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Revista Brasileira de História da Educação

versão impressa ISSN 1519-5902versão On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.22  Maringá  2022  Epub 05-Set-2022

https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e227 

Artigo Original

A escola, a fábrica e o cinema: uma reflexão sobre a educação e a indústria soviética a partir do filme Tanya

The school, the factory and the cinema: a reflection on soviet education and industry based on the film Tanya

La escuela, la fábrica y el cine: una reflexión sobre la educación y la industria soviética basada en la película Tanya

Cássio Hideo Diniz Hiro1  * 
http://orcid.org/0000-0001-7551-4688

1Universidade do Estado de Minas Gerais, Campanha, MG, Brasil.


Resumo:

Este artigo analisa o filme soviético Tanya, de 1940, a partir do estudo sobre o papel da educação e do cinema na construção do ‘modelo ideal’ de trabalhador na URSS desse período. Esse filme se destaca ao figurar como uma das poucas obras no país que mergulha no universo fabril, o qual é enfatizado na análise que realizamos. Nesse sentido, buscamos compreender as intencionalidades dessa obra quanto a instruir os trabalhadores tanto em seu novo ethos quanto na apropriação do conhecimento tecnológico existente, os quais estão inseridos nos principais aspectos da educação soviética nas décadas de 1920-30. Além disso, ao analisarmos os caminhos da protagonista em sua jornada para se transformar na operária ideal, buscamos analisar se essa produção cinematográfica especifica quais deveriam ser as aspirações dos(as) trabalhadores(as) na nova sociedade idealizada pelo regime soviético.

Palavras-chave: educação socialista; cinema soviético; stakhanovismo

Abstract:

This article analyzes the 1940 Soviet film Tanya, based on the study of the role of education and cinema in the construction of the ‘ideal model’ of a worker in the USSR during that period. This film stands out as one of the few works that immerses itself in the industrial universe, standing out in the analysis we carried out. In the meantime, we seek to understand the intentions of this work in instructing workers in its new ethos and in the appropriation of existing technological knowledge, inserted in the main aspects of Soviet education in the 1920s-30s. And, when analyzing the paths of the protagonist in her journey to transform herself into the ideal worker, we seek to analyze whether this cinematographic production specifies what should be the aspirations of workers in the new society idealized by the Soviet regime.

Keywords: socialist education; Soviet cinema; Stakhanovism

Resumen:

Este artículo analiza la película soviética de 1940 Tanya, basada en el estudio del papel de la educación y el cine en la construcción del ‘modelo ideal’ de un trabajador en la URSS durante ese período. Esta película se destaca como una de las pocas obras que se sumerge en el universo industrial, destacándose en el análisis que realizamos. Mientras, buscamos comprender las intenciones de este trabajo en instruir a los trabajadores en su nuevo ethos y también en la apropiación del conocimiento tecnológico existente, insertado en los principales aspectos de la educación soviética en las décadas de 1920 y 1930. Y, al analizar los caminos de la protagonista en su viaje para transformarse en la trabajadora ideal, buscamos analizar si esta producción cinematográfica concreta cuáles deberían ser las aspiraciones de los trabajadores en la nueva sociedad idealizada por el régimen soviético.

Palabras clave: educación socialista; cine soviético; stajanovismo

Introdução

Nos últimos 100 anos, comentar quaisquer aspectos relacionados à Revolução Russa de 1917 e à experiência do socialismo soviético é, com certeza, despertar algum tipo de debate apaixonado tanto em embates acadêmicos quanto em raivosas discussões em outros espaços públicos e privados. Devido ao seu caráter transformador e subversor da ‘ordem’ burguesa, o legado dos revolucionários bolcheviques marcou profundamente a realidade política, social e econômica do século XX, e com densos reflexos no primeiro quarto deste século XXI.

No que tange à educação, o debate público atual, no Brasil, remonta a muitas ideias e concepções antagônicas desenvolvidas ao longo desses 100 anos. Seja em uma posição em defesa da educação como meio de transformação da realidade, seja em outra na qual são atacadas e condenadas todas as formas de uso da educação para essa mesma finalidade, tal ‘fenômeno social’ ganha relevo em grandes embates públicos, principalmente quando analisamos o atual antagonismo entre progressistas e conservadores. Sobre isso, mais especificamente, destaca-se o debate em torno do movimento que impulsionou o projeto ‘Escola Sem Partido’, fruto não apenas de arroubos retrógrados presentes na atualidade, mas também de um longo debate entre intelectuais tradicionalistas comprometidos com o projeto hegemônico de poder a serviço do capital.

Essa situação nos compele à necessidade de pensar o papel da educação e da cultura no contexto de uma sociedade de classes e, sobretudo, em sua busca pela superação das contradições em um cenário revolucionário. Para compreendermos esse processo de transformação observado na União Soviética, analisaremos algumas características da educação nesse país, bem como as ações deste na indústria cinematográfica nas décadas imediatamente posteriores à tomada do poder pela classe trabalhadora. Em seguida, usaremos os recursos teóricos e metodológicos apresentados por diversos autores, como Eduardo Morettin, José D’Assunção Barros, Cezar Migliorin e Elianne Ivo Barroso, para investigarmos o filme Tanya, a partir dos recursos da análise fílmica. Ou seja, utilizaremos a obra cinematográfica como fonte histórica para compreender a sociedade que a produziu. De acordo com Morettin (2007, p. 47, grifo do autor):

A aceitação do cinema como fonte histórica indica uma mudança de estatuto do historiador na sociedade, assim como mostra a nova utilidade que certas fontes passam a ter em função de sua nova missão. Para o autor [Marc Ferro], ‘Segundo a natureza de sua missão, segundo a época, o historiador escolheu tal conjunto de fontes, adotou tal método; mudou como um combatente muda de arma e de tática quando as que usava até aquele momento perderam sua eficácia’.

A escolha dessa obra cinematográfica não foi em vão. Tanya - lançado originalmente em 1940 (Aleksandrov, 1940) - é um dos poucos filmes que mergulham no universo fabril nos primeiros 30 anos da Revolução, momento histórico importante para a edificação do ‘socialismo real’ na URSS. Tal análise é pertinente para que possamos compreender as intencionalidades políticas e culturais da película quanto a instruir os trabalhadores nos novos desafios socioeconômicos da revolução, a partir das novas perspectivas da educação soviética nas décadas de 1920-30.

Ao tomarmos a posição de pesquisador do processo revolucionário russo e do desenvolvimento do primeiro Estado Operário da história - e, por conseguinte, da própria União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) -, poderemos entender que a luta de classes e a experiência da edificação do poder popular no Leste não se limitaram aos campos econômico, político e social, mas se mesclaram, principalmente, aos aspectos culturais e educacionais de uma sociedade. E, nesses casos, a fábrica, a escola e o cinema metamorfosearam-se e combinaram-se em novos palcos dessa luta.

Educação e cultura nos primeiros anos da URSS

O processo revolucionário russo iniciado em março de 1917 (fevereiro, no calendário Juliano) teve como ponto nevrálgico a derrubada do governo provisório em novembro e a constituição do poder soviético sob hegemonia dos bolcheviques, liderados por Vladimir Ilitch Ulianov, vulgo Lênin. Esse fato marcou o início da jornada em direção à edificação do primeiro Estado Operário da história - não contando a curta experiência da Comuna de Paris de 1871 - e a construção de uma nova sociedade: socialista e sem classes sociais.

Como parte desse processo histórico, as transformações no âmbito do modo de produção - mais especificamente, nos campos econômicos, sociais e políticos - precisavam se ligar à construção de um novo ‘ser’ (novos homens e mulheres) que comporiam essa inédita sociedade. Tal tarefa não se distinguia ou se separava das transformações no plano da infraestrutura, mas se ligava e era consequência desta como parte de um único processo. Nesse caso, era papel fundamental do novo Estado estimular, subsidiar, delimitar e regulamentar essa mudança por meio da cultura e, em especial, da educação.

