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Revista Brasileira de História da Educação

versão impressa ISSN 1519-5902versão On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.21  Maringá  2021  Epub 17-Dez-2020

https://doi.org/10.4025/rbhe.v21.2021.e148 

Artigo Original

Educação museal e produção de memórias: o Museu ‘Ozildo Albano’

Museum education and memories production: The ‘Ozildo Albano’ Museum

Educación museal y producción de memorias: Museo ‘Ozildo Albano’

José Petrúcio de Farias Junior 1 
http://orcid.org/0000-0002-7631-0705

1Universidade Federal do Piauí, Picos, PI, Brasil.


Resumo:

O artigo discorre sobre a construção de memórias construídas pelo público-visitante a partir da narrativa museal, produzida pelo Museu Ozildo Albano (Picos/Piauí) e seus possíveis usos para o ensino de história. Para isso, faremos uso, de um lado, das representações sobre o passado veiculadas por essa instituição cultural; de outro, analisaremos as percepções de estudantes universitários que o visitaram. Sob esta ótica, relacionaremos o papel do museu ao âmbito da memória cultural, por meio da qual enfatizaremos a constituição da ‘memória protética’, tal como idealizada por Alison Landsberg (2009).

Palavras-chave: educação museal; Ozildo Albano; memória protética

Abstract:

The article discusses the construction of memories built by the visiting public from the museal narrative produced by the Ozildo Albano Museum (Picos / Piauí) and its possible uses for the teaching of history. For this, we will use, on the one hand, the representations about the past conveyed by this cultural institution; on the other hand, we will analyze the perceptions of university students who visited it. From this perspective, we will relate the role of the museum to the scope of cultural memory, through which we emphasize the constitution of 'prosthetic memory', as conceived by Alison Landsberg (2009).

Keywords: museal education; Ozildo Albano; prosthetic memory

Resumen:

El artículo analiza la construcción de memorias construidas por el público visitante a partir de la narrativa museal producida por el Museo Ozildo Albano (Picos / Piauí) y sus posibles usos para la enseñanza de la historia. Para eso, utilizaremos, por un lado, las representaciones sobre el pasado transmitidas por esta institución cultural; Por otro lado, analizaremos las percepciones de los estudiantes universitarios que lo visitaron. Desde esta perspectiva, relacionaremos el papel del museo con el alcance de la memoria cultural, a través del cual enfatizamos la constitución de la "memoria protética", tal como la concibió Alison Landsberg (2009).

Palabras clave: educación museal; Ozildo Albano; memoria protetica.

Introdução

O Museu Ozildo Albano, localizado em Picos, Piauí, é resultado da iniciativa do colecionador José Albano de Macedo, conhecido por Ozildo Albano (1930-1989), que reuniu, por meio de doações e aquisições pessoais, uma série de utensílios domésticos, fotografias, peças de arte sacra, equipamentos bélicos, discos, livros e fotografias, documentos de natureza político-administrativa e eclesiástica como a arrecadação de dízimos da Freguesia de Marvão (1785), documentos assinados por Fidié, comandante das armas portuguesas no Piauí, contratos de compra e venda de escravos, objetos de tortura de escravos, entre outros. Além disso, Ozildo Albano declarou no Jornal Macambira, de Picos, em 31/08/1981, que recebeu de seu irmão, uma candeia de azeite do século I d.C, que havia conseguido em Roma por frades cistercienses. Nesta matéria jornalística, Ozildo registrou que o museu inicialmente havia recebido o nome de um de seus ancestrais, capitão-mor João Gomes Caminha, “[...] como uma das formas de homenageá-lo, uma vez que ele participou ativamente da Guerra de Independência e por ter colaborado na vida histórica do município de Picos” (Pinheiro & Santos, 2018, p. 479), portanto a inclinação pela coleção de objetos do passado teria sido proveniente de estímulos pessoais e familiares.

Após o seu falecimento, a família assumiu a responsabilidade pela gestão deste espaço cultural e pela construção de uma memória sobre Ozildo Albano, perpetuada em grande parte das salas do museu, já que se atribui a ele o processo de preservação da história da cidade. Atualmente, os curadores do Museu restringem-se aos irmãos do falecido, Albano Silva e Maria da Conceição Silva Albano e amigos próximos como Vilebaldo Nogueira Rocha, o que demonstra o caráter ‘familiar’ do Museu e a construção de seus espaços, que mantém a centralidade na figura de ‘Ozildo Albano’.

Para Luz María Lepe Lira, a construção dos espaços do museu perfaz uma prática semiótico-discursiva que contribui, de maneira explícita ou não, consciente ou não, para referendar posicionamentos ideológicos que incidem sobre a exposição museográfica1, a qual compõe uma narrativa sobre o passado, que longe de ser neutra ou arbitrária, divulga o ponto de vista institucional sobre a cultura material à mostra. Ao conceber o museu como discurso, sustentamos que a prática museográfica é constituída de estratégias persuasivas que conduzem o visitante a compreender que “[...] o exposto é verdadeiro, importante e belo; ao mesmo tempo, inventa uma lógica da narração criando argumento ou proporcionando marcos de referência sobre o itinerário imposto aos visitantes” (Lira, 2008, p. 84). No entanto, a despeito do caráter intencional da narrativa museal, defendemos que as audiências (receptores) é que decidem seguir ou ignorar as narrativas propostas ou produzir suas próprias, uma vez que as condições de leitura do museu como discurso mesclam-se ao horizonte de experiências individuais e ao horizonte de expectativas sociais que são, por sua vez, adicionados à credibilidade que a comunidade local atribui ao espaço cultural e ao(s) sujeito(s) nele homenageado(s).

Dito isso, dividiremos nossa investigação em duas etapas: primeiro, analisaremos o discurso elaborado pelo museu ‘Ozildo Albano’ e, segundo, a leitura que os visitantes fazem do cenário museográfico, isto é, de seus discursos. Ao primeiro momento, ser-no-á importante ressaltar o discurso do espaço que contempla o imóvel onde o museu está abrigado e seu itinerário interno bem como o discurso museográfico que se constitui pela disposição dos objetos, iluminação e desenho espacial. O segundo momento consiste na análise de relatos orais realizados com graduandos em história da UFPI/campus de Picos, o que perfaz um público de aproximadamente 100 pessoas consultadas. As visitas a tais instituições de ensino objetivaram coletar informações sobre as reações do público após a ida ao Museu por meio de uma entrevista semiestruturada gravada e transcrita para fins de estudo. Aos alunos da graduação em história foram realizados os seguintes questionamentos: Do que trata o museu? Qual o seu propósito? Após a visita ao museu, mencione pelo menos três temas (aspectos sociais) que chamaram a atenção. Que reflexão pessoal você pôde fazer após a visita? Que sensações, sentimentos ou reflexões a visita gerou? Qual foi sua reação pessoal à visita? Descreva sua reação, sentimentos, sensações. Que tipo de relação entre passado e presente você pôde estabelecer? Tais questionamentos ser-nos-ão úteis à reflexão sobre a produção de memórias do público-visitante a partir da narrativa museal?

