Introdução
As colônias inglesas na América do Norte foram povoadas, principalmente, por puritanos que vinham da Europa fugindo de perseguições religiosas. Instalados no Novo Mundo, perpetuaram valores, tradições e costumes, criando elementos culturais que determinaram a forma de vida na sociedade colonial. No que se refere ao corpo, são reconhecidas, nas pesquisas de diferentes autores, as formas de regramento adotadas pelos puritanos americanos em questões como trabalho, divertimentos e moderação dos impulsos corporais (Struna, 1988, 1996; Overman, 2011; Hollinger, 2013; Karnal, 2017; Amstel, Marchi Júnior, Sonoda-Nunes & Moraes e Silva, 2019). As restrições e regulações no uso do corpo caracterizavam uma ascese específica, amplamente descrita por Weber (2004), em que havia rejeição aos prazeres mundanos, aceitação da dor infligida pelo esforço pessoal e intensa dedicação ao trabalho que cada indivíduo exercia.
Essas condições são apontadas por Weber (2004) como elementos circunscritos ao contexto de origem do capitalismo, de forma que a cultura protestante das colônias norte-americanas se apresenta intimamente ligada à formação da economia capitalista moderna. Entre as fontes utilizadas para construir a análise, Weber fez amplo uso dos textos de Benjamin Franklin, apontado como figura representativa da moral protestante1. Afinal, o pensador norte-americano, por meio de seus escritos, dava conselhos morais de ordem prática que professavam uma nova ética que se manifestava, a do trabalho duro, busca pelo lucro e negação dos divertimentos, elementos que acabaram tendo repercussão na esfera da educação do corpo2. Essas características demonstram que o intelectual norte-americano tinha uma forma específica de entender e praticar o protestantismo, sendo que a informação se torna mais explícita à medida que se compreende a forma como Franklin idealizava uma educação do corpo.
Nesse sentido, o presente artigo busca responder à seguinte problemática de pesquisa: como as noções de saúde e de educação do corpo se mostraram presentes na obra do pensador norte-americano Benjamin Franklin? Para se alcançar o intento, realizou-se uma pesquisa historiográfica, tendo-se como fontes primárias os textos do autor que indicavam a existência de elementos de uma educação do corpo, representados mediante dietas, exercícios e moderação.
As fontes selecionadas para análise foram os seguintes textos: 1) Poor Richard's almanack (1732); 2) Experiments and observations on electricity (1769 - mais precisamente a carta direcionada ao seu amigo Oliver Neave); 3) The art of swimming rendered easy; with directions to learners, (1790); 4) The autobiography of BenjaminFranklin (1793 - a primeira edição foi publicada postumamente em 1791, sob os cuidados de seu neto William Franklin); e 5) The works of Benjamin Franklin: containing several political and historical tracts not included in any former edition (edição de 1844 - especificamente a carta endereçada à senhora Mary Stevenson a respeito da água do mar, escrita originalmente em 1761). Para análise, efetuou-se um diálogo com a obra do historiador francês Georges Vigarello, em função de suas contribuições para a compreensão das mudanças históricas em processos de usos e atribuições de sentido do corpo e das práticas de saúde, no século XVIII, período em que o norte-americano escreveu suas obras.
A pesquisa em torno dos textos de Franklin se justifica pelos seguintes motivos: a) existem indícios, ainda pouco explorados, em estudos da área de história da saúde, que têm o apontado como um dos pioneiros norte-americanos em conselhos de nutrição e educação física. Diller (1909), por exemplo, ressalta o papel ativo do intelectual na construção do primeiro hospital, bem como a primeira escola de medicina, nos Estados Unidos. Em sentido similar, William Clifford Roberts, médico, ex-editor do American Journal of Cardiology e autor de diversos artigos na área da saúde, destaca a importância de Franklin para a medicina por intermédio de seus inúmeros conselhos nutricionais e de exercícios físicos (Roberts, 1991); b) o século XVIII é tido como um período de diversas transformações no campo da saúde, quando novas ideias passaram a circular no discurso médico-científico (Vigarello, 1996, 1999; Corbin, 2016), e a leitura das obras do pensador norte-americano pode contribuir para melhor se compreender o contexto; e c) a sociedade americana da época, especialmente a colônia da Pensilvânia, era predominantemente fiel ao culto protestante, em que imperavam fortes críticas ao denominado mau uso do tempo livre. Dessa maneira, havia constante recriminação aos divertimentos, tanto em bares quanto ao ar livre, assim como demonstrado por Amstel et al. (2019). Se as práticas corporais em geral eram restritas, é relevante se saber como Franklin adequou-as ao meio religioso do contexto em que vivia. Nesse sentido, torna-se fundamental se compreender o ethos protestante em questão.
O contexto histórico de Franklin: o utilitarismo e o pragmatismo no protestantismo frankliano
Os primeiros protestantes que chegaram às colônias americanas estavam em busca de liberdade religiosa, visto que tiveram inúmeros conflitos com católicos e anglicanos na Inglaterra. Para além disso, sabe-se também que grupos puritanos se envolveram em conflitos profundos a respeito do controle de divertimentos. A cultura anglicana, favorável aos jogos e práticas de lazer, não coadunava com a moral puritana que desejava cercear as atividades nãoreligiosas (Hollinger, 2013; Karnal, 2017; Amstel et al., 2019).
De fato, sabe-se que uma das primeiras leis promulgadas nas novas colônias americanas envolveu a proibição de alguns divertimentos considerados imorais (Jable, 1974; Dulles, 1965; Overman, 2011; Amstel et al., 2019), entre eles, elencam-se os jogos de azar, blood sports3, bilhar, boliche, carteado, adivinhação, entre outros. Ainda assim, cabe destacar, conforme indica Overman (2011), que essas reprovações morais poderiam abranger outras atividades, caso estivessem vinculadas à busca de diversão ou cultuando a preguiça.
