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Revista Brasileira de História da Educação

versión impresa ISSN 1519-5902versión On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.21  Maringá  2021  Epub 27-Ene-2021

https://doi.org/10.4025/rbhe.v21.2021.e162 

Artigo Original

Fundamentação da história da educação brasileira:o gesto pedagógico colonial, os processos para consulta e os regimentos, séculos XVII-XVIII

Foundation of the Brazilian history of education:the colonial pedagogical gesture, the processes for consultation and the regiments, 17th-18th centuries

Fundamentos de la historia de la educación brasileña:el gesto pedagógico colonial, los procesos de consulta y los regimientos, siglos XVII-XVIII

Danilo Arnaldo Briskievicz1  * 
http://orcid.org/0000-0002-7652-1959

1Instituto Federal de Minas Gerais campus Santa Luzia, Belo Horizonte, MG, Brasil.


Resumo:

O objetivo deste estudo é proporcionar o alargamento da concepção de narrativa histórica educacional, nesse caso, do Brasil Colônia, especialmente na transição entre os séculos XVII e XVIII, em torno do conceito de gesto pedagógico colonial. Descrevemos este conceito e propomos sua confrontação com a realidade histórica da formação do território brasileiro, especificamente em torno do território mineiro, nas minas do Serro do Frio (vila do Príncipe, capital da comarca do Serro do Frio atual cidade do Serro/MG). Para isso, introduzimos a noção de documento como processos para consulta escritos em sagradas letras a fim de dizer os ausentes, responsável pela condução dos procedimentos de controle da Coroa portuguesa de seu reino e de suas colônias, a partir de alguns argumentos de António Manuel Hespanha, em especial dos regimentos. A metodologia circunscreve-se em torno de pesquisa bibliográfica de documentos arquivísticos portugueses e brasileiros bem como no diálogo de pensamento com historiadores. O resultado alcançado é a oferta de fundamentação para a narrativa histórica educacional, em especial, para a revelação do papel da educação - formal ou informal - na leitura e escrita da história colonial brasileira.

Palavras-chave: gesto pedagógico colonial; história da educação; Brasil Colônia; documentação colonial brasileira; educação formal e informal

Abstract:

The aim of this study is to provide a broadening of the concept of educational historical narrative, in this case, of Colonial Brazil, especially in the transition between the 17th and 18th centuries around the concept of colonial pedagogical gesture. The paper describes this concept and propose its confrontation with the historical reality of the Brazilian territory’s formation, specifically around the mining district, in the mines of Serro do Frio (Vila do Príncipe, capital of the Serro do Frio County, currently the city of Serro/MG). For that, the notion of document as consultation processes written in sacred letters is introduced in order to let talkthe absent ones, responsible for conducting the control procedures of the Portuguese Crown in his kingdom and its colonies, based on some arguments by António Manuel Hespanha, in particular the Regiments. The methodology is limited to bibliographic research of Portuguese and Brazilian archives’ documents, as well as the dialogue of thought with historians. The result achieved is offer a foundation for the historical educational narrative, especially for the revelation of the education’s role - formal or informal - in the reading and writing of Brazilian colonial history.

Keywords: colonial pedagogical gesture; history of education; Colonial Brazil; brazilian colonial documentation; formal and informal education

Resumen:

El objetivo de este estudio es proporcionar una extensión del concepto de narrativa histórica educativa, en este caso, del Brasil colonial, especialmente en la transición entre los siglos XVII y XVIII en torno al concepto de gesto pedagógico colonial. Describimos este concepto y proponemos su confrontación con la realidad histórica de la formación del territorio brasileño, específicamente en torno al territorio minero, en las minas de Serro do Frio (Vila do Príncipe, capital de la Comarca do Serro do Frio, actualmente la ciudad de Serro/MG). Para ello, introdujimos la noción de documento como procesos de consulta redactados en letras sagradas para decir los ausentes, encargados de realizar los trámites de control de la Corona portuguesa de su reino y sus colonias, en base a unos argumentos de António Manuel Hespanha, en particular, el Reglamentos. La metodología se limita a la investigación bibliográfica de documentos de archivos portugueses y brasileños, así como al diálogo de pensamiento con historiadores. El resultado logrado es el ofrecimiento de un fundamento para la narrativa histórica educativa, especialmente para la revelación del papel de la educación - formal o informal - en la lectura y escritura de la historia colonial brasileña.

Palabras clave: gesto pedagógico colonial; historia de la educación; Brasil Colonia; documentación colonial brasileña; educación formal e informal

Introdução

A história educacional colonial necessita de rigorosa fundamentação teórica para alcançar seu objetivo de descrição ou narrativa sobre o passado. O gesto pedagógico colonial é uma forma de ampliação da percepção sobre a própria história, seja documental, seja iconográfica, seja livresca. Ele permite um alargamento de como a educação - quem ensina e quem aprende - fundamenta as relações de convivência nas sociedades coloniais, por isso, o gesto pedagógico colonial e sua relação intrínseca entre educação e política. As relações entre a educação e a política - ou minimamente o tema da educação - por vezes passam ao largo nos estudos da história colonial brasileira e mineira, com pouquíssimas exceções. Por motivações silenciadas, o que tange à educação é considerado, na maioria das vezes, um tema menor ou apenas restrito aos historiadores da educação, o que é um erro enorme de abordagem. Se, por um lado, os historiadores da educação ganham em suas análises apropriando-se das narrativas ‘puramente’ históricas, muitos historiadores perdem em profundidade nas suas análises ao relegar para segundo plano - quando não omitem radicalmente - as relações pedagógicas ou educacionais na história. Exemplos: conta-se a história de Chica da Silva (Furtado, 2017), mas não se considera em profundidade porque a educação não era por ela considerada um distintivo social de ampliação do prestígio pessoal - porque não investiu em instruir-se, por que não quis fazê-lo?; conta-se a história dos bandeirantes, mas relega-se a segundo plano o papel do saber ler e escrever, fundamentais para registrarem em livros oficiais seus descobertos (Franco, 1940, 1989); escrevem-se biografias de ‘vultos nacionais’, relegando-se o processo de ensino e aprendizagem para segundo plano, sem se investigar com profundidade as marcas desse processo na personalidade/vida desses sujeitos. Infelizmente, os exemplos são vários. Há, costumeiramente, uma indiferença em relação ao gesto pedagógico, venha de onde vier, e a ausência de narrativas sobre ele. A história da educação não é apenas uma especialização da história, mas deveria compor as narrativas históricas, com grande ganho investigativo. O exemplo é dado por Hespanha (1994), ao dedicar relevante tópico sobre o papel da forma escrita na administração moderna em oposição à oralidade. Tudo é uma questão de ampliação da percepção em relação ao gesto pedagógico.

O gesto pedagógico colonial - quem ensina e como ensina, quem aprende e como aprende - trata-se de um instrumento de análise das relações políticas e educacionais, individuais e coletivas; é uma forma de se contar a história colonial brasileira, a mineira e a serrana, tendo-se como pressuposto teórico o dinamismo das relações de ensino e aprendizagem. Quem ensinava e desejava fazê-lo utilizava-se de mecanismos ou dispositivos de poder que autorizavam ou desautorizavam seu discurso e sua prática. No caso da Coroa portuguesa, em processo de colonização do território brasileiro conquistado em 1500, a cada dia ensinava alguma nova lição, fato repetido cotidianamente até a independência nacional em 1822. Ordenar o espaço público pela vasta legislação escrita e experimentada coletivamente em seu cotidiano - as ordenações afonsinas, manuelinas, filipinas -; validar a administração metropolitana por seus agentes na colônia por meio dos regimentos; ocupar o território formando corpos políticos assemelhados e assujeitados ao tipo português pelo espelhamento da sua malha urbana (Fonseca, 2011) era um requintado sistema de paróquias e concelhos, freguesias e câmaras, em um intrincado sistema do padroado real e das mercês. Contudo, quem aprendeu ou foi obrigado a aprender podia aceitar os modelos apresentados como formas definitivas ou, por outro lado, podia resistir ao processo, criando entraves para sua naturalização, a partir do estranhamento de seus princípios. Isso também foi corriqueiro no Brasil colonial, e as minas serranas não ficaram de fora dessa realidade de contestação da autoridade portuguesa.