Na compreensão de sociedade adotada pela revolução, a educação recebeu novas atribuições na for mação de homens e mulheres para essa realidade, com base na participação ativa na vida social, econômica e política, bem diferente da escola que existia no capitalismo, amparada e determinada pelas estruturas sociais com divisões antagônicas e pelo domínio de uma classe sobre a outra.

Como no processo histórico de desenvolvimento do capitalismo até então, na nova sociedade socialista, a educação teria papel fundamental de transformação e manutenção dessa nova realidade.

Conservadores, reformistas e revolucionários colocavam na educação um papel essencial, quer para manter o equilíbrio e a harmonia social, quer para promover ajustes que resolvessem disfunções sociais ou mesmo para revolucionar a ordem existente (Lombardi, 2011, p. 92).

Na Rússia revolucionária, a primeira tarefa foi a criação do Comissariado do Povo para a Instrução Pública, ou Educação1 (NarKomPros), já em novembro de 1917. Esse ‘ministério’ foi entregue a Anatoli Lunacharsky, que foi seu comissário até 1929. O NarKomPros também contou com a participação de importantes nomes do debate educacional e pedagógico revolucionário de então - com destaque para Nadejda Krupskaya -, que assumiram a gigantesca tarefa de solucionar os problemas educacionais de um país no qual os principais desafios eram “[...] o baixo nível escolar da população russa, cuja maioria ainda estava mergulhada em um extremo analfabetis mo, além da carência absurda de técnicos e profissionais comprometidos com a causa revolucionária” (Diniz, Bauer, & Delcorso, 2019, p. 15).

Seguindo as linhas mestras das contribuições teóricas de Marx, de Engels e de outros teóricos que se baseavam no materialismo histórico e dialético, a educação soviética teria fundamentos e objetivos próprios que a diferenciaria da tradicional escola burguesa.

Conforme Lênin, no domínio da instrução pública, a tarefa do PCR era a ‘transformação da escola como instrumento de dominação de classe da burguesia em instrumento de destruição dessa dominação, bem como de supressão completa da divisão da sociedade de classes’ (Leher, 2017, p. 62, grifo do autor).

Não obstante, a tarefa da construção de novos homens e mulheres para compor a sociedade socialista não se restringia aos aspectos educacionais/formativos da escola oficial, e sim avançava para outros aspectos da cultura. A literatura, as artes, o teatro e o cinema eram incluídos nesse processo de transformação da sociedade, por meio da ação direta do Estado soviético ou por ações independentes de círculos proletários dedicados ao debate cultural, como defendido pelo movimento Proletkult2. Nesse caso, o cinema ganha profundos contornos e intencionalidades político-pedagógicas.

Como parte dessa nova política educacional, em agosto de 1919, Lênin transferiu o departamento responsável pelo cinema russo para o NarkomPros, o que provocou a ira de profissionais da área oriundos do período pré-revolucionário, os quais identificaram essa ação como uma interferência estatal intolerável e que provocou o êxodo de parte significativa desses profissionais para fora da Rússia (Bo, 2019). Contudo, essa atitude demonstrou como o novo poder encarava o cinema como um importante veículo de comunicação de massas, e o seu relacionamento institucional com o Comissariado do Povo para Educação3 demonstrou o quão importante esse veículo seria no processo formativo na nova sociedade.

Cabe destacar que, nesses primeiros anos da Rússia socialista - e, por conseguinte, da própria URSS -, dois posicionamentos pedagógicos antagônicos se chocavam no interior do aparato estatal. O primeiro apresentava a proposta de uma nova educação totalmente inédita, que teria como tarefa a sua construção a partir de novas experiências, tendo como foco o novo ‘ser’ social. Para isso, era importante a superação das experiências burguesas no campo educacional, as quais, politicamente e ideologicamente, estavam comprometidas com o ethos4 capitalista existente no país até 1917. E, nesse processo, era crucial buscar a ruptura com a unilateralidade burguesa e obter a omnilateralidade5, ou seja, um novo ethos que superaria as determinações históricas da sociedade capitalista. Defendido por Krupskaya, Aleksandr Bogdanov e, em parte, por Lunacharsky - por concordar, também, com a posição de Lênin -, dentre outros, esse projeto significava a remodelação completa do ensino, algo impossível de se realizar em um curto prazo, pois necessitava passar por novas propostas nascidas no seio da classe trabalhadora no poder e por suas experiências reais.

Dentro desses marcos, construiu-se o consenso da necessidade de superar o modelo educacional burguês pautado pela divisão do trabalho (e do conhecimento) manual e intelectual. Cabia ao novo poder estabelecer os parâmetros que definiriam a educação como integral e politécnica, no qual o ensino teórico está profundamente ligado ao ensino prático voltado pelo domínio do mundo do trabalho nas suas mais diferentes vertentes (Diniz et al., 2019, p. 16).

Contudo, esse primeiro posicionamento enfrentava oposição no interior do partido e do Estado, e não sem razão. O próprio líder bolchevique tinha resistências à ideia de reconstrução a partir do zero, pois, “[...] ao contrário da visão dualista de Bogdanov, Lênin defendia que a revolução cultural da classe operária deveria ter como ponto de partida a apropriação seletiva do patrimônio cultural existente” (Dore, 2013, p. 67). De acor do com Mario Alighero Manacorda (2001, p. 313), Lênin teria dito à sua companheira Krupskaya: “É preciso estudar minuciosamente a experiência americana, é preciso fazer nosso tudo aquilo que se conseguiu nos países capitalistas, avaliá-lo com base no critério da nossa posição marxista e ver o que nos convém e o que não nos convém”.

Para um país mergulhado nas consequências de uma guerra civil e na destruição de sua economia, a retomada das atividades agrícolas e, principalmente, industriais era algo urgente e primordial para a sobrevivência do próprio regime. Em 1921, surge a NEP6, uma reestruturação econômica vista por muitos como uma restauração parcial dos preceitos do livre mercado na terra dos soviets, como forma de reaquecer a produção e aumentar a circulação de capitais. A educação não ficaria de fora da influência dessa nova política econômica, pois o rápido crescimento dessas atividades preconizadas necessitava do aumento de uma força de trabalho especializada, a qual deveria ser formada rapidamente, sendo melhor qualificada, a fim de substituir muitos daqueles que foram mortos pela Primeira Guerra Mundial, pela Guerra Civil contra os Brancos e pelos que, simplesmente, abandonaram o país. Essa tarefa exigia a recuperação dos antigos modelos educacionais e pedagógicos, bem como teóricos e seletivos, que não faziam parte dos planos da nova educação socialista.

Com a morte de Lênin - ele mesmo um entusiasta das experiências educacionais de John Dewey nos EUA - e com a ascensão ao poder do grupo político liderado por Josef Stalin, os embates no interior da NarKomPros tenderam para o lado da retomada dos modelos educacionais ditos ‘burgueses’, ou, no mínimo, sua simbiose adaptada às necessidades políticas e ideológicas do regime, naquilo que os documentos oficiais designavam de “[...] socialização política” (Bittar & Ferreira Jr., 2020, p. 48), mas mantendo a sua concepção politécnica. Com o fim da NEP e o início da implantação do I Plano Quinquenal, esse processo se acelerou, consolidando a mudança da concepção educacional e pedagógica do regime, e levou à saída de Anatoli Lunacharsky do Comissariado do Povo para a Instrução Pública em 1929. A partir de então, a escola soviética, adaptada às necessidades produtivas imediatas do regime, se fortaleceu como apêndice da política econômica da URSS, usando muito do legado educacional pré-revolucionário7. E, dentro dessa lógica, e mesmo que fora da escola oficial, o cinema soviético teria um papel estratégico nessa nova realidade.