O museu Ozildo Albano e seus dispositivos de memória2

Para ler a discursividade do museu ‘Ozildo Albano’, inspiramo-nos nas seguintes materialidades discursivas, propostas por Lira (2008), que funcionam na comunicação dos museus: a) o edifício ou espaço que abriga o museu; b) o desenho da estrutura organizacional dos espaços internos (salas) e seus percursos delimitados pela museografia; c) os artefatos arqueológicos, cores, efeitos de luz e objetos usados na museografia; d) o discurso textual divulgado no site oficial (www.museuozildoalbano.com.br) e painéis informativos, escritos e instrucionais. Trata-se, portanto, de uma análise interdiscursiva, já que congrega o discurso do espaço, o discurso museográfico e o discurso textual.

Atualmente, o Museu está abrigado no antigo prédio do Grupo Escolar Coelho Rodrigues, que em 1932 foi pensado para o ensino primário, localizado na praça Felix Pacheco, centro de Picos/Piauí, e, posteriormente, tombado pelo Estado para atuar como uma Casa de Cultura, mas provavelmente pela influência política da família Albano, o local passa a abrigar todo acervo patrimonial de Ozildo Albano, tornando-se, assim, Museu Ozildo Albano, a partir de 1999 (Pinheiro, 2018).

Em relação aos espaços frequentados pelo público, o referido Museu é constituído de quatro salas com exposições permanentes e um hall de entrada com exposições itinerantes, tal como descrito no Quadro 1 e exemplificado por meio da planta do Museu na Figura1, respectivamente:

Fonte: O autor.

Quadro 1 Disposição das salas do Museu Ozildo Albano.  

Fonte: Pinheiro (2018, p. 284).

Figura 1 Planta baixa do Museu Ozildo Albano.  

É importante destacar que a Fundação Cultural do Piauí, em 1998, contratou uma equipe de museólogos de Salvador (BA), a saber: Direlene de Oliveira Silva, Joana Angélica Flores Silva e Osvaldo Gouveia Ribeiro, para planejar a estrutura organizacional do acervo por meio da categorização das peças, segundo critérios histórico-temáticos (Pinheiro, 2018). A partir de pesquisas de campo e pesquisa bibliográfica e, em consonância com os curadores do Museu, irmãos de Ozildo Albano, a referida equipe idealizou os espaços museais, tal como acordado pela Fundação Cultural do Piauí. Além disso, em 2010, em decorrência das exigências do IPHAN aos projetos de estabelecimento das linhas de transmissão de energia elétrica, protagonizados pelas empresas, Iracema Transmissora de Energia S/A e Interligação Elétrica Norte e Nordeste S/A (IENNE), foi contratada nova equipe de pesquisadores, constituída por Josiane Roza de Oliveira (historiadora), Saul Eduardo Seiguer Milder (arqueólogo) e Idemar Ghizzo (museólogo), que se tornaram responsáveis por salvaguardar artefatos arqueólogos encontrados no decorrer dos referidos projetos, os quais foram conduzidos ao Museu Ozildo Albano. As empresas também se responsabilizaram pela reestruturação deste espaço cultural que contemplou a reforma da infraestrutura do prédio (sobretudo do telhado), novas instalações elétricas e hidráulicas, instalação de ares-condicionadores, entre outros.

No que diz respeito à estrutura organizacional dos espaços internos e seus percursos delimitados pela museografia, nota-se que o hall de entrada dá acesso a todas as salas do museu. Em geral, começa-se a exposição por esta sala, momento em que são apresentadas as obras de arte (pinturas em tela) de artistas regionais ou fotografias reunidas a partir de um eixo temático, conforme as recomendações do IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus). Em seguida, passa-se à sala 01 (Memorial a Ozildo Albano), na sequência, sala 02 (Acervo sacro) e, depois, sala 03 (Arqueologia) e, por fim, sala 04 (Objetos do cotidiano picoense).

A nosso ver, as salas 01, 02 e 04 estão conectadas, uma vez que a sala 01 refere-se a Ozildo Albano, fundador do Museu, a sala 02 alude à tradição católica, compartilhada por sua família e que marcou sua formação educacional, o que justifica o fato de ter frequentado o Seminário Coração de Jesus, por aproximadamente dois anos, em Teresina e, por fim, a sala 03 reúne grande parte dos objetos colecionados por Ozildo, o que testemunha sua postura preservacionista. A sala 03, dedicada à arqueologia, como registramos acima, foi incorporada, posteriormente, como resultado dos empreendimentos de transmissão de energia elétrica; trata-se, portanto, de um espaço à parte. Quanto à sala de arqueologia, os visitantes são apenas apresentados a ela e ficam à vontade para ler os painéis e interagir com os jogos que remetem aos animais da megafauna (Pleistoceno), à atividade de escavação do arqueólogo, além da possibilidade de observar instrumentos líticos burilados por comunidades nativas que viviam na região. Muitos artefatos ainda não possuem datação e grande parte deles está desprovido de legenda, o que torna a visita a esta sala um mero espaço de ‘curiosidades’.

Quanto ao acervo do Museu, sinalizamos a importância da postura preservacionista de Ozildo Albano, sem desconsiderar que os objetos selecionados derivam de seu campo de interesse, influenciado, em grande medida, por sua formação religiosa católica, além disso, como ocupou cargos públicos em Picos e região (professor, diretor de instituições escolares, Juiz de Direito e, por fim, foi escolhido pela Câmara Municipal de Picos para ocupar o cargo de Chefe de Departamento Municipal de Cultura), pôde estabelecer uma ampla rede de contatos, por meio da qual adquiriu grande parte da coleção, proveniente de famílias abastadas da região, que constituiria o acervo de seu museu particular, considerado de utilidade pública a partir do Projeto-Lei (Picos, 1986).

Por fim, partiremos à análise da narrativa museal, tal como informada no site oficial (www.museuozildoalbano.com.br) e painéis informativos interiores. O site oficial foi produzido a partir de trechos do livro Picos nas anotações de OzildoAlbano (2011), escrito por seus irmãos, Albano Silva e Maria da Conceição Silva, curadores do Museu. No site, é possível observar a construção da imagem de Ozildo Albano, porquanto apresenta traços de sua trajetória biográfica.