No caso da colônia brasileira, as sociedades indígenas jamais aceitaram a invasão de seus territórios e a escravização de seus povos1. Houve constante reação violenta ao tipo de ensino metropolitano português. As sociedades indígenas nunca aceitaram a forma de ensino português, por isso resistiram bravamente - eram chamados de ‘índios bravos’ pelos bandeirantes quando se recusavam ao amansamento - declarando guerra, fugindo, reorganizando-se em novos territórios. Evidentemente, a Coroa portuguesa insistiu na colonização e aperfeiçoou pedagogicamente seus dispositivos ou mecanismos de poder, ampliou seu controle e dizimou populações indígenas inteiras. Portugal venceu definitivamente sua guerra colonizadora? A Coroa portuguesa conseguiu sucesso pleno em seu gesto pedagógico colonial? A sobrevivência das sociedades indígenas - diminuídas numericamente, mas engrandecidas culturalmente - conta histórias de resistências criativas, sistematicamente sufocadas pelo discurso oficial, avesso aos marginais e opositores do progresso.

A complexa rede de relações da escravidão africana na ibero-américa se estabeleceu pelo gesto pedagógico colonial de naturalização do trabalho compulsório. Da parte portuguesa e de seus defensores, criaram-se justificativas teológicas, históricas, raciais e culturais para se dar conta desse processo de submissão do corpo africano, centradas na estigmatização doutrinária do ‘sangue infecto’ (Carneiro, 2005). Nunca houve um dia sem resistência à escravidão, fosse na África, fosse no Brasil. Os registros históricos contam inúmeras guerras, conflitos, organização de quilombos, arranjos societários e familiares, formas sutis, mas eficientes de oposição ao projeto colonizador escravista (Moura, 2013). Contam, também, o cotidiano da economia da alforria, as formas inteligentes e criativas de se conseguir a liberdade, por meio de um rico aprendizado de como o sistema de coartações funcionava. Os escravos ou cativos aprenderam a resistir usando a economia da alforria a seu favor: criaram irmandades e confrarias religiosas para dar visibilidade ao seu desejo de liberdade em seus estatutos, usando muitas vezes as letras dos ‘homens bons’ para garantirem seu espaço de devoção e festa; estabeleceram formas de aprendizado dos ofícios mecânicos - sapateiros, alfaiates, seleiros, ferreiros, carpinteiros - e das artes liberais como a música e a pintura, além das atividades comerciais (os escravos de ganho são um exemplo típico) para pagarem parceladamente a própria liberdade. O gesto pedagógico colonial acontecia na dialética entre quem ensinava e quem aprendia, ou quem ensinava e desaprendia. Se a educação e a política são expressões do gesto pedagógico colonial, ainda se faz necessário se ampliar o seu sentido, refinando-se sua terminologia e alcance.

O conceito de gesto pedagógico colonial deve ser definido em duas etapas. Comece-se pelo termo gesto. Etimologicamente, o substantivo masculino ‘gesto’ parece ter sua origem indo-europeia ligada a gas-, guardando o sentido de andar, fazer andar, conduzir, portar; em latim, desdobrou-se no verbo gerere (operare ou operar, fare ou fazer) significando portar sobre si. Representa-se metaforicamente pelo sentido de aceitar um encargo, portar uma obrigação. Procede daí a ideia de executar ou fazer. Do latim gestus, particípio passado de gerere, descreve aceno, movimento, sinal, manifestação, expressão, ação, prática e atitude, aquilo que dá origem a alguma coisa, o que ou quem traz consigo a capacidade de criação de algo novo. De modo geral, o gesto é a externalização do que alguém ou alguma coisa traz dentro de si, aquilo que o anima. Muitas palavras derivam de gerere e gestus: gerir ou cuidar de um negócio; gesta ou feito memorável; gestar, gestação ou o fato de portar uma criança, também no sentido de administrar; digerir ou repartir o alimento pelo corpo (Fonseca & Roquete, 1848). Em resumo, gesto é fenômeno: ele pode se apresentar como individual ou social, cultural, político, econômico, religioso e também pedagógico. Assim, o gesto pedagógico é um fenômeno heterogêneo e polissêmico por natureza.

Agora, o termo pedagógico. A etimologia do substantivo feminino ‘pedagogia’ deriva do grego paidagōgós, em que paidos refere-se à criança e agoge significa condução, ato de conduzir. O sentido mais antigo dos gregos está ligado à condução de crianças pela mão à escola por escravos de famílias ricas (Tardif, 2014; Cambi, 1999; Saviani, 2013). Atualmente, o sentido é o de conduzir a criança, ensinando-a e auxiliando-a em seu crescimento. Assim, o gesto pedagógico é a ação de ensinar; é um ato social externalizado por seu agente; é executado pelo indivíduo que transmite aos seus pares ou opositores seu estado de espírito, ou seja, aquilo que o anima, que o faz estar no meio dos outros, relacionando-se com eles em reconhecimento ou irreconhecimento, aceitação ou rejeição; é uma forma de mostrar-se ao olhar dos outros para ser reconhecido como igual ou desigual; por ele transmitem-se valores, a noção de civilidade, a devoção religiosa e a revelação de comportamento de determinado grupo social.

Dessa forma, em sociedade, os indivíduos praticam gestos pedagógicos, educam-se e politizam-se, aprendem e convivem. O gesto pedagógico é um ato político em que o corpo se apresenta como recurso didático do indivíduo e de seu grupo, a classe social e seus diversos estratos. É o corpo animado ou infestado de valores e desvalores, conhecimentos e não saberes, crenças e descrenças, ou seja, as formas sociais de simbolização de seu estar no mundo, que traduzem e expressam quem se encontra diante dos olhares dos outros. A presença do corpo individual é potencializada pelas instituições sociais.

Território e regimentos

A conformação do território2 brasileiro em suas atuais fronteiras, em seus limites entre Estados e municípios - o que hoje se chama de Brasil -, é uma invenção dos portugueses, iniciada em 1500. Entre o imaginado e o viável, ou seja, entre o idealizado projeto de enriquecimento da Coroa portuguesa e de seus parceiros econômicos visando aos lucros da exploração em uma colônia de ultramar e a realidade cotidiana vivenciada pelos forasteiros e depois pelas primeiras gerações de brasileiros nascidos em terras tupiniquins nos arraiais, vilas e cidades, há a longa história desse processo. No território brasileiro aconteceram conflitos das mais variadas ordens, problemas das mais variadas escalas, e, entre erros e acertos, fracassos e sucessos, foi-se transplantando para as terras brasileiras o modelo de organização territorial portuguesa. A cada novo produto de exportação prioritário - o pau-brasil (1500-1530), a cana-de-açúcar (século XVI até meados do séc. XVIII), as pedras preciosas, o ouro e o diamante (meados do século XVII até primeiras décadas do século XIX) -, a meta era estabelecer entre os territórios da colônia e a metrópole um comércio lucrativo para o português colonizador e seus investidores estrangeiros. Dessa forma, ocupou-se o território colonial pari passu com um produto de exportação. Não se coloniza um território sem o gesto pedagógico da educação e da política.