O cinema soviético

A arte cinematográfica já se fazia presente no Império Russo antes de 1917. O cinema, na Rússia, se desenvolveu nas últimas décadas da Era dos Czares não apenas na produção de filmes e cinejornais mas também na exibição de obras, tanto locais como americanas e europeias, com grandes bilheterias.

O cinema das décadas iniciais refletia uma Rússia pré-industrial, mas cultivava também outras temporalidades, outras culturas. A suposta morbidez da alma russa convivia com afluências externas de clichês e fetiches. Grande importadora de filmes, pelo menos até a véspera da guerra de 1914-1918, a Rússia era um mercado dominado por empresas francesas - Pathé sobretudo, mas também Gaumont, Lumiere e Éclair - que tinham estrutura de distribuição e equipamento próprio de projeção (Bo, 2019, p. 25).

Era evidente que o cinema havia se transformado em um importante instrumento de comunicação e propaganda de massas na Rússia. Mesmo com a queda da produção e da exibição nos anos finais da Primeira Guerra Mundial e sua lenta recuperação nos anos posteriores, a Sétima Arte conquistou seu espaço no campo cultural e, sobretudo, no campo político.

Isso não passou despercebido pelo novo Estado soviético. O líder dos bolcheviques e presidente do Conselho de Comissariados do Povo, Vladimir Lênin, já dava atenção especial ao cinema, como espectador e político. Como apontado anteriormente, Lênin percebeu o seu potencial na formação de uma nova cultura com base nos princípios de uma sociedade sem classes. Como instrumento, o cinema poderia chegar a espaços que, muitas vezes, as letras não chegavam (levando em consideração a dura realidade do analfabetismo ainda forte no país). O historiador francês Marc Ferro descreveu bem a posição de Leon Trotsky - um dos líderes da Revolução de Outubro e organizador do Exército Vermelho - em relação ao cinema e seu papel educativo, em discurso proferido em 1923: “O cinema deve ser um contraponto para os atrativos do álcool, da religião [...] a sala de cinema deve substituir o boteco e a igreja, deve ser um suporte para a educação de massas” (Ferro, 1992, p. 27). Não será à toa que a administração estatal do cinema ficará com a NarKomPros a partir de 1919, quando foi criada uma seção interna responsável pela área, a Vssierossíski Fotokinootdel8 (Bo, 2019).

No entanto, a instrumentalização do cinema para esses fins passará por resistências e contradições. O próprio comissário Lunacharsky era um defensor da liberdade cultural e muito próximo dos ideais defendidos pelo movimento Proletkult, dando enormes incentivos aos artistas de vanguarda e questionando o monopólio estatal na edificação de uma arte oficial, enfrentando forte oposição de seus camaradas de partido.

O contexto de guerra civil e de estagnação econômica, resultado de anos de conflitos militares e de destruição humana e material da Rússia, repercutiu em sua produção cinematográfica. Faltava de tudo: equipamentos, profissionais, subsídios, até celuloide e produtos de revelação. Não obstante, aumentaram os esforços governamentais para o uso pragmático do cinema, nos mais diferentes campos.

Durante as batalhas contra o Exército Branco, unidades especiais de agitação e propaganda foram criadas para percorrer as frentes de combate e para as vastas regiões rurais, levando informações e uma nova ‘metodologia pedagógica’. Muitos dos materiais exibidos eram cinejornais e curtas-metragens de simples linguagem, meios pelos quais era possível se comunicar com as pessoas comuns do campo e das trincheiras.

[...] pelo menos cinco ‘trens de agitação’, com dezesseis a dezoito vagões, zarparam pelo país convulsionando nos primeiros anos da Revolução com fins de propaganda política, levando filmes para serem projetados, folhetos, trupes de teatro, oradores e livros [...] (Bo, 2019, p. 36, grifo do autor).

Apesar das grandes dificuldades dos primeiros anos marcados pela guerra, o anseio por uma nova cultura revolucionária de setores vanguardistas e entusiastas, aliado com o retorno das atividades econômicas proporcionadas pela NEP, fez com que a produção cinematográfica retornasse aos poucos, mas já com obras que ganhariam destaque na história do cinema mundial. Diretores tornaram-se internacionalmente conhecidos, com destaque para Aleksandr Razumny e Sergei Eisenstein. O primeiro dirigindo películas como Vida e morte do tenente Schimdt (1917) e Insurreição (1919), e o último dirigindo, entre 1924 e 1928, dois filmes considerados obras primas do cinema soviético, O Encouraçado Potemkin e Outubro, ambos retomando episódios basilares da mitologia soviética (o levante dos marinheiros de 1905 e a Revolução de 1917). Nos dois casos, nota-se a forte tendência de retratar a história recente dos acontecimentos sob a ótica do novo regime, mesmo que Razumny estivesse mais ligado ao Proletkult.

Por fim, cabe destacar também o surgimento e o fortalecimento de importantes estúdios cinematográficos soviéticos, alguns deles com vida efêmera e outros que sobreviveriam por longo tempo. Um deles foi o Mejrabpomfilm-Rus, criado em 1923 e que surgiu como “[...] - iniciativa de uma entidade de solidariedade proletária ligada ao Comintern, sediada na Alemanha - com a empresa privada Rusfilm, remanescente da era pré-revolucionária [...]” (Bo, 2019, p. 61) responsável por importantes produções na década. Outro, que resistiu à queda da União Soviética e virou símbolo do atual cinema russo, foi o Mosfilm. Considerado o mais antigo estúdio de cinema europeu, cujas bases remontam também a 19239, foi o Mosfilm, uma vez engajado na proposta política do período dos planos quinquenais de Stalin, que produziu e lançou o filme Tanya em 1940.

A diversidade de estúdios e produtoras - muitos deles privados - que se desenvolveu nos anos da NEP permitiu a concentração e a estatização dessas empresas com o I Plano Quinquenal a partir de 1929. Nesse momento, buscou-se a popularização do cinema, com a criação de mais salas nas grandes e pequenas cidades, a destituição de seu luxo e a possibilidade de que, cada vez mais, pessoas tivessem acesso aos filmes, obtendo, assim, uma grande popularidade. Porém a sua modernização estava ameaçada com a transferência de recursos para as áreas ditas prioritárias pelos planos quinquenais (Franciscon, 2019). Apesar do forte incentivo estatal e dos projetos de criação de uma verdadeira indústria cinematográfica ao estilo americano, o objetivo não se concretizou na prática, pelo menos até antes da Grande Guerra Patriótica (1941-1945).

Os dirigentes da indústria cinematográfica e das agências controladoras sonharam com uma Hollywood soviética no Mar Negro - com amplos e modernos estúdios que concentrassem o investimento na área, em poucas grandes empresas aglomeradas na região, reunissem pessoal técnico, que funcionassem como linha de montagem, com divisão e especialização do trabalho, que diminuíssem os custos pela proximidade dos mais diferentes ambientes para as películas [...]. Tal sonho nunca viria a se realizar. Pelo contrário. A dispersão ganhou força no pós-guerra, com a crescente importância dos estúdios das repúblicas o Báltico e Ásia Central, além dos já existentes estúdios locais na Ucrânia, Bielorrússia, Cáucaso. Essa dispersão favoreceu o baixo nível técnico do cinema soviético, agravado pelo isolamento econômico e tecnológico (Franciscon, 2019, p. 37-38).

O cinema soviético de então se estruturou sob controle estatal, mas não se estabeleceram grandes monopólios e trustes. Embora grandes estúdios e produtoras fossem empresas públicas vinculadas ao NarKomPros e seus comitês internos, bem como o sistema de distribuição interna e externa a partir da Rossnabfilm e da Sovexportfilm, estivessem sob o controle de agências governamentais, essa estrutura não era unificada em um único órgão, empresa ou estúdio, como o Studio System americano, até a segunda metade da década de 1940 (Franciscon, 2019). No entanto, a duras penas, a indústria cinematográfica soviética organizou-se com parcos recursos provindos dos financiamentos estatais e com a bilheteria - esta forçando, cada vez mais, os produtores a buscar estilos populares para seus filmes, garantindo, assim, a presença do público que não se sentia atendido pelas obras vanguardistas ou pelas meras peças publicitárias do regime. A comédia musical serviria muito bem a esse propósito.

