelos ou Adolfo Lima, que se mostravam críticos dessas práticas que consideravam endoutrinadoras, defendendo em alternativa projetos assentes no self-government. Isso despertou em mim um grande interesse pelas propostas inovadoras que se expressaram nesse contexto e que têm como referência o ideário da Educação Nova. Portanto, a minha primeira entrada no tema foi por esse lado e estava centrado nas primeiras décadas do século XX. A partir daí a preocupação com o estudo das experiências de inovação pedagógica foi-se alargando. Por exemplo, quando estudei o chamado período revolucionário, os cerca de dois anos subsequentes à revolução do 25 de abril de 1974, que resultou numa obra coletiva e em mais alguns textos, também procurei evidenciar o caráter radical e alternativo de algumas das experiências desse período, como o serviço cívico estudantil, que procurava ligar os estudantes ao mundo do trabalho, ou uma gestão democrática das escolas de caráter basista e autogestionário. Esse foi um momento muito intenso e criativo, mas também muito politizado e estremado, no qual eu próprio participei, enquanto jovem adulto, como já vos contei. Também fui realizando algumas pesquisas sobre as conceções pedagógicas de professores das escolas de formação de professores (Orbelino Geraldes Ferreira e Moreirinhas Pinheiro, por exemplo), em particular durante o regime autoritário do Estado Novo, em que se expressou, sob a sigla ‘escola ativa’, uma apropriação conservadora e católica das ideias da Educação Nova. Esse aparente paradoxo fez-me refletir sobre a complexidade das relações entre tradição e inovação, algo que se veio a revelar fundamental para as pesquisas subsequentes. Foi-se assim construindo o interesse tanto pelas raízes plurais do núcleo central das ideias da Educação Nova como pelas diversas metamorfoses por que esse núcleo foi passando. Nos últimos anos pude desenvolver de forma mais sistemática esse interesse e, também, mais relacionado com a história recente (últimas décadas do século XX e transição para o século XXI). Foi o caso do projeto INOVAR, cuja equipa procurou analisar a trajetória histórica de cerca de duas dezenas de escolas diferentes e caracterizar os respetivos projetos pedagógicos. Foi particularmente interessante ver como um conjunto de ideias e práticas, muitas vezes vistas como atuais, têm, afinal, uma história já relativamente longa, em alguns casos de cerca de um século (como o trabalho de projeto ou o self-government), ainda que tenham evoluído em contextos bastante diversos. Isso levou-nos a relativizar o conceito de inovação e a ter em conta as potencialidades de uma noção como “tradição de inovação” proposta por Peter Burke. Uma das virtudes de uma pesquisa como esta é termos a sensação de que somos capazes de ter alguma intervenção na atualidade, algo que os historiadores almejam desde os Annales. Para os professores o nosso contributo pode ser o de os ajudarmos a construir uma conscência crítica relativamente ao repertório metodológico a que podem recorrer ainda hoje, sem serem afetados pelo efeito de moda (que também atinge a pedagogia).

VPSA e SSSZE quem são os principais parceiros do projeto, ele tem financiamento?

Joaquim Pintassilgo O projeto INOVAR acabou no final de outubro; durou 3 anos e meio. Foi um projeto com quatro instituições; a instituição proponente foi o Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e os nossos parceiros foram a Universidade de Coimbra, a Universidade do Minho e a Faculdade de Letras da Universidade do Porto. A equipa coordenadora foi constituída por mim, pelo Prof. Luís Alberto Marques Alves, pelo Prof. António Gomes Ferreira e pelo Prof. José António Afonso. É um grupo ligado, de alguma maneira, à Associação de História da Educação de Portugal (HISTEDUP), já com uma grande experiência de trabalho em conjunto e que tem muitos laços entre si tanto no plano académico como no plano pessoal. Conseguimos propor um projeto ambicioso, no sentido em que envolveu uma equipa numerosa, tendo obtido um financiamento de cerca de 200 mil euros. A gestão financeira foi criteriosa e o número de publicações muito elevado, entre livros e capítulos de livros, artigos nacionais e internacionais, comunicações e muitas interações com as escolas, com a realidade atual das escolas, parte delas privadas, porque as escolas diferentes desenvolveram-se principalmente nesse campo do ensino privado e cooperativo, mas também algumas experiências públicas. Penso que foi um projeto bem sucedido, que terminou, como tudo termina, deixando algumas saudades. Em todo o caso, como já notei, candidatámos recentemente um novo projeto e estamos a aguardar o resultado do concurso. Estamos entusiasmados com a ideia e esperançados num resultado positivo.