Assim, depois de realizada a ocupação deste território - do litoral para o interior do Brasil dentro dos limites do Tratado de Tordesilhas de 1494 até a assinatura do Tratado de Madri de 1750 -, as marcas não ficaram apenas nos mapas. Trata-se de se considerar que uma ocupação bem-sucedida para a exploração de determinado produto de exportação nunca prescindiu das pessoas - e cada uma delas tem sua forma de ser e conviver herdada de seus antepassados. Ocupar é aculturar - e isso envolve complexas intervenções biológicas (mestiçagens), demográficas (migrações externas e internas), alimentares (troca de saberes culinários e agropastoris), habitacionais (técnicas de moradia, construção e formas de habitabilidade); criam-se novas formas de convivência uma vez que cada território novo exige soluções para o abastecimento de água e comida, além da recriação dos modelos urbanos de ocupação e dispositivos de poder existentes em Portugal consagrados em sua história de nação. O Brasil nunca foi terra desocupada, já havia passado, antes da chegada dos portugueses, por vários processos de aculturação das complexas sociedades indígenas. A cultura portuguesa - e tantas outras que participaram de sua constituição, bem como as que chegaram de várias partes da África e de outros continentes - chegou ao território brasileiro com suas tradições e valores, costumes e crenças, produzidos em longa história de assimilações culturais. Assim, o Brasil e suas culturas diversificadas foi território ocupado por vários gestos pedagógicos que disciplinaram o educar e o conviver.

Na disputa pela ocupação do território brasileiro, os portugueses usaram as suas tecnologias de poder - os fortes, fortalezas e alfândegas no litoral e grandes rios; os registros, quartéis e pontos de fiscalização de mercadorias - as passagens -, escravos, pedras preciosas, ouro e diamante dos caminhos da Bahia, de Pernambuco e das minas gerais; as comarcas, cidades, vilas, arraiais; e a demarcação diamantina para a efetiva exploração do ouro e do diamante no território do que se tornaria, em 1720, a Capitania de Minas Gerais. O fundamento do planejamento de ocupação do território colonial - em especial aquele levado a cabo no último quartel do século XVII e durante todo o século XVIII até a independência brasileira em 1821 - foi a centralidade do Estado e de seu aparelho burocrático nos processos de controle e administração dos descobertos. Quanto maior o controle estatal, maior o lucro para a Coroa portuguesa e seus parceiros. Quanto maior a eficácia dos processos do que Hespanha (1994) denominou de ‘administração central moderna’ da Coroa portuguesa, maior e mais rápido o retorno dos investimentos realizados na colônia. Assim, a moderna governamentalidade centrada no papel decisório do Estado e de seus funcionários públicos em vários níveis de organização assenta-se sob um gesto pedagógico primário - o processo escrito como peça de consulta (Hespanha, 1994). Ao se estudar o período colonial - no caso específico deste artigo, o século XVIII por conta da descoberta das minas do Serro do Frio em 1702 -, é inegável (os arquivos especializados, a cada dia que passa, tornam públicos mais e mais documentos) a existência de um número quase infindável de cartas régias e dos conselhos de ultramar, cartas dos governos geral e da capitania, leis, regimentos, ordenações, vereações, bandos, editais, livros de registro dos atos oficiais. O gesto pedagógico colonial foi baseado na escrita. Hespanha (1994) esclarece que os processos como peças para consulta em qualquer tempo e lugar foram escritos para darem suporte à comunicação político-administrativa do aparelho burocrático do Estado. Por isso, “[...] foi a plena implantação da forma escrita que permitiu a manutenção de espaços políticos especialmente tão dispersos como os da coroa de Portugal” (Hespanha, 1994, p. 291). De fato, para que da capital Lisboa partissem ordens para o território português e suas colônias de ultramar, espalhadas pelo mundo, era fundamental se manter um “[...] império de papel, em que a correspondência do rei, dos vice-reis, dos governadores, dos capitães, substituíam laços políticos mais efetivos” (Hespanha, 1994, p. 291). A constituição de Portugal como Estado baseado em império de papel só foi possível por conta do gesto pedagógico do letramento e/ou alfabetização das crianças por meio da instrução pública - particular ou financiada pelo Estado - disseminada minimamente em seu território. Com isso, cresceu a importância dada aos letrados a partir do século XIV na administração dos negócios governamentais, especialmente aqueles ligados ao Judiciário. Exemplo dessa virtualidade da escrita (Hespanha, 1994) é o assento, em 16 de outubro de 1742, da Chancelaria de dom João V:

Dom João, por graça [...]. Faço saber a vós juiz, vereadores, procurador, fidalgos, cavaleiros, escudeiros, homens bons e povo da vila de Setúbal [...] ‘que havendo respeito as letras’ e mais partes que concorrem no bacharel Caetano da Costa Matoso e que no de que o encarregar me servirá como cumpre a meu serviço e ‘boa administração da Justiça’ e haver lido no Desembargo do Paço e ficar aprovado. ‘Hei por bem fazer-lhe mercê do lugar’ de juiz de fora dessa vila por tempo de três anos e além deles q mais que houver por bem enquanto lhe não mandar tomar residência (Arquivo Nacional da Torre do Tombo de Portugal, 1742, Chancelaria de dom João V, Livro 105, fl. 134v.-135, grifo nosso).

Ênfase nos grifos: ‘que havendo respeito as letras’ - respeito ao que foi escrito (fazer falar os que não se encontram mais presentes); ‘boa administração da Justiça’ - ordenamento jurídico pela positivação do ato escrito; e ‘Hei por bem fazer-lhe mercê do lugar’ - expressão do desejo de quem ordenou, emissão da ordem pela superioridade hierárquica do governante no aparelho burocrático do Estado.

Outro exemplo, agora da vila do Príncipe do século XVIII. Para ser eleito no Senado da Câmara - prova de grande distinção social e privilégio da nobreza -, exigia-se dos oficiais, fossem eles ‘homens bons’ reconhecidos pela comunidade: branco, de profissão nobilitante (não poderia ser oficial mecânico), idade mínima de 25 anos, chefe de família (Códice Costa Matoso, 1999). Mas o mais importante requisito era mesmo que todos fossem letrados, ou seja, que soubessem ler e escrever. Acreditava-se como em Portugal que, para se oficializar uma decisão pelas ‘sagradas letras’ - vereação, registro, ordem, assento, aforamento -, era preciso se dominar a tecnologia da escrita que permitiria, para além do lugar e do tempo, se ler os assentos, voltando-se a eles, referindo-se ao momento de sua fundação ou de criação de uma jurisprudência. Por isso, durante anos, os oficiais da Câmara eram obrigados a guardar os livros oficiais para que, por meio da escrita, os atuais pudessem “[...] fazer falar os ausentes” (Hespanha, 1994, p. 291).

Uma vez que a função de oficial do Senado da Câmara exigia conhecimento das leis e domínio pleno das sagradas letras, era comum a contratação de advogados para auxiliarem nos assentos3. Bem no início da Vila do Príncipe, em vereação de 1723 - talvez esse tenha sido o primeiro advogado a servir na Câmara -,

[...] foi contratado o licenciado Daniel Pinto da Silva para servir com suas letras jurídicas ao Senado, devendo assistir às vereações de modo a haver mais acerto e se poderem tratar as matérias importantes, recebendo o ordenado de 23 oitavas de ouro por ano; - o que aceitaram ambas as partes (Silva, 1928, p. 87).

Isso foi possível porque “[...] assim apertados trabalhavam os nossos avós em sua função: e como se explica que os vereadores, homens sem cultura, sujeitos às correições, penas e vexames, pudessem despachar, às vezes resistindo ao ouvidor? É que tomavam oficialmente um síndico ou advogado de partido” (Silva, 1928, p. 87).

O gesto pedagógico de virtualização da escrita como dispositivo político na administração pública portuguesa e por extensão de suas colônias proporcionou agilidade nos negócios públicos, o que seria impossível em termos de presença física dos administradores. Essa rede de informação foi fundamental para que se criasse uma noção de expansão da governamentalidade da Coroa portuguesa, que parecia estar em todos os lugares onde houvesse alguém habilitado a escrever. Pode-se afirmar, talvez com certo risco de se universalizar situações específicas, que a necessidade de controle da administração central portuguesa pelos documentos escritos levou à abertura de picadas, caminhos e estradas Brasil afora a fim de se criar e manter uma malha burocrática e o fluxo de informações.

