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Revista Brasileira de História da Educação

versión impresa ISSN 1519-5902versión On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.22  Maringá  2022  Epub 23-Sep-2022

https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e229 

Artigo Original

O cuidado de si tupinambá em narrativas de viajantes franceses no Brasil Colonial (séculos XVI e XVII): discursos sobre processos educacionais

The tupinambá care of the self in French travel books during the colonial Brazilian history (XVI and XVII centuries): discourses based on educational processes

El cuidado de si tupinambá en las narrativas de los viajeros franceses en el Brasil colonial (siglos XVI y XVII): discursos sobre procesos educativos

Anderson De Carvalho Pereira1  * 
http://orcid.org/0000-0002-1485-0095

1Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Itapetinga, BA, Brasil.


Resumo:

O artigo mostra a análise de dois relatos de viajantes franceses que passaram pelo Brasil Colonial, nos séculos XVI (Jean de Léry) e XVII (Yves D’Évreux). Notou-se um jogo com a alteridade que fundamentou o objetivo principal de investigar de que modo as reflexões desses europeus sobre o cuidado de si tupinambá veicula discursos sobre as raízes da educação brasileira. Para isso, foram analisados recortes das duas obras conforme uma perspectiva histórico-discursiva. Concluímos que os modos dos tupinambás educarem os filhos são lidos pelos viajantes pelo paradigma do pecado, da conversão e da pureza (sacralidade e profano) do corpo social.

Palavras-chave: história da educação brasileira; raízes da educação brasileira; Jean de Léry; Yves D’Évreux

Abstract:

The article shows the analysis of two books of accounts of two french travelers who passed through Colonial Brazil, in the 16th century (Jean de Léry) and in the 17th century (Yves D’Évreux). A game with alterity was remarked, which founded the main objective of investigating how the reflections of these Europeans on Tupinambá indigenous care convey discourses about the roots of Brazilian education. For this, cutouts of the two works were analyzed according to a historical-discursive perspective. We conclude that the ways of indigenous Tupinambás to educate their children are read by travelers through the paradigm of sin, conversion and purity (sacred and profane) of the social body.

Keywords: history of brazilian education; roots of brazilian education; Jean de Léry; Yves D’Évreux

Resumen:

El artículo muestra el análisis de dos libros de relatos de dos viajeros franceses que pasaron por el Brasil colonial, en el siglo XVI (Jeande Léry) y en el siglo XVII (Yves D’Évreux). Se anotó un juego con la alteridad, que fundamentó el objetivo principal de investigar cómo las reflexiones de estos europeos sobre el cuidado indígena tupinambá transmiten discursos sobre las raíces de la educación brasileña. Para ello, se analizaron extractos de las dos obras desde una perspectiva histórico-discursiva. Concluimos que las formas de los indígenas Tupinambás de educar a sus hijos son leídas por los viajeros a través del paradigma del pecado, la conversión y la pureza (sagrada y profana) del cuerpo social.

Palabras clave: historia de la educación brasileña; raíces de la educación brasileña; Jean de Léry; Yves D’Évreux

Introdução

Há uma polissemia no uso do termo ‘indígena’. Indígena recupera, na América Latina e no mundo afora (ver aborígene), tanto o sentido de ‘caminho para as Índias’ quanto sua sintomática reiteração do campo semântico da ‘indigência’, o qual, sob olhar do colonizador europeu, indica outro tipo de ‘gente’, em uma reprodução de sentidos a ser decifrada.

Essa polissemia é significada em relatos de viajantes do período colonial brasileiro, em um campo de simbolização do Outro, que aparece nos relatos de Jean de Léry (1961) e de Yves D’Évreux (2002) ao descreverem o cuidado indígena consigo mesmo. Para os jesuítas, o ‘índio’ é humano, mesmo que longe do humanismo católico (Daher, 2018, p. 12, grifo do autor), ainda que

[...] em textos jesuíticos coevos, os índios são tidos, de modo geral, por ‘cães’, ‘porcos’, ‘negros’ e ‘gentios’, escolasticamente definidos por sua inferioridade natural, como bestas por natureza, dotados de força física, de entendimento deficiente, e incapazes, devido à sua inconstância e à prática de vícios contra natureza, do exercício de polícia.