VPSA e SSSZ Conte-nos sobre sua relação como a comunidade brasileira de historiadores da educação (parcerias, projetos, publicações)?

Joaquim Pintassilgo Essa é uma relação já longa. A primeira vez que fui ao Brasil foi para participar no II Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, realizado em São Paulo em 1998, na Universidade de São Paulo (USP); foi, portanto, já há 22 anos. A partir daí, fomos criando laços com colegas brasileiros e essas interações frequentes fizeram-nos sentir parte de uma mesma comunidade. Tentando lembrar os momentos mais importantes, não posso esquecer a USP, com quem tive um projeto de cooperação internacional a que já me referi. Foi o primeiro projeto financiado em que participei, entre 2003 e 2006, e que esteve na origem de dois livros, um publicado em Portugal e o outro no Brasil. O foco estava na circulação e apropriação de modelos pedagógicos e a fonte de inspiração na História Cultural. Fui mantendo, entretanto, uma ligação sempre bastante forte também com colegas de várias universidades do Rio de Janeiro (UERJ, UFRJ, PUC). Estive, inclusive, como Professor Visitante na UERJ no ano de 2012 no que foi uma experiência muito enriquecedora. Mas tive, igualmente, relações intensas com colegas de outras universidades de várias regiões do Brasil como, por exemplo, Uberlândia, Porto Alegre, Vitória e Natal, só para dar alguns exemplos. Participei em congressos e em ‘bancas’, proferi conferências e dinamizei mini-cursos e seminários entre outras tarefas. Participei ativamente na organização de vários dos Congressos Luso-brasileiros de História da Educação como os realizados em Coimbra (2000), em Lisboa (2012) e no Porto (2016). Noutros fui membro das respetivas Comissões Científicas ou coorganizador pela parte portuguesa. Criaram-se, de facto, laços muito fortes; o Brasil passou a ser parte importante da minha carreira, da minha vida, das minhas amizades. Penso que a trajetória paralela das duas comunidades acabou por proporcionar aprendizagens mútuas, a realização conjunta de vários eventos e de alguns projetos e o intercâmbio de professores e de estudantes. Alguns colegas estiveram aqui a fazer pós-doutorados ou em missões de cooperação; muitos estudantes frequentaram doutorados ‘sanduíche’; várias publicações conjuntas viram a luz do dia, designadamente obras sobre as viagens pedagógicas, a Igreja e a educação, os militares e a educação, a imprensa pedagógica, os intelectuais e a educação etc. Outras formas de colaboração a esse nível foram a preparação de dossiers para revistas, a organização de mesas-coordenadas e de painéis para a participação em congressos (como o COLUBHE, o CIHELA e a ISCHE). Além disso, pertenço às comissões científicas ou consultivas de algumas das mais importantes revistas brasileiras do campo da História da Educação (Cadernos de História da Educação, História da Educação, Revista Brasileira de História da Educação, entre outras). Agora nos últimos anos o contexto tem siso menos favorável a alguns destes intercâmbios por razões que são bem conhecidas de todos. Têm-se mantido, mesmo assim, as vindas de estudantes brasileiros para a Universidade de Lisboa, o que permite manter essa chama acesa. E, mais recentemente, em face da pandemia que nos atormenta a todos, os convites para conferências virtuais ou para ‘bancas’ à distância. Esperemos já poder participar presencialmente no COLUBHE de Cuiabá, em fevereiro de 2020, e poder receber todos os colegas da iberoamerica aqui em Lisboa, em julho de 2020, no âmbito do XIV CIHELA.