Na seção ‘biografia’ do site oficial, os autores recorrem ao raciocínio genealógico para aludir a uma figura ‘heroica’, pertencente ao núcleo familiar, mais precisamente bisavô de seus avós, o capitão-mor João Gomes Caminha, que teria despertado nele o interesse pelo passado por sua “[...] história de bravura como prisioneiro na Ilha das Cobras, hoje Fernando de Noronha [...]”, (Museu Ozildo Albano, 2019, seção biografia) no contexto das “Guerras da Independência e na Guerra da Balaiada” (Pinheiro, 2018, p. 248). Ozildo teria recebido os primeiros objetos “desse ilustre capitão” (site MUSEU, seção biografia), com destaque às “[...] cartas da batalha do Jenipapo e da Balaiada” (Pinheiro, 2018, p. 371).

No plano das estratégias discursivas, nota-se que a genealogia é um importante mecanismo discursivo para transmitir características edificantes, de um passado ‘glorioso’ ao presente. Dessa forma, parte do pressuposto de que as ‘glórias’ do passado possam incidir sobre indivíduos ou suas ações no presente. Em outras palavras, esse quadro genealógico contribui para o reconhecimento de Ozildo Albano como guardião das “[...] raízes de sua terra e de seu povo” (Museu Ozildo Albano, 2019, seção biografia), além de conferir-lhe credibilidade e legitimidade, por extensão, ao Museu de que é patrono.

Tais narrativas contribuem para estabelecer, no receptor, uma relação de confiança fundada na autoridade que seus irmãos, curadores do Museu, atribuem ao homenageado (Ozildo Albano). Outras categorias discursivas colaboram para a construção da imagem do idealizador do Museu, a saber: demonstração de bom caráter, segundo os preceitos cristãos; depoimentos de homenagem de amigos e familiares bem como a demonstração de uma trajetória profissional bem-sucedida, além das marcas de sinceridade, simplicidade, solidariedade e compromisso com a cultura local, que compõem os registros relacionados à sua biografia.

Tais características podem ser mais bem percebidas na seção ‘depoimentos’ (site MUSEU) em que se nota um conjunto de homenagens que o apresenta como uma figura ‘exemplar’. Welbert Feitosa Pinheiro e Sônia Maria dos Santos (2018) Da formação humanística do mediador cultural Ozildo Albano às suas práticas educativas no sertão piauiense (1952-1989), endossam os pontos de vista registrados nos ‘depoimentos’ endereçados a Ozildo, após sua morte.

Neles, Ozildo é caracterizado como um sujeito pertencente a uma família humilde, no interior da qual aprendeu os valores cristãos. Ele nos é apresentado como um filho exemplar - “[...] aprendeu com seus pais os princípios cristãos que deveriam nortear o homem em sociedade” (Pinheiro & Santos, 2018, p. 472); um aluno exemplar - ‘ela’ (professora Hilda Policarpo de Mello) “[...] tinha por hábito colocar os alunos para lerem os textos do livro Coração de Criança e Ozildo fazia com muita eficiência e percorria o texto sem nenhuma dificuldade” (Pinheiro & Santos, 2018, p. 473); um companheiro e trabalhador exemplar - “[...] era respeitado pelos colegas, [..] Polido nas suas expressões e no trato humano com todos, chamou a atenção de seus superiores que deram a ele as atribuições de guarda e organização dos arquivos da corporação”; intelectual exemplar - “[...] tornou-se um dos maiores arautos da cultura local” (Pinheiro & Santos, 2018, p. 477); um universitário exemplar - “[...] escreveu o seu nome em uma das mais concorridas instituições de ensino superior no Brasil” - UFCE (Pinheiro & Santos, 2018, p. 475); um homem exemplar “[...]todos o admiravam pelo jeito simples e humilde” (Pinheiro & Santos, 2018, p. 476).

Quando o depoente afirma que “[...] todos o admiravam pelo jeito simples e humilde [...]”, o uso do indefinido ‘todos’ marca um tipo de cumplicidade entre o enunciador e o público, o que dá a impressão de que os espectadores são coniventes com o discurso pronunciado. Trata-se de um artifício retórico comum em discursos pertencentes ao gênero do elogio.

Para reiterar essa abordagem, recorreremos a alguns trechos da seção ‘depoimentos’. A seguir, transcrevemos o depoimento de Mundica Fontes, amigo próximo, no Jornal Gazeta Popular de Picos/Piauí, em 19 de julho de 1989:

Seria preciso que ‘todos os rostos sorrissem de forma espontânea e pura’, como ele o fazia, ao cumprimentar as pessoas no dia-a-dia; abrigassem Jesus em seus corações, assim como ele o abrigava e cantava: ‘...achei Jesus, achei meu Salvador...’ O coral da catedral entoaria hinos em louvor a Jesus e à Virgem dos Remédios; Os sinos da Igrejinha teriam de dar suas notas dolentes, anunciando a Ave-Maria; Uma homenagem a Ozildo, teria de ter: reisados, dança de São Gonçalo, cantorias, seresta e a caminhada, a pé, para Bocaina, na época do festejo de sua padroeira; muitas crianças dançando o ‘Bailado’ e revivendo o ‘Pastoril’. Não poderia faltar o ‘Presépio’, na época natalina, o aluá e pamonhas, nas festas juninas [...] Valorizando mais a nossa história, preservando nossas raízes culturais, reativando grupos extintos de folclore, amando o que é nosso sem desvirtuar ‘nossas tradições folclóricas e religiosas’, cultivando momentos de silêncio para reflexão de vida voltando nossos corações para Deus, pois só assim estaremos mais perto do nosso amigo Ozildo (Museu Ozildo Albano, 2019, seção depoimentos, grifo nosso).

O excerto destaca o nexo entre Ozildo e o catolicismo, característica indispensável para compreender o universo simbólico em que suas ações sociais são concebidas. Ozildo é descrito como uma espécie de cristão ideal e sua conduta educada se circunscreve no espectro de uma espécie de gramática moral, em que simplicidade, humildade, caridade, paciência, fidelidade, generosidade tornam-se a tônica dos depoimentos atribuídos a ele. O depoimento de Cecília Neiva de Sousa Lima ajuda-nos a esclarecer essa perspectiva:

‘Incansável defensor da verdade, do Direito e da Justiça, fez a chamada opção preferencial pelos pobres’, nunca recuou ou se intimidou diante das incompreensões e injustiças muitas vezes ligadas à sua laboriosa e fecunda existência [...] o Baluarte perpétuo da cultura em nossa cidade [...] (Museu Ozildo Albano, 2019, seção depoimentos, grifo do autor).