Essa óptica do ‘cuidado de si’ (Foucault, 2006), sobre a qual discorreremos mais adiante, está imersa em um campo de simbolização aqui abordado como ‘discurso do confronto’ (termo emprestado de Orlandi, 2008). É por caminho, inclusive, afim a este que, conforme Lestringant (2000), Léry (1961) forneceu antecipadamente ao antropólogo Lévi-Strauss um repertório de descrições de indígenas em um rico espelhamento de um passado colonial quase mítico.

A obra Viagem à terra do Brasil, do calvinista huguenote Jean de Léry (1961), originalmente publicado em 1578, e os dois tratados que compõem a edição que utilizamos do livro Viagem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 e 1614, de Yves D’Évreux (2002)1, não têm apenas em comum a nacionalidade dos dois escreventes e sua devoção ao cristianismo; tem, também, o modo de descrever e abordar a promessa de uma França Antártica, conforme denominação de Villegaignon (Montaigne, 1972), em uma perspectiva que inclui a preocupação com o modo pelo qual os nativos cuidam de si. No livro de Léry (1961) e no livro de D’Évreux (2002), as reflexões sobre os modos dos indígenas tupinambás educarem os filhos e conceberem a infância, a mocidade e a velhice incluem a detalhada descrição de cenas do cotidiano e de rituais de passagem.

Vale lembrar que em 1615, um ano após retorno, em 1614, do missionário Claude d’Abbeville à França, a continuidade de seu relato é sugerida pela edição de ‘Continuação da história das coisas memoráveis acontecidas no Maranhão nos anos 1613 e 1614 - segundo tratado’, de D’Évreux, cujos exemplares foram destruídos na França, com exceção de um exemplar oferecido ao rei Luís XIII, no qual os nativos teriam relatado seu desejo de sujeição (Daher, 2018).

O encontro com o duplo de si mesmo, que constitui os fundamentos da alteridade, incluindo-se esse detalhamento das descrições sob a óptica de missionários cristãos, aparece em vários autores (Nunes, 1994; Lestringant, 2000; Orlandi, 2008; Daher, 2018). Todos esses autores mostram como se deu, desde fins do século XV, a constituição de um duplo de si mesmo pela leitura, o que inclui a consolidação da noção de intimidade e a reinvenção de si mesmo, em um patamar da alteridade da escrita sobre o oral e em um campo semântico cujo valor histórico-político é o de um espelhamento ao nativo acerca de uma imagem de si mesmo, construída também no alcance do alargamento de uma objetivação da conduta.

É a partir da configuração de um olhar desses narradores de viagens sobre o lugar do nativo tal como aparece em seus relatos que temos por norte recuperar esse debate acerca da constituição desse duplo de si mesmo, da alteridade constituída acerca de uma educação infantil, de outras faixas etárias e da questão dos papéis sociais. Essa recuperação serve para fundamentar nosso objetivo principal, o de responder à questão: de que modo as reflexões desses europeus sobre o cuidado de si entre os tupinambás veiculam discursos quanto às raízes da educação brasileira? Para isso, analisamos recortes das duas obras acima descritas, mas, antes, apresentamos, com mais detalhamento, a conjuntura de sua publicação.

As narrativas de viajantes e sua conjuntura: quem as escreve e para quais leitores?

As narrativas de viagens desafiam o pesquisador a deslocar-se de lugar e a analisar recortes da memória vivida com o propósito de alcançar uma profundidade que leva em conta que nenhuma dessas narrativas de missionários é construção isolada.

Por séculos distintos, os europeus descreveram regiões diferentes da costa brasileira conforme o ponto de vista de católicos cristãos e do que os aproxima dos protestantes, em um mosaico de distanciamento comum em relação aos nativos ou de distanciamento entre os vários subgrupos, de ambos os lados. Alianças e rupturas, sejam franco-tupinambás, como a liderada por Daniel de la Touche na ilha Saint-Louis no Maranhão (Toledo & Barbosa, 2017), sejam luso-tupiniquins, movimentaram alteridades. É notório que essa aproximação também não é homogênea, como explica Massimi (2019) ao demonstrar, por exemplo, a não concordância de alguns jesuítas quanto à escravidão, embora, como aponta Metcalf (2019), muitos dos jesuítas enviados nas primeiras expedições tenham aceitado a violência das campanhas de Mem de Sá.