Essa visão contrária aos divertimentos, no protestantismo, decorria de uma nova ética do trabalho, desenvolvida inicialmente na seita calvinista e, posteriormente, estendida de maneira generalizada na cultura capitalista (Weber, 2004). Em função de o protestantismo abolir do processo de salvação elementos tidos como ‘mágicos’ (assim como o papel da eucaristia no catolicismo) e dar ênfase à fé como mecanismo para redenção, gradualmente se iniciou uma extensão dessa percepção sobre a realidade em geral. Weber (2004) classificaria esse processo como ‘desencantamento do mundo’, em que o protestante eliminava mecanismos auxiliares e sobrenaturais de salvação; sem a maior parte dos sacramentos, o indivíduo encontrava-se sem meios para saber se estaria salvo. Diante disso, o calvinismo passou a interpretar teologicamente que a redenção se daria pelo sucesso material dos devotos. Nesse sentido, quanto mais bem-sucedido financeiramente um cristão se mostrasse, maiores seriam os sinais de que estava predestinado a se salvar. Isso possibilitou a formação de uma nova ética de trabalho, em que os protestantes evitavam gastar dinheiro com qualquer coisa supérflua e trabalhavam rigorosamente. Sendo assim, conforme apontam Weber (2004) e Overman (2011), os divertimentos eram algo a ser eliminado da sociedade.
Franklin estava imerso nessas questões, visto que teve uma educação calvinista, tendo-se em vista que sua família e a comunidade na qual crescera comungavam dessa orientação religiosa. No entanto, durante a maior parte de sua vida, declarou-se um deísta4 (Isaacson, 2015), ainda que em uma versão frankliana, pois o intelectual era pragmático e utilitarista em sua crença acerca do divino. Por sua vez, o deísmo clássico acreditava que Deus não se importava com a humanidade e havia deixado a natureza como mantenedora da ordem divina (Aquino, 2013). Franklin enxergava nessa teologia um pressuposto para surgir um relativismo moral que poderia ser prejudicial para a sociedade (Isaacson, 2015), já que Deus, não se importando com a humanidade, seria indiferente ao fato de as ações humanas serem boas ou ruins. O norte-americano não concordava com essa percepção relativista no campo moral.
Cabe ainda destacar que o pensador não corroborava totalmente a educação calvinista que havia recebido. O intelectual alegava que a predestinação do recebimento da graça para alguns poucos eleitos, como defendido pelo calvinismo, era algo a ser contestado, pois implicaria na desqualificação da ‘boa obra’, que Franklin acreditava ser a grande vantagem das religiões (Isaacson, 2015). Nesse sentido, pode-se dizer que a sua visão deísta englobava tanto o que ele considerava bom (útil) no deísmo clássico, associado a alguns valores do puritanismo calvinista, desqualificando o que considerava nocivo (entenda-se inútil, não prático) nas duas teologias.
Isaacson (2015) salienta que Franklin foi um filósofo que acabou preparando o terreno filosófico do utilitarismo norte-americano. Souza (2010) salienta que a corrente do pragmatismo se originou oficialmente com os pensadores William James e Charles Sanders Peirce ao final do século XIX e que tem como nome mais proeminente o filósofo John Dewey. De forma mais ampla, pode-se dizer que o pragmatismo defende a ideia de que qualquer tipo de conhecimento deve estar atrelado a um resultado prático. Por sua vez, o utilitarismo, segundo aponta Sandel (2012), é uma linha de pensamento que atribui aos valores morais o bem-estar coletivo e das partes envolvidas, tendo caráter normativo. Desse modo, de acordo com o autor, uma ação terá sua utilidade deduzida de quanta felicidade ela produziu para os indivíduos. Nesse sentido, Isaacson (2015) afirma existirem fortes evidências do pragmatismo e utilitarismo nos textos de Franklin e que acabaram repercutindo na forma deste de compreender a educação do corpo.
Não há nada de errado em nadar - o valor da natação para Franklin
Franklin, vivendo em uma comunidade que não enxergava com bons olhos os indivíduos que perdiam tempo divertindo-se com atividades inúteis, percebeu a necessidade de justificar de maneira utilitarista os divertimentos, tornando-os virtuosos e respeitáveis. Em um de seus textos, o autor classificava o nadar como “[…] um dos divertimentos mais saudáveis e prazerosos” (Franklin, 1790, p. 3, tradução nossa)5. Cabe destacar aqui, conforme apontam Vigarello (1996, 1999), Munoz (2008), Pelayo (2010) e Corbin (2016), que o ato de se banhar estava mudando de status no século XVIII. A mentalidade científica do período, mesmo com maior aceitação da prática do banho, acreditava que a água penetrava no corpo por meio dos poros, o que possibilitava uma atuação da mesma sobre o organismo. Vigarello (1996, 1999) e Corbin (2016) salientam ainda que os temores em relação às pestes e doenças diversas desapareceram em meados dos Setecentos, entretanto os autores indicam que o ato de se banhar ainda sofria uma série de interdições e muitas prudências. Por essas questões, o banho se manteve durante quase todo o século XVIII e XIX como uma prática restrita às classes mais abastadas.
Contudo, Vigarello (1996, 1999) e Corbin (2016) apontam que um amplo processo de transformação das sensibilidades em relação aos banhos foi realizado a partir do século XVIII e uma das medidas foi selecionar os períodos do ano no qual poderiam ser realizados. Vigarello (1996) lembra que, na segunda metade do século XVIII, na França, os banhos não eram recomendados no inverno, sendo a primavera e o verão as estações mais favoráveis para a sua realização. Além disso, afirma que o banho de rio, até então tratado como um divertimento isolado, passou a ser percebido na segunda metade do século XVIII como um instrumento de saúde. Tornava-se uma prática ascética, tanto moral como fisicamente, pois o endurecimento do corpo na água fria buscava mobilizar energia e afirmar sua solidez. Vigarello (1996, p. 139) demonstra isso referenciando o próprio Franklin:
Outro exemplo diferente, ainda, é a paixão com que Benjamin Franklin falou dos banhos de rio ou das imersões tônicas, as quais se entregava regularmente a partir de 1760. Testemunho importante, decerto, porque Franklin insiste numa verdadeira mania assim como insiste numa prática de substituição. Nada equivale às virtudes do banho frio, mas o choque que ele produz pode tomar corpo, abalá-lo. Pode até violentar certas constituições.