No trecho, infere-se que a conduta moral de Ozildo, concebida como ‘exemplar’, atua como paradigma para as relações interpessoais sob a ótica da cultura católica picoense. Apresentá-lo como um cristão ideal colabora para o que Narita (2017, p. 25) denomina de “[...] rotinização de ações e valores [...]”, porquanto Ozildo torna-se uma figura exemplar, de tal forma que o compartilhamento de saberes e modos de agir, centrados em sua biografia, impulsiona processos de identificação que favorecem, por sua vez, a integração social do cidadão à comunidade religiosa, a que Ozildo pertencia, além de reforçar o sentimento de pertencimento ao grupo. O depoimento de Ana Maria Coutinho Feitosa esclarece essa questão.

Conservador da cultura antiga; Picos, arte, cultura, formou-se um elo; Fundador do nosso museu; Nosso, porém mundo seu. Você ídolo semi-esquecido; ‘Por poucos venerado; contudo muito querido; e doravante idolatrado’. E por não se julgar importante; aparentando um ser pequeno; não percebeu ser um gigante; no seu modo de ser sereno (Museu Ozildo Albano, 2019, seção depoimentos, grifo nosso).

Com base nos depoimentos acima, nota-se que o sentimento nostálgico3 exprime-se na forma de reverência e admiração a um picoense, lembrado como uma figura exemplar que atua como modelo ou referência à comunidade local. Por evocar sentimentos nostálgicos associados a modos de agir e pensar aceitos, reconhecidos e valorizados por um grupo de pessoas, o Museu Ozildo Albano assume indiretamente a função de controle social, na medida em que prescinde de outras práticas culturais. Por exemplo, um tema predominante no museu versa sobre a cultura católica local, no interior da qual Ozildo Albano é apresentado como um ‘bom cristão’ ou um ‘cristão ideal’.

Dito de outro modo, o sujeito histórico que é objeto de admiração no museu é concebido por esta instituição cultural como aceitável socialmente. Assim, o museu expressa e chancela valores culturais e imagens sobre o passado que têm a pretensão de ser ‘dominantes’ e, indiretamente, negligencia ou subordina outras experiências culturais, sobretudo indígenas e quilombolas. Destaca-se, nesse sentido, outra faceta dos museus a ‘função legitimadora’, já que constrói e fomenta processos de identificação; constrói, porque os espaços culturais tornam-se um lugar onde grupos sociais podem representar-se como gostariam de ser vistos (Sodaro, 2013).

Com base na leitura dos depoimentos, asseveramos que a nostalgia muito provavelmente tenha sido o motivo primeiro para que os irmãos de Ozildo Albano e seus amigos próximos assumissem a curadoria do museu. A autoridade não só suaviza as perdas do passado, mas também é uma resposta ao anseio pelo retorno de um passado feliz, coerente e simples que talvez nunca foi e certamente nunca poderá ser. Mas não é só isso: o sentimento nostálgico perfaz um importante mecanismo por meio do qual gerações se identificam e, por isso cenas, eventos festivos, práticas, atitudes e pessoas são selecionadas, refinadas e integradas a um cenário de rememoração do passado.

A prática museológica deste museu está ancorada na ideia de que os curadores, irmãos de Ozildo Albano e seus amigos próximos, são guardiães de uma memória ainda viva, porquanto conviveram com Ozildo Albano. Não há, portanto, a admissão de curadores que não tenham tido contato com o falecido. Parte-se do pressuposto de que se trata de uma coleção de família, ainda que abrigue artefatos diversos que remontam à história antiga brasileira4. Assim, parentes, familiares e amigos próximos assumiram a responsabilidade em instruir as gerações vindouras quanto à ‘cultura picoense tradicional’, no interior da qual Ozildo Albano apresenta-se como símbolo de admiração5.

Além de apresentá-lo como cidadão-cristão-exemplar, o que implica, mesmo que sub-repticiamente, uma forma de controle social pela emulação de figuras exemplares - como uma espécie de herói local - as memórias em torno de Ozildo Albano e seus pertences têm função integrativa, haja vista a formação da Associação dos Amigos do Museu Ozildo Albano (AAMOA) que, desde 2007, se responsabiliza pela manutenção e permanência do museu, além dos escassos recursos financeiros estaduais.

É nesse sentido que os museus podem ser concebidos como ‘agentes de socialização’, uma vez que as ‘memórias pessoais’ dos curadores, às quais dizem respeito a vivências familiares, ao serem reiteradas junto ao público-visitante, transmitem simbolicamente valores e normas sociais de uma família comprometida com o catolicismo local.

Para Snyder (1991), é possível, sobretudo na América, estabelecer paralelos entre museu e religião. A religião, como observou Durkheim, é um componente importante para pensar os mecanismos de integração social e a concepção de representações coletivas, construídas a partir de objetos ‘sagrados’, crenças e práticas culturais e, tal vertente interpretativa aplica-se à reflexão sobre os marcadores identitários de comunidades locais. De maneira análoga, pode-se, a nosso ver, projetar essa reflexão para pensar as funções sociais do museu, já que também se percebe a importância de símbolos, crenças e rituais por meio dos quais se observam processos de identificação social e sentimentos de pertencimento.

A formação cristã de Ozildo Albano, a nosso ver, reforça a ligação do museu ao campo de experiências religiosas de cunho católico, de tal forma que, assim como templos religiosos, museus podem emular ‘figuras veneradas’ por meio de objetos que lhes pertenciam, conservados como relíquias (Duncan, 1995). Kirshenbaum (apud Snyder, 1991, p. 228), complementa essa linha de raciocínio ao advertir que “[...] onde os antigos construíam templos a seus deuses e conferiam-lhes atributos humanos, a prática corrente é dirigida a homens honrosos por torná-los divinos”.

Sob esta ótica, museus particulares ou públicos podem abrigar o que tais estudiosos denominam de ‘símbolos de fé’, tais como fotografias, indumentária, objetos pessoais, mobílias, entre outros, a fim de que os sujeitos reverenciados se imortalizem junto à memória coletiva.

Destacamos que a preservação de artefatos, objetos ou utensílios é uma atividade importante e indispensável para o observador compreender a dinâmica das mudanças sociais no tempo. Todavia, deve-se ter em mente que os artefatos não foram colecionados arbitrariamente; pelo contrário, eles resultam de uma seleção do que era, para Ozildo Albano, desejável ou pertinente preservar sobre a cidade de Picos.