Tanya, de garota ingênua à heroína do trabalho na URSS

A análise fílmica pode nos presentear com várias descobertas pertinentes, não apenas sobre um período histórico retratado em uma obra (no caso, um filme histórico), mas também em trabalhos contemporâneos, mesmo que ficcionais. Como produtos culturais, os filmes retratam visões, formas e interpretações de seu período histórico, não apenas por parte de quem produz, mas também de seu público-alvo, revelando “[...] imaginários, visões de mundo, padrões de comportamento, mentalidades, sistemas de hábitos, hierarquias sociais cristalizadas em formações discursivas, e tantos outros aspectos vinculados a uma determinada sociedade historicamente localizada” (Barros, 2011, p. 181). É com essa compreensão que eles se tornaram importantes fontes históricas de pesquisadores preocupados em investigar as características culturais, sociais, políticas, econômicas e ideológicas ao longo do século XX.

A partir de uma fonte fílmica, e a partir da análise dos discursos e práticas cinematográficas relacionadas aos diversos contextos contemporâneos, os historiadores podem apreender de uma nova perspectiva a própria história do século XX e da contemporaneidade (Barros, 2011, p. 178).

No caso de Tanya, é perceptível que tal obra nos apresenta inúmeras informações de seu tempo, mesmo que seja uma obra ficcional. Por meio dela, podemos entender não apenas os aspectos sociais e ideológicos daquele momento histórico como também as intencionalidades políticas de um regime. “A obra cinematográfica traz informações fidedignas a respeito do seu presente” (Morettin, 2007, p. 48). Em relação ao nosso objeto de pesquisa, como já dito, ele se insere no contexto da edificação de uma nova sociedade socialista e, em seu interior, há um novo ethos a ser adotado por homens e mulheres na União Soviética.

O filme Tanya foi lançado em 1940 pela produtora Mosfilm Studios. Classificado como uma comédia musical, foi dirigido por Grigori Aleksandrov e baseado na peça Cinderella,de Viktor Ardov, que a roteirizou para as telas. É estrelado por Lyubov Orlova, atriz popular na União Soviética na época, que já havia participado de outros seis filmes desde 1933, dentre eles, sucessos como Vesyolye rebyata (Rapazes Felizes, 1934) e Tsirk (Circo, 1936), ambos dirigidos também por Aleksandrov10. Isso é explicado pelo fato de que Lyubov e Grigori eram casados desde 1934, iniciando uma parceria ao longo do relacionamento.

Ressaltamos que a proposta deste estudo é analisar tanto o filme como o contexto no qual está inserido. Como aponta Marc Ferro (1992, p. 87), “Ele [o filme] está sendo analisado não como uma obra de arte, mas sim como um produto, uma imagem-objeto, cujas significações não são somente cinematográficas”. E continua: “Ele não vale somente por aquilo que testemunha, mas também pela abordagem sócio-histórica que autoriza” (Ferro, 1992, p. 87). Ou seja, ao nos aprofundarmos na película, procuraremos entender as intencionalidades por detrás da linguagem cinematográfica, com suas mensagens, símbolos e iconografias, para o imaginário dos espectadores em torno de um novo projeto de sociedade.

Nessa perspectiva, identificamos uma narrativa pedagógica simples, que visa à fácil compreensão, por parte da audiência, de sua história, de seu enredo, da construção das personagens e das ‘lições’ empreendidas no roteiro. Nesse caso, destacamos que a ação educacional, aqui, se encaixa em duas vertentes, informal e não formal. Em primeiro lugar, porque o filme não se coloca como um instrumento escolar institucional, mas sim como uma obra de entretenimento, que, a princípio, é desprovida de uma ‘formalidade’. Em segundo lugar - e como analisamos neste trabalho -, devido ao contexto do cinema, da educação e do projeto societário na União Soviética, pelos quais podemos constatar determinadas intencionalidades na construção de um novo ethos e de um novo modelo social, mesmo que fora do ambiente escolar oficial. “O cinema, assim como a educação, funciona devolvendo algo do sujeito ao mundo, inventando um receptor para essa devolução. Uma devolução que não é da coisa em si, mas da coisa atravessada por uma mediação estético-política” (Migliorin & Barroso, 2016, p. 21).

Não obstante, esse filme se destaca por ser uma das poucas obras que mergulham no universo fabril, obtendo a partir disso certo destaque dentro da análise que realizamos. De acordo com o levantamento realizado por João Lanari Bo em seu livro Cinema para russos, Cinema para soviéticos,

Dos 308 filmes produzidos na União Soviética entre 1933 e 1940 [...] 85 lidavam com assuntos contemporâneos [...]. Entre os contemporâneos, doze tinham como pano de fundo fábricas e proletariado, número pequeno considerando-se a ênfase industrialista nos discursos oficiais [...]. (Bo, 2019, p. 121).

Antes do lançamento oficial de Tanya, o cinema soviético já tentara transpor para as telas o novo ideal de trabalhador. Em 1939, foram lançados dois filmes: Tchlen Pravitelstva (Membro do Governo), sobre as experiências de camponeses organizados em um Kolkhoz e o drama de uma mulher cujos sonhos se tornam realidade no trabalho coletivo, e Bolchaia Jizn (A grande vida), uma ficção que conta as iniciativas stakhanovistas11 em uma mina de carvão do interior da Ucrânia, com doses de vilania e heroísmo12. Contudo, apesar da boa bilheteria, não teriam os mesmos impactos sobre o grande público dentro e fora da URSS, sendo que Bolchaia Jizn teve a sua segunda parte censurada pelo regime.

Nesse caso, Tanya se torna especial para esta análise porque, apesar de não ser a primeira tentativa, seus produtores tentaram fugir de dois estereótipos que marcavam o cinema soviético até então: o vanguardismo e o político-histórico explícito (como o filme Tchapaiev13). Ainda assim, ao tratarmos essa obra como uma comédia musical, compreenderemos o seu apelo popular e os objetivos de seus produtores de alcançar as massas, cumprindo com as suas intencionalidades educacionais. Dentre tantas obras históricas, ou com temas políticos que buscavam construir uma memória nacional em torno da revolução e da nação, Tanya destaca-se no papel de uma diversão despretensiosa, simples e de fácil absorção das informações, mas carregada de pretensões políticas e sociais. “Na miríade de horizontes possíveis na aurora comunista, da qual Trotsky era um dos protagonistas, o cinema enquanto diversão era uma brecha privilegiada para chegar ao âmago da população, para comunicar valores e influenciar atitudes” (Bo, 2019, p. 54). Eduardo Morettin (2007, p. 49, grifo do autor) explica que

Se o imaginário constitui ‘um dos motores da atividade humana’, força integrante da História, ‘o cinema, sobretudo a ficção, abre uma via real na direção de zonas psico-sócio-históricas’ jamais atingidas pela análise dos documentos’. Esse tipo de produção, aliás, leva uma vantagem em relação às atualidades ou ao documentário. Devido à sua maior divulgação e circulação, é possível identificar com maior clareza o diálogo entre filme e sociedade por meio da crítica e da recepção do público.

A ação pedagógica dá-se por etapas, as quais começam com uma introdução e uma problemática. Em seu início, o filme apresenta uma canção, fazendo referência ao voo das cegonhas, um voo alto, em direção ao sul. Mas logo a canção fala de uma cegonha que quebra a mecânica do voo em conjunto e se desgarra, por ser a primeira vez e movida pelo medo de ficar para trás. Tal mensagem, à primeira vista contraditória - uma ação de quebra do coletivo -, pode ser o meio provocador para uma reflexão em torno da superação de um desafio.