O nadar, para Franklin, estava em sintonia com as lógicas científicas e médicas circulantes no contexto europeu do século XVIII, apontadas por Vigarello (1996, 1999), e Corbin (2016). Tanto que o pensador norte-americano recomendava a natação para as estações quentes, uma atividade que, se praticada por até 2 h, ajudaria a limpar os poros, combater diarreias, além de proporcionar uma boa noite de sono pelo cansaço provocado (Franklin, 1790). Essa perspectiva do orgânico estava em plena consonância com a noção de exercício exposta por Vigarello (2008a, p. 303, grifo do autor): “[…] o movimento físico ajudaria a evacuar as ‘partes’ internas, expulsando os humores cuja estagnação seria um perigo”. O historiador francês indica que desde o século XVI existiam evidências da presença de discursos que afirmavam que os exercícios ajudavam a melhorar o funcionamento das atividades internas do organismo:
A natação tem vantagem sobre o banho simples, pois os movimentos fortes e repetidos feitos para vencer a resistência da água são bem mais favoráveis para fazê-la penetrar interiormente e tornar mais flexível a atividade muscular de todas as partes do corpo, possibilitar a secreção e as excreções mais fáceis e mais favoráveis, aplicar, em suma, o selo da saúde sobre as melhores constituições (Vigarello, 1996, p. 141).
Como exemplo desses aperfeiçoamentos corporais, Vigarello (1996, 1999, 2008a) cita a questão da evacuação e de como as diarreias representariam a fraqueza dos canais de expulsão dos excrementos. O exercício interviria, auxiliando na conservação, fortalecimento e controle da expulsão de líquidos. Nesse aspecto, é importante frisar que o exercício como remédio para a diarreia estava em alinhamento com os ideais de Franklin de repúdio aos medicamentos para uma vida mais saudável, em que o exercício seria uma opção natural de automedicação para essa enfermidade, ou seja, se tornava um importante elemento de aprimoramento da dimensão orgânica.
Entretanto, cabe destacar que o nadar não seria o único remédio que Franklin defendia para a diarreia:
É certo que a natação é o meio de parar uma diarreia e até mesmo de produzir uma constipação. Com relação àqueles que não sabem nadar, ou que são afetados por uma diarreia em um período que não lhes permite fazer uso desse exercício, um banho morno, limpando e purificando a pele, é algo muito benéfico e, muitas vezes, resulta em uma cura radical. Falo de minha própria experiência, frequentemente repetida, e para os outros a quem eu recomendei isso (Franklin, 1790, p. 4, tradução nossa)6.
Torna-se imprescindível destacar as percepções confusas do que causava uma diarreia. O trecho não estabelece uma relação com a ingestão de determinada substância nociva, a falta de outra necessária ou mesmo uma condição causada por fatores internos ao orgânico. Pela escrita, impõe-se que seria a pele a porta de entrada do mal (Vigarello, 1996; 1999; Corbin, 2010; 2016). A causa das diarreias era enigmática, ligada ao imaginário das doenças que entravam pela superfície cutânea ou, como na própria fala de Franklin, pelos poros.
Nota-se que a importância dada ao exercício ainda não estava consolidada. Quando o indivíduo tivesse sua prática física inviabilizada, poderia substituí-la por atividades passivas, porém de eficácia semelhante, segundo apontava o conhecimento empírico do período. No aspecto dos poros, em que Franklin recomendava a limpeza propiciada pelo nadar, prosseguia-se a noção dos humores contidos no corpo. Sua estagnação seria nociva à saúde, cabendo, portanto, a sua exsudação e seu movimento. Os poros teriam potencial de, através da superfície cutânea, remover o mal físico contido na carne, no entanto vale salientar que os poros, para Franklin, não eram apenas vias de saída, mas também de entrada e filtro de substâncias.
Franklin acreditava, por exemplo, que a exposição à água permitia enfrentar a sede pela absorção de líquido pelos poros, inclusive pensava que, caso algum indivíduo estivesse flutuando em água salgada, a pele deste poderia filtrar o sal e permitir a entrada de água no organismo, mantendo o corpo hidratado, conceito estreitamente vinculado aos estudos acerca dos poros que vinham sendo realizados naquele período, como apontado por Vigarello (1996; 1999; 2008a) e Corbin (2010, 2016). Franklin testava o próprio corpo na água, tendo o alicerce da ideia dos poros para suas constatações, assim como indicado em uma carta redigida em 1761:
Eu frequentemente observei que, não importa o quão sedento estava antes de começar a nadar, tal sensação não persistia na água. Os poros do corpo parecem filtrar muito bem o sal da água; por mais que durante minha infância tenha permanecido várias horas dentro da água salgada nadando, por vários dias consecutivos, nunca observei meu sangue ou fluidos tornarem-se salgados. […] notável que os peixes, que vivem em ambiente de água salgada, não tem esse gosto (Franklin, 1844, p. 233, tradução nossa)7.
Novamente se destaca o quanto o nadar para Franklin não parecia ser um divertimento preguiçoso, nocivo à sua salvação e incoerente com uma vida pragmática defendida pela moral protestante. Pelo contrário, as várias horas que ele empreendia nadando lhe conferiam um profícuo objeto de análise científica, em que questionava os motivos de o corpo ter uma sensação de sede reduzida em ambiente aquático. Nesse sentido, seus escritos forneciam constantemente diversos conselhos práticos aos leitores, assim como se observa numa carta endereçada a um amigo: “[…] imaginei que as pessoas no mar, quando afligidas pela sede, e toda água doce já tiver sido ingerida, usem banheiras e as encham com água do mar, ficando nelas uma ou duas horas por dia, de forma que poderão ficar muito aliviadas da sede” (Franklin, 1844, p. 233, tradução nossa)8.
As observações relativas ao corpoestavam inseridas contextualmente em uma longa temporalidade que, conforme indicam Vigarello (1999; 2008a) e Gleyse (2018), desde o Renascimento empreendia uma expansão dos conhecimentos acerca dos diversos sistemas que compunham o organismo. Esses olhares estavam vinculados a diferentes campos de uma forma ainda nascente de ciência moderna, em que os conhecimentos de física, química, biologia, fisiologia e tantas outras áreas ainda se confundiam e, muitas vezes, estavam organizados e agrupados em uma mesma área do saber. Vigarello (1999; 2018) lembra que, ao estarem mais livres para exploração científica, novas cartografias do corpo foram escritas pelos cientistas, contestando ideias antigas e colocando novas hipóteses sob apreciação de seus pares.
