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Revista Brasileira de História da Educação

versión impresa ISSN 1519-5902versión On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.22  Maringá  2022  Epub 08-Dic-2021

https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e194 

Artigo Original

Fontes processuais e educação não escolar na América portuguesa: Minas Gerais no século XVIII

Fuentes procesales y educación no escolar en la América portuguesa: Minas Gerais en el siglo XVIII

Thais Nívia de Lima e Fonseca1  * 
http://orcid.org/0000-0002-5090-293X

Fabrício Vinhas Manini Angelo2 
http://orcid.org/0000-0001-5265-1233

Hilton Cesar de Oliveira3 
http://orcid.org/0000-0001-5224-0490

1Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.

2Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, MG, Brasil.

3Universidade do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil


Resumo:

O artigo analisa eventos educativos ocorridos na América portuguesa setecentista, na capitania de Minas Gerais, inscritos nas práticas pedagógicas e civilizadoras do estado e da igreja em duas dimensões: na atuação das famílias quanto à construção de estratégias para a educação das crianças e jovens, por meio de seus capitais econômicos e culturais; nas ações pedagógicas para a conformação social da população mestiça, foco nas pretensões civilizadoras e de controle. As análises valem-se de fontes que, embora já bem conhecidas da historiografia colonial, são relativamente recentes no corpus documental das pesquisas sobre a história da educação no Brasil nos séculos XVIII e XIX: os testamentos, os inventários post mortem e os processos eclesiásticos.

Palavras-chave: história da educação; fontes históricas; práticas educativas

Resumen:

El artículo analiza los hechos educativos ocurridos en la América portuguesa del siglo XVIII, en la Capitanía de Minas Gerais, inscritos en las prácticas pedagógicas y civilizadoras del Estado y de la Iglesia en dos dimensiones: el papel de las familias en la construcción de estrategias para la educación de niños y jóvenes, a través de sus capitales económicos y culturales; acciones pedagógicas para la conformación social de la población mestiza, con foco en reclamos civilizatorios y de control. Los análisis utilizan fuentes que, aunque ya conocidas en la historiografía colonial, son relativamente recientes en el corpus documental de investigación sobre la historia de la educación en Brasil en los siglos XVIII y XIX: testamentos, inventarios post mortem y procesos eclesiásticos.

Palabras clave: historia de la educación; fuentes históricas; prácticas educativas

Abstract:

The article analyzes educational events that took place in eighteenth-century Portuguese America, in the Captaincy of Minas Gerais, inscribed in the pedagogical and civilizing practices of the State and the Church in two dimensions: the role of families in the construction of strategies for the education of children and young people, through its economic and cultural resources; pedagogical actions for the social conformity of the biracial population, focusing on civilizing and control agenda. The studies use sources that, although already well known in colonial historiography, are relatively recent in the documentary corpus of research on the history of education in Brazil in the 18th and 19th centuries: wills, post mortem inventories and ecclesiastical processes.

Keywords: history of education; historical sources; educational practices

Introdução

A que se refere a história da educação? Qual o seu objeto? Essa é uma pergunta clássica que fazemos aos alunos no início de um novo semestre de aulas. E a mais recorrente e previsível resposta é: a história da escola, ou da educação escolar. Para os alunos iniciantes, essa é uma resposta geralmente vinda de suas experiências, de sua familiaridade com o ‘universo’ escolar, de uma percepção lógica que associa a educação à escola. Não é algo para se estranhar numa sociedade em que essa instituição está mais que presente e legitimada. O entendimento geral raramente cogita destituir a escola e a educação escolar de sua importância social. Mas nem sempre foi assim. Educação e escola nem sempre foram indissociáveis, e, por muitos séculos, a primeira não precisou necessariamente da segunda.

Logo, é de se supor que o estudo da história da educação devesse ser mais do que o estudo das histórias da escola ou da educação escolar. A historiografia da educação em geral, e a brasileira em particular, consolidou-se atenta aos processos de escolarização no mundo contemporâneo. No Brasil, por estar especialmente preocupada com a compreensão desses processos depois da independência e da organização do estado nacional soberano, a historiografia relegou, durante muito tempo, outras possibilidades de estudo da educação fora da escola. Mesmo em relação a períodos em que essa instituição era ainda pouco presente, ela continuava sendo o parâmetro analítico, o ponto de partida para a compreensão de contextos diversos. Esse foi o caso do período colonial no Brasil, entre o século XVI e as duas primeiras décadas do século XIX, quando o cenário educacional se apresentava sensivelmente distinto daquele que começaria a ser delineado depois da independência e se consolidaria com o advento da república.

Voltando-se então à pergunta inicial - se esta for feita com o foco no contexto denominado período colonial -, a resposta deverá considerar o estudo para além da escola e olhar com atenção para processos sociais e culturais nos quais experiências de educação ocorriam cotidianamente, com objetivos consoantes às concepções de educação predominantes à época. Para estudos a partir dessa perspectiva, as fontes são fartas e férteis, embora reticentes a se abrirem por completo. Exigem, mais que usualmente, os métodos indiciários. Isso porque as ocorrências dessas experiências educativas nem sempre são explicitadas como tal, e muitas práticas precisam ser analisadas com mais atenção para serem assim identificadas e compreendidas.

De pronto temos um desafio a vencer. Veja-se que utilizamos duas ‘expressões’ que demandam reflexão: experiências educativas e práticas. Desde que iniciamos um programa de pesquisa voltado para o período colonial no Brasil, no qual uma das linhas se dedica ao estudo da educação não escolar naquele contexto, tem sido necessário discutir como definir essa educação, ou melhor dizendo, suas estratégias, suas intenções e seus resultados. A princípio, nossa reflexão recebeu a contribuição do conceito de práticas culturais desenvolvido principalmente por Roger Chartier, mas presente também nos trabalhos de Michel de Certeau e de Pierre Bourdieu, e nos levou a entender as práticas educativas como sendo as ‘maneiras de fazer’ cotidianas, implicando estratégias para sua execução1.