Com essas considerações, adiantamos que não foi nosso propósito estabelecer pontos generalistas de representação dos relatos, uma vez que não se pode ignorar que há uma rede de significados e de sentidos na qual se estabelecem estratégias de interlocução a serem gradualmente mais rediscutidas pelas diversas áreas do conhecimento.

A respeito de incorrer em generalizações, ao analisarem livros, teses e dissertações sobre aspectos pedagógicos das missões franciscanas no Maranhão e Grão-Pará no século XVII, Toledo e Barboza (2017) detalham diferenças entre essas missões e a pluralidade do grupo sob essa mesma denominação. Esses meandros nos apontam que pesquisas sobre fontes análogas às dos livros que veiculam os relatos aqui analisados podem, cada vez mais, mostrar diferenças entre o que se denomina narrativas de viajantes.

Campo que não se esgota, o texto narrativo em questão tem valor tanto cultural e histórico como teológico e literário; em parte, porque evoca imagens, incluindo algumas ilustrações ali dispostas ou que podem ser evocadas no leitor, de modo que resgatam uma parcela da herança medieval. É a herança da imago-palavra da qual o missionário faz uso na tentativa de convencimento e de catequização, pela via da descrição. Quanto ao valor das imagens que defendemos atravessar o texto narrativo em tela, lembramos que, conforme Schmitt (2007, p. 45, grifo do autor), arte e imagem não se opunham ao longo do medievo e até a baixa Idade Média, mas levavam em conta

[...] os três domínios da imago medieval: o das imagens materiais (imagines); o do imaginário (imaginatio), feito de imagens mentais, oníricas e poéticas; e enfim o da antropologia e da teologia cristãs, fundadas numa concepção do homem criado ad imaginem Dei e prometido à salvação pela Encarnação do Cristo imago Patris.

Em outra conjuntura histórica, a dos relatos aqui analisados que se estendem do baixo medievo renascentista à incipiente modernidade, a imagem persiste como eixo no texto narrativo. Adiantamos, para corroborar essa afirmação, duas passagens de Léry (1961, p. 107-108) que ilustram essa herança imagética na narrativa:

Se quiserdes agora figurar um índio, bastará imaginardes um homem nu, bem conformado e proporcionado de membros, inteiramente depilado, de cabelos tosquiados como já expliquei, com lábios e faces fendidos e enfeitados de ossos e pedras verdes, com orelhas perfuradas e igualmente adornadas. Para dar uma justa idéia dos artifícios, já descritos, de que usam os selvagens, para adornar e enfeitar o corpo, seriam necessárias muitas figuras a côres, o que exigiria um livro especial.

A herança desses domínios nas narrativas de viajantes aqui apresentadas, com destaque para os dois últimos tipos de imagem descritos por Schmitt (2007), nos permitiu compreender os relatos analisados de forma não dissociada de um anteparo imagético-narrativo, no qual a visão do missionário está embebida da herança majoritária da filiação cristã de modo geral. É sabido que as nuances de diferenças mais sutis entre calvinistas, como é o caso de Jean de Léry (1961), e de católicos, como é o caso de Yves D’Évreux (2002), são relevantes, sobretudo, por conta da marca contrarreformista.

Metcalf (2019) explica que a força das imagens ilustrativas de muitos desses relatos, impregnadas no imaginário durante séculos, decorre de que tratavam de uma horda indistinta de canibais imbuída de uma mistura de desenhos vívidos e distorção da apresentação de eventos de canibalismo, uma vez que provavelmente eram ilustrados tendo por base relatos distorcidos por intermediários que com estes muito lucravam e contribuíam para uma exploração mais racional.