O exercício racionalizado por Franklin demandava uma quantificação de tempo para sua eficiência: 2 horas e não mais que isso. Torna-se importante salientar que não existe uma justificativa do porquê desse número, além da própria experiência prática do intelectual, contudo já se começava a notar a necessidade de se controlar o tempo das práticas físicas, algo próximo daquilo que Vigarello (1995, 2008a, 2018) denominou de ciframento, isto é, a determinação racional do uso do tempo nas práticas corporais e que se consolidariam no século XIX.
Outro elemento a ser destacado no pensamento de Franklin a respeito do nadar era o utilitarismo manifesto na atividade, própria para os dias de calor, bem como o impacto positivo na qualidade de sono. Novas evidências de racionalização e utilitarismo nos exercícios na obra do norte-americano, que corroboram claramente as premissas da ética protestante e seu papel no controle do corpo, conforme apontaram Overman (2011) e Amstel et al., (2019).
Destaca-se, ainda, a importância que o pensador dava para a superação do medo no aprender a nadar: “A primeira coisa que deve ser aprendida é despojar-se de todo medo; e então, se você seguir as instruções dadas nesta pequena obra, e praticá-las frequentemente, você logo dominará a agradável arte da natação, que, uma vez obtida, jamais poderá ser esquecida” (Franklin, 1790, p. 5, tradução nossa)9.
O nadar, portanto, assumia sua necessidade de prática constante. A internalização do movimento decorria da repetição, sendo possível se efetuar uma primeira relação, ainda que bastante rudimentar, do ato de treinar no sentido exposto por Vigarello (2008b). Franklin se aproxima, mas não atravessa o conceito de treinamento, visto que ainda faltava o objetivo de melhora de uma valência física específica, fato que, segundo aponta Vigarello (1995, 2008b), só seria sistematizado com mais detalhes no final do século XIX e, sobretudo, nas primeiras décadas do século XX. A frequência de nadar a que o pensador americano se referia parecia estar mais associada a uma superação de medos e a uma educação do movimento de forma mais ampla, para que o indivíduo não se esquecesse nunca mais como nadar.
A relação de Franklin com o nado, inclusive do ato de ‘se mostrar’ a partir de uma habilidade corporal, é um elemento destacado de sua biografia, especialmente quando são narradas experiências em que, sob o olhar de amigos, Franklin jogava-se em um rio para exibir suas habilidades aquáticas. Em viagem pela Inglaterra com amigos, o norte-americano, em determinado momento dentro do barco, despiu-se e pulou no rio: “Em nosso retorno, a pedido dos companheiros, me despi e saltei ao rio, nadando das proximidades de Chelsea até Blackfairs; executando, no trajeto, muitos tipos de atividades, tanto em cima como por baixo da água, o que surpreendeu e agradou a todos aqueles para os quais era uma novidade” (Franklin, 1793, p. 60, tradução nossa)10.
O processo de hierarquizar o nadar como atividade elegante e útil, portanto, pode ter tido sua origem nas sociedades de Corte, mas o fenômeno de expansão do mesmo não se limitou à vida cortesã (Vigarello, 1996). A nova aproximação pedagógica prescrita por Franklin foi efetuada tendo o nadar como objeto. Especificamente sobre o assunto, o intelectual afirma o seguinte:
[...] eu gostaria que todos os homens fossem ensinados a nadar em sua juventude; em muitos casos, seriam mais seguros de si por terem essa habilidade, bem como muito mais felizes, livres de dolorosas situações de perigo, para não falar do divertimento, que é tão prazeroso e saudável como exercício. Os soldados deveriam, em minha opinião, serem ensinados a nadar; talvez pudesse ser de uso frequente tanto para surpreender um inimigo quanto para se salvar. E se eu tivesse agora meninos para educar, eu preferiria que nas escolas […] fossem oferecidas oportunidades para adquirir uma arte tão vantajosa, que, uma vez aprendida, nunca é esquecida (Franklin, 1790, p. 9, tradução nossa)11.
Para Franklin, nadar seria uma atividade digna de elogios, sem vícios que lhe viessem à memória para contar a seus leitores. Para além disso, deveria ser uma prática ensinada em escolas para meninos, bem como para militares, ou seja, a natação deveria ser inserida num amplo dispositivo pedagógico, assim como já acontecia na França setecentista (Terret, 1994; Vigarello, 1996; Munoz, 2008; Pelayo, 2010), país com o qual Franklin teve forte contato em função de suas ações diplomáticas (Isaacson, 2015).
No que diz respeito às observações de Franklin acerca da natação, cabe destacar que ele inventou, durante a juventude, palmares e nadadeiras que ajudavam a se nadar mais rápido (Isaacson, 2015)12. As criações franklinianas manifestam uma busca por racionalização e maior eficácia da ação de nadar por parte do intelectual norte-americano. Franklin relatava em seus escritos como observou a mecânica dos movimentos com os tornozelos no rendimento de seu nado. Apontou que, para cruzar grandes distâncias, variava o nado em decúbitos ventral e dorsal, na busca de evitar a fadiga (Franklin, 1790). Observam-se aqui movimentos mais racionalizados e passíveis de correção, sendo aplicados às circunstâncias que exigem determinada eficácia. Desenrolam-se os indícios de ‘rendimento’ da ação corporal, na qual a velocidade e a técnica receberiam posição de destaque no dispositivo que estava sendo instalado na segunda metade do século XVIII, conforme sublinha Vigarello (2018).
Uma carta de Franklin endereçada a Oliver Neave (Franklin, 1769) mostra-o defendendo que a idade avançada de seu colega não poderia ser uma desculpa para não querer aprender a nadar. O risco de cair de um bote justificaria a necessidade de ser capaz de nadar até a margem ou boiar até que alguém viesse resgatá-lo. Franklin segue a carta indicando os procedimentos de aprendizado de inserção do corpo na água, técnicas de boiar, o uso dos pulmões no auxílio para se sustentar o corpo na flutuação, além dos movimentos a serem efetuados com os braços e pernas. Havia também a indicação de exercícios para se acostumar um iniciante, como atirar um ovo em água clara e funda, de forma que o aprendiz deveria mergulhar para recuperá-lo.
No entanto, Franklin deixava claro que todas essas dicas, que poderiam ser utilizadas por quem acidentalmente viesse a se encontrar em uma grande concentração de água, sofrendo risco de afogamento, não deveriam ser aplicadas sem antes praticá-las de maneira segura. Portanto, o intelectual norte-americano advogava que todos os indivíduos deveriam aprender a nadar em sua juventude, evitando, dessa forma, futuros riscos (Franklin, 1790). Nota-se uma preocupação em pedagogizar os movimentos, por intermédio de exercícios que facilitassem sua assimilação.