Entendemos ainda que, no desenrolar desse ‘jogo social’ (Nogueira, 2002), seria fundamental levar em consideração as interferências culturais na construção das estratégias dos sujeitos históricos. Essas diretrizes foram importantes no trabalho de identificação do potencial de algumas fontes que se tornaram as bases de sustentação de pesquisas interessadas na educação não escolar na América portuguesa, especialmente entre o século XVIII e as primeiras décadas do século XIX: documentos processuais civis e eclesiásticos, capazes de lançar luzes sobre as ações cotidianas dos indivíduos e, nelas, permitir o vislumbre das estratégias e das práticas educativas.

Os resultados têm sido promissores. As pesquisas demonstram que a pequena presença da educação escolar, sobretudo no século XVIII, não implicava a ausência da instrução das primeiras letras e da gramática do latim, e que a escola não era desvalorizada ou mesmo desconsiderada. No entanto, apontam também para uma realidade na qual o aprendizado da leitura e da escrita - e os estudos que poderiam se seguir - não seriam fundamentais para toda a população, nem como valor nem como prática. Ofícios mecânicos e outras modalidades de fazeres manuais eram, muitas vezes, mais necessários e pragmaticamente buscados, e a educação geral ligada à formação moral e religiosa deveria estar disponível para todos.

Do ponto de vista institucional, o estado português e a Igreja Católica tinham seus mecanismos de normatização social e incluíam, de alguma maneira, a educação. O Código Filipino... (2004), válido em todo o Império, ao estabelecerem normas legais sobre orfandade, heranças e processos de tutoria, indicavam as ações quanto à educação segundo a origem de nascimento das crianças e dos jovens, e conforme a estrutura de uma sociedade estamental como aquela: filhos de camponeses, mecânicos, negociantes ou fidalgos, cada qual deveria receber a instrução adequada ao seu lugar, e todos deveriam ser educados para serem súditos e cristãos exemplares. Nada havia de específico sobre como ou onde deveriam receber a instrução letrada ou mecânica; mas a educação moral e religiosa estaria a cargo das famílias, do clero e de autoridades civis por meio de seus bons exemplos. Para a igreja, valia sua longa tradição catequética, e as instruções voltadas para a América, presentes nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1720)2, miravam principalmente a ação das autoridades civis e militares, o clero e os senhores de escravos, cada qual responsável por garantir uma parcela da educação do súdito cristão.

Fora do âmbito institucional, a instrução dependia da disposição e das posses das famílias e dos indivíduos responsáveis pelas crianças e jovens, podendo ser organizada livremente ou impulsionada pela lei, por exemplo, no caso de haver heranças e tutores, ou criadores de expostos. Eram, então, mobilizados mestres de ofícios, de primeiras letras e de gramática latina, para meninos ou meninas, conforme o caso. Os objetivos e as expectativas de quem planejava e fazia executar essas diferentes modalidades de educação podem ser percebidos nas fontes processuais: inventários, testamentos, contas de tutoria. O problema é que quase nunca há indicação de como aconteciam as atividades educativas em si, as ‘maneiras de fazer’, tal como pretendíamos definir num primeiro momento das investigações. Se essa dimensão é de difícil apreensão, as maneiras de fazer das estratégias para promoção da instrução e da educação de crianças e jovens, por seu turno, são razoavelmente visíveis nos documentos e dizem respeito aos recursos - humanos, materiais, legais - mobilizados para fazer com que as pessoas recebessem algumas daquelas diferentes modalidades de educação, conforme as vontades de suas famílias e das instituições e de acordo com as prescrições legais.

Essas considerações são importantes para o refinamento conceitual pertinente à discussão sobre a natureza das experiências educativas na América portuguesa. As investigações têm demonstrado que, quaisquer que fossem as modalidades de educação - intelectual, moral, manual -, voltadas para diferentes grupos sociais, havia pontos em comum que se conectavam às características gerais da cultura luso-americana do Antigo Regime e que orientavam as finalidades últimas daquelas experiências. A formação do súdito cristão, fiel à monarquia e à religião, permeava todas as instâncias educativas e estava na base das formulações políticas, religiosas e filosóficas acerca da educação, ainda que se observassem, nos séculos XVII e XVIII, os esforços de diferenciação conceitual entre educação e instrução (Fonseca, 2016).

Essa linha analítica permite o estudo de diferentes vivências da sociedade colonial no Brasil naquilo que nos interessa, ou seja, a presença de eventos educativos, escolares ou não escolares, visando à adequação dos indivíduos à ordem vigente e à busca por um estado de civilização na América, em conformidade com os padrões europeus. Os caminhos nem sempre retilíneos trilhados pela população enriquecem a pesquisa sobre o tema, ajudando na compreensão da complexidade daquela sociedade marcada pela presença de diferentes culturas e fortemente hierarquizada à sombra da escravidão.

Neste artigo, apresentamos duas dimensões daqueles eventos educativos, para valorizar aspectos nem sempre reconhecidos de forma clara como tais, mas certamente inscritos nas práticas pedagógicas e civilizadoras pretendidas sobretudo pelo estado e pela Igreja Católica. A primeira dimensão considera a importância das famílias na construção das estratégias para a educação de suas crianças e jovens, tendo ou não à sua disposição a instituição escolar, mas lançando mão de seus capitais econômicos e culturais. A segunda privilegia as ações pedagógicas para a conformação social de parcelas marginalizadas da sociedade colonial, particularmente a população mestiça, sempre no foco nas pretensões civilizadoras e de controle das instituições dominantes. É importante destacar, nessas análises, o uso de fontes que, embora já bem conhecidas da historiografia colonial, são relativamente recentes no corpus documental das pesquisas sobre a história da educação no Brasil nos séculos XVIII e XIX: utilizamos aqui, principalmente, os testamentos, os inventários post mortem e os processos eclesiásticos.