Dessa forma, a partir do século XVI em Portugal e na Espanha, o gesto pedagógico dos processos de consulta escritos representou uma revolução em relação aos antigos processos de transmissão e armazenamento das informações centrados unicamente na oralidade. Assim, o gesto pedagógico colonial infestou-se de assentos oficiais: tudo se escrevia para estar disponível à consulta, à conferência, à jurisprudência, ao direito. Por isso, foi possível, não sem conflitos, permanências e rupturas, o estabelecimento em alguns casos da ampliação do controle governamental da Coroa portuguesa de forma capilar e micromolecular pela colônia. A centralização do aparelho do Estado nos corpos políticos da metrópole e da colônia estava garantida, assim, os olhos do rei estavam em todos os lugares onde houvesse alguém apto a escrever notícias sobre o que estava acontecendo.

Em conclusão, o gesto pedagógico colonial de administração da coisa pública -fosse da Coroa portuguesa ou dos órgãos locais manifestamente os mais importantes dos Concelhos, inclusas as paróquias ou freguesias e seus registros de batismos, casamentos e óbitos -, era fundamentado na escrita de processos para consulta. A centralização desses dispositivos de governamentalidade permitiu certa agilidade - talvez quebrada pelas distâncias imensas do território brasileiro em relação a si mesmo e a Portugal e das primeiras comarcas mineiras - nos processos de criação de ampla legislação sobre os descobertos de pedras preciosas, ouro e diamante. Por conta desse gesto pedagógico colonial de escrever os regimentos ordenando os territórios, é possível se narrar grande parte da história brasileira e mineira dessa ocupação, em especial das vilas do ouro, no caso deste estudo, a vila do Príncipe.

Os regimentos de 1608 e 1618 e a fundação dos territórios

Em 1590, Afonso Sardinha comunicou ao governo português a descoberta de ouro na serra do Jaraguá, no território de São Paulo. A notícia produziu um rápido movimento de, por meio das sagradas letras, escrever regimentos ou regulamentos para a nascente indústria mineral da colônia. Por causa disso, foi publicado o Primeiro regimento das terras minerais do Brasil, datado de 15 de agosto de 1603, com 62 artigos. Coube ao governador-geral Diogo Botelho (1602-1606) ordenar as lavras de ouro, controlar os negócios ilícitos - os afamados descaminhos do ouro - bem como colocar as sagradas letras do regimento em prática, a serviço da Coroa portuguesa, para regular a exploração das minas. As instruções têm como modelo de sucesso a empreitada mineradora das minas de ouro, prata e bronze das colônias espanholas da América.

Aos descobridores, o regimento deixava claro que a propriedade das minas era da Coroa portuguesa, que concedia aos mineradores as lavras para exploração, como seus súditos. Esse Regimento previa que os descobridores de jazidas adquiriam o direito de explorar a mina “[...] com superfície retangular de 80 por 40 varas (varas de 5 palmos, 88 por 44 metros ou 3.872 metros quadrados)” (Ferrand, 1998, p. 144), garantida outra, “[...] de 60 por 30 varas (66 por 33 metros ou 2.178 metros quadrados)” (Ferrand, 1998, p. 144), sendo que “[...] o resto da jazida tinha de ser repartido entre as diversas pessoas que desejassem fazer sua explotação, à razão de uma parte explotável de 60 por 30 varas para cada uma delas” (Ferrand, 1998, p. 144). Fato é que a Provedoria das Minas foi criada por esse regimento e passou desde então a administrar as descobertas de minas de ouro, prata e cobre bem como a regular sua distribuição. Além disso, previa-se a instalação de casas de fundição em território brasileiro, para maior controle dos descobertos e de sua produção, assim, o provedor-mor da Fazenda seria o responsável pela Provedoria das Minas e suas casas de fundição.

O Segundo regimento foi publicado em 08 de agosto de 1618. Ele estabeleceu a recompensa de 20 cruzados para os descobridores. As medidas das jazidas foram aumentadas para 80 por 40 braças de 10 palmos (176 por 88m ou 15.488m2) e uma parte comum para exploração. É confirmada a figura do provedor de minas encarregado de fazer cumprir o regulamento, em vasto território sob sua guarda. Por isso, Ferrand (1998, p. 144) é da opinião de que “[...] essas leis nunca foram bem executadas [tendo] produzido pouco efeito sobre a descoberta das minas”. Segundo Mendonça (1972), os 16 artigos desse regimento apresentavam estratégias não só para aumentar a arrecadação com os metais, fazendo concessões, mas ampliando os privilégios dos descobridores que podiam ser, além dos portugueses, os índios não domesticados e os estrangeiros.

Os regimentos de 1603 e 1618 foram publicados no contexto da União Ibérica (1580-1640) e da reforma jurídica portuguesa realizada por meio das Ordenações Filipinas ou Código Filipino, por Filipe II de Espanha (Filipe I de Portugal). As ordenações foram confirmadas após o fim da União Ibérica, após as Guerras da Restauração. Outros regulamentos publicados em 1673, 1679 e 1680 não alteraram a diretrizes dos regimentos anteriores, apenas ampliaram alguns cargos da provedoria. Nesses regulamentos estabeleceu-se um hábito comum nas minas gerais que era garantir à Fazenda Real parte das terras destinadas à mineração.

Durante a vigência do Segundo regimento de 1618 e de seus acréscimos posteriores foram descobertas as minas de ouro no território das minas gerais. O gesto pedagógico colonial colocou nos regimentos a vontade do controle sobre os descobrimentos das minas de ouro da Coroa portuguesa, por meio das letras sagradas. Isso quer dizer que o descobrimento de qualquer mina de ouro em território brasileiro estava ordenado, ou seja, havia regras para seu funcionamento. Quem deveria cumprir essas regras e atuar dentro dos limites dessa legislação? Os bandeirantes - oficiais e informais - em especial os bandeirantes paulistas da região mineradora de Taubaté, os descobridores das minas gerais. A relação entre os territórios de São Paulo e Minas Gerais, ou dito de outra forma, a conexão entre os bandeirantes descobridores das minas de ouro da região de Taubaté e as novas minas de ouro do rio das Velhas (Sabará), do rio Ouro Preto (Vila Rica), do rio das Mortes (São João del Rei) e do rio Jequitinhonha (vila do Príncipe), precisa ser problematizada tendo-se como ponto de partida o gesto pedagógico colonial.

Em primeiro lugar, a vila de São Paulo do Piratininga foi o primeiro concelho ou municipalidade no interior brasileiro, a partir de 1558 (Fonseca, 2011). Ponto central das bandeiras para o interior do território brasileiro de então - o sertão ainda desconhecido pelos colonizadores -, a atividade principal desses homens era a escravização de índios para servirem de mão de obra nas fazendas de atividades agropastoris. Os paulistas mestiçados - herdeiros das dinâmicas de mestiçagens biológicas4, de raças e culturas misturadas - usavam e abusavam das bandeiras como disfarce para a o aprisionamento indígena, uma fonte de renda mais segura (Fonseca, 2011). A partir de 1640, bandeirantes paulistas da vila de São Paulo do Piratininga tomaram a direção das trilhas abertas até então. Eles se deslocaram no território paulista por conta do “[...] considerável poder político e militar de contraofensiva” (Fonseca, 20111, p. 60) dos jesuítas. Com esse deslocamento pelos antigos caminhos para o aprisionamento dos indígenas, fizeram surgir novas vilas, as verdadeiras matrizes ocupacionais do território brasileiro: Jundiaí (1655), Itu (1657), Sorocaba (1661) sediaram bandeiras para as terras de Goiás e Mato Grosso; Taubaté (1645) e Guaratinguetá (1657) sediaram outras tantas bandeiras para o sertão das minas gerais. Quem teria pisado sertão adentro, feito suas avaliações do potencial aurífero dos rios, córregos e ribeiros e desenhado o mapa das minas de ouro passando suas informações privilegiadas para seus camaradas? Não há dúvida de que foi o bandeirante paulista Fernão Dias Paes Leme (c.1608-1681); ele partiu com sua bandeira da vila de São Paulo do Piratininga, em 1674. O seu grupo de amigos aprendeu os caminhos do ouro a partir das suas entradas pelo sertão de onde infelizmente não restaram mapas manuscritos. Ele ensinou os caminhos especialmente ao seu genro, Manuel de Borba Gato (1649-1718), que por sua vez passou os ensinamentos sobre as rotas do ouro e de como se descobrir o metal precioso nos rios mineiros a tantos outros grupos de paulistas incluindo os descobridores das minas do Serro do Frio.