A proximidade entre as proposições de Franklin e a mentalidade do período se tornam ainda mais evidentes quando o intelectual explora questões relacionadas à saúde. Foi nesse momento que um amplo processo de educação do corpo se evidenciou em sua obra.
Dieta virtuosa e o combate aos excessos pecaminosos: o corpo equilibrado e saudável
“Aquele que vive carnalmente não viverá eternamente” (Franklin, 1732, p. 5, tradução nossa)13.
A epígrafe acima, retirada de um dos almanaques de conselhos para uma vida melhor, o Poor Richard’s almanack, representa o pensamento de Franklin em relação aos cuidados a serem tomados com o corpo. O trecho deixa evidente a condenação das atitudes prazerosas, evidenciando uma noção de corpo entrelaçada a uma religiosidade protestante do período e que exigia um modelo corporal muito específico e que necessitava passar por um amplo processo de educação.
Isaacson (2015) afirma que Franklin dedicou muitas máximas do Poor Richard’s almanack (1732) para tratar de conselhos de medicina, nutrição e saúde geral, não sendo à toa que, posteriormente, recebeu títulos de doutor honoris causa de instituições como Oxford e St. Andrews. Benjamin Franklin entendia o controle do corpo como ferramenta para a proliferação das virtudes do indivíduo, de maneira que a negação de suas vontades de prazer gradualmente civilizaria os costumes. Essas prescrições seriam uma das principais metas do processo de educação do corpo que o pensador norte-americano considerava fundamentais.
O pensamento frankliano advogava a favor de determinado modelo corporal e, para que isso se efetivasse, era necessário que uma nova educação do corpo fosse sistematizada. Necessitava-se de ensinamentos que fossem mais práticos do que teóricos. Cabe lembrar que Franklin participava de uma conjuntura em que o progresso da sociedade não era mais compreendido como algo determinado apenas pelas virtudes da classe aristocrática e/ou dos governantes, mas algo que deveria ser conquistado cotidianamente por todos os indivíduos que compunham uma sociedade.
Para Franklin, as virtudes só poderiam florescer se o indivíduo lutasse contra os desejos de prazer, focasse no autocontrole e na realização pessoal. Tratava-se de uma releitura protestante/norte-americana do estoicismo, em função de valorizar o domínio racional sobre o corpo como elemento fundamental de uma educação virtuosa. Para atingir esse objetivo, Franklin (1732) enfatizava que uma condição saudável era uma meta a ser atingida, pois um corpo doente impediria a prática da vocação e a concretização das virtudes protestantes.
Exposto isso, tem-se para análise o Poor Richard’s almanack de 1732. A autoria é de um pseudônimo de Franklin, que escreveu as anedotas, ditados e conselhos, chamando-se ‘Richard Saunders’. O pensador americano aconselhava de início: “Coma para viver, e não viva para comer” (Franklin, 1732, p. 3, tradução nossa)14. A passagem evidencia uma noção de austeridade, de controle da gula, que se repetia em outros conselhos, como “[…] para prolongar sua vida, diminua suas refeições […]” (Franklin, 1732, p. 4, tradução nossa)15. Ainda no mesmo sentido, outra máxima foi escrita por ele: “[…] uma cozinha gorda, uma vontade magra […]” (Franklin, 1732, p. 4, tradução nossa)16. Por sua vez, a frase “[…] muitos pratos, muitas doenças [...]” associava a alimentação com a ocorrência de enfermidades causadas pelo excesso na mesa (Franklin, 1732, p. 6, tradução nossa)17.
No que se refere à alimentação, encontram-se no pensamento de Franklin evidências nítidas da materialização da moral protestante. Quellier (2011), ao analisar a gastronomia puritana, evidencia que ela nasceu de uma reação aos jejuns praticados pelos católicos, prática vista como hipócrita pelos protestantes. O autor lembra, por exemplo, que, ainda no século XVI, Erasmo de Roterdã condenava veementemente a prática de abstinência realizada pelos católicos durante a Quaresma. Quellier (2011) ainda aponta que as críticas em relação à alimentação dos praticantes do catolicismo também foram feitas por figuras importantes do protestantismo como Lutero e Calvino. O autor resume o que seria essa forma de alimentação protestante:
O jejum protestante é acima de tudo a apologia de uma mesa sóbria e sem excesso, é sinônimo de moderação e temperança. Para os protestantes, o verdadeiro sentido do jejum é uma prática constante da sobriedade que não exclui forçosamente a carne, e sem qualquer excesso, qualquer volúpia e qualquer cobiça da carne (Quellier, 2011, p. 82).
A moral protestante valorizava a moderação e a temperança no momento de se alimentar, afinal, o que se almejava era a sobriedade e a recusa de se nutrir com iguarias requintadas. Essa mentalidade se mostrou bastante presente na obra de Franklin e se tornou um dos elementos trabalhados pelo pensador quando prescrevia conselhos paraa correta educação do corpo.
O termo latino Principis obsta, vocábulo que pode ser entendido de forma mais literal como “[...] negar o mal ainda no começo [...]”, abre um dos capítulos do almanaque (Franklin, 1732, p. 6). Assim como a remoção das ervas daninhas deveria ser feita antes que criem raízes na planta, os vários tipos de mal que afligem o indivíduo deveriam ser combatidos logo no início da vida. Aqui se encontram indícios da valorização de um processo de educação do corpo, visto que estava começando a ser destacada uma saúde trabalhada na prevenção, que estava profundamente relacionada com a medicina europeia do século XVIII.
A obra de Franklin estava em sintonia com a mentalidade existente no século XVIII. Apresentava, de maneira sistemática, reflexões relativas à saúde, como, por exemplo, nos indícios de controle na mesa: “Queijo e carne salgada, coma-se moderadamente” (Franklin, 1732, p. 5, tradução nossa)18. “Eu vi poucos morrerem de fome. Já por comer muito, mais de dez mil” (Franklin, 1732, p. 16, tradução nossa)19. A inserção de Franklin ao pensamento do período era tanta que ele também não deixava de ironizar o indivíduo que “[…] valoriza muito provisões moderadas e abstinência em público, mas na sua vida privada é guloso” (Franklin, 1732, p. 12, tradução nossa)20. Afinal, o pensamento do período indicava, conforme apontam Vigarello (1999) e Quellier (2011), que não bastava ser civilizado e controlado em público, era necessário se incorporar uma nova educação corporal, em que os bons costumes deveriam permear todos os âmbitos da vida, inclusive os momentos mais privados.