VPSA e SSSZA comunidade de história da educação é uma das maiores comunidades científicas do Brasil, é uma comunidade muito grande. E contava, até um período atrás, com financiamentos para projetos e cooperação internacional. Estamos passando um período de cortes substanciais na educação e na ciência brasileira; em contrapartida, Portugal vive um momento importante de financiamento da ciência e da pesquisa, isso é assim mesmo? Considerando-se sua experiência profissional e intelectual, que perspectivas poderia entrever para a história da educação portuguesa e mundial no futuro?

Joaquim Pintassilgo No que se refere à nossa relação com a comunidade brasileira houve sempre uma grande desproporção tanto no número de investigadores como no financiamento. A comunidade brasileira sempre teve muito mais capacidade de obter financiamentos para missões ou tarefas de investigação do que nós aqui em Portugal. Não tínhamos, em geral, oportunidades, como muitos professores e estudantes brasileiros tiveram, para realizarem missões financiadas aqui em Portugal. O Brasil realizava, tradicionalmente, um investimento muito mais forte na pesquisa. O financiamento de projetos teve, no Brasil, uma dimensão que aqui nunca conhecemos. Agora o Brasil está num contexto um pouco mais desfavorável no que se refere ao financiamento da ciência e, em particular, das ciências sociais, que são sempre o parente pobre da investigação. O nosso período mais crítico correspondeu à crise financeira de 2011-2015, depois as coisas melhoraram um pouco. De qualquer maneira, os concursos são sempre muito exigentes e a maior parte das candidaturas não tem sucesso. Em todo o caso, eu até não me posso queixar, pois coordenei um projeto que teve financiamento da FCT entre 2010 e 2013 (o das escolas normais) e outro entre 2016 e 2019 (o das escolas diferentes), para além de ter participado em várias outras equipas. Creio que temos fortes possibilidades de ter sucesso quando conseguimos elaborar propostas com qualidade e com relevância social, associadas a equipas fortes e suportadas por uma rede de várias instituições.

O Brasil conheceu, durante bastante tempo, um grande crescimento da comunidade de História da Educação, com muitas publicações e projetos, que foi acompanhado pela grande expansão que tiveram as universidades brasileiras. Daí os números muito elevados de participantes brasileiros nos principais congressos internacionais. Desde há vários anos que são sempre o maior grupo. Mais difícil de explicar é a importância que a História da Educação adquiriu no Brasil durante as últimas décadas, algo que não teve paralelo em nenhum outro lugar, nem na Europa nem nos Estados Unidos, por exemplo, e que pode ser conjutural. Em Portugal, a comunidade de História da Educação foi sempre relativamente pequena. Teve uma fase um bocadinho melhor em termos de expansão num contexto geral em que as chamadas ciências da educação, e as ciências sociais em geral, estavam em expansão, digamos que entre a última década do século XX e a primeira década do século XXI. Mesmo assim, os grupos de História da Educação nas principais universidades portuguesas sempre foram muito pequenos (porventura com a exceção, em alguns momentos, da Universidade de Lisboa). Nos últimos anoso balanço da produção ao nível das teses de doutoramento reflete isso mesmo, ou seja, uma grande quebra na investigação em História da Educação. O contexto mudou de forma significativa e, mesmo na investigação em educação, os doutorandos preferem optar por áreas vistas como mais pragmáticas. Para eles o impacto da investigação em História da Educação na realidade do dia-a-dia das escolas não é tão óbvio. Temos, neste momento, um número muito reduzido de estudantes de doutoramento a entrar em cada um dos anos para a nossa especialidade, o que não acontece noutras áreas (políticas educativas, tecnologias digitais etc.).