Famílias e estratégias educativas

Os testamentos existem há muito tempo e já estavam presentes entre os hebreus, os egípcios, os gregos e os romanos, e foi destes últimos que os ibéricos receberam a tradição e a legislação sobre o testar. Os testamentos e sua fonte irmã, os inventários post mortem, são documentos tributários da legislação latina relacionada à sucessão, e a sua análise permite uma renovação sobre as questões relacionadas à educação no período moderno. Durante a antiguidade, o documento tratava basicamente das vontades dos moribundos em relação aos seus bens. Por volta do fim do Império Romano, essa prática foi deixada de lado, sendo recuperada a partir da criação do purgatório, por volta do século XII, e também pelo reavivamento do estudo do direito romano. Com isso, a prática da feitura dos testamentos expandiu-se, inicialmente entre os nobres e, depois, entre os plebeus, mesclando elementos espirituais e seculares. Dessa forma, o testamento passou a ter outras funções que não somente a de dar encaminhamento às questões terrenas relacionadas aos seus entes queridos e aos bens que ficavam; passou também a compreender questões relacionadas à salvação da alma, o que levou esse tipo de documento à sua máxima complexidade por volta do século XVIII. Pesquisas que o tomam como fonte privilegiada precisam, assim, considerar essas características, que se destacam conforme são analisadas do ponto de vista do Código Filipino... (2004), fortemente inspirado no direito romano, ou das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, fonte eclesiástica influenciada pelas deliberações do Concílio de Trento. No primeiro caso, os aspectos religiosos dos testamentos são apenas secundários, enquanto, no segundo, os aspectos devocionais/espirituais são mais valorizados.

Essa dupla natureza, ao mesmo tempo espiritual e secular, faz com que as intenções registradas nos testamentos possam indicar que a vontade de contribuir com a educação ou o bem-estar material de alguém pudesse estar também relacionada à busca de uma posição mais confortável no post mortem, isto é, mais próxima da salvação da alma. Ainda que se considere a possibilidade de os testamentos significarem apenas uma carta de boas intenções - já que nem sempre é possível saber se as disposições foram ou não cumpridas -, uma pesquisa mais cuidadosa com esses documentos revela algo que supera as boas intenções, pois sinalizam ações efetivas que envolviam não apenas o testador, mas também as pessoas com as quais ele se relacionou durante sua vida.

Tendo isso em vista, também é possível discutir o papel da família na longevidade educacional por mais de uma geração, bem como compreender a função da educação para a família e para os educandos e as relações estabelecidas entre as gerações familiares. Neste sentido é que os testamentos e os inventários post mortem registrados em Minas Gerais, no século XVIII, são importantes fontes de pesquisa, e nelas afloram muitas situações de interesse para o estudo da história da educação, como, por exemplo, uma família que se mobilizou por meio da constituição de um negócio próprio e de empréstimos entre parentes para garantir uma boa educação para seus herdeiros; ou o caso de um padre mulato que se ordenou porque o pai, português e advogado, empregou todos os seus recursos até a falência para garantir a sua educação. A partir desses documentos é possível, assim, analisar os sentidos atribuídos à educação para aquelas famílias e as estratégias utilizadas para sua consecução.

Os testamentos e os inventários post mortem do século XVIII permitem também constituir outro problema de pesquisa, isto é, a investigação sobre o grau de inserção dos testadores ou de seus familiares no mundo letrado. Os inventários dão indicações preciosas à cultura material, envolvendo aquilo que se relacionava às ocupações ou profissões dos testadores, ou fazendo referência aos objetos relacionados à escrita, como papéis, penas e tintas. Eventualmente podem aparecer livros esparsos, ou uma pequena biblioteca, além de livros para escrituração contábil, como livros de razão ou cadernos com anotações sobre os credores e devedores. As relações surgem também pelas indicações dos testamentos no que se refere à sua feitura, se escrito de próprio punho pelo testador, ou a rogo deste, e, neste caso, as justificativas para o uso de tal expediente, o que ajuda a indicar as inserções de diferentes sujeitos na cultura escrita. Uma vez que é mais raro termos acesso ao testamento original, e sim ao traslado do documento, fica a recorrente lacuna relativa à forma das assinaturas que foram nele apostas, o que ajudaria na percepção dos diferentes níveis de letramento por meio da análise dessas assinaturas. Como forma de explorar as possibilidades de estudo desses documentos para a história da educação no período colonial no Brasil, analisaremos em seguida as estratégias educativas de duas famílias que viveram na Comarca do Rio das Velhas, capitania de Minas Gerais, e que realizaram algum tipo de investimento para garantir a educação de seus descendentes.

O reconhecimento de filhos naturais em testamento não era incomum, especialmente quando não havia impedimentos para que eles herdassem os bens de seus pais, quando não havia outros herdeiros legítimos, ou ainda quando a origem social ou o estrato social do testador não seria alterado ou manchado pelo reconhecimento de um filho natural. Em seu testamento feito em 1752, Bartholomeu Gonçalves Bahia declarava:

[...] não sou, nem jamais fui casado, mas tenho um filho natural de Maria Gonçalves Bahia preta solteira, que foi minha Escrava [...] o qual Filho é o Padre Abade Bernardo Gonçalves Bahia que assiste em minha companhia.

Bartholomeu Gonçalves Bahia revelou ter feito muitos sacrifícios para que seu filho natural se ordenasse, mesmo não sendo eles pessoas de muitas posses, não possuindo “[...] bens alguns de raiz [...]”, mas apenas a casa onde viviam, a qual se tornou “[...] patrimônio para o dito meu Filho se ordenar”. O testador tratou ainda de não deixar desamparadas as suas enteadas ao declarar que deixava a preta Roza para que servisse “[...] as irmãs do dito meu Filho Leonor, Madalena, e Francisca, e querendo vendê-la ou dispor dela partirão todas três o seu produto igualmente”. Também deixava “a Leonor Gonçalves Bahia mulher de Domingos Dias Torres a Imagem do meu Santo Crucifixo para o seu Oratório”. Bartholomeu Gonçalves Bahia legou ainda roupas e umas poucas oitavas de ouro às irmãs de seu filho (Testamento..., 1752). Esse testamento apresenta algumas características interessantes. Em primeiro lugar, considerando as informações que ele nos apresenta, é difícil estabelecer uma fronteira muito nítida entre a família senhorial e a escrava, o que indica a conformação de um núcleo familiar complexo. Em segundo lugar, ele nos remete para questões interessantes sobre as relações pessoais e os afetos que envolviam aquelas pessoas - Bartholomeu, Maria, seu filho e suas enteadas -, mas deixa claras as intenções do testador em relação ao seu filho, Bernardo.