Esse ponto se materializa com contundência em outra frase escrita por Franklin: “Contra as doenças, faça uso da barreira mais forte, a virtude defensiva, isto é, a abstinência” (Franklin, 1732, p. 33, tradução nossa)21. A panaceia universal, a cura para todos os males, encontrava-se justamente na ausência de algo, ou seja, em sua abstinência. O corpo vazio por vontade própria tornava-se o mais virtuoso, pois era uma manifestação racional, visando à manutenção da saúde. Para se alcançar isso, necessitava-se de autocontrole e isso, por sua vez, não deveria se aplicar apenas a um grupo específico de indivíduos, assim como os conselhos monásticos prescritos aos sacerdotes ascetas do período medieval. As lições de Franklin eram conselhos aplicados a todos os membros de sua comunidade que desejassem obter algum progresso (material e espiritual) em suas vidas. Refletir sobre o corpo, seus hábitos e sua saúde parecia inserir-se em um contexto burguês em que Franklin mobilizava valores e virtudes que podiam extrair do indivíduo o máximo desempenho para uma vida de sucesso.
Ainda acerca da saúde e alimentação, Franklin emitiu outros posicionamentos prescritivos. Por exemplo, a frase “Três boas refeições por dia é viver mau” (Franklin, 1732, p. 19, tradução nossa)22 estava em consonância com a vida prática e cotidiana do cientista da Pensilvânia, que costumava, segundo aponta Isaacson (2015), se alimentar à base de pão e água boa parte de sua vida, mesmo tendo riqueza suficiente para realizar fartas refeições. Franklin declarou em sua biografia que chegou a ser vegetariano23 por muitos anos para que tivesse dinheiro para comprar livros, indulgência racionalmente imposta ao próprio corpo com fins pragmáticos, já que queria mais livros para alimentar sua alma do que comida para satisfazer seu corpo.
Outra passagem do pensador que apresenta com clareza os enunciados circulantes no período é a frase “[…] coma menos refeições e precisará de menos remédios” (Franklin, 1732, p. 32, tradução nossa)24. A oposição ao uso de medicamentos como forma de cura de doenças é algo que será encontrado posteriormente na obra Emílio, ou da educação, publicada por Jean-Jacques Rousseau em 1762. Segundo o filósofo genebrino, a necessidade de robustecimento corporal vinha intimamente ligada à necessidade de controlá-lo, impedindo, assim, que enfraquecesse a alma: “[...] quanto mais fraco o corpo, mais ele comanda; quanto mais forte mais obedece” (Rousseau, 1995, p. 31). Para Rousseau, uma sociedade em que os indivíduos tinham corpos débeis - e, portanto, almas enfraquecidas - era o terreno fértil para o desenvolvimento da ‘arte mais perniciosa aos homens’: a medicina. A medicinaseria “[...] o divertimento das pessoas ociosas, desocupadas, que não sabendo o que fazer de seu tempo o desperdiçam conservando-se” (Rousseau, 1995, p. 31).
No pensamento frankliano, anterior à publicação rousseauniana, os remédios representavam a muleta que nenhum indivíduo deveria carregar e, caso se observassem os conselhos preventivos de controle do corpo no Poor Richard’s almanack, tais questões seriam minimizadas na vida prática. Dessa maneira, os indivíduos estariam menos suscetíveis a terem sua saúde deteriorada e seriam mais úteis à sua comunidade. Aliás, para a noção de corpo frankliano, os remédios não eram necessariamente algo ruim, porém o condenável era a necessidade da sua utilização se dar pelo desleixo do indivíduo que não se preveniu, que não se exercitou adequadamente, aquele que dormiu e comeu em demasia, ou seja, viveu uma vida marcada por excessos.
Todo esse autocontrole em relação aos alimentos estava atrelado aos conceitos espirituais que Franklin experimentava no cristianismo: “Não é de se admirar que Tom, o pecador gordo, ganhou peso. Fez de toda sua vida um jantar contínuo” (Franklin, 1732, p.26, tradução nossa)25. No entanto, cabe ressaltar que Franklin não pregava uma negação total dos alimentos, visto que suas críticas residiam no excesso, exagero e fartura: “[…] saco vazio não para em pé” (Franklin, 1732, p. 26, tradução nossa)26. A lógica apresentada valorizava certa temperança, na qual a alimentação deveria ter um fim pragmático e jamais ser apenas uma fonte de prazer. O exercício das virtudes de maneira equilibrada não permitia o descontrole, da mesma forma que não tolerava a falta. Nesse sentido, comer em demasia e jejuar eram facetas de uma mesma moeda e deveriam ser elementos a serem extirpados numa pedagogia do corpo que valorizasse a saúde.
Essa temperança alimentar era vista por Franklin como uma arte da prevenção: “Coma e beba uma quantidade exata ao que a constituição de seu corpo permite, em referência aos serviços da mente” (Franklin, 1732, p.33, tradução nossa)27. Nesse sentido, pode-se dizer que as noções de abstinência, marcadas no período medieval pela mortificação da carne apregoadas pelos jejuns dos monges católicos (Le Goff & Truong, 2004; Quellier, 2011), não apresentavam um sentido de dieta em Franklin. O corpo deveria consumir o que lhe convinha, mas regrado pelos costumes e, sobretudo, por um amplo processo de racionalização, conforme apontou outra máxima: “A quantidade e a qualidade, quando encontradas, devem ser constantes” (Franklin, 1732, p.33, tradução nossa)28.
Observa-se que a austeridade e o controle eram lembrados a todo o momento. O indivíduo virtuoso deveria ser constante e inabalável. “O excesso de qualquer coisa, na carne e na bebida, deve ser evitado” (Franklin, 1732, p. 33, tradução nossa)29, ainda que, de acordo com a idade e doença, Franklin defendesse quantidades diferentes, ou seja, já existia uma individualização maior dos conselhos e das prescrições. O que era bom para uma pessoa poderia ser ruim para a outra: “O que é demais para um homem fleumático pode ser insuficiente para um colérico” (Franklin, 1732, p. 33, tradução nossa)30. “Pode ser ingerida uma quantidade maior de determinadas comidas, visto que algumas são de digestão mais leve que outras” (Franklin, 1732, p. 34, tradução nossa)31. No entanto, é importante lembrar que toda essa regulação dos alimentos não pode se desviar das recomendações relativas a uma necessidade espiritual de combate aos pecados: “A dificuldade reside em achar a mensuração exata; coma por necessidade, não por prazer, pois a luxúria não conhece os limites da necessidade” (Franklin, 1732, p. 34, tradução nossa)32.