Por isso, a descoberta das minas de ouro no sertão mineiro é a consequência de vários fatores culturais, biológicos, sociais e econômicos: em termos culturais, as dinâmicas de mestiçagens - o ensino e o aprendizado de novas técnicas de cultivo para plantações aclimatadas, de novas formas de construção, de formas renovadas de se controlar a mudança das estações do ano - possibilitaram a sobrevivência em territórios de regras naturais anteriormente desconhecidas dos seus primeiros moradores; as dinâmicas de mestiçagens biológicas andaram pari passu com as soluções para a construção das ditas vilas e incursões aos sertões, misturando raças, criando novas palavras para designarem os novos padrões de pessoas; as dinâmicas sociais levaram à permanência ou ao relaxamento de costumes herdados dos primeiros colonizadores portugueses para possibilitarem a sobrevivência; as atividades econômicas centradas na posse das propriedades agropastoris abastecidas pela rendosa captura e comercialização da mão de obra escrava indígena levaram até as regiões das minas de ouro as técnicas de plantio e criação do gado e a gradativa mudança da escravidão indígena - dominada amplamente pelos paulistas - pela escravidão africana, com novos dispositivos de lucro sobre o trabalho compulsório e seu mercado transatlântico.

Em segundo lugar, o gesto pedagógico colonial dos paulistas mestiçados da vila de São Paulo do Piratininga e do vale do Paraíba estruturou o modo de vida nas novas minas de ouro descobertas no sertão mineiro. Assim, descobrir não é começar do nada. Antes, o planejamento para se adentrar nesses territórios exigia especialidades técnicas refinadas; depois, o gerenciamento dos descobertos de ouro gerava nova realidade socioeconômica, formando necessidades dos mais variados matizes “[...] um grande crisol cultural” (Paiva, 2015, p. 74). Assim, quem terá resolvido com sua herança cultural os problemas colocados pelo planejamento e gerenciamento dos descobertos? Não há outra resposta possível: para o sucesso da ocupação do território mineiro, todos os saberes foram necessários, todas as técnicas usadas para se solucionar problemas tópicos foram importantes. Contudo, a tradição histórica consagrou, por uma representação cultural limitada de tão complexo fenômeno social, os “desbravadores” que normalmente são herdeiros espirituais das elites brasileiras, das elites paulistas, das elites mineiras.

Em terceiro lugar, feitas as observações sobre as dinâmicas de mestiçagens, é necessário se demarcar quem com seu gesto pedagógico colonial ocupou oficialmente o território mineiro a partir das normas de conduta dos Regimentos de 1603 e 1618. O ponto central dos primeiros descobertos mineiros é onde se localizam os seus principais rios, córregos ou ribeiros que tiveram seus depósitos de ouro de aluvião lavrados - ou pelos menos ficaram muito próximos desses ajuntamentos populacionais primitivos. Nesses lugares, construíram-se os pousos, ranchos ou pousadas.

Para Boxer (1963, p. 60), “[...] os mais antigos campos auríferos eram, naturalmente, os mais improvisados, e mesmo depois que começaram a tomar forma um tanto mais permanente, fazendo-se vilas em embrião, os elementos de moradia eram dos mais simples”.

Dessa forma, “[...] as povoações fundadas em Minas gerais pelos primeiros colonos brancos eram designadas, principalmente, pelas palavras ‘arraial’ e ‘rancho’; estes termos, que em Portugal designavam originalmente acampamentos militares, adquiriram na colônia outras conotações” (Fonseca, 2011, p. 63, grifo do autor). Por isso, “[...] na colônia, a palavra podia designar uma espécie de galpão rústico - um simples telhado apoiado em pilares de madeira - que servia para abrigar, durante as paradas, as mercadorias dos viajantes” (Fonseca, 2011, p. 63-64). No caso das minas do Serro do Frio descobertas em 1702 por Antônio Soares Ferreira há o registro do descobrimento no Livro da fazenda real destas minas do Serro do Frio e Tucambira (Pinto, 1902, p. 939-962), aberto no dia 14 de março e que no dia seguinte fez o lançamento dos descobertos. A regra rio-descoberto-pousada é expressa claramente: primeiro, a localização do rio - ‘nestas minas de Santo Antônio do Bom Retiro do Serro do Frio’; segundo, o anúncio do pouso, pousada ou arraial - ‘arraial do Ribeiro delas, em pousadas do capitão Antônio Soares Ferreira guarda-mor’; por fim, a confirmação do descobrimento por quem era de direito - ‘e descobridor destas ditas minas’. Em relação aos primeiros arraiais, essa regra rio-descoberto-pousada (acrescido da elevação à vila) tornou-se praticamente regra geral.

O regimento dos superintendentes, guarda-mores e oficiais deputados, de 1702

Um novo ajuste nos regimentos para a exploração das minas no Brasil foi publicado em 19 de abril de 1702, poucos dias depois da descoberta das minas do Serro do Frio. Trata-se do Regimento dos superintendentes, guarda-mores e oficiais deputados nas minas de ouro (Códice Costa Matoso, 1999, p. 313-324). Esse é o regimento que explica oficialmente como se deu a ocupação do território mineiro no século XVIII, pelo menos é uma referência documental importante para a comparação com a urbanização desses arraiais e entornos, uma vez que nesses territórios seguiram-se muitas vezes rumos bem diversos dos preconizados na legislação oficial. Segundo Fonseca (2011, p. 447), esse regimento “[...] foi a primeira legislação mineradora verdadeiramente aplicada em Minas Gerais, e a maior parte dos seus artigos vigorou durante muito tempo”.

O contexto colonial da publicação doRegimentode 1702 era de preocupação em relação à crise de abastecimento de alimentos no território das minas até então conhecidas, gerando uma crise cuja origem era a fome. Segundo Vasconcelos (1974, p. 167), em 1698, o governador e capitão-general do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas, Artur de Sá e Menezes, acusava a situação de fome no Ribeirão do Carmo (Mariana): “[...] chegou a necessidade a tal extremo que se aproveitaram dos mais imundos animais, e faltando-lhes estes para poderem se alimentar a vida largaram as minas e fugiram para os matos com seus escravos, a sustentarem-se das frutas agrestes que neles achavam”. Nos anos seguintes, a situação não havia melhorado, pois, segundo Vasconcelos (1974, p. 177),

[...] os anos de 1700-1701 foram entanto calamitosos; o mesmo horror que havia experimentando o arraial do Carmo nos anos de 97-98, o flagelo da fome, produziu na serra de Ouro Preto a debandada dos moradores, igualmente cegos pelo ouro, esquecidos dos comestíveis (Vasconcelos, 1974, p. 177).

Na prática, para continuarem nos territórios minerais, ficou acordado que haveria amplo investimento na associação entre agricultura e exploração mineral para se garantir o abastecimento dos descobertos, pousos e arraiais (Boxer, 1963). Depois do acordo e cessando a fome, muitos retornaram às lavras (Vasconcelos, 1974). Segundo Fonseca (2011, p. 70), a lição foi aprendida pelas gerações posteriores, pois, “[...] em certas regiões, como no termo de Mariana entre os anos de 1750 a 1770, apenas 10% das unidades de produção eram ligadas exclusivamente à mineração”.