De certa forma, podemos dividir o filme em quatro partes fundamentais, cada uma retratando o processo de desenvolvimento da personagem principal. A primeira faz referência à Tanya como a garota inocente, imersa em seu mundo representado pelo hotel onde trabalha, presa a antigas relações sociais. Na segunda parte, temos o processo de ruptura, abrindo caminho para uma nova vida, proporcionada pela fábrica. Na terceira, observamos a personagem desafiada e motivada pelo desejo de se superar diante dos desafios da produção. E, na última parte, vemos as conquistas obtidas pela mais nova heroína. Ao observarmos essas quatro fases, poderemos fazer um paralelo claro com o conto da Cinderela, que, aliás, é a base para a construção ideológica da heroína, sob os moldes pretendidos pelo regime soviético.

Assim, o mais fantasioso filme de ficção científica não expressa senão as possibilidades de uma realidade histórica, seja como retratação dissimulada, como inversão, como tendência discursiva que o estrutura, como visão de mundo que o informa e que o enforma (que lhe dá forma), e assim por diante. [...] é sempre possível dizer que a ficção, por mais criativa e imaginativa que seja, permite em todos os casos uma aguda leitura da realidade social e histórica, o que implica dizer que o historiador ou o analista da fonte documental cinematográfica sempre poderá almejar enxergar por trás de um filme algo da sociedade que o produziu [...]. (Barros, 2011, p. 184-185).

Como no conto de fadas do Ocidente, surge a nossa personagem-título na primeira parte do filme. Em uma cidade longe de Moscou, em uma pousada chamada ‘Pequeno Grande Hotel’, trabalha a jovem Tanya Ivanovna Morozova, empregada de uma decadente burguesa esquecida nesse lugar. Um sinal claro de oposição entre esse mundo e um novo que está lá fora é o momento em que ela acorda ouvindo a rádio Moscou, com os ‘ritmos’ da capital.

Tanya conhece Maria Sergeevna, comissária na fábrica têxtil da cidade, uma personagem importante para a história. Na primeira conversa entre as duas, a protagonista revela que é do campo e analfabeta. Convidada a entrar numa escola de adultos, ela, a princípio, recusa, mas logo imagina as oportunidades que se abrem com o estudo: no início, como uma babá instruída, mas logo ela vê novos horizontes.

A cena da escola para adultos é curta, mas bastante significativa. Aliás, é o único momento em que uma escola institucional é retratada, mas não a única em que o contexto educacional está presente. Na cena, Tanya se mostra inteligente, inclusive passando cola para uma colega, demonstrando solidariedade. Ao mesmo tempo, o espaço da turma de alfabetização é agradável, tanto entre os colegas como também com a professora.

Isso contrasta com o clima no Hotel. As contradições com a patroa afloram, especialmente na presença do engenheiro Aleksei Nikolaevich Lebedev, o que resulta na ruptura e na decisão de Tanya de buscar um novo trabalho - nesse caso, visto como emancipador - na fábrica têxtil Nogin. Para isso, procura ajuda de Maria Sergeevna, que a leva para ser apresentada ao estabelecimento, descrito como ‘o nosso palácio’. Aqui, é nítida a mensagem de que uma nova vida se abre diante da personagem, uma vida pautada pelos valores da nova sociedade conquistada pela revolução dirigida pela vanguarda do proletariado. “A ideologia, por exemplo, está sempre a escapar desta fonte privilegiada que é a obra cinematográfica. Os extratos ideológicos, naturalmente, podem ser decifrados a partir dos elementos aparentemente mais casuais, ou dos detalhes diversos” (Barros, 2011, p. 197).

Não obstante, é preciso avaliar alguns desses aspectos no filme. Até quando podemos observar nele os possíveis conflitos entre o projeto político do novo regime e os comportamentos da vida comum dos trabalhadores da URSS? De início, percebemos a personagem em conflito, o qual surge do choque entre seus desejos pessoais e a nova sociedade, ainda em processo de transformação nas primeiras décadas da Revolução. Contudo podemos perceber, nessas cenas, que o roteiro aponta o caminho da superação dessa contradição, ao expor os conflitos de Tanya com a ‘patroa’, o anseio de se destacar para o engenheiro e a busca da educação como caminho para ascensão à nova posição na sociedade soviética.

Nova vida na fábrica

Apresentada na fábrica, Tanya deslumbra-se com a modernidade representada pelas máquinas, pelos ritmos e pela cacofonia dos sons. Mas ela tem que começar por baixo, na limpeza da fábrica. Resiliente, ela segue no desejo de se tornar uma operária.

Em determinada cena, ela aparece com livros, e é chamada de erudita pelas colegas no quarto que dividem. Ela estuda a operação da máquina (tear mecânico) no livro, praticando a amarração das linhas com o cadarço dos sapatos e com os fios da echarpe da colega de quarto. Enquanto as demais saem para se divertir, Tanya fica para estudar o funcionamento da ‘lançadeira’, peça fundamental do tear. Essa cena demonstra a importância da alfabetização para a qualificação profissional, representada pelo domínio das letras e pela leitura dos livros e manuais técnicos. Na cena seguinte, ela aparece em sua primeira tentativa de uso do tear mecânico, relembrando os ensinamentos teóricos e colocando-os em prática. Ela não tem sucesso em sua primeira vez. Levada à presença do engenheiro Aleksei, ela se desespera e sai, mas logo o engenheiro questiona o capataz por tê-la colocado em uma máquina com problemas.

Em cena posterior, Tanya e uma colega veem pela janela um incêndio. Na rua, ela encontra uma outra colega chorando, Maruska. Esta explica que testemunhou Fyodor Karpovich roubando caixas do armazém da fábrica e incendiando-o. Nesse momento, Fyodor aparece, ameaçando as duas. No entanto Tanya diz que, agora, tem coragem e irá denunciá-lo. Questionada se era dona da fábrica, ela responde que sim, que a fábrica lhe pertence (ilusão ao fato de pertencer à classe operária).

Fyodor é capturado e Tanya explica que foi ele quem incendiou o armazém da fábrica. Por conta disso, é saudada por Maria Sergeevna, que tenta beijá-la, e as duas são flagradas por um fotógrafo. A foto vai parar na ilustração de uma matéria de capa do jornal Lançadeira, cujo título é ‘O ato altruísta de Tanya Morozova’. Logo outros jornais surgem na tela em sequência, mostrando matérias sobre os recordes de produção na Ucrânia e o início do movimento stakhanovista.

Nota-se que, com exceção de cenas pontuais como a descrita acima, não há grandes conflitos, principalmente sociais. O conflito de classes se resume ao começo do filme, no contraste entre a ‘patroa’ e a ‘empregada’, o qual é superado com a demissão e a ida da protagonista para a fábrica. Mas, ao longo do filme, esses conflitos desaparecem, refletindo fortemente a lógica construída pelo regime, de que a sociedade de classes está superada e que o comunismo triunfara na terra dos soviets, no contexto do IV Plano Quinquenal.

Por outro lado, observa-se a ausência de cenas com grandes concentrações, as quais poderiam apresentar a classe trabalhadora em sua coletividade. Mesmo na fábrica, a presença dos operários é substituída pelas máquinas em movimento, e o conjunto dos trabalhadores aparece somente como um sujeito oculto, às vezes, simbolizado por meio de uma personagem individual. O contrário acontece com a burocracia fabril, em cenas de reuniões e palanques. Nem mesmo nos grandes momentos públicos, como os comícios e as cerimônias, a sua imagem aparece, apenas subentendendo a sua presença como espectador dos eventos. Tal representação talvez seja uma escolha do diretor, tomada devido ao orçamento ou ao fato de grande parte das filmagens ser realizada em estúdio fechado. No entanto é importante ressaltar essa análise, pois a intencionalidade apresentada na obra centra-se na construção de um perfil, de um comportamento e, sobretudo, de um modelo individual a ser seguido por quem assiste. Para nos aprofundarmos nessa análise, é preciso observar que

O filme possui um movimento que lhe é próprio, e cabe ao estudioso identificar o seu fluxo e refluxo. É importante, portanto, para que possamos apreender o sentido produzido pela obra, refazer o caminho trilhado pela narrativa e reconhecer a área a ser percorrida a fim de compreender as opções que foram feitas e as que foram deixadas de lado no decorrer de seu trajeto (Morettin, 2007, p. 62).