Sobre esse ponto, cabe chamar a atenção para o desejo da mensuração exata, fruto da racionalização apregoada pela mentalidade do período, algo que também era caríssimo aos protestantes. Vigarello (2008a, p. 465), ao explorar a emergência do ideário da racionalização na sua relação com a dimensão corporal, característica que já estava em processo de formação durante o século XVIII, aponta elementos interessantes: “[…] o crescente prestígio das ciências físicas despertou […] a necessidade de medir as operações da máquina corporal”. O historiador francês indica que, a partir da segunda metade do século XVII, começaram a surgir os primeiros cálculos elaborados para o peso do indivíduo e a quantificação das refeições.
Um dos capítulos do almanaque de Franklin, denominado de ‘Regras para uma saudável e longeva vida, e como se prevenir de febres malignas e doenças em geral’, aplica noções de dieta ainda mais particulares para a preservação da saúde. Na busca por uma quantificação exata,o autor desejava conceder conselhos ainda mais precisos e individualizados: “A juventude, a idade e a doença exigem quantidades diferentes [...]”, em relação a quanto se deveria comer e beber (Franklin, 1732, p. 33, tradução nossa)33. A obsessão protestante por quantificar os diferentes aspectos da vida cotidiana, conforme discutido por Overman (2011) e Amstel et al., (2019), era manifesta no pensamento de Franklin:
A dificuldade reside em achar a exata medida; mas coma por necessidade, não por prazer, pois a luxúria não começa onde a necessidade termina […] Se você comer tanto que o torna incapaz de estudar, ou realizar outras atividades, então você ultrapassou a medida certa […] se você se sente lento e pesado após comer carne, é um sinal de que ultrapassou a medida ideal; a carne e a bebida devem revigorar o corpo e torná-lo bem-disposto, e não pesado e oprimido (Franklin, 1732, p. 34, tradução nossa)34.
A dosagem ideal das refeições era uma constante na visão frankliana, que também acabou por extrapolar as questões relativas à alimentação, sugerindo e prescrevendo exercícios físicos:
Faça um pouco de exercícios, um quarto de hora antes das refeições, tais como balançar seus braços com um pequeno peso em cada mão; pular, ou algo parecido, pois isso agita os músculos do peito […]. Uma dieta moderada prepara o corpo contra todos os acidentes externos; de modo que ele não será tão facilmente ferido pelo calor, frio ou trabalho; se a qualquer momento ele for prejudicado, será mais facilmente curado, seja por feridas, deslocamentos ou contusões (Franklin, 1732, p. 34, tradução nossa)35.
Vigarello (2018), ao explorar a mentalidade do século XVIII na França, salienta que as formas de se usar o corpo, nesse período, ainda eram bastante confusas e não tinham especificidade detalhada, oriunda de um maior processo de racionalização. Nesse sentido, não era absurdo se pensar que saltar poderia servir para agitar os músculos peitorais. Isso parecia estar também vinculado a uma melhor digestão, quando analisado no contexto do escrito de Franklin, embora a correlação fisiológica atualmente seja totalmente estranha à que foi levantada pelo pensador norte-americano. Mas o que mais se extrai da fonte é a seguinte ocorrência: exercitar-se justifica-se quando executado para melhor aproveitamento da refeição moderada. Praticar alguma atividade em prol da saúde passava a ser alguma coisa válida, justa e boa em mais de um aspecto, devendo estar presente no processo de educação do corpo dos norte-americanos.
Para além da questão da quantificação, o olhar de Franklin também foi dirigido às enfermidades, tanto que algumas doenças foram retratadas em seus escritos: “Beba água, ponha o dinheiro no bolso e deixe a ‘dor da barriga seca’ na poncheira” (Franklin, 1732, p. 9, tradução nossa, grifo do autor)36. Moléstia causada pelo consumo de rum, a ‘dor da barriga seca’ era muito frequente nos Estados Unidos setecentistas (Stokes & Bell, 1942), a enfermidade era provocada pela presença de chumbo existente no processo de fabricação dessa bebida alcoólica.
Nesse quesito, relativo ao ato de beber, novamente Franklin se mostra com um pensador atrelado a uma moral protestante, condenando o consumo de álcool. O corpo como morada do Espírito Santo não tolera o pecado engarrafado do vinho. Aqui se encontra um pensador sintonizado com a moralidade de seu tempo, afinal, conforme aponta Vigarello (1999), a sensibilidade aos flagelos não era mais representada nas velhas epidemias. Novas doenças e diferentes prevenções, em que o hábito de beber passou a ser condenado por seus efeitos na saúde. A manutenção do corpo dependeria da força interior do indivíduo perante as tentações do álcool.
Quellier (2011, p. 125) salienta que, para os protestantes, o ato de se embriagar era o verdadeiro pecado da gula. A bebida era perigosa, pois levaria o indivíduo à perda da razão e à prática de inúmeros vícios: “A embriaguez é vista como um retrocesso, um espetáculo grotesco e obsceno de um corpo sem razão, que perdeu o senso de limites, da moderação e do comportamento; numa palavra a decência. Pela embriaguez o homem perde sua dignidade”.
O processo de racionalização dos costumes do protestantismo, atrelado à moral religiosa e à sua missão ‘evangelizadora’, não permitia se frequentar locais onde os indivíduos tendiam ao descontrole. Essas questões eram uma constante nos escritos de Franklin, como pode ser visto num pequeno poema que o autor escreveu condenando os divertimentos em bares:
Aquele que por causa da bebida negligencia seu comércio
E passa toda noite em tavernas até tarde
E levanta-se quando o Sol já tem quatro horas de altura
E nunca leva em consideração sua faminta família
Deus, em sua misericórdia, até pode fazer muito para salvá-lo
Mas que pena da esposa, cujo destino é ter um sujeito desses como marido (Franklin, 1732, p. 9, tradução nossa)37.