Bartholomeu não poupou seus bens mais valiosos para assegurar uma boa formação e uma boa posição como religioso a seu filho naquele contexto social. Parte dessa estratégia, no intuito de garantir melhores posições para Bernardo, pode ter passado pela constituição de uma ampla rede de sociabilidades que envolvia a troca de favores e os empréstimos de bens e mesmo a troca de presentes, agrados e mimos entre membros de uma determinada camada social que se reconheciam como iguais e que poderiam compartilhar um determinado capital cultural. Indícios dessas relações estão presentes no testamento de Bartholomeu, no qual ele declarou que “[...] na mão do Reverendo Doutor Vigario Geral o Senhor Lourenço Joze de Queiros Coimbra, se acha um faqueiro que consta de uma dúzia de colheres de prata, outra dúzia de garfos, e uma dúzia de facas com cabos de prata”. Essa troca de gentilezas sugere o autorreconhecimento e a constituição de um grupo de pessoas ‘civilizadas’ na vila, que precisavam de talheres com cabos de prata para receberem seus mais ilustres convidados. Esses eram investimentos em patrimônio material e em tempo, o que se fazia necessário para a constituição das redes de relações e de sociabilidades que pudessem trazer benefícios futuros.

O testamento de Bartholomeu Gonçalves Bahia traz ainda para o presente estudo outras informações importantes. Nele, o testador afirmou possuir “mais uma livraria com bastantes volumes de direito e destes estão nas mãos do Doutor Joze Telles da Sylva, os textos de direito Canônico, e um dos textos de direito Civil”. O empréstimo de livros não era incomum e pode indicar investimento em capital social, recorrente entre os letrados da época e, em muitos casos, envolvendo pessoas com o mesmo tipo de formação, como era o caso de Bartholomeu, um advogado. Não se pode ignorar, pois, que o convívio com tal biblioteca, com a escrita no dia a dia e com o tipo de trabalho feito por seu pai teria deixado fortes impressões no garoto Bernardo, futuro abade. O envolvimento desse núcleo familiar com a escrita ainda ia além, pois Bartholomeu foi tesoureiro da Irmandade de Nossa Senhora Santa Anna da Barra, atividade que implicava algum conhecimento de leitura e de escrita. A análise desses aspectos permite-nos relacionar as estratégias educativas empreendidas por Bartholomeu quanto às práticas cotidianas relacionadas à escrita e à leitura, e como isso pode ser considerado um processo de construção e mobilização de capital cultural, necessário para a educação dos descendentes.

Este exemplo pode indicar as oportunidades que homens livres ou mesmo forros mestiços, normalmente filhos de escravas com seus senhores ou com outros homens brancos, tiveram de receber instrução letrada, de eventualmente frequentar escolas e alcançar lugares sociais de maior distinção. É preciso, contudo, chamar a atenção para a discussão sobre a compreensão de família para o período, e dadas as especificidades daquela sociedade que se formava em um contexto de forte migração e de profunda mestiçagem3. Parte dessas especificidades deve-se à constituição de um universo culturalmente mestiço nas Minas4, resultante não apenas das misturas biológicas, como também das mesclas culturais nos mais diversos espaços, inclusive nos domicílios e, consequentemente, na formação da família mineira, em que pesem as tentativas de regularização dessas famílias. Na capitania de Minas Gerais, ao longo do século XVIII, as manifestações das mestiçagens caracterizaram-se pela multiplicidade das formas e práticas, visto que naquela sociedade havia igual multiplicidade de valores culturais que se entrelaçavam em movimentos constantes. O estabelecimento dessas práticas aponta para a permanência de traços não só da cultura africana, mas também de antigas tradições indígenas e europeias. A permanência dessas práticas, na proximidade das relações cotidianas, evidencia um processo de mesclas culturais. Por isso, é necessário verticalizar o estudo sobre a maneira como as relações afetivas estabelecidas no seio familiar, muitas vezes entre pessoas ou grupos oriundos de universos culturais distintos, contribuíram para a conformação de práticas educativas nas Minas (Angelo, 2017).