Tal se nota, uma espécie de protoantropologia da perscrutação parece ter ganhado espaço em relatos de viajantes a partir do século XV, como nas missões franciscanas no Maranhão e em outras partes do atual Nordeste brasileiro, cujas “[...] explicações de mundo transitavam de uma visão teocêntrica para uma visão antropocêntrica” (Toledo & Barboza, 2017, p. 62).

Podemos defender essa tese também com base nos comentários do historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda (2007, p. 18) acerca de Colombo, pois este traduzia “[...] os gestos e mímicas dos índios que interpelava [...]”, tanto ratificando quanto duvidando de Marco Polo e de Hygden e suas descrições; sobre os corpos no primeiro autor e a descrição no Ymago Mundi de Hygden ou de Andrèa Bianco sobre a localização do paraíso. Ao longo do século XVI, algumas discordâncias alargavam narrativas míticas nas quais se ressignificavam epopeias clássicas, como no caso dos relatos sobre ‘campanhas guerreiras’, para as quais as amazonas levavam, como se supunha, “[...] o seio direito descoberto” (Holanda, 2007, p. 30).

Essa semelhança imagética fora herdada de um longo período e atualiza a cultura medieval visual; herança da ligação entre palavra e imagem, tal como se nota no século XIII, com ressalva para que “[...] numa história geral, nem sempre há acordo entre as diferentes formas simbólicas ou as diferentes linguagens de uma sociedade: podem também existir contradições ou mesmo conflitos entre eles, numa história em que a unidade é sempre problemática” (Schmitt, 2007, p. 32).

Essa tentativa de tradução detalhada para o interlocutor aparece nos relatos de Jean de Léry (1961) e de Yves D’Évreux (2002). Notamos o fascínio e a capilaridade humanista de cada um desses relatos a capturar o leitor de narrativas de viajantes. Cada um desses missionários franceses tenta perscrutar cada detalhe do cotidiano experimentado, de modo a aproximar o leitor da viva presença daquela realidade, ainda que sob a égide dos dogmas cristãos, por vezes, revisitados.

Lestringant (2000) explica que Léry era um calvinista huguenote que não queria achar que o Brasil fosse uma nação incipiente, mas apresentar, em seus relatos, um lugar definidor de uma nação já existente; não há inocência em seu relato nem a pretendia buscar. Na linha de uma ‘ilustração arqueológica’, Farago (2017), porém, analisa o modo pelo qual, nesta obra de Léry, se trata o nativo na forma de objeto, sendo que o narrador francês foi um dos pioneiros em classificá-los conforme a aparência visual. Objeto do espectador com valor de peça integrada à natureza, o retrato não apresenta um ator disposto a conversar com o espectador. Ou seja, a despeito daquela intenção, Lestringant (2000) julga Léry etnocêntrico porque, por exemplo, o viajante francês não considera signos não alfabéticos como parte do sistema de escrita. A este também é atribuída, conforme explica Daher (2018), a ‘invenção do selvagem’ (expressão utilizada pela autora).

Sobre D’Évreux, o que podemos afirmar é que, ao analisar um texto de sua autoria famoso por mostrar a conversão de Pacamão, Orlandi (2008) ensina que há uma defesa de que se transformou Pacamão em um novo homem; são colocadas palavras de um falante europeu para que este líder fale e reconheça a ‘superioridade’ de modo que as qualidades descritas se diluem em ‘defeitos’. Nisto reside o papel do intérprete. A partir dessa visão de Orlandi (2008), podemos defender que o intérprete não era somente aquele que fazia o papel de tradutor das línguas nativas para o europeu e vice-versa mas também aquele que ocupava o lugar de, mesmo usando a ‘mesma’ língua, reproduzir distribuições de sentido marcadas pela dominação.

E aquele que, como ensina Metcalf (2019), somou forças à dominação por meio do universo representacional no qual a mediação (via cartas, mapas e crônicas) se inseria em um domínio maior pelo poderio de um tipo de universo simbólico da escrita.