A partir daí, o filme começa a construir a representação de heroína em torno da personagem principal, comprometida e que se arrisca para defender um bem coletivo dos operários: a fábrica. O roteiro e a direção procuraram, nesse momento, trabalhar, por meio dessa cena, a ideia de comportamento comprometido com os novos valores da sociedade em construção, com base nos cânones do regime. Como aponta Barros (2011, p. 178-179, grifo do autor),

O cinema não é apenas uma forma de expressão cultural, mas também um ‘meio de representação’. Por meio de um filme representa se algo, seja uma realidade percebida e interpretada, seja um mundo imaginário livremente criado pelos autores de um filme.

É nesse momento do filme que observamos a construção simbólica do que seria a consciência política da personagem, o que a leva a buscar novos desafios no interior da fábrica. Tais desafios, apresentados por meio dos jornais oficiais do regime que estamparam em suas capas os primeiros passos da corrida pelos recordes de produção na Ucrânia, estimularam a jovem operária a tentar se superar e se destacar entre seus colegas e seus dirigentes, reproduzindo diretamente os anseios e as intenções do regime ao patrocinar o stakhanovismo na URSS. Observamos, a partir disso, que o roteiro não apresenta um conflito entre as intencionalidades do regime e os desejos pessoais da protagonista, mas sim a simbiose perfeita em um único projeto.

Tanya entra no movimento stakhanovista

Após ler as notícias do movimento stakhanovista, Tanya também começa a esboçar formas de aumentar a produtividade em sua fábrica têxtil. A personagem passa a noite escrevendo uma carta, esboçando seu plano de aumento da produtividade na fábrica. No dia seguinte, ela coloca em ação seu plano, aproveitando-se da licença médica de uma colega. Com isso, em vez de operar oito teares, ela opera 16. Em seguida, vai falar com o diretor da fábrica, Semyon, que a repreende por ela não ter autorização. A comissão da fábrica reúne-se para discutir uma possível punição à Tanya. Junto com a chegada da comissária Maria Sergeevna, um telegrama endereçado à protagonista lhe é entregue. É a resposta de sua carta enviada ao Comissariado da Indústria, em Moscou, parabenizando-a pela iniciativa.

Esses dois trechos trazem algumas particularidades importantes. Ao mesmo tempo que apresentam o desejo entusiástico da personagem principal de superar os desafios da produtividade da fábrica - como também da comissária -, temos outro personagem resistente a tais mudanças, mesmo que seja um diretor de uma indústria estatal soviética, cujo papel seria o de ser o expoente da nova ordem social e econômica. Nesse contexto, podemos observar algumas contradições não intencionais, como algo que escapou da visão oficial e encontrou uma brecha para a crítica, mesmo que velada. “A ideia proposta pelo historiador de que o cinema não é uma expressão direta dos projetos ideológicos que lhe dão suporte deve ser ressaltada: um filme apresenta, de fato, tensões próprias” (Morettin, 2007, p. 42).

Devido ao sucesso inicial, ocorre um comício na fábrica, no qual Tanya discursa. Apesar de ser apontada como a responsável pela iniciativa, a fala dela tenta apresentar o acontecimento como uma atividade coletiva, envolvendo os capatazes e engenheiros, como Aleksei. Tanya discursa que qualquer um pode fazer o que ela fez e que ainda tentará operar 30 teares, em vez dos atuais 16, no que é saudada pelos colegas. É seu início no movimento stakhanovista.

As mudanças no status começam a se fazer notar. Tanya se muda - momento representado na carroça com os móveis atravessando a cidade - acompanhada de mais uma canção. Nela, Tanya diz: “Não sou oprimida, sou ativa e famosa, assim é [...]”. O personagem Pyotr Ustinych corre ao seu lado e a parabeniza. Ele comenta consigo mesmo: “Tudo nela é admirável. Tanto a atmosfera quanto a alma [...]”, ato que demonstra o efeito que a sociedade deveria sentir diante do surgimento de novos heróis.

Tanya, heroína do trabalho

Na cena seguinte, o diretor da fábrica aparece discutindo com outra pessoa as novas estampas de tecidos, e os temas agrícolas e industriais são debatidos. Questionado sobre o novo ritmo de trabalho, nunca visto em outros países, o diretor Semyon fala da necessidade de bater recordes de produtividade. O outro informa que Tanya quer operar sozinha 150 teares mecânicos para tentar bater um novo recorde, mas se diz preocupado com os limites da fábrica.

Nesse momento, surge a cena de Maria Sergeevna em reunião com o comissariado local. Maria, enfaticamente, explica a necessidade de mudar radicalmente o modelo produtivo: “Tudo que está desatualizado, vamos quebrar!”, e, logo em seguida, a fábrica é adaptada para Tanya bater o seu recorde.

Tal cena é importante para apresentar ao público um debate que estava se tornando fundamental na corrida pelo aumento da produtividade: a necessidade de modernizar a indústria soviética e superar velhos métodos que estavam em desacordo com as novas intencionalidades.

Como praticamente todos os ramos da produção soviética, a indústria têxtil apresentava inúmeros problemas e, em 1933, se caracterizava pela má organização e pelo desperdício. No entanto, o Segundo Plano Quinquenal havia previsto uma intensa modernização desse setor, através da introdução de teares automáticos, de modelo inglês, o que exigiria, por sua vez, uma transformação dos antigos métodos de trabalho (Pasquier apud Lucas, 2015, p. 198).

Em uma cena autoexplicativa, Tanya está diante dos 150 teares. Reflexiva, ela está sob os olhares dos demais (diretores, assistentes, engenheiros e da comissária). Diante deles, Tanya diz: “Oh, estou com medo. Muito medo de me cansar. Oh, tenho medo de não conseguir”. Mas logo recupera sua autoconfiança e, posteriormente, ordena Aleksei a ligar a chave geral, enquanto ela começa a ligar os teares, um a um. Notamos o preparo exclusivo das condições para que ela tenha sucesso. Em uma cena inserida, o diretor reivindica a coletividade do recorde.

Na linha de produção especial, Tanya aparece auxiliada pelas colegas, mostrando, na prática, que ela coordena a operação das 150 máquinas, conferindo o funcionamento de cada uma e resolvendo eventuais problemas. Em meio à operação, ela canta:

Não podemos ficar parados. Em nossa ousadia, sempre temos razão. Nosso trabalho é uma questão de honra. É uma questão de valentia e de glória. Se está inclinando acima da máquina ou está cortando uma rocha, um lindo sonho, ainda pouco claro, já está chamando você para avançar. Nós não temos barreiras, no mar e na terra. Nós não temos medo de gelo ou nuvens. A chama da nossa alma, a bandeira de nosso país, levaremos conosco através dos mundos e dos séculos.

Em determinado momento, apesar de suja e cansada, Tanya observa a operação das máquinas atenta, porém com orgulho. Sob os olhares dos colegas e sob a brisa do vento a partir da janela aberta, ela fica satisfeita com o novo recorde, delimitado pelo relógio na parede que marca o tempo. Ao sair da fábrica, é saudada tanto pelas operárias ligadas ao Konsomol quanto pelos diretores, assistentes, o engenheiro Aleksei e a comissária Maria. Entre lances de flertes e desencontros, a figura de Tanya começa a ganhar moldes de heroína do movimento stakhanovista.