A moral frankliniana não tolerava que os prazeres atrapalhassem o trabalho e a vida prática, pois “Feliz é a nação […] cuja história não é divertida” (Franklin, 1732, p. 26, tradução nossa)38. Benjamin Franklin advogava que o sofrimento era moralizante e a diversão era degradante, por isso deveria ser evitada a todo custo.
No que se refere à temática do corpo e da dor, o autor prossegue na mesma linha argumentativa: “A dor castiga o corpo, já os prazeres, castigam o entendimento” (Franklin, 1732, p. 12, tradução nossa)39. Essa relação com a dor, um tanto estoica e ascética, manifestava-se a todo momento no pensamento do norte-americano. “Abnegar de si para salvar o eu” (Franklin, 1732, p. 12, tradução nossa)40, expressão que evidenciava seu descompromisso com as vontades do corpo e que valorizava uma metafísica de salvação individual. Os prazeres eram recorrentemente alvos de críticas em sua obra, visto que o autocontrole representava o apogeu da racionalização do corpo. Esse maior controle sobre a máquina corporal operada pela razão se manifestou claramente em outras passagens: “Nada traz mais dor que o prazer” (Franklin, 1732, p. 20, tradução nossa)41; “Fuja dos prazeres e eles o seguirão” (Franklin, 1732, p. 20, tradução nossa)42. Denota-se uma luta constante do indivíduo em manter-se afastado dos prazeres, resistindo sempre às tentações da carne, era um corpo que era educado na glorificação da dor e na rejeição dos prazeres.
Em suma, nota-se uma missão ‘evangelizadora’ de uma educação corporal pautada no utilitarismo, elemento fundamental no pensamento de Franklin, pois ele não negava sua religiosidade como algo associado ao que estava por advogar:
Uma dieta sóbria faz um homem morrer sem dor; mantém os sentidos em vigor; mitiga a violência das paixões e afeições. Preserva a memória, ajuda no entendimento, alivia o calor da luxúria; faz o homem realizar uma consideração a respeito de seu último fim; faz do corpo um tabernáculo adequado para o Senhor habitar; nos faz feliz neste mundo, e eternamente feliz no mundo que está por vir, através de Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador (Franklin, 1732, p. 35, tradução nossa)43.
A passagem permite se estabelecer uma relação direta e contundente com o fenômeno de cristianismo muscular44 discutido por Watson, Weir e Friend (2005), Baker (2009), Putney (2009), Overman (2011) e Gems, Borish & Pfister (2017) e que se consolidaria posteriormente nos Estados Unidos do século XIX e que contribuiria significativamente na formação de um ethos esportivo em terras norte-americanas. O corpo cristão, quando controlado, livre de paixões e impulsos violentos, manifestava o espaço para habitar a trindade: Pai, Filho e Espírito Santo; seria, então, um tabernáculo vivo para a experiência de fé do cristão. Um corpo saudável tornava-se a moradia terrestre do divino. Era nesse sentido que o protestante precisava privar-se do que lhe fazia mal, porém em uma proporção devida, visto que não deveria passar fome nem sede, mas apenas saciar sua necessidade natural. Tudo que fosse para além disso seria considerado pecado, luxúria e perdição e, portanto, descontrole que levaria à perda da salvação. O corpo saudável assume essa luta, forjado nos valores protestantes.
Considerações finais
Destacou-se no presente artigo o papel de Benjamin Franklin nas prescrições de saúde e educação do corpo. A moral protestante, ao considerar todos os elementos da vida como possíveis ferramentas para a condenação ou salvação do espírito, não podia excluir o que se fazia com o corpo na alimentação e nos seus cuidados higiênicos. Controlar o quanto se comia e bebia, bem como o quanto se dormia, era regulação que antes do surgimento do protestantismo parecia estar muito bem estabelecida no meio monástico. Em seus textos, Franklin concebia que esse controle deveria estender-se a toda a população. Apesar de os textos não mostrarem desvinculação de seus fundamentos religiosos, ficou evidente, pela leitura das fontes, que ser saudável não seria apenas uma exigência para a salvação do espírito, mas uma condição fundamental para ser um indivíduo bem-sucedido, era uma verdadeira missão ‘evangelizadora’ a ser realizada.
Franklin parece protagonizar essa postura de anexar valores às práticas corporais no contexto norte-americano, sendo um dos primeiros a fazer isso com atividades como a natação. Mensurar o potencial de Franklin no tocante à educação do corpo no decorrer dos eventos históricos norte-americanos é uma tarefa de proporções maiores às almejadas pelos objetivos deste texto. Mckenzie (1936) chegou a afirmar que Benjamin Franklin seria o ‘pai americano da Educação Física’, em uma clara alusão ao seu pertencimento ao seleto grupo de políticos conhecidos como pais fundadores dos Estados Unidos da América (Isaacson, 2015; Karnal, 2017). Freeman (2013) ressaltou a importância de Franklin no estabelecimento da natação, em um contexto em que ainda era uma atividade muito estranha e um tanto impopular.
Ainda assim, pode-se observar no presente texto, pela leitura das fontes e em consonância com a análise da obra de Georges Vigarello, que o discurso frankliano estava em profunda conexão com elementos provenientes da racionalidade desenvolvida na época. Diversos elementos do racionalismo estavam em construção, mas ainda amplamente regimentados por valores cristãos específicos do protestantismo. As formas de uso do corpo poderiam ser bem-vistas, se fossem úteis para o engrandecimento do ser humano, atendendo a propósitos elevados e considerados civilizados. Na moral protestante, o prazer precisava estar velado, não declarado e submetido a um propósito maior; a educação dos corpos na obra de Franklin estava, portanto, atrelada a esse contexto.
Dessa forma, essas constatações permitem se traçar um processo de racionalização mais amplo que desencadeará, dentre outras possibilidades, na formação de um ethos esportivo americano, no qual será ainda mais marcante a presença de uma educação do corpo como fator de destaque na cultura. Nesse sentido, após a leitura e interpretação analítica das fontes em questão, pode-se concluir que a obra de Benjamin Franklin na colônia da Pensilvânia durante o século XVIII estava intimamente associada aos estágios iniciais de valores esportivos e higienistas que teriam sua acentuação nos Estados Unidos da América ao fim do século XIX.