Assim, ao contrário do que muitos pensam, o museu não é um espaço neutro que promove um encontro com o passado, visto que as exposições carregam juízos de valor, intencionalidades e visões sobre o passado autorizadas pela instituição, por isso a ideia de representações do passado é mais adequada para se reportar às práticas museológicas e, quando se visita um museu, é importante considerar não apenas o que é representado, mas também o que não é representado (Spicci, 2011).

Visto por este ângulo, os museus tornam-se interessantes campos para estudar a interseção de poderes locais e regionais bem como discursos dominantes e silenciados, não por falta de adesão comunitária, mas por não serem aceitos/reconhecidos por quem ocupa espaços de poder.

Tal como sustenta Snyder (1991, p. 237), “[...] os museus seletivamente preservam e criam o passado, apropriado por sentimentos nostálgicos”. A nostalgia6 em geral está relacionada a um cenário de mudanças sociais e ao mal-estar de um grupo produzido a partir de tais circunstâncias, por isso posturas nostálgicas servem como refúgio, um ancoradouro ou um oásis para as ansiedades pessoais, talvez por isso o passado seja, em geral, representado por sua suposta inocência e simplicidade e, assim posto, pode fornecer uma fonte de consolação e meios de regulação às incertezas de suas vidas.

Nesse sentido, questionamo-nos sobre como o discurso do museu impacta o processo de construção da memória cultural. Para Malina Ciocea e Alexandru Carlan (2018) em ‘Prosthetic memory and post-memory’, deve-se considerar a formação discursiva onde a cultura material selecionada e exposta ao público está inserida. As narrativas não são neutras; pelo contrário, carregadas de intencionalidades, objetivos e interesses de quem as produz, por isso o museu também se institui num campo de disputas de/por memórias. Dito de outro modo, as narrativas museais descortinam as relações de poder que subjazem os jogos discursivos entre o dito e o não dito, a memória e a contramemória, considerando evidentemente o que é possível negociar com o imaginário social (Abreu, 2016, p. 60). Dito de outro modo, a narrativa museal se encontra enredada em práticas institucionais e questões de poder que produzem uma versão intencional sobre o passado.

Isso mostra como, por meio da narrativa museal, responsável pelo compartilhamento de saberes, práticas e experiências, determinados grupos sociais se esforçam em preservar uma memória cultural7 que os singularizam e que geram inevitavelmente formas de inclusão e exclusão, já que tal narrativa insere-se numa dimensão político-cultural (Kregar, 2014).

A memória protética e as representações do passado a partir da prática museológica

Para muitos curadores, guias e estudiosos, o processo de musealização se refere à tentativa de fixar e transmitir a identidade cultural de um grupo social às gerações vindouras. Tal vertente interpretativa sustenta que o museu constrói significados de modo semelhante à religião, mais precisamente em suas práticas ritualísticas e cerimoniais, o que pode fomentar diferentes formas de ativismo social. Sob essa perspectiva, o museu é visto como um dispositivo de armazenamento contra o esquecimento, no interior do qual objetos são categorizados e postos numa relação de interdependência cronológica e causal, perspectiva que é problematizada atualmente pela historiografia por sua fragilidade, superficialidade e seu caráter reducionista.

Andreas Huyssen (apud Ciocea & Carlan, 2018, p. 09), ao contrário, entende a musealização como um “[...] dispositivo compensatório para a transformação da temporalidade de nossas vidas, observando que as tradições culturais são elas mesmas afetadas pelo mesmo processo de mudança”. Com isso, Huyssen argumenta que o papel do museu não se volta essencialmente ao passado e à sua pretensão de continuidade no presente; mas ao contrário, consiste em refletir sobre a historicidade de modos de agir e pensar que forjam a sociedade onde vivemos, ao relacionar nosso campo de experiências a diferentes camadas temporais que se sobrepõem.

A despeito das diferentes percepções sobre o museu, acima expostas, e suas propostas comunicativas, o sucesso do museu está diretamente relacionado ao modo como as pessoas se conectam com as gerações anteriores a partir de seus campos de experiência e que tipo de lugar eles atribuem aos museus nesse processo. Com a finalidade de investigar esse processo por meio dos relatos orais construídos a partir da narrativa museal, utilizaremos a noção de memória protética.

Alison Landsberg define memória protética como uma forma particular de memória cultural pública, porquanto se trata de uma memória do passado que não foi diretamente vivenciada pelos sujeitos, isto é, que emerge na interface entre um sujeito histórico e uma narrativa histórica sobre o passado mediada por diferentes dispositivos, tais como produções midiáticas, praças, monumentos ou museus (Landsberg, 2009). No momento do contato com os vestígios do passado, os sujeitos operam uma relação dialógica entre seus próprios conhecimentos prévios e a narrativa histórica mais abrangente em torno da qual os vestígios são situados.

Para Ciocea e Carlan (2018, p. 12), nesse processo interdiscursivo, o sujeito apenas não aprende sobre o passado intelectualmente, mas ele passa a integrar de “[...] forma mais pessoal e profundamente percebida a memória de um acontecimento passado por meio do qual ele ou ela não viveram no sentido tradicional”. Dito de outro modo, por meio da experiência museal, o público é convidado a estabelecer um contato com um conjunto de experiências muitas vezes alheio às suas vivências, no entanto tais pessoas são motivadas a observar as particularidades das experiências do ‘outro’ no tempo, associando-as ao seu horizonte de experiências e expectativas.

Sob esta ótica, entende-se que a memória protética é concebida no âmbito das memórias pessoais, uma vez que elas resultam de encontros engajados e orientados experimentalmente a partir de diferentes estímulos materiais, sonoros ou iconográficos. Em outros termos, o objeto museal é envolvido em um campo de negociação de significados em que a cultura material e sua própria indexicalidade se acomoda aos conhecimentos prévios dos sujeitos (Ciocea & Carlan, 2018).

Isso posto, advogamos que a recepção da narrativa museal é um processo fluido e que as audiências podem ou não se identificar com as representações sobre o passado propostas pelos museus. Seria um erro desconsiderar os pontos de vista que cooperam para situar o público em posição singular em relação à narrativa museal. Em outras palavras, reconhecemos que a narrativa museal é apenas um dispositivo para o posicionamento do público de um ponto de vista específico (Landsberg, 2009).

Assim, entender como os visitantes se posicionam diante da narrativa museal e em que medida eles se conectam (ou não) com tais discursos possibilita compreender questões mais abrangentes, a saber: como a narrativa museal se ajusta às diferentes audiências, considerando seus próprios campos de experiência, predileções ou inclinações.