Mas o próprio filme revela algo que talvez não fizesse parte das intencionalidades oficiais. Durante sua jornada para bater o recorde, Tanya é auxiliada por algumas de suas colegas tecelãs, ajudando no abastecimento dos teares e no seu manuseio. Esse fato não é uma invenção do diretor do filme, mas uma realidade existente nas mais diferentes tentativas de recordes por jornada: a participação de mais trabalhadores no processo, e não apenas de um que ganhará os ‘louros’ da vitória. De acordo com Marcílio Rodrigues Lucas,

A pesquisa de Pasquier revela que as irmãs (Mariia e Evdokiia Vinogradova) consolidaram a marca de 216 teares por operária. Novamente a questão: Como foi possível tamanha diferença? No momento em que cada operário era responsável por 24 teares, o conjunto de 216 teares ficava, então, na responsabilidade de 9 operários qualificados, que tinham a ajuda de 4 mecânicos auxiliares. Quando alcançaram a marca de 216 teares, cada irmã Vinogradova não estava exatamente sozinha, já que cada Vinogradova era a única considerada qualificada de uma brigada que contava com mais 12 auxiliares: 4 mecânicos assistentes; 4 trabalhadores responsáveis pelo carregamento das máquinas; 2 operárias responsáveis pelo acompanhamento dos fios e outras 2 encarregadas de religar os fios rompidos (Pasquier, 1937, p. 33). Numa brigada como essa, a operária stakhanovista tem a função de supervisionar os 216 teares dispostos num espaço de cerca de 300 metros. Um número tão grande de teares sob responsabilidade de apenas uma operária só foi possível através - além da ajuda de 12 auxiliares ‘invisíveis’ - de uma mudança na disposição das máquinas e consequentemente no itinerário de supervisão das mesmas - esse era o segredo das irmãs (Lucas, 2015, p. 199-200, grifo do autor).

Entretanto o entusiasmo dura pouco. Na cena seguinte, Tanya aparece chorando, após ler a notícia de que uma tecelã de outra fábrica - Nyura Zvantsera - bateu o recorde de produtividade operando 200 teares mecânicos. Mas, nesse momento, Maria Sergeevna chama-lhe a atenção energicamente, questionando se trabalha para si ou para o Estado, e diz que deve se orgulhar pela colega ter produzido tanto quanto ela. Arrependida, Tanya se recupera do choque, acompanha Maria no telegrama de congratulações para Nyura e anuncia uma nova tentativa de recorde, agora com 240 máquinas.

Esse trecho é muito pertinente, pois apresenta um aspecto importante a ser observado no movimento stakhanovista: a competição, mesmo que velada. Embora esta seja contraditória, o apelo ao ego e ao clima de disputa entre os próprios trabalhadores foi visto como uma oportunidade de se avançar, cada vez mais, nos recordes de produção.

Mas a grande notícia chega. Tanya será agraciada com uma medalha, a Ordem de Lênin, como heroína do trabalho da União Soviética. Enfim, o reconhecimento oficial por meio de uma condecoração, uma das mais importantes do Estado soviético. E, finalmente, ela irá conhecer Moscou.

Como se trata de uma comédia musical, o filme não poderia deixar de usar os recursos sonoros e visuais específicos desse gênero fílmico para também passar mensagens ao público. Após ser condecorada, Tanya começa a cantar: “Posso me tornar engenheira, vou estudar todas as ciências”. Em seguida, a canção discorre sobre como uma garota vinda do campo, empregada de uma patroa, suja e analfabeta, pôde superar sua condição, não com a ajuda de uma feiticeira ou fada, mas sim de uma camarada do partido (em referência à Maria Sergeevna).

Ela me ajudou, me sugeriu como encontrar meu destino. Nos momentos mais difíceis ela permaneceu junto no meu caminho. E trabalhou excelente, como ensinou Stakhanov. E Kalinin pessoalmente concedeu a medalha à Cinderela.

Anos depois, na abertura da Exposição Agrícola da União, realizada em 1939, vemos que Tanya se tornara engenheira e deputada do Conselho Supremo (o ápice político de uma stakhanovista). Discursando, declara: “Nosso mundo foi criado para a glória! Só em alguns anos foi feito o trabalho de séculos! E nossas estrelas escarlates brilham sem precedentes sobre todos os países e oceanos, como um sonho que se torna realidade!”. Em seguida, nova canção.

Nesse ponto, o filme apresenta os ganhos pessoais - como também os privilégios - obtidos pelos participantes do movimento stakhanovista. Não apenas o status social e político (medalha de heroína e deputada), mas também os ganhos financeiros e particulares como adicionais em pagamentos, abonos, apartamentos, automóveis e férias especiais. Mas, para além dos ganhos materiais, o prêmio maior é o reconhecimento ilustre na sociedade e um lugar garantido no ‘panteão’ dos heróis da União Soviética.

Os stakhanovistas se multiplicavam e se tornavam célebres: suas fotos eram expostas nos locais de trabalho e divulgadas em jornais, juntamente com o relato dos recordes; eram convidados para eventos e cerimônias comemorativas ou de recepção de expedições de estrangeiros, comumente reservados à ‘elite’ soviética; desfilavam nas ruas em datas especiais - como o 1º de maio - portando placas com os números referentes aos seus recordes de produção; viajavam pelo país fazendo palestras em que relatavam seus feitos e estimulavam a emulação socialista; reuniam-se com lideranças políticas, responsáveis da economia, professores, pesquisadores, escritores e artistas - e, em casos especiais, com o próprio Stalin. Em síntese, apesar de não possuírem praticamente nenhuma influência política, eram reconhecidos e tratados como celebridades por parte da população e, principalmente, pelos líderes políticos do regime (Lucas, 2015, p. 204, grifo do autor).

Ao final do filme, Tanya se reencontra com Aleksei. Os dois saem em passeio pelos jardins da exposição. E, em frente ao monumento ‘Operário e Mulher Kolkosiana’14, finalmente ficam juntos. Tal cena é bem simbólica, pois é o ápice da simbiose da personagem-título com o ideal coletivo representado pelo monumento. A mensagem é clara: os desejos pessoais são perfeitamente combináveis com o bem coletivo do povo, desde que esses desejos estejam de acordo com o ethos almejado pela nova sociedade.

Considerações finais

É evidente que ainda não podemos concluir com exatidão que o cinema soviético foi um dos principais instrumentos de construção dos aspectos culturais e ideológicos da nova sociedade socialista que se edificara na União Soviética. Para isso, necessitaríamos de uma longa e coletiva jornada de pesquisas, muitas delas em andamento. O estudo sobre um único filme nos limita a essa conclusão. No entanto é possível perceber - por meio da análise de um caso - os usos políticos e pedagógicos da sétima arte como ‘um dos instrumentos na construção de novos comportamentos, padrões e, por fim, de um novo ethos socialista na terra dos soviets.

Essa intencionalidade operada pelos estúdios cinematográficos dirigidos e mantidos pelo poder estatal não se restringiu a um desejo materializado por tal controle, mas fez parte de um projeto político efetivo, que envolveu profundamente os setores responsáveis pela educação oficial na União Soviética, por meio do Comissariado do Povo para a Instrução Pública.

Ao analisarmos o contexto político no período histórico em questão, percebemos que as tarefas educacionais não se materializaram apenas nos ambientes escolares clássicos (como a escola oficial); elas abrangeram outros espaços culturais que, igualmente, cumpriam um papel formativo. O cinema, como uma mídia de massas com grande alcance social e geográfico, enquadrou-se nessa situação, principalmente se levarmos em consideração a função pedagógica que essa arte obteve por meio de sua vinculação ao ‘Ministério’ da Educação.