O Regimento dos superintendentes de 1702 modificou o nome da antiga Provedoria das Minas atualizando-a para Superintendência das Minas; em 1736 criaram-se as Intendências do Ouro e o cargo de intendente-geral do ouro e, a partir de 1750, reorganizou-se a administração com a implantação das casas de fundição. Na prática, para cada distrito minerador - a vila, seus arraias e povoados (os antigos do século XVIII denominavam de termo), o Senado da Câmara, a paróquia ou freguesia -, o governo da capitania provisionou um superintendente à medida do crescimento populacional dos descobertos e dos problemas inerentes à ocupação das terras, especialmente as questões ligadas à aplicação do mesmo regimento. A região das minas sempre foi uma região de conflitos e motins, disputas armadas e revoltas.

Os cargos de superintendente e de guarda-mor exigiam um gesto pedagógico baseado no reconhecimento da sua autoridade no sentido que explica Arendt (1994, p. 37), ou seja, “[...] o reconhecimento inquestionável por aqueles a que se pedem que obedeçam; nem a coerção nem a persuasão são necessárias”. Talvez o sentido de autoridade arendtiano nas minas fosse republicano demais para o contexto de um lugar ainda sem o apreço civilizatório ao império lei, fundamento das democracias constitucionais modernas (Estados Unidos da América e França ao final do século XVIII), das quais Portugal não fez parte senão por medidas modernizadoras do marquês de Pombal em seu governo (1750-1777), a principal, ao ver deste artigo, a instituição das aulas régias pela cobrança do subsídio literário.

Tudo nos territórios minerais era ainda provisório em termos de regulamentação, apesar de a estrutura do Estado português no Brasil já estar bastante consolidada como espelhamento de suas ordenações. Dessa forma, a autoridade estava sedimentada no reconhecimento da empresa do descoberto, da iniciativa pessoal de comandar ou auxiliar numa bandeira, da figura de fundador do bandeirante. Mas era um tipo de autoridade, sem dúvida. Por isso, o superintendente era o responsável, juntamente com os guarda-menores, escrivão, meirinho e tesoureiro, pela direção dos trabalhos de supervisão do distrito das minas e tinha toda a jurisdição ordinária, cível e criminal dentro desses limites e a mesma alçada outorgada aos ouvidores referentes aos pleitos de Fazenda até a quantia de 100$000 réis, sendo que nos casos excedentes daria apelação e agravo à Relação da Bahia. Isso ficou esclarecido nos últimos artigos do Regimento de 1702, art. 31º quando estabeleceu que

[...] o superintendente terá toda a jurisdição ordinária cível e crime dentro dos limites dessas Minas, que pelas minhas leis e regimentos é dada aos juízes de fora e ouvidores-gerais das comarcas do Brasil, naquilo em que se puder acomodar, e à mesma alçada que aos ditos ouvidores é outorgada (Códice Costa Matoso, 1999, p. 323);

e no art. 32º:

E porque o superintendente das Minas, com a experiência da assistência delas, poderá achar que neste regimento faltam algumas coisas que sejam convenientes à boa arrecadação da minha Fazenda e administração delas, dará conta do que lhe parecer se deve acrescentar nó regimento, como também a dará se achar que alguns capítulos dele podem ser inconvenientes (Códice Costa Matoso, 1999, p. 323).

A função do superintendente e a do guarda-mor

Segundo o Regimento de 1702, em seu art. 1º, o superintendente devia resolver os conflitos inerentes à ocupação dos territórios minerais, fazendo diligências “com todo cuidado” (Códice Costa Matoso, 1999) para saber se havia desentendimentos entre os mineiros e outras pessoas, algo que pudesse colocar a ordem das minas em xeque. Os desordeiros deviam ser presos, “[...] e os não soltará sem primeiro fazerem termo de não entenderem um com o outro, e tendo cometido culpa por que algum mereça maior castigo procederá como for direito” (Códice Costa Matoso, 1999, p. 313). Isso provocou, por exemplo, a necessidade de construção das cadeias públicas para a aplicação desse artigo. Nas minas do Serro do Frio pode ter havido uma cadeia, muito parecida ou a mesma citada em vereação de 12 de fevereiro 1722, em um rancho “[...] coberto de capim e assentado sobre seis forquilhas [...]”, conforme registra Silva (1928, p. 38). Fato é que a rua da Cadeia (antiga rua de Baixo), paralela e abaixo da rua Direita, abrigou esse prédio público, até o final do século XIX, quando este foi transferido para o alto da cidade, no antigo Gambá.

No art. 2º, o Regimento descreve a metodologia dos descobrimentos. Ao chegar às minas, o superintendente - ou o chefe dos bandeirantes no caso das minas do Serro do Frio - devia “[...] examinar os ribeiros que estão descobertos, a riqueza deles e se a pinta é geral” (Códice Costa Matoso, 1999, p. 314). A pinta - mancha ou marca do ouro - diz respeito à concentração e extensão dos veios de ouro no beira-rio que determinariam as repartições das braças de terras ou lavras. Caso a extensão fosse grande, os guarda-menores seriam encarregados de parcelar as terras. O Regimento instruía a partir da predominância das técnicas de exploração do ouro no Brasil daquele período, concentradas na busca do ouro de aluvião nos veios achados nos leitos dos rios.

Segundo Ferrand (1998, p. 98), no serviço dos veios, buscava-se, “[...] de preferência, o cascalho aurífero, encontrado descoberto nos rios [...]”; por causa disso, explicava-se a “[...] vinda tão rápida de um grande número de aventureiros, atraídos ao mesmo tempo para a explotação dos rios” (Ferrand, 1998, p. 98), em que aqueles, “[...] desprovidos de todos os meios, extraíam o ouro estrando na água para remexer as areais com estacas afiadas, que recolhiam em seguida em pequenos recipientes [...] gamelas de madeira, nas quais separavam os grãos de ouro com os dedos” (Ferrand, 1998, p. 98). Essa apuração do ouro foi feita nos ribeiros serranos pelos escravos africanos comandados pelos bandeirantes, uma vez que eles dominavam a técnica.

Não por acaso, Ferrand (1998, p. 98) acrescentou em seus estudos que as gamelas de madeiras “[...] foram substituídas mais tarde por um vaso em forma de funil ou de cone muito aberto, a bateia provavelmente importada das África, quando da entrada dos negros na colônia”. Resta saber se no cotidiano das minas do Serro do Frio a bateia importada da África - assim como a mão de obra escrava dominante a partir de então - já estava presente na primeira inspeção dos ribeiros, ou seja, se já havia o comércio internacional das bateias que permitisse aos bandeirantes paulistas desfrutarem desse artefato.

Está-se diante de um gesto pedagógico colonial fundamental, como se está destacando passo a passo: não há acaso no negócio das minas de ouro, tratando-se de serviço altamente qualificado, dependente de mão de obra escrava especializada e de utensílios e técnicas que permitissem dinamizar o processo e aumentar seus rendimentos. Entende-se que, com o passar do tempo, em plena vigência do Regimento de 1702, a captura dos indígenas pelos bandeirantes paulistas tenha diminuído ou praticamente tenha acabado, uma vez que havia necessidade de outro fluxo migratório, ou seja, de escravos africanos especializados em mineração. Fonseca (2011, p. 63-64) destacou, ainda, que o lucro com o “[...] tráfico negreiro era extremamente lucrativo para os negociantes da metrópole - assim como para Coroa, que tributava essa atividade -, ao passo que a caça e o comércio de indígenas não passava de um negócio interno, restrito aos colonos”.