Isso posto, convém destacar que a noção de memória protética de Landsberg difere-se da concepção de memória coletiva de Maurice Halbswachs, muito comum nos estudos sobre memória e museus, para quem

A memória coletiva, ao contrário [da história], é o grupo visto de dentro, e durante um período que não ultrapassa a duração média da vida humana, que lhe é, freqüentemente, bem inferior. ‘Ela apresenta ao grupo um quadro de si mesmo que, sem dúvida, se desenrola no tempo, já que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele se reconhece sempre dentro dessas imagens sucessivas’. A memória coletiva é um quadro de analogias, e é natural que ela se convença que o grupo permanece, e permaneceu o mesmo, porque ela fixa sua atenção sobre o grupo, e o que mudou, foram as relações ou contatos do grupo com os outros. Uma vez que o grupo é sempre o mesmo, é preciso que as mudanças sejam aparentes: as mudanças, isto é, os acontecimentos que se produziram dentro do grupo, se resolvem elas mesmas em similitudes, já que parecem ter como papel desenvolver sob diversos aspectos um conteúdo idêntico, quer dizer, os diversos ‘traços fundamentais do próprio grupo’” (Halbwachs, 2006, p. 88, grifo nosso)

Nota-se que o conceito de ‘memória coletiva’ de Halbwachs pressupõe o reforço e naturalização de uma identidade grupal, uma vez que o processo de rememoração se constitui a partir de uma cadeia de diferenças que singularizam os grupos sociais em detrimento de outros, sobretudo por meio do compartilhamento de saberes e experiências com os quais tais grupos se familiarizam e constroem suas estratégias de ‘pertencimento’ e inevitavelmente de exclusão.

As memórias protéticas, ao contrário, não são propriedade de um grupo singular, mas permitem a construção de horizontes coletivos de experiência, uma vez que os passados que as memórias protéticas tornam acessíveis são interceptados pelas influências político-culturais dos sujeitos que as produzem, na medida em que elas supõem uma experiência mediada dos acontecimentos, o que as tornam não autênticas ou naturais, mas subjetivas e passíveis de constantes ressignificações. A ‘memória protética’, nesse sentido, insere-se num contexto de transmissão de narrativas, inseridas em um processo comunicativo, em que o receptor é declaradamente um outsider (de fora) e passa a ser incluído, por empatia, ao campo de experiências do ‘outro’, ainda que não as tenha vivenciado. Em síntese, com as palavras de Landsberg (2018, p. 208-9, tradução nossa, grifo do autor, tradução nossa)8,

Em outro lugar, eu tenho descrito que as estratégias museais que produzem ‘memórias protéticas’ (Landsberg, 2004) nos expectadores - memórias de eventos que ainda não superaram nos quais, depois de um engajamento experimental com uma representação de um evento passado, a pessoa sente uma conexão pessoal e afetiva. Eu tenho argumentado que as memórias protéticas são mais produtivas, quando alguém é levado para perto de um acontecimento passado, mas não por meio de uma simples identificação com os atores históricos passados. No Museu Memorial do Holocausto dos EUA (USHMM), por exemplo, quando alguém é confrontado com a sala repleta de sapatos, é posto em contato com a monstruosidade do que aconteceu. O visitante vê os sapatos que sobreviveram, enquanto seus donos não; e, ao mesmo tempo, sente seus próprios sapatos nos pés. O Holocausto nunca pode ser nossa experiência, no entanto, ao envolver-se com a sala repleta de sapatos, o visitante tem tido uma experiência em conexão com o Holocausto e suas vítimas, uma experiência que parece significativa.

Esse processo de construção de memórias ajuda-nos a entender a relação que o público-visitante estabelece com a narrativa museal e seus dispositivos de memória - a cultura material. Isso posto, considerando o museu como um dispositivo de memória, investigamos como a lembrança é produzida por meio do envolvimento com os objetos/artefatos no museu Ozildo Albano com a finalidade de discutir as diferentes deliberações sobre a narrativa museal.

Abaixo, no Quadro 2, transcrevemos parte das respostas dos entrevistados acerca das seguintes questões: que reflexões pessoais você pode fazer após a visita ao museu? que sensações, sentimentos ou reflexões essa visita gerou em você? Descreva suas reações, seus sentimentos e sensações.

Fonte: O autor.

Quadro 2 Depoimentos de estudantes universitários do curso de História (UFPI/Picos).  

A análise e interpretação desse material apontam para, pelo menos, duas situações distintas: parte dos entrevistados pertencentes à comunidade universitária construíram conhecimentos sobre o passado por meio da empatia. Isso fica claro quando notamos o emprego de palavras afetuosas e que aludem ao campo de experiências pessoais ou familiares, característica central da memória protética. Nota-se, no interior deste grupo, a alusão a experiências cotidianas de natureza empática e o envolvimento pessoal na reconstrução do significado dos objetos exibidos. Empatia é aqui concebida como um caminho de entendimento do outro sem ter que se submeter a experiências do ‘outro’. A empatia reconhece a alteridade no interior do processo de identificação, tal como argumenta Landsberg:

A experiência de empatia requer um ato de imaginação - é preciso deixar a si mesmo e tentar imaginar como foi para aquela outra pessoa, conferindo o que ele(a) passou. A empatia, ao contrário da simpatia, requer uma atividade cognitiva, mental, isso implica um engajamento intelectual com o sofrimento do ‘outro’; quando se fala em empatia não se fala apenas de emoção, mas de contemplação também. Contemplação e distância, dois elementos centrais para a empatia, não estão presentes na simpatia. Empatia exige trabalho e é mais difícil conseguir do que a simpatia. Em parte, empatia é sobre desenvolver compaixão não por nossa família, ou amigos, ou comunidade, mas por ‘outros’ - outros que não tem nenhuma relação conosco, que não se assemelham a todos nós, cujas circunstâncias são muito distantes de nossas próprias experiências9 (Landsberg, 2009, p. 223, tradução nossa).

A historiadora sustenta que a empatia não visa apenas entender o ‘outro’, mais que isso, trata-se de uma maneira de “habitar as memórias do outro [...] respeitando e reconhecendo as diferenças” (Landsberg, 2004 apud Ciocea & Carlan, 2018, p. 12), essencial a qualquer relação ética com o ‘outro’. No grupo focal em questão, observa-se a inclinação dos entrevistados em estabelecer pontos de contato com suas experiências familiares; o diálogo com os objetos expostos, além de fornecer informações sobre o passado, viabilizou uma re-encenação íntima e afetuosa de traços culturais que lhes são familiares.