Como apontado, o filme Tanya enquadra-se no campo dessas intencionalidades. A obra de Grigori Aleksandrov buscou, mediante as características do gênero da comédia e do musical, levar ao grande público os novos padrões - ou tipos ideais - de comportamento dos homens e mulheres na sociedade socialista, de forma palatável. Mesmo que não tenha sido imposto, seu roteiro e a sua condução exemplificam as novas simbologias e representações que estavam se tornando hegemônicas na URSS, contribuindo, assim, para a sua consolidação. A nova percepção que a classe trabalhadora teria de si e de seu universo (fabril e social) era fundamental para a sobrevivência do regime, não apenas nos aspectos político ou cultural, mas, sobretudo, no econômico, especialmente no contexto dos planos quinquenais e no necessário aumento da produtividade industrial e agrícola. Isso se torna claro ao observarmos a protagonista em sua luta para se superar nos desafios de produção, estimulada, sobremaneira, pela propaganda oficial do regime em torno do movimento stakhanovista. O filme, portanto, cumpre o papel de reprodução dessa campanha nacional, alcançando parte significativa da população e auxiliando na propagação da corrida pelos recordes nas repúblicas soviéticas, transformando o interesse coletivo da nova sociedade em um desejo a ser almejado pelos trabalhadores.

No entanto as obras cinematográficas, sendo documentários ou películas ficcionais (históricas, cotidianas ou futuristas) são carregadas de contradições em seus roteiros. Como em tantas outras indústrias do cinema, a soviética também era carregada desses contrassensos, muitas vezes, demonstrados em furos de enredos oficiais ou em cenas que destoam do discurso institucional, os quais, por sua vez, são muito reveladores, pois apresentam informações que, em muitas ocasiões, dizem mais do que as intencionais.

No campo da educação, isso ganha uma importância a mais, se levarmos em consideração que esse ‘fenômeno social’ se constrói, geralmente, sob grandes contradições em sua realidade prática. O processo educacional desenvolve-se a partir de relações, conflitos, embates, avanços e retrocessos, de acordo com a dinâmica social, econômica e política na qual se encontram seus personagens, dentro e fora da escola. No caso de Tanya, esse processo de ‘socialização política’ (Bittar & Ferreira Jr., 2020) materializa-se na simbologia da fábrica, em suas relações internas e externas, sofrendo influências do conjunto de poderes e das reações de seus espectadores. E o formato cinematográfico permite que tais mensagens - intencionais ou não - sejam auferidas pelo grande público, obtendo disso seu caráter educacional e pedagógico, mesmo que informal.

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1Em russo, a palavra ‘Educação’ também traz estes significados: iluminismo, esclarecimento e formação (Bo, 2019). Vale a pena fazer essa observação no contexto soviético, ao considerar a educação não apenas como constitutiva da cultura, mas também trazendo o mesmo significado.

2Proletkult é a abreviatura da expressão proletarskaya kultura (cultura proletária). Foi um movi mento cultural que surgiu na Rússia em 1917. Entre seus criadores, estão Alexander Bogdanov, Anatoli Lunacharsky e Mikhail Gerasimov.

3O próprio comissário da educação, Anatoli Lunatcharski, escreveu o roteiro para o filme Unir-se (Uplotnenie), de 1918, considerado um dos primeiros filmes da era soviética (Ferro, 1992).

4Usaremos, aqui, o conceito de ethos como um conjunto de valores e modos de comportamento coletivo e social que formam ou determinam o caráter ou a identidade de uma sociedade. Numa perspectiva materialista dialética, podemos entender que esse conjunto de valores possui um caráter ideológico, estabelecido - mesmo que contraditoriamente - pela classe social que exerce a hegemonia em determinada sociedade. “Embora mais complexo, também nas ciências duras existem tensões que não podem ser negligenciadas: um ethos burguês orienta muitas das escolhas epistemológicas e das problemáticas científicas” (Leher, 2017, p. 71).

5“[...] a omnilateralidade se refere à formação do homem mesmo, ou seja, do homem que se libertou das determinações da sociedade burguesa, a qual nega sua genericidade” (Souza Jr., 1999, p. 102).

6Novaya Ekonomiceskaya Politika (Nova Política Econômica), proposta por Lênin em substituição ao Comunismo de Guerra e para reestabelecer alguns princípios do mercado livre, objetivando a recuperação econômica da URSS. Viria a ser substituída pelos Planos Quinquenais a partir de 1928.

7“No domínio da instrução pública, por exemplo, a população alfabetizada cresceu de 32%, em 1920, para 40% nos fins de 1926. Nas aldeias funcionavam mais de 22 mil salas de aulas; o rádio e o cinema começaram a incorporar-se aos hábitos dos camponeses” (Ferreira Jr. & Bittar, 2020, p. 122).

8Departamento Panrusso de Foto e Vídeo, que depois mudou seu nome para Gosudarstvenyy Komitet po Kinematografii (Goskino: Comitê Estatal de Cinematografia).

9As informações sobre a sua criação são controversas. Em sites como a Wikipédia, aparece o ano de 1920 como o de fundação do estúdio Mosfilm. Já no seu site oficial, há uma apresentação de seu histórico, apontando o processo de unificação de vários pequenos estúdios locais, em 1923, e o lançamento do filmeOn the Wings Up, dirigido por B. Mikhin, em 30 de janeiro de 1924, como as bases de seu surgimento (História da Mosfilm, n.d.).

10Informações técnicas obtidas no site https://www.imdb.com/title/tt0033119/, consultado em 01/05/2021.

11O movimento stakhanovista surgiu na União Soviética em 1935, no contexto do II Plano Quinquenal, e teve seu nome retirado do mineiro Alexei Stakhanov, que, em sua jornada de trabalho em 31 de agosto, bateu o recorde de extração de carvão, obtendo 104 toneladas, 14 vezes superior à norma de produção estabelecida em sua mina, a Central Irmino. Estimulado por essa façanha, o governo soviético estimulou o movimento, no qual operários e camponeses tentariam bater seus recordes de produtividade.

12O livro História do cinema russo e soviético (1962) (ou Cinema russo e soviético) é uma publicação da Cinemateca Brasileira. Não possui ficha catalográfica e não tem paginação.

13Filme de 1934, dirigido pelos irmãos Vassiliev;

14Trata-se de uma escultura de 24,5 metros criada pela escultora Vera Mukhina para ser a peça central do pavilhão soviético da Exposição Internacional de Paris em 1937. Exemplo do realismo soviético (artes), ela representa a união dos operários e camponeses, da cidade e do campo, os quais, ao cruzarem os seus instrumentos de trabalho - a foice e o martelo -, formam o tradicional símbolo socialista. No ano seguinte, a gigantesca escultura foi transportada para Moscou (Gervilla, Leote, & Reyes, 2018).

17Rodadas de avaliação: R1: três convites; três avaliações recebidas

18Como citar este artigo: Hiro, C. H. D. A escola, a fábrica e o cinema: uma reflexão sobre a educação e a indústria soviética a partir do filme “Tanya”. (2022). Revista Brasileira de História da Educação, 22. DOI: http://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e227

19Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Recebido: 08 de Junho de 2021; Aceito: 12 de Novembro de 2021; Publicado: 05 de Setembro de 2022

*E-mail: cassiodiniz@hotmail.com.

Cássio Hideo Diniz Hiro: Graduado em História e Doutor em Educação, é professor do Departamento de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (DCHSA) da Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG - unidade Campanha. Além da História da Educação Socialista, também pesquisa sobre a História Social do trabalhador docente e do movimento sindical de trabalhadores em educação. É líder do GRUHISED - Grupo de Pesquisa em História Social da Educação: discursos, práticas e experiências coletivas e organizacionais. E-mail: cassiodiniz@hotmail.com https://orcid.org/0000-0001-7551-4688

Editor-associado responsável: Ana Clara Bortoleto Nery (UNESP - Marília) E-mail: ana-clara.nery@unesp.br https://orcid.org/0000-0001-6316-3243

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