Em todo o caso, assistimos, a esse nível, a tendências contraditórias. Foi nos últimos anos, mais concretamente em 2015, que conseguimos criar uma sociedade específica na área de História da Educação, a Associação de História da Educação de Portugal - HISTEDUP - que teve como primeiro presidente o Prof. Luís Alberto Marques Alves, estando eu agora a ocupar esse lugar. A associação resultou da autonomização de uma Secção de História da Educação que pertencia, até aí, à Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (SPCE). O número de publicações e de projetos financiados também cresceu bastante nas duas últimas décadas. Destaco, no que a estes últimos se refere, os que foram coordenados pelo Prof. Justino Magalhães (sobre os municípios e a educação), pelo Prof. Jorge Ramos do Ó (sobre educação artística), pela Prof.ª Margarida Felgueiras (sobre património educativo), pela Profª Maria João Mogarro (igualmente sobre património educativo) e pela Prof. Ana Isabel Madeira (sobre memórias escolares), para não referir de novo aqueles que eu próprio coordenei ou projetos mais antigos coordenados pelo Prof. António Nóvoa ou pelo Prof. Rogério Fernandes. Temos, igualmente, conseguido manter uma participação consistente nos grandes congressos internacionais e já organizámos ou vamos organizar alguns deles. Mas isso tem acontecido com base na militância de um pequeno grupo; ativo mas, em todo o caso, pequeno…

VPSA e SSSZ E quais os desafios para a renovação dos quadros da comunidade de historiadores da educação em Portugal?

Joaquim Pintassilgo Muitas das pessoas da área, como é o meu caso, têm, neste momento, mais de 60 anos ou estão próximas dessa idade, ou seja, aposentar-se-ão no horizonte de uma década e isso é um problema grave. O facto de, na maior parte das instituições, terem desaparecido as disciplinas de História de Educação - a par da já referida redução do número de doutorandos - faz-nos temer pelo futuro da História da Educação. Para remar contra esta maré, o que faço, para dar o meu exemplo, é procurar entusiasmar os alunos que vou tendo em disciplinas de História da Educação, em particular no mestrado em Ensino, e, muito em particular, procurar pôr de pé projetos de investigação que dialoguem de forma muito direta com a atualidade como foi o caso do projeto INOVAR e será, se for financiado, o caso do projeto GENESE. É uma forma de acentuar a relevância social da História da Educação, de mostrar que esta é uma área essencial tendo em vista o desempenho de qualquer profissional da educação, em especial se pretender ensaiar inovações enraizadas na tradição pedagógica progressista e se quiser encarar o seu trabalho com uma forte consciência crítica.

VPSA e SSSZ E de que forma isso afeta a formação dos alunos? O quanto essa ausência das Ciências Sociais, desse aspecto da reflexão, na área das humanidades, contribui, também, para uma formação limitada, parcial?

Joaquim Pintassilgo Sim, claro; na minha opinião, há o risco de se perder o lado mais humanista e, também, a dimensão axiológica da formação dos nossos jovens, os adultos de amanhã. E, também, de se desvalorizarem competências como, por exemplo, as que têm que ver com a localização no tempo e no espaço, com a comparação de sociedades e culturas diferentes e a valorização de todas elas, mantendo sempre como referência os direitos humanos, com a capacidade de ler criticamente um texto sabendo contextualizá-lo aos mais diversos níveis. No entanto, temos que acreditar que esta conjuntura poderá mudar e que um novo ciclo se abrirá num futuro mais ou menos próximo.

VPSA e SSSZ A exemplo da carta a um jovem historiador da educação do professor António Nóvoa, que mensagem deixaria para os jovens investigadores, enfim, de que forma poderíamos estimulá-los, ou também apresentá-los a esse mundo da história e a partir dela tentar compreender um pouco o nosso presente.

Joaquim Pintassilgo Essa é uma pergunta de resposta difícil neste registo, sem rede, de oralidade. Seria um pouco mais fácil no registro, mais pensado, da escrita. Revejo-me muito no legado do Prof. António Nóvoa, em grande parte das coisas que ele sugere na carta, mas posso sublinhar duas ou três ideias. Uma é algo em que, de alguma maneira, me continuo a inspirar e tem que ver com o facto de as nossas pesquisas deverem ter a obrigação de dialogar com a atualidade, de procurarem dar respostas aos problemas, às angústias, às dificuldades de hoje e, ao escolhermos os nossos temas de pesquisa não esquecermos de que maneira podem eles contribuir para resolver os problemas educativos com que hoje nos confrontamos, sejam eles a inclusão de cada vez mais crianças e jovens, o seu sucesso e bem-estar enquanto alunos, o incremento dos vários tipos de literacia, os desafios da diversidade, a construção de uma cidadania plural e democrática, a valorização da profissionalidade docente, a flexibilidade curricular, a autonomia das escolas, a construção de verdadeiras comunidades educativas e, também, a possibilidade de mudar as nossas escolas em sentidos inovadores.