No discurso do entrevistado 02, por exemplo, percebe-se um dos caminhos da lembrança protética: o sentimento nostálgico, que é uma das formas de atribuir sentido ao passado, considerado, por muitos pesquisadores, problemática por seu conteúdo imaginado, pela predileção ao retorno às origens, além de, em geral, vir acompanhada da sensação de que o passado foi um período áureo e preenche os ‘vazios’ do presente. É justamente em função dessa dimensão afetiva que o sentimento nostálgico se torna um desdobramento da memória protética.

Nos depoimentos 04, 06, 09 e 10, nota-se uma postura distinta que, a nosso ver, se relaciona a uma ligação menos afetiva e pessoal às narrativas museais, evidenciado pelo tom crítico e combativo das afirmações. As declarações deste grupo demonstram que as narrativas museais parecem ter sido acidentalmente transmitidas para as gerações posteriores. No grupo focal em questão, pode-se notar certo interesse pelo museu, na medida em que reconhecem que se trata de um espaço cultural importante para salvaguardar objetos úteis à compreensão da “[...] história do povo de Picos, para a gente não esquecer nossas raízes [...]”, mas, no tocante à dimensão afetiva relacionada à experiência museal, o grupo reagiu com indiferença.

Defendemos que a construção de tais memórias (mais críticas e combativas) ajusta-se à concepção de ‘pós-memória’, idealizado por Marianne Hirsch (2001, 2008 apud Ciocea & Carlan, 2018, p. 11), em que se identifica uma lacuna geracional entre a ‘geração anterior’, aqueles que conviveram com Ozildo, acompanharam a sua trajetória e compartilharam experiências e saberes dos grupos a que pertencia, e a ‘geração pós’ ou ‘segunda geração’, que tem contato com tais experiências apenas por meio da memória comunicativa, ainda que sejam transmitidas de forma profunda e afetiva, não são mediadas pela recordação, mas por um ‘investimento imaginativo’ que é filtrado pelo horizonte de experiências e expectativas do sujeito, cenário que favorece narrativas deslocadas das pretensões dos comunicadores ou contranarrativas. Para Ciocea e Carlan (2018), ainda que haja distanciamentos do ponto de vista da construção de narrativas sobre o passado, os processos pós-memoriais não prescindem do pertencimento simbólico às experiências cotidianas do grupo ou certa conexão com os eventos, de tal forma que defendem que os bens culturais musealizados atuam como estímulos visuais que podem promover afiliações ou conexões inter ou transgeracionais.

Nesse sentido, a postura combativa dos estudantes universitários pode estar relacionada ao fato de que grande parte deles são de outras cidades e não se identificam com a narrativa museal centrada em Ozildo Albano ou questionam as relações de poder entre as famílias picoenses. Isso implica indagar sobre as redes de sociabilidade local e as formas de acesso a cargos ou funções privilegiadas na cidade.

Resta-nos, diante de tal análise, indagar sobre o que motivaria a comunidade de Picos e região a visitar o museu. Há duas respostas possíveis: o museu atrai membros da comunidade local afeita a Ozildo Albano, concebido por muitos como cidadão-exemplar. Para este grupo, tais bens culturais são concebidos positiva e, com frequência, reverencialmente como vantajosos em relação ao presente. É justamente esta justaposição entre presente e passado que, viabiliza as condições para os sentimentos de nostalgia; segundo, a atração ao museu também pode estar baseada nos contrastes ou incongruências entre presente e passado possibilitados pelos objetos do passado que remetem a experiências cotidianas locais e regionais de outros tempos.

Considerações finais

Esperamos ter contribuído para a compreensão do caráter dinâmico entre os processos memoriais, a experiência museal e o público do museu. Procuramos nos desvencilhar de uma abordagem instrumental e orientada para o marketing, muito comum entre as pesquisas inseridas neste eixo temático.

A análise comparativa entre memória protética e pós-memória permitiu averiguar diferenças no tocante aos processos identitários e à recepção às narrativas museais. No entanto, em ambas as formas de produção memorial, parte-se do pressuposto de que a experiência museal tem a capacidade de nos conectar intelectual ou emocionalmente com circunstâncias que fazem parte ou vão além de nossas próprias experiências vividas e esse processo dialógico força-nos a confrontar e a entrar numa relação de responsabilidade e envolvimento com os ‘outros’.

Nesse sentido, o trabalho intelectual por trás de uma exposição museológica pode estabelecer as bases para o desenvolvimento da empatia, por isso é indispensável desmistificar a ideia de museu como lugar sagrado, reverenciado, onde se encontra um saber pronto ou definido.

Em um mundo altamente conectado por meio das redes sociais e meios de comunicação, torna-se um desafio pensar sobre como despertar o interesse de crianças, jovens e adultos no que tange ao (re)conhecimento e valorização de elementos fundamentais à constituição de nossa herança cultural.

Em outras palavras, como despertar o interesse pela apreciação de artefatos do passado é, a nosso ver, a questão central para manutenção (ou sobrevivência) de tais instituições culturais. Uma das chaves para essa indagação consiste em problematizar as diferentes formas como o público se relaciona com o passado apresentado pelos museus, tal como nos propusemos investigar neste artigo.

Isso posto, consideramos que um dos caminhos consiste em convidar o público a construir narrativas sobre o passado a partir dos artefatos expostos; a indagar a versão do passado que os objetos ‘contam’, considerando os ‘silêncios’ ou os objetos ausentes da narrativa museal. Enfim, o diálogo e a interatividade são centrais no processo de aprendizagem, no interior da qual a percepção da alteridade das experiências humanas pretéritas torna-se a tônica em tais espaços culturais.

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1 Para Lira (2008), a experiência museográfica é constituída de três dispositivos: 1. rituais que aludem à configuração do museu como espaço excepcional, ou seja, que está fora da cotidianidade e, portanto, sacraliza seus objetos e espaços; 2. educacionais que justificam socialmente a própria existência do museu em sua função educativa; 3. lúdicos que aprimoram a qualidade da interação entre público e museu.

2Ainda que reconheçamos a importância da expressão ‘lugares de memória’ na historiografia brasileira, uma vez que se trata de uma chave de leitura para desconstruir posturas conservadoras quanto à construção de versões sobre o passado afeitas a grupos sociais que ocupam espaços de poder, sustentamos que tal termo se aplica, com mais propriedade, a estudos voltados à nação, ao nacionalismo, às formas de governo, aos seus códigos, aos símbolos ou representações. Além disso, a expressão ‘lugares de memórias’ se propõe refletir sobre a significação simbólica de suportes que podem ser materiais, mas que na maioria dos casos não são.