Esse universo era alimentado por crenças e expectativas como a de D’Évreux, junto com o missionário Claude d’Abbeville, em uma quase utópica aliança franco-tupi, o que lhes rendia a representação de tal aliança nos relatos. D’Evreux, particularmente, defendia que esses povos originários apresentavam uma propensão a serem civilizados à maneira francesa, indo na contramão da alegoria da inocência. Então, essa abordagem é parte do projeto civilizador francês, continua a autora, do qual fazem parte prescrições normativas por escrito (Daher, 2012, 2018).

Bruckhardt (1991) aborda tal conjuntura pelo destaque à concepção de homem e de logística italiana nas navegações ao mencionar as viagens de Pinzón, Duarte Pacheco e Cabral. Attali (1992), por sua vez, ensina que o deslumbramento com as novas terras é também um redescobrir-se e um modo de redefinir a sacralização que, mesmo nos textos de Lutero, não desconsideram por completo o valor imagético católico, enquanto Lyons (2012) enfatiza o paralelismo dessas imagens ao descrever outros povos.

Essa riqueza imagética na descrição e mesmo na veiculação de imagens aparece na ilustração do líder tupinambá Kuñambeba e de rituais em grupo ou de imagens exóticas, como os peixes voadores, nos relatos de Léry (1961). O gosto por esta leitura, como explica Daher (2018), explica o sucesso editorial deste missionário, cuja obra foi reimpressa mais de uma dezena de vezes em latim, ao circular entre os católicos, e no vernáculo francês.

A fabricação em série do livro impresso amplia a difusão da versão católica dos textos sagrados, difusão esta acompanhada de gramáticas latinas que conviveram, desde tão cedo, com tipografias civis de comerciantes e intelectuais contra essa imposição da fé (Attali, 1992); havia também mensagens contra a missa católica, por meio de panfletos impressos que apareceram em grande número em Paris, no início do século XV (Lyons, 2012).

Também sobre o universo das práticas letradas desse período, as inúmeras anotações de Colombo datadas do período pouco anterior à sua viagem decisiva incluem narrativas diversas e descrições imagéticas, como a edição de 1484 de Conhecimento do mundo, de Marco Polo. Como se nota, a leitura de narrativas de viajantes já fazia parte da rotina europeia, antes mesmo de se destacar nos séculos XVII e XVIII (Attali, 1992; Lyons, 2012).

Ao longo do período renascentista e das navegações, propagam-se pelo texto impresso costumes e demarcação de territórios, para atender a distintos propósitos de colonização e catequização, misturando aspectos mais literários (o fantástico) e o científico; nesse período, conceder a palavra ao nativo é visto pelo relator como da ordem do impossível (Nunes, 1994).

Para Nunes (1994, p. 43), a repetição de acontecimentos nas navegações cria condições de leitura a partir de um retrato “[...] legível, codificável e sociável [...]”, de modo que

[...] [n]o contexto europeu, trata-se de construir as evidências de que existe um mundo ‘lá’, de que esse mundo é tal como se o descreve e que é preciso, ou possível, colonizá-lo. Para os leitores europeus, portanto, permite-se ‘que ele veja o que não pode (ou não podia) ver’, e que isso que ele não pode (ou não podia) ver lhe seja, no entanto, bem familiar e assimilável na medida do possível (p. 45, grifo do autor).

Para o leitor europeu, esses relatos chegam com valor de verossimilhança dado pelo testemunho do narrador como cúmplice hic et nunc dos acontecimentos narrados, mas não de forma livre. Isso ocorre porque se moldam, em parte, a uma gama de acontecimentos europeus anteriores (factuais ou fictícios) pelos quais se tenta criar certa familiaridade com o leitor e se desobrigar de provar todo o acontecido (Nunes, 1994), com tal peso de compromisso com uma verdade de si que influencia mais adiante os tratados e compêndios de conduta de príncipes e de anônimos, como explica Haroche (1998); ou seja, as condutas exigirão, cada vez mais, uma clareza em sua prescrição para garantir transparência na subjetividade moderna nos séculos vindouros.

Ao não perder de vista a consolidação dessa conjuntura na qual se constrói o olhar europeu para a conduta, de início mais restrito à esfera de seu universo simbólico e estético, e depois alargado além-mar para o estabelecimento de uma objetivação, poderíamos indagar sobre qual tipo de Educação, na perspectiva do cuidado de si, aparece nos relatos dos viajantes franceses mencionados.