Analisemos o caso de outra família, que nos permite discutir os sentidos da educação, por meio dos testamentos e inventários de Joana Fagundes de Souza e de sua filha Antônia Maria Cardim, em que se destacam as relações e as uniões fora das normas da igreja, mas que não impediram o cuidado com a criação e a educação das crianças. Em seu testamento, Joana indicou como sua primeira testamenteira, a filha Antônia Maria, sob a justificativa de que ela tinha a idade competente e não estava “[...] debaixo de pátrio poder [...]”, isto é, não estava submetida a um homem, pai, irmão ou marido (Testamento..., 1768). De fato, Antônia Maria nunca se casou, como declarou em seu testamento, mas teve dois filhos, Ignacio e Ignes, com o capitão Brás Valentim de Oliveira. Esse quadro familiar fica mais claro pela leitura atenta de trechos do testamento de Antônia Maria Cardim, filha de Joana Fagundes de Souza: “Declaro que sou solteira e nunca fui casada e não tenho pessoa alguma que haja de suceder em meus bens mais dos dois filhos por nomes um macho Ignacio e outra fêmea por nome Ignes” (Testamento..., 1769). Os cuidados para com esses dois filhos foram compartilhados com o pai, com quem vivia o menino Ignácio, e “[...] que o tratava e educava [...]” e o mandou entrar nos estudos5; e com os padrinhos de Ignês, o coronel Luiz Jose Sotto e sua mulher, na casa de quem ela vivia, e “[...] onde foi ela tratada e educada com toda a caridade” (Inventário..., 1769). O estabelecimento de estratégias para a criação e a educação dos filhos obedecia, certamente, às prescrições legais, quando se tratava de menores de idade que ficavam órfãos. No entanto, ações adicionais indicavam a natureza e a profundidade das relações pessoais construídas ao longo da vida, entre os membros da família - qualquer que fosse a sua configuração - e entre eles e seu círculo social, que poderia incluir padrinhos, parceiros das atividades econômicas, sacerdotes, conforme indicam documentos como os testamentos e os inventários. Essas são fontes que nos permitem, também, perceber as diferenciações entre a educação dada a meninos e meninas, não somente quando se tratava do encaminhamento para a instrução escolar - como o envio dos meninos para o seminário - mas igualmente quando dizia respeito às decisões sobre quem deveria ser instruído, o menino ou a menina. Os filhos de Antônia Maria não ficaram juntos após a sua morte. Ignácio permaneceu em companhia do pai, e Ignês vivia com os padrinhos, casal legalmente unido pelo matrimônio, o que daria a ela vantagens em seu processo de educação e, sobretudo, na garantia do seu futuro como esposa. De fato, prestando contas como testamenteiro de Antônia Maria, seu cunhado e tio dos órfãos informou, algum tempo depois, que o coronel José Luis Sotto, padrinho de Inês, andava “na diligência de dar-lhe estado” (Inventário..., 1769). Essas possibilidades analíticas por meio dos testamentos e dos inventários conduzem a linha de investigação que conecta a história da educação à história da família e à necessidade de se compreender o papel desta última nas estratégias e nos processos educativos. Por isso é importante discutir as relações pessoais e afetivas estabelecidas entre as gerações familiares e os sentidos atribuídos à educação, conforme os lugares sociais, as relações de gênero e as expectativas em relação à busca de distinção social, em seus mais variados níveis.

Se, por um lado, as diversas configurações familiares produziam diferentes estratégias para a educação e instrução das crianças e jovens, por outro, essa mesma diversidade era combatida pelas autoridades civis e eclesiásticas, que a enxergavam como empecilhos às suas intenções civilizadoras. As ações empreendidas pelo estado e pela igreja, nesse sentido, tornavam-se, elas próprias, estratégias educativas com o intuito de formar os súditos cristãos ideais e abrir caminho para a construção de uma sociedade ‘civilizada’ na América.

Educação, matrimônio e ordenamento social

A imposição dos modelos culturais é feita, entre outros meios, por processos educativos constituídos historicamente no interior de uma dada sociedade. Podem-se tomar, por exemplo, as sociedades cristãs que determinam a possibilidade de que todos os professos da fé possam ser salvos, o que produz aproximação entre eles - embora a coexistência entre esses mesmos fiéis nem de longe lembre igualdade, ainda que participem, em termos mais gerais, de uma mesma espiritualidade. Por outro lado, é essa mesma espiritualidade que referenda, nos tempos modernos, a ideia de que o monarca seria alguém que recebia diretamente de Deus a incumbência de governar, restando aos súditos somente a obediência sem contestação, e, caso se portassem reticentes à sua autoridade, seria contra o próprio Deus que se insurgiam (Hespanha & Xavier, 1998, p. 135).

O historiador da educação que se volta para as sociedades do Antigo Regime precisa considerar os processos educativos associados a essas conformações. Avaliar o modo como eles ocorriam e as resistências manifestadas por aqueles a quem se endereçavam é de fundamental importância para se entender a complexidade cultural da sociedade colonial no Brasil. Nesse sentido, no contexto da fundação institucional da capitania de Minas Gerais, os mecanismos de controle da Coroa começaram a manifestar relativa estabilidade entre os anos de 1719 e 1732. Relativa porque a mestiçagem produzida pela forte presença da escravidão colocava em cheque o modelo de ‘boa sociedade’ preponderantemente branca. Os mestiços, em sua grande maioria, fruto da aproximação entre brancos, negras e mulatas, produziam instabilidade política, quando tendiam a se comportar socialmente como se fossem brancos, em uma sociedade onde a cor da pele era um instrumento de distinção social. No horizonte de expectativa das autoridades da Coroa, em consórcio com os principais da terra e com o Conselho Ultramarino, fazia-se necessário tolher as uniões que resultassem nessa ‘prole indesejável’. O grande desafio colocado aos que detinham mando na capitania de Minas Gerais era criar impedimentos à expansão da população mestiça. Com isso, tomou corpo o uso de uma pedagogia esponsalícia baseada em uniões legítimas entre brancos, como modo de correção de “[...] uma das maiores ruínas que está ameaçando estas Minas, [que] é a má qualidade de gente de que elas se vão enchendo, porque estes povos vivem licenciosamente sem a obrigação de casados, vai havendo nelas tão grande quantidade de mulatos [...]”, conforme afirmava o governador dom Lourenço de Almeida, em 1722 (Sobre não..., 1980).

As bases para essas ações estavam previstas nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, sobretudo na execução das visitas pastorais e das devassas eclesiásticas, e o cumprimento de suas disposições era ajustado em consonância às necessidades inerentes a cada região6. Nesse sentido, os bispos, ao redigirem suas pastorais, davam especial atenção aos problemas peculiares em sua diocese, por intermédio de instrumentos pedagógicos pelos quais deviam aplicar correições contra os desviantes. É nesse momento que o catecismo associado à condenação e ao combate ao amasio ganha destaque. Em 1722, mais uma vez, o governador D. Lourenço de Almeida informava ao rei de Portugal, dom João V, que muitos delitos

[...] se evitaria se grande parte dos moradores das Vilas fossem casados, porque estes sempre vivem com mais sossego, atendendo a conservação de sua família e da terra aonde a querem perpetuar, e não só dão exemplo aos mais, senão também de algum modo os obrigam a procederem bem (Sobre haver..., 1980, p. 110).