Assim, a passagem de uma mão de obra escrava indígena para uma mão de obra escrava africana parece ter coincidido nas minas do Serro do Frio, de maneira clara. Isso se evidencia com a presença de índias e índios quintando seus achados, bem como pela lista de escravos de 1717, em que também constam os escravos carijós, nativos ou vermelhos. Concorda com a análise deste artigo Venâncio (1997), quando esclarece que na,

Minas Gerais colonial, a escravidão baseada na exploração do braço nativo foi implantada pelos bandeirantes; já francamente decadente em São Paulo seiscentista, a instituição sobreviveu até a segunda década de ocupação da região do ouro, para em seguida praticamente desaparecer das vilas, arrais e lavras mineiras.

Os índios escravizados, quando atuavam nas minas, eram conhecidos como “[...] ‘carijós e negros da terra’ ou, segundo expressão local, ‘como cabras da terra’, representavam apenas 0,4% dos 11.797 cativos ocupados nas lavras da Vila do Carmo” (Venâncio, 1997, grifo do autor), por exemplo. Isso não quer dizer que na comarca do Serro do Frio a dizimação dos indígenas e as guerras de conquista de terras tenham parado em algum momento; pelo contrário, foram intensificadas quanto mais a mineração avançava pela bacia do rio Doce, em direção ao território dos botocudos, na mata do Peçanha. Espalhando-se pelo norte do atual Estado de Minas Gerais, as sociedades indígenas que vivenciaram a colonização portuguesa de suas terras pelos bandeirantes paulistas no extenso território que se configurou como a comarca do Serro do Frio nos primeiros anos do século XVIII educavam seus filhos; praticavam rituais de iniciação na passagem da infância para a adolescência; cultuavam seus mortos; sabiam construir suas aldeias para se protegerem do frio e do calor; dominavam a pesca, a caça, os rios, as florestas, as montanhas;dançavam e brincavam nas suas festas. Foi pela troca cultural e tecnológica com as sociedades indígenas que os bandeirantes paulistas nomearam os rios, as montanhas, os picos, traduzindo seus termos para o idioma português.

O cargo abaixo do superintendente era o de guarda-mor. Este era provisionado para conceder a licença para pessoas descobrirem novas minas, fazer a medição das lavras em braças e a sua repartição, verificar o número de escravos que trabalhavam nas minas e exercer, por meio de registros oficiais, esse controle, além de o ser responsável oficial por medidas para evitar o descaminho ou tráfico do ouro em pó, algo extremamente comum nesse contexto de eldorado brasileiro. O art. 13º do Regimento estabeleceu que o guarda-mor faria uso de ‘um livro rubricado pelo superintendente’ a fim de assentar os ribeiros descobertos “[...] com título à parte do dia, mês e ano em que se descobriu, do dia em que se repartiram as datas” (Códice Costa Matoso, 1999, p. 318), apresentando “[...] declaração das pessoas a quem se repartiram, braças de terra que se deram a cada um, confrontações e marcos que se lhes puseram, e de tudo se fará fazer termo, em que assinará o guarda-mor e cada um dos mineiros a que se repartir a data” (Códice Costa Matoso, 1999, p. 318). Esse livro era o Receita Real que chegou em branco às minas do Serro do Frio (Silva, 1928, p. 20) e de certa forma registrou vários descobertos, especialmente anotando as arrematações das lavras e o quinto do ouro, com as sagradas letras do escrivão Lourenço Carlos Mascarenhas de Araújo.

Considerações finais

O gesto pedagógico colonial mostra-se importante fundamento para a abordagem dos documentos históricos coloniais, de maneira geral. Por vezes, percebe-se que os historiadores - normalmente aqueles que se distanciam metodologicamente da abordagem da história da educação - deslocam a análise para outro ponto de suas narrativas, passando ao largo de uma questão primordial para a compreensão da mentalidade ou de uma cultura: a forma como o sujeito histórico lidava com a escrita ou assinatura do próprio nome, como lidava com os cálculos matemáticos, como interpretava os mapas à sua disposição. Nesse caso, a história parece carecer de um olhar mais atento na constituição ontológica do sujeito histórico como leitor, escritor e aquele que é capaz de fazer-se ouvir para além de sua existência física, para além do tempo, deixando memória escrita. Os testamentos post mortem e os inventários talvez sejam essa forma mais evidente da importância do gesto pedagógico colonial, bastante referenciado atualmente (Paiva, 2006, 2009, 2015; Furtado, 2017), em que se notam detalhes da instrução do testador ou testadora, em especial, se sabiam ler e escrever e se possuíam livros (Frieiro, 1981) ou processos judiciais em seus mais diversos tribunais e conselhos, como, por exemplo, a Inquisição de Lisboa (Souza, 2014).

O gesto pedagógico colonial mostra-se importante fundamento para a narrativa a partir de documentos históricos coloniais, de maneira específica, quando se analisam de perto os arquivos documentais. Nesse caso, dialoga-se e é-se tributário das importantes pesquisas dos autores contemporâneos que têm se dedicado em esclarecer como os processos educacionais de letramento, alfabetização e domínio da norma culta do idioma português favoreceram as sociabilidades no interior do sistema de privilégios da Coroa portuguesa no período colonial brasileiro (Figueiredo, 1997; Silveira, 1997; Antunes, 2005; Fonseca, 2009; Meneses, 2013). Esses autores auxiliaram a se pensar o gesto pedagógico colonial - não aplicando o conceito que neste estudo se pretende definir, mas apresentando a sua relevância para a compreensão da narrativa histórica - em seu fundamento de articulador da sociedade colonial brasileira. A escrita dos processos para consulta das mais variadas fontes - neste estudo foram destacados os regimentos - foi fundamental para a constância normativa e para o progressivo ordenamento do território brasileiro. As cartas, as ordens, os contratos, os acordos, as deliberações, tudo se escrevia para se romper a barreira do tempo e poder retornar ao momento primeiro dos tratos e convencionados. Os processos escritos faziam falar, de fato, e ainda o fazem hoje, os ausentes. Essa superação da finitude da voz de quem já desapareceu do mundo, esse acordo para além da morte estão presentes nesses processos escritos em sagradas letras, expressão que representa a superação da finitude temporal do sujeito pela imortalidade do que deixou escrito.

Assim, o gesto pedagógico colonial é uma orientação importante para a leitura da história colonial brasileira, alertando para algo fundamental da vida social: o sujeito aprendia desde cedo a conviver em amplas relações políticas de poder e autoridade; a lidar com ensinamentos religiosos pela catequese muitas vezes oral, em poucos casos impressa; ao aprender a ler o mundo, alfabetizava-se politicamente, podendo interferir nos processos de sua comunidade. Um caso típico é a distinção no preço dos escravos africanos: se já soubessem falar o idioma português, eram considerados ladinos e seu preço podia elevar-se no mercado transatlântico, caso não fossem alfabetizados no idioma português, eram considerados boçais, podendo ter seu preço reduzido, o que gerou nos mercados exportadores uma corrida desenfreada por professores e cartilhas para ensinarem o idioma aos escravizados, aumentando o valor final dos carregamentos.

Por fim, o gesto pedagógico colonial mostra com clareza como a alfabetização e o letramento, bem como o domínio da escrita de processos para consulta, mudaram o curso da história portuguesa e, por consequência, o de sua colônia brasileira. Cabe ao historiador, em especial ao da educação, atentar-se para essas minúcias, interpretando corretamente como a escrita mudava o curso da história, do sujeito histórico e de suas comunidades. Dominar as letras sagradas poderia tornar o sujeito imortal: não seria esse o fundamento para a crítica da ausência de documentos por parte de certos grupos sociais no Brasil - especialmente das sociedades indígenas nômades, seminômades ou sedentárias, bem como os quilombos -, que tiveram, então, negadas seu direito a contar sua própria história antepassada?