Um segundo conselho, que está também na carta do Prof. António Novoa, é o de evitar qualquer tipo de fundamentalismo, de posições fechadas, sejam elas ligadas às abordagens de Michel Foucault, de Pierre Bourdieu, da Micro-História, do Marxismo etc. Eu defendo, como já aqui disse, a riqueza resultante da conjugação de várias perspectivas, dependendo do objeto de estudo delimitado. Precisamos de abertura mental para conseguirmos observar um qualquer objeto de estudo a partir da conjugação de vários olhares, recorrendo a conceitos diferentes conforme as necessidades colocadas pela investigação. Creio ser positivo um certo ecletismo desde que este seja assumido com critério.

Uma outra ideia que posso destacar, continuando a inspirar-me no texto do Prof. António Nóvoa, é o que se refere à importância da escrita, que deve ser ao mesmo tempo rigorosa, coerente e criativa. Mesmo uma investigação profunda e original arrisca ficar completamente perdida se não for suportada por uma escrita de grande qualidade e em que a dimensão narrativa esteja claramente presente. Qualquer trabalho historiográfico deve, ao mesmo tempo, tentar atingir o estatuto, num certo sentido, de obra de arte. É fundamental que os jovens investigadores valorizem isso, a maneira como escrevem, que não é separável da maneira como pensam, arriscando uma escrita diferente, que tenha o selo da sua autoria. Além disso, os textos de história não podem ser textos frios ou neutros, isentos de valores ou de sentimentos. E, portanto, deixo aqui o meu apelo para que não se fechem numa escrita limitada, pretensamente objetiva, mas que também não se acomodem a uma escrita sem qualidade. A necessidade do rigor e da verdade, que os historiadores devem perseguir, mesmo nestes tempos pós-modernos, de algum relativismo (que não pode ser radical), deve ser articulada com essa capacidade de olhar de forma criativa para os nossos objetos de pesquisa, de conseguir ver as coisas de outras maneiras que têm de ter, naturalmente, suporte documental e não serem apenas fruto da nossa imaginação ou de modelos teóricos que procuramos impor à realidade que é sempre complexa e diversificada.

VPSA e SSSZ Agradecemos imensamente pela entrevista.

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Como citar esta entrevista: Ávila, V. P. S., & Ziegler, S. S. S. Formação de professores e inovação pedagógica em Portugal no século XX: entrevista com Joaquim Pintassilgo. (2020). Revista Brasileira de História da Educação, 20. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v20.2020.e140. Esta entrevista é publicada na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Recebido: 31 de Agosto de 2020; Aceito: 21 de Outubro de 2020

*Autor para correspondência: virginia.avila@upe.br

Virgínia Pereira da Silva de Ávila é doutora em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP, 2013). Professora e pesquisadora do colegiado de Pedagogia e coordenadora do Programa de Pós-Graduação Formação de Professores e Práticas Interdisciplinares (PPGFPPI), da Universidade de Pernambuco, campus Petrolina. Tem experiência na Área de Educação, com ênfase em História da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: história do ensino primário rural, cultura escolar, instituições educativas, formação e profissionalização docente, arquivos escolares. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Escolar e Não Escolar no Sertão Pernambucano (GEPESPE) e Coordenadora do Núcleo de Extensão e Pesquisa História da Educação, Linguística e Literatura (NEPHEL). E-mail: virginia.avila@upe.br http://orcid.org/0000-0002-2634-1474/

Sandra Sylvia de Santana Ziegler é doutoranda em História da Educação pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB, 1986) Especializada em Supervisão Escolar e Orientação Educacional pela Faculdade Nossa Senhora de Lourdes (CINTEP, 2015), e Pedagogia Waldorf pela Faculdade São Luís de França (2017), é mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente, com especialidade em Educação Ambiental (UFPB, 2015). É membro da Associação de História da Educação de Portugal (HISTEDUP). E-mail: sandra.ziegler@edu.ulisboa.pt http://orcid.org/0000-0003-0377-0927/

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