É necessário destacar o modo como essa pedagogia, preocupada com a constituição de uma hegemonia branca na capitania, se processava. Ela era moldada sobre práticas educativas dialógicas7, cuja principal norma era a adaptação às condições locais (Ramos, 1995). Nesse sentido, as autoridades eclesiásticas que visitavam as diversas localidades da comarca do Rio das Velhas, portadoras da cartilha diocesana, acabavam por transferir aos moradores principais, os brancos, a incumbência de denunciar aqueles que a comunidade conhecia como desviantes à fé oficial, aqueles que não se sujeitavam ao catecismo diocesano, entre os quais muitas vezes se incluía o próprio clero local. A última linha de defesa a uma denunciação era o prestígio que o indivíduo pudesse ter na comunidade, o que explica porque concubinários contumazes jamais foram denunciados (Oliveira, 2007).

A pedagogia da não miscigenação era contraposta à instabilidade produzida pela proliferação de mulatos e pardos, o que colocava em risco o traço principal da nobreza branca da terra: a distinção. Os mestiços subvertiam esse modelo, porque a principal condição para ser nobre da terra era ser branco (o que não implicava algumas exceções); e muitos, ao alcançarem a condição de forros - e por disporem de recursos -, adotavam o modo de vida dos brancos, servindo-se de todos os instrumentos ao seu alcance para se distinguirem, fazendo uso das riquezas eventualmente herdadas de seus pais brancos, ou mesmo obtidas de seus próprios negócios. Como bem notou o capitão-mor da Vila de Pitangui: Quem dinheiro tiver fará o que quiser (Souza, 2006). Com isso, a denominada nobreza da terra, ao tolher o acesso dos mestiços à distinção e por referendar a hegemonia da Coroa nas Minas, distinguia-se tomando parte no governo, exercendo postos na administração local ou obtendo honrarias, como os títulos da Ordem de Cristo ou do Santo Ofício, patentes militares, dentre outras. Ainda assim, como bem notou Laura de Mello e Souza, no terreno movediço de uma sociedade em formação, tudo isso poderia soar falso se os títulos e as atribuições não tivessem respaldo no corpo social (Souza, 2006). O movimento descrito por essa elite emergente era procurar se diferenciar dos mulatos eventualmente enriquecidos - que buscavam também distinção - com base na condição de que eram filhos de brancos. A pedagogia de combate a essas práticas baseava-se na religião, em atenção à desmedida licenciosidade com que se comportavam os brancos ao se amasiarem com as negras e mulatas, e fechando os olhos a outros crimes contra a fé, como a feitiçaria, os calundus, a sodomia, as benzeduras, dentre outros.

Em 1727, o rei D. João V determinou ao governador D. Lourenço de Almeida a composição de uma lista precisa na qual se apontasse a quantidade de pessoas que habitavam as vilas e as demais povoações das Minas, informando quantos eram os brancos e os mulatos, bem como os casados com mulheres brancas, mulatas ou negras. Essa iniciativa do monarca português deixa claro o esforço de contenção da expansão da população mestiça, para o que o primeiro passo seria conhecer seu quantitativo. No mesmo ano, os vereadores da Vila Nova da Rainha (atual Caeté) indicaram ser esta a vila que abrigava a segunda maior população escrava das Minas e a que detinha, em contrapartida, o maior contingente de brancos. Com isso diziam, implicitamente, que não se mestiçavam em igual proporção que as demais vilas e que, em virtude disso, solicitavam isenções fiscais como as que detinham as cidades do Porto e do Rio de Janeiro. Pediam, ainda, a desobriga de pagarem o dote às suas filhas quando estas viessem a se casar, por serem elas “[...] o melhor dote para os maridos, principalmente, filhas das Minas de pais que tenham servido nas câmaras delas” (Representação da Câmara..., 1727).

Na condução do modelo de controle social relacionado à população mestiça, a igreja ocupou um protagonismo evidente ao operacionalizar mecanismos legais previstos nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Nesse sentido, os instrumentos educativos da catequese tomaram dupla função: a primeira, quanto às pastorais, que assumiram uma função catequética, conforme a doutrina tridentina, no convencimento pela fé. Já a segunda função dizia respeito às visitas diocesanas, que tomaram papel punitivo em sua forma mais branda: a pena pecuniária, ou mesmo, em última instância, uma mais severa - a danação eterna da alma. Como já afirmamos, mesmo o clero local era alvo dessas averiguações e punições, como ocorreu com o Pe. Melchior Cardoso de Aguiar, morador na freguesia do Curral Del Rei, admoestado pelo visitador Lourenço José de Queirós Coimbra e notificado

[...] para a satisfação da culpa que lhe resultou da devassa da visita da dita freguesia o qual o dito senhor admoestou para que lance fora de sua casa as mulheres que nela tem pelo iminente perigo que está exposto vivendo com elas de porta a dentro e por ele foi dito que aceitava admoestação e prometia emenda pela dita culpa de que tudo se fez termo Eu Antônio da Cunha Rebello escrivão da visita que escrevi (Devassas, 1734).

Cada carta pastoral deve ser entendida numa ambiência social que lhe dava sentido (Geertz, 1989), ou seja, como elemento de peso na compreensão da formação social mineira, na qual uma pedagogia baseada na contenção da população mestiça adquiriu papel central. Isso pode ser analisado a partir da carta pastoral de D. Frei Antônio de Guadalupe, de 1726, um documento composto por 19 capítulos bastante sumários. No entanto, um deles, dedicado ao delito do concubinato, era mais detalhado com vários itens, entre os quais se destacam:

  1. 1. Não pode o confessor absorver o penitente que está com a concubina de portas a dentro e a pode largar e não o quer fazer por estar em ocasião próxima e voluntária a qual deve se evitar, dizemos, a qual se deve evitar totalmente em todo tempo.

  2. 2. E ainda que se tenha passado muito tempo sem pecar com ela, contudo como está na mesma casa e na mesma ocasião local, imagina o povo continua com o mesmo amancebamento e causa atual escândalo o qual não consiste que haja verdadeiramente pecado, mas sim numa aparência dele.