Questões metodológicas

Como eixo central, este artigo discute alteridade. O olhar do outro. O olhar sobre si mesmo a partir do olhar do Outro. E seus vários desdobramentos especulares. O jogo do olhar perpassa as discussões de Montaigne e Pico della Mirandola (Burckhardt, 1991) no século XV, acerca do ‘atraso’ e do ‘moderno’ na baixa Idade Média, e se reconfigura ao longo dos séculos a cada conjuntura histórica ou cultura. Nas humanidades, o olhar que mergulha na opacidade e que duvida da sobreposição de transparências (Orlandi, 2008) exige direcionamento investigativo.

Em grande medida, este eixo indica a necessidade de uma abordagem que, a nosso ver, tenha por base a abordagem de autores da denominada Nova História por estarem comprometidos com o cotidiano. Afinal, os relatos foram produzidos na labuta da escrita e da leitura cotidianas. E como questão inescapável e fundamental, também o jogo com o sentido, no campo da linguagem como exercício de interpretação. É este caminho que nos serviu para tratar, por uma abordagem histórica e discursiva, a análise aqui apresentada, em que atrelamos a coleta de recortes dos relatos aos exercícios de interpretação ali contidos, os quais indicam que os europeus

[...] procuram absorver as diferenças, projetando-nos como cópias em seus imaginários, cópias malfeitas a serem passadas a limpo; enquanto, do outro lado, assumindo a condição de simulacros - imagens rebeldes e avessas a qualquer representação -, os brasileiros às vezes aderem, às vezes não, ao discurso das cópias (Orlandi, 2008, p. 27).

Orlandi (2008) está alertando acima que os relatos em terras brasileiras mostram o nativo como um ser dotado da cultura brasileira, com viés essencialista e a-histórico. A análise proposta pela autora indica que é possível partir do pressuposto de que, no processo histórico, não há uma definição de que o nativo não é ‘X’ em si, mas tem sua posição marcada pelo processo de produção de sentidos em um campo da significação (simbólico), interpretado de um lugar e a partir de uma região do sentido.

Há uma preocupação, portanto, com o modo de produção de sentido. Uma abordagem que mobiliza, no campo da rede semântica, uma visão aberta de língua e interpretação que não se prende a normativas preexistentes e admite que, mesmo que o simbólico seja aberto a outras interpretações que não a dominante do ponto de vista da História, também não se fecha nem se furta à reprodução de teorizações (Orlandi, 2008). Nas palavras da autora:

[...] a produção de conhecimento da América Latina ‘sobre a’ América Latina pode adquirir uma forma crítica de modo a não ser mera reprodução do olhar europeu ou norte-americano e assim por diante. [...] nesse processo discursivo que analisamos, há uma equivalência entre o ‘como o brasileiro é dito’ e a ‘prática de um conhecimento’, ou, dito de maneira mais direta, o ‘como o brasileiro é dito’ importa e determina a prática de um conhecimento (Orlandi, 2008, p. 36, grifo do autor).

Por esse caminho, nosso ‘objeto’ de análise (os relatos de Jean de Léry e Yves D’Évreux) foi analisado como materialidade simbólica que veicula uma interpretação de natureza política sobre a vida cotidiana dos nativos.

Do ponto de vista da investigação dos processos educativos no campo da História da Educação ou das raízes educacionais brasileiras, a educação dos povos originários sob a óptica dos europeus no período colonial pode ser lida alinhada à proposta de Fonseca (2012) de investigar processos históricos que extrapolem o papel do Estado e da Igreja. Apesar das narrativas em tela subscreverem estas instituições de forma indireta, defendemos que, mesmo assim, indiciam um papel deslocado destas últimas, de modo a corroborar a autora. Além disso, o foco desta investigação também descentraliza o protagonismo dos estudos sobre a Companhia de Jesus e as Reformas Pombalinas. Essas narrativas de viajantes indiciam “[...] outras possibilidades de conexão no mundo colonial” (p. 57) de que trata a autora.