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1As discussões educacionais e pedagógicas eram estranhas às sociedades indígenas que habitavam, por exemplo, a comarca do Serro do Frio ao final do século XVII e início do século XVIII, na atual região norte do Estado de Minas Gerais antes da chegada dos colonizadores. Essas complexas sociedades indígenas cruzaram o território mineiro desde sempre, pois eram nômades ou seminômades - Cataguases, Coroado, Puri, Croados, Botocudo, Kamakã, Pataxó, Panhame, Maxacali, Mapoxós, Tapuias, Tupiniquins, Tapajós, Caiapós, Kiriris, Caipós, Aymorés, Tupis, Carijós, Tamoyos, Araris, Araxás, Bororós, Chopotós, Camacans, Mongoyó, Cumanoxó, Cutaxó, Malali, Baenã, Kamakã, Acroás-Mirins, Chacriabás, entre outras. Os povos indígenas ensinavam seus costumes aos filhos ao seu modo, a partir de suas tradições, mais antigas no tempo em que a pedagogia foi criada no século XVIII na Europa, com o advento da sociedade de massas, urbana e industrial. Os povos indígenas no século XVIII deslocaram-se geograficamente no território mineiro por conta da invasão de suas terras e de seus recursos naturais ou por conta de seus hábitos culturais. As sociedades indígenas foram importantes agentes sociais na formação sociocultural da comarca do Serro do Frio antes da chegada dos descobridores e durante o período colonial. Assim, segundo Resende e Langfur (2007, p. 14-15, grifo do autor), “[...] se os índios enfrentaram os conflitos violentos nos sertões, também resistiram a todo custo quando foram incorporados à sociedade colonial. Desta vez, contra a prática de escravização nas vilas e nos lugarejos da capitania. A presença de indígenas e seus descendentes, nos arraiais e vilas, pode ser atribuída a diversas razões. Em parte, eram ‘carijós’ que passaram a Minas na companhia dos paulistas - muitos, inclusive, aprisionados durante as entradas nos sertões, no final do século XVII, e que viveram uma diáspora a seu tempo, como descreveram alguns relatos do Códice Costa Matoso. Outro tanto foi resultado da preagem das bandeiras, armadas pelos colonos e, muitas vezes, financiadas pelo Estado durante todo o período colonial. Portanto, muito diferente do que se faz crer, a conquista dos indígenas - o ‘ouro vermelho’ - não cessou com as novas descobertas, culminando com o desfecho da guerra contra os Botocudo em 1808. Mesmo que a motivação das expedições estivesse associada à extração de metais preciosos e, por extensão, à concessão de sesmarias, cargos e outras benesses, não se pode subestimar que a captura dos nativos, ainda que residual, tivesse despertado o interesse de muitos participantes das bandeiras. Por todo o período colonial, as entradas nos sertões foram movidas por este tripé. Não há dúvidas, portanto, de que uma boa parcela dos índios foi capturada nestes confrontos e se prestou como reduto de mão-de-obra para a lavra mineral, agrícola ou serviços domésticos”. Os documentos contam a história da educação da comarca do Serro do Frio pelo olhar dos invasores, dos colonizadores, dos paulistas, do governo português. Sabe-se que a história da educação do norte de Minas Gerais não começou com os primeiros documentos escritos em português. Fique claro que toda e qualquer história da educação a ser contada sob o ponto de vista da pedagogia - a arte de ensinar e aprender -, formalizada na Europa no século XVII, tem na comarca do Serro do Frio uma ancestralidade das sociedades indígenas dizimadas ou assimiladas.

2O conceito de território é polissêmico. Nesse estudo, diz respeito às demarcações geográfico-espaciais-legais, ou seja, limites de terras determinadas pela legislação como espaços onde são vivenciados certos tipos de relações de poder. Território legislado é um espaço que propicia, a partir da legislação específica, possibilidades de organização popular. É um espaço em constante disputa de poder, relação que se estabelece entre variados grupos que em conflito estabelecem quem comanda e quem se subordina. Em uma definição política ou jurídico-política, o território é definido como espaço delimitado e controlado, por meio do qual se exercem determinado poder e a soberania do Estado (Pereira, 2014); em uma definição cultural ou simbólico-cultural, o território é definido como espaço onde se estabelece a dimensão simbólica e subjetiva da convivência social, resultando como produto da apropriação e da valorização de um grupo em relação ao seu espaço vivido; em uma definição econômica, é o lugar onde se desenvolvem as relações relativas à manutenção e administração da vida individual e coletiva pois espaço ocupado determina a própria existência e suas possibilidades oferecendo recursos que serão disputados pelas classes sociais na relação entre capital e trabalho. No período colonial de 1500 a 1821, as disputas de poder pelo território e de poder nos seus territórios contam a história do país e de seus arraiais, vilas, cidades, capitanias/Estados. Uma história de relações de poder pelo controle da soberania sobre as terras, por meio da legislação (Hespanha, 1994); pelo controle econômico, por meio do monopólio industrial metropolitano; pelo controle sociocultural por meio da crescente burocratização ou racionalização da vida social, política e econômica que, segundo Max Weber (2001), é a marca dos Estados modernos industriais, especialmente o Estado português na segunda metade do século XVIII.

3Importante apresentação do tema da civilidade colonial e os portugueses letrados, ver: Fonseca (2009); para um alargamento do papel ou atuação social do grupo dos advogados de Vila Rica e Mariana entre 1750 e1808, ver Antunes, 2005; para a compreensão das relações familiares coloniais, ver Figueiredo, 1997; sobre os ofícios mecânicos e sua dinâmica social relacionada com o cotidiano dos ‘homens bons’, ver Meneses (2013); estudo importante sobre a sociedade colonial e suas sociabilidades, ver Silveira, 1997. Esses autores auxiliaram a se pensar o gesto pedagógico colonial em seu fundamento de articulador da sociedade colonial brasileira.

4Para Paiva (2015, p. 74), as dinâmicas de mestiçagens fazem parte de ‘um grande crisol cultural’ em que “[...] as mestiçagens biológicas e culturais, suas associações com o mundo do trabalho e os deslocamentos populacionais constantes, voluntários e forçados [...]” são fundamentais para se entender o Brasil colonial. O termo mestiçado assemelhado a misturado parece ser mais adequado ao contexto. Mestiço ou mistiço era, para os portugueses do século XVIII, “[...] o filho de europeu com índia, de branco com mulata etc” (Silva, 1789, p. 78). Fonseca (2011, p. 61) acrescenta que, “[...] conquanto rústicas, São Paulo e estas outras vilas [...] eram lugares onde a existência ainda guardava alguma semelhança com o modo de vida europeu [...]” uma vez que distantes delas “[...] os colonos eram frequentemente obrigados a adotar hábitos indígenas, além dos que já faziam parte do seu modus vivendi mestiço”.

Como citar este artigo: Briskievicz, D. A. Fundamentação da história da educação brasileira: o gesto pedagógico colonial, os processos para consulta e os regimentos, séculos XVII-XVIII. (2021). Revista Brasileira de História da Educação, 21. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v21.2021.e162

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Recebido: 09 de Julho de 2020; Aceito: 08 de Setembro de 2020; Publicado: 27 de Janeiro de 2021

*Autor para correspondência. E-mail: doserro@hotmail.com

Danilo Arnaldo Briskievicz é Doutor em Educação pela PUC-Minas, mestre em Filosofia pela UFMG, especialista em Temas Filosóficos pela UFMG, licenciado em Filosofia e Pedagogia. Autor do livro Comarca do Serro do Frio: história da educação entre os séculos XVIII ao XX (Appris, 2020). Canal do Youtube: Tava aqui pensando.E-mail: doserro@hotmail.com https://orcid.org/0000-0002-7652-1959

Editor-associado responsável: Cláudia Engler Cury (UFPB) E-mail: claudiaenglercury73@gmail.com http://orcid.org/0000-0003-2540-2949

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