  3. 3. E ainda que a concubina seja muito útil para a sua casa e governo dela e não seja fácil achar outra mulher com igual préstimo, é obrigado a lançá-la fora de casa para ser absoluto, porque da expulsão não perde a fama nem mesmo causa escândalo, antes causa grande prejuízo em estar portas a dentro, nem o préstimo temporal equivale ao espiritual que perdem (Rodrigues, 2005, p. 37)8.

Como as uniões livres caracterizavam as coabitações sem que o sacramento do casamento tivesse sido celebrado, a coerção aos praticantes residia na declaração de que esse tipo de crime resultaria na perda irreparável da alma, a menos que o casal se apartasse, ou contraísse matrimônio, caso pudessem. Isso porque muitos tinham concubinas sendo casados, ou mesmo na condição de clérigos, o que, no primeiro caso, configurava adultério e, no segundo, sacrilégio, agravantes ao delito de concubinato. Por isso as pastorais adquiriram uma feição pedagógica que buscava o convencimento dos fiéis por intermédio da educação religiosa. Esse instrumento constituía-se em peça central de uma pedagogia centrada no medo e que se utilizava, também, das imagens nas igrejas, do culto às almas do purgatório, do culto aos santos que intercediam em favor dos pecadores.

Se as visitas pastorais faziam parte de uma pedagogia do convencimento pelo ‘amor’, as devassas eclesiásticas agiam no convencimento pela ‘dor’. Utilizadas desde os anos 1960 pela historiografia colonial, essas fontes são praticamente desconhecidas na história da educação e apresentam potencial para o estudo dos processos educativos diretamente dirigidos pela igreja e voltados para a conformação dos indivíduos à ordem social. As visitas, destinadas a colher informações estratégicas sobre os modos de vida dos fiéis, foram utilizadas para deliberar como se comporiam as peças educativas para a correição dos fiéis - as pastorais -, que deveriam ser lidas durante as missas e explicadas pelos sacerdotes. As pastorais anunciavam o tempo da conversão e da correção, mas, caso falhassem, tomavam a forma pedagógica da punição.

Para se entender esse processo, tomamos um dos livros mais antigos de que se tem notícia no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana e que registra a passagem, pela comarca do Rio das Velhas, no ano de 1727, de uma comitiva visitadora que teve por alvo o Arraial Velho na freguesia de Raposos, a freguesia de Roças Grandes e a Vila de Sabará. Nesse documento, estão registradas 106 admoestações pelo delito do concubinato naquelas localidades (Devassas, 1727-1748). As ações inibidoras implicavam a imputação, aos condenados por concubinato, de penas que variavam de 3 a 9 mil réis, a depender da recorrência do delito. Por via de regra, alguém flagrado pela quarta vez em diante era remetido preso à presença do vigário de vara. Na visitação de 1727, três padres foram sentenciados por comunicações ilícitas: um em Caeté, e dois em Roça Grande.

A impunidade poderia representar o perigo do mau exemplo. Por isso, quanto maior a fama pública e o quilate social do indivíduo, maior o empenho das autoridades em fazer cessar o escândalo. Isso nos leva a uma importante dimensão pedagógica, particularmente valorizada nos séculos XVII e XVIII, o exemplo, visto sobretudo pela perspectiva de os denominados principais da comunidade serem os primeiros a se mostrarem fiéis aos mandamentos da igreja e da Coroa9. As autoridades constituídas - camarários, juízes, ouvidores, capitães, intendentes e outros -, na mesma medida, ao não respeitarem as normas da moral e dos bons costumes, mostravam-se como um péssimo exemplo à população, posto que eram elas, paradoxalmente, que deveriam zelar pelo cumprimento de tais normas, por serem recrutadas dentre os ‘homens bons’.

Finalizada a visita diocesana, a comunidade voltava à normalidade, deixando as obrigações de vigilância para o pároco local, até que se procedesse à próxima visita. Por fim, mais do que uma medida de sucesso que se configurasse de fato na contenção exitosa da população mestiça, as ações aqui tratadas - no momento em que as Minas Gerais se constituíam - lançaram as bases para algo muito mais perene, que seria o branqueamento, como um modo de renegar a origem africana, fenômeno tão perceptível na atualidade. Por contraste, talvez seja necessário voltar às pegadas deixadas na areia por nossos antepassados para se entender o que se passa na contemporaneidade, quando se escrevem ou se leem essas linhas.

Considerações finais

Na América portuguesa, a ausência ou pequena presença de escolas não significava ausência de educação ou de instrução. Até o século XVIII, os estados não eram responsáveis pela educação escolar da população, esta não era uma atribuição sua. Entendia-se que a educação era, primeiramente, responsabilidade da família, nos primeiros cuidados com as crianças, ou seja, sua alimentação, vestuário, saúde e primeiras noções nos campos da moral e dos bons costumes. Em seguida, essa responsabilidade seria da igreja e da religião, ministrando a formação cristã por meio do catecismo e promovendo a participação das pessoas nas cerimônias, nos sacramentos e rituais, educando pela palavra e pelos bons exemplos. Embora muito próximas, educação e instrução poderiam apresentar sentidos diferentes naquela época. A educação era geralmente associada à ideia da formação geral do indivíduo para torná-lo um bom súdito da monarquia e um bom cristão fiel à igreja e à religião, e por isso deveria estar ao alcance de toda a população. Dessa forma, acentuava-se o papel das famílias e da própria igreja, mas também do estado, que se incumbia de reforçar princípios de lealdade à monarquia e obediência às hierarquias. Como essas ações educativas nem sempre estavam associadas às instituições escolares, sua pesquisa e análise implica a ampliação das possibilidades de entendimento dos sentidos atribuídos a elas naquele período histórico e, sobretudo, a identificação dos processos pelos quais elas aconteciam.