Para Wolffromm (1989), a História atual se ocupa do homem antes deixado de lado, portanto, debruça-se tanto sobre perguntas banais como sobre comida e dormir, elementos reveladores de costumes e tabus. No cotidiano, podemos acessar um prisma do imaginário que, em tempos mais recentes, tem aberto o campo de pesquisas sobre memória e História, em perspectiva deslocada de noções outrora aparentemente definidas como arquivo, acervo, documento, fato, em um cenário no qual deixam de aparentar desgaste e superação para receber contornos mais aprofundados. É o que notamos nesta explicação de Duby (1989, p. 42):

Ora, é menos a realidade dos factos que me interessa do que a maneira como as testemunhas, os autores desses grandes textos narrativos tomaram consciência dos fatos que relatam. Eu situo a minha observação a um nível que é o do imaginário colectivo. E, neste domínio, os textos dos historiadores antigos não são os únicos dignos de atenção, mas todo o conjunto de documentos em que se revela o imaginário, a literatura hagiográfica, por exemplo, em resumo, os inumeráveis textos em que se exprime a visão que os homens do passado tinham da realidade concreta.

Por essa via, apostamos que o caminho de análise aqui proposto resgata autores do campo da Nova História como Wolffromm (1989), Duby (1989), Daher (2018), Massimi (2019) e Metcalf (2019); da interface com a Antropologia, como Leistringant (2000) e Farago (2017), e destaca o diálogo com a vertente discursiva de Foucault (2006) e de Orlandi (2008) para acessar parte do ‘imaginário coletivo’ que Duby (1989) explica ser um ponto de convergência entre esses autores para analisarmos os ‘inumeráveis textos’ (expressão deste último) recobertos pelos relatos narrativos aqui analisados por meio de recortes de indícios de natureza venatória (Ginzburg, 1989), ou seja, que permitem recuperar, de modo singular, (parte) de uma narrativa em universo simbólico mais amplo.

Como propõe Orlandi (2008), é o caminho de tratar o documento como discurso no sentido de analisar o viés desse narrador viajante francês exposto a uma opacidade negada por uma transparência e evidência que, em um primeiro momento, construiu sentidos de dominação, mas que agora pode ser revisitada; de modo que, na esteira de Ginzburg (1989), os indícios outrora mobilizados para dominar, agora dispersos novamente, podem servir também para dar voz àqueles que em algum momento foram calados.

Embora não nos tenhamos restringido aos aspectos sociológicos e antropológicos do conhecimento acumulado sobre Léry e D’Évreux, estas últimas observações bem como as que foram feitas anteriormente acerca da conjuntura histórica europeia sobre os leitores desses relatos fazem-se necessárias porque são parte das condições de possibilidade de dizer sobre ‘o índio’, sobre seu modo de cuidado de si e de seus processos educativos. Esse campo das condições de produção dos discursos que provocam efeitos a partir desses relatos aqui analisados permite resgatar, tal como demonstra Orlandi (2008), como os ‘objetos de memória’ indicam processos históricos de confronto e põem em xeque a instituição da História como lugar dominante de produção de sentidos. Isso ocorre porque

[...] [o] discurso histórico estabiliza a memória. Ao se negar, na ordem dos discursos, um discurso histórico sobre o Brasil, ou seja, o estatuto do ‘memorável’, desqualifica-se o Brasil como lugar específico de instituição de sentidos. Produz-se um discurso etnográfico, parte da história européia, esta sim como uma história, ou melhor, a História, a verdadeira, a única (Orlandi, 2008, p. 44).

Portanto, não foi realizada uma análise historiográfica ou documental, embora devamos lembrar o valor específico dessas vertentes em outras pesquisas possíveis com a mesma materialidade. Optamos por uma abordagem discursiva acima apresentada que se fundamenta nessa noção de discurso histórico.

Tratamos de apresentar uma análise que, se não é propriamente antropológica, desta sofre influências; que não é documental, posto que atravessada pelo imaginário daquela conjuntura; é discursiva porque analisa o ‘discurso histórico’ e os recortes interpretativos presentes nos relatos como modos do sentido operar em dispositivos criados nos relatos, na