3Convém esclarecer que, como outras emoções, a nostalgia é vivenciada coletivamente, isto é, ela é aprendida e interpretada no interior das relações sociais e tem significativas implicações para o comportamento social das pessoas. Snyder (1991, p. 229) argumenta que “[...] a nostalgia é uma lembrança ou recordação do passado, um passado embebido em qualidades especiais”. Em outros termos, o sentimento nostálgico, sob a perspectiva da ‘sociologia da nostalgia’ com a qual Snyder dialoga, compõe-se de um conjunto de atributos projetados do presente ao passado, tais como beleza, alegria, satisfação, felicidade, bondade, amor, que podem resultar em posturas melancólicas ou saudosistas, porquanto se percebe que os sentimentos e sensações atrelados às experiências do passado muitas vezes não podem ser revividos no presente (Snyder, 1991).

4A sala de arqueologia, por exemplo, abriga objetos líticos utilizados por grupos nativos no Holoceno [a partir de 12 mim a.C] ou animais da megafauna do centro sul do Piauí no Pleistoceno [60 mil a 12 mil a.C].

5De maneira mais abrangente, nota-se a pretensão dos curadores em fixar uma narrativa sobre o passado às audiências e uma tendência à sacralização dos objetos, o que o insere na categoria de ‘museu-templo’. Para Abreu (2016), a tendência é que os museus se tornem espaços de reflexão e ressignificação - ‘museu-fórum’, o que implicaria a valorização da participação do público, contrapondo-se à concepção de museu-templo, em que público se torna mero receptor das narrativas do passado construídas pelos curadores ou guias. Há ainda a categoria do ‘museu-laboratório’ que se trata de uma concepção de museu afeito a experimentações e estratégias de conexão entre o público e os diferentes ambientes do museu, na medida em que estimula sensações e sentimentos a partir da cultura material. Para Ciocea e Carlan (2018), trata-se de uma proposta museológica que coíbe exibições permanentes e, mais que isso, prescinde de autoridade epistemológica ou ideológica, visto que é o público que assume uma postura propositiva sobre o passado, na medida em que negocia livremente interpretações a partir da experiência museal.

6Nostalgia vem do grego νόστος, regresso, volta ao lar após um período de ausência, e ἄλγις, dor, pena, aflição, de acordo com o dicionário de grego-espanhol, http://dge.cchs.csic.es. Sodaro (2013) argumenta que a nostalgia consiste numa aspiração afetiva por uma comunidade com uma memória coletiva, anseio por uma continuidade em um mundo fragmentado; ele acrescenta que a nostalgia aparece como mecanismo de defesa em tempos de ritmos acelerados da vida e convulsões históricas.

7‘Memória comunicativa’ e ‘Memória cultural’ são termos cunhados por Jan Assmann (2008) e resultam do desdobramento do conceito de ‘memória coletiva’ de Maurice Halbwalchs. Para Assmann, a forma como Halbwachs define as diferentes formas de memória não contempla a esfera cultural. A memória comunicativa, de maneira análoga à concepção de memória coletiva de Halbwachs, versa sobre o conjunto de saberes e práticas culturais construídos por uma comunidade, os quais são transmitidos das gerações anteriores às posteriores e não só aludem a um passado recente, mas também permanecem por, no máximo, três ou quatro gerações, por isso é passível de mudanças e ressignificações ao longo dos anos. O compartilhamento de tais saberes e práticas contribuem para fomentar o sentimento de pertencimento ao grupo, o que faz com que a memória seja “[...] um conhecimento dotado de um índex de identidade (Assmann, 2008, p. 122). Já a concepção de memória cultural é uma proposta mais abrangente no sentido de versar sobre símbolos externos que constroem um passado comum com o qual determinadas comunidades se identificam. Esse tipo de memória tem caráter institucional, já que se apresenta por meio de museus, monumentos, espaços culturais, arquivos, bibliotecas e outras instituições mnemônicas, responsáveis pela construção de ‘grandes narrativas’ com as quais diferentes grupos dialogam, entre as quais mencionamos as narrativas mítico-religiosas. Diferentemente da ‘memória comunicativa’, a ‘memória cultural’ é mantida por instituições e especialistas; ela é concebida como uma construção discursiva intencional, por isso vulnerável a diferentes circunstâncias sócio-político-culturais bem como interesses e objetivos que a tornam objeto de usos e manipulações.

8Elsewhere I have described the museal strategies that produce ‘prosthetic memories’ (Landsberg 2004) in viewers — memories of events that one did not live through yet to which, after an experiential engagement with a representation of a past event, one feels a personal, affective connection. I have argued that prosthetic memories are most productive when one is brought into proximity to a past event, but not through simple identi_cation with past historical actors. At the US Holocaust Memorial Museum (USHMM), for example, when one is confronted with the room full of shoes, one is brought into contact with the enormity of what happened. The visitor sees the shoes that survived while their owners did not, and at the same time feels her own shoes on her feet. The Holocaust can never be our experience, yet in engaging with the room full of shoes, the visitor has had na experience in connection to the Holocaust and its victims, an experience that feels meaningful.

9The experience of empathy requires an act of imagination— one must leave oneself and attempt to imagine what it was like for that other person given what he or she went through. Empathy, unlike sympathy, requires mental, cognitive activity, it entails an intellectual engagement with the plight of the other; when one talks about empathy one is not talking simply about emotion, but about contemplation as well. Contemplation and distance, two elements central to empathy, are not present in sympathy. Empathy takes work and is much harder to achieve than sympathy. In part, empathy is about developing compassion not for our family or friends or community, but for others— others who have no relation to us, who resemble us not all, whose circumstances lie far outside of our own experiences.

Como citar este artigo: Farias Junior, J. P. Educação museal e produção de memórias: o Museu ‘Ozildo Albano’. (2021). Revista Brasileira de História da Educação, 21. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v21.2021.e148

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Recebido: 24 de Fevereiro de 2020; Aceito: 27 de Maio de 2020; Publicado: 17 de Dezembro de 2020

E-mail: petruciojr@terra.com.br

José Petrúcio de Farias Junior é licenciado e bacharel em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Franca - 2003), em Pedagogia pela Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ - 2012) e Letras-Inglês (UNIUBE - 2009). Mestre em História, na linha de pesquisa História e Cultura Política pela UNESP/Franca (2012), com estágio de pesquisa na Albert Ludwigs Universität Freiburg (2007), Doutor em História também pela UNESP/Franca, com período sanduíche na Freie Universität - Berlin (2011-2012). Pós-doutor em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (2018) e atua como Coordenador do Doutorado Interinstitucional em Educação (DINTER UFU-UFPI). E-mail: petruciojr@terra.com.br https://orcid.org/0000-0002-7631-0705

Editor-associado responsável: Evelyn de Almeida Orlando (PUC-PR) Email: evelynorlando@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-5795-943X

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