Neste artigo procuramos associar o que entendemos como estratégias educativas aos valores culturais e às formas assumidas pela sociedade colonial numa região específica - a capitania de Minas Gerais -, onde as instituições dominantes, igreja e estado, se estabeleceram de maneira complexa, atuante e vigilante quanto aos movimentos de uma população que parecia escapar constantemente dos ideais ‘civilizatórios’ europeus. Ainda que incorporasse princípios da lei e do costume, ela o fazia em meio a soluções cotidianas consideradas desviantes ou rebeldes, seja na conformação dos arranjos familiares, seja na transgressão comportamental e moral. Assim, cuidar de filhos nascidos fora do casamento legal, criá-los, educá-los e instrui-los para se inserirem com distinção na sociedade, em conformidade com os princípios aceitos e legitimados, eram dois lados da mesma moeda. E, além do braço da lei e da repressão, os que se colocavam na posição de zeladores da religião e da monarquia lançavam mão, também, de ações educativas visando o ajuste a um projeto de sociedade constantemente fustigado por uma realidade complexa resultante de múltiplas interseções culturais e étnicas. Nessas tramas, podemos vislumbrar problemas que interessam ao estudo da história da educação num contexto anterior à constituição de uma estrutura escolar que, pouco a pouco, iria assumindo muitas das funções que, conforme vimos aqui, haviam ficado a cargo das famílias e da igreja.

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1Ver, especialmente, Chartier (1990); Bourdieu (1980, 2004); Certeau (1980, 1996).

2Em matéria eclesiástica, eram as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia o principal arbítrio a ser observado nas dioceses da América Portuguesa e Angola. Há uma exceção quanto ao bispado do Pará, que era submetido à Arquidiocese de Lisboa.

3Sobre as famílias do período colonial, ver Angelo (2013), Cerceau Netto (2008), Figueiredo (1997) e Goldschimidt (2004).

4São muitas as matrizes e as apropriações do conceito de mestiço, assim como de mestiçagem e universo cultural. Da maneira como empregado neste artigo, remetem às discussões de Gruzinski (2001), Paiva (2001), Paiva e Anastasia (2002).

5Isso geralmente significava que um mestre particular ou pago pela Câmara era mobilizado para ensinar as primeiras letras - ler, escrever e contar - e, eventualmente, a gramática do latim, principalmente quando havia intenção de enviar o menino para um seminário, ou simplesmente dotá-lo de competências que lhe permitiriam acessar lugares sociais de maior distinção. É preciso lembrar queas aulas régias, criadas por meio das reformas empreendidas pelo marquês de Pombal, ministro de D. José, apenas começaram a ser estabelecidas na capitania de Minas Gerais no início da década de 1770 (Fonseca, 2010).

6As pastorais constituíam-se em visitas periódicas às paróquias sob a jurisdição de um determinado bispo. Ele poderia fazê-las pessoalmente, ou poderia encarregar algum clérigo de sua confiança nessa tarefa. Além das questões comportamentais da comunidade (dentre as quais se inclui a prática do concubinato), verificavam-se também as condições de asseio dos templos, se os clérigos locais observavam suas tarefas sacerdotais, dentre outros assuntos.

7Essas práticas apresentam forte feição etnográfica, porque são precedidas por uma ‘descrição densa’ de uma dada comunidade, como forma de compreendê-la, e só então agir sobre ela na procura de corrigir, de forma catequética, os desvios frente aos dogmas religiosos, o que consistia nos objetivos das pastorais.

8Quando se avizinhava a desobriga pascal, ocasião em que todos os fiéis deviam se confessar, alguns usavam o expediente de largar suas concubinas para depois voltar a essa condição. O que o item 3 recomenda é que os concubinários devem dissolver essa relação a todo tempo. A expressão ‘portas a dentro’, no item 2, designa a convivência entre os amasiados em um domicílio.

9Um dos autores influentes em Portugal, defensor das ideias sobre a necessidade de as elites serem exemplos para a educação das classes subalternas, foi o inglês John Locke, base para o pensamento do português Martinho de Pina e Proença, autor de Apontamentos para educação de um menino nobre, de 1734.

22Nota: esse artigo apresenta resultados de pesquisas realizadas com o apoio do CNPq, Capes e Fapemig.

24Rodadas de avaliação: R1: seis convites; um parecer enviado. R2: um convite; um parecer enviado.

25Como citar este artigo: Fonseca, T. N. L., Angelo, F. V. M., & Oliveira, H. C. Fontes processuais e educação não escolar na América portuguesa: Minas Gerais no século XVIII. (2022). Revista Brasileira de História da Educação, 22. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e194 Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Recebido: 11 de Fevereiro de 2021; Aceito: 22 de Junho de 2021; Publicado: 08 de Dezembro de 2021

*Autora para correspondência. E-mail: thaisnlfonseca@gmail.com

Thais Nívia de Lima e Fonseca é professora titular de História da Educação da UFMG, atuando no Programa de Pós-Graduação em Educação. Líder do Grupo Cultura e Educação nos Impérios Ibéricos, bolsista de Produtividade do CNPq e da Fapemig. Autora de “Letras, ofícios e bons costumes: civilidade, ordem e sociabilidades na América portuguesa” e “O ensino régio na Capitania de Minas Gerais”, ambos publicados pela Autêntica Editora. E-mail: thaisnlfonseca@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-5090-293X

Fabrício Vinhas Manini Angelo é professor substituto da Universidade Federal de Ouro Preto, câmpus de Mariana. Pós-doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisador do Grupo Cultura e Educação nos Impérios Ibéricos. Realiza pesquisas em História da Educação, das emoções e da família no contexto ibero-americano moderno. E-mail: fabriciovinhas@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-5265-1233

Hilton Cesar de Oliveira é professor da Universidade do Estado de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Pós-doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisador do Grupo Cultura e Educação nos Impérios Ibéricos e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Educação e Relações Étnicorraciais da UFMG. Realiza pesquisas sobre concubinato, ilegitimidade, casamento, infância abandonada, história da família. E-mail: h.cesar.oliveira@uol.com.br https://orcid.org/0000-0001-5224-0490

Editor-associado responsável: José Gonçalves Gondra (UERJ) E-mail: gondra.uerj@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-0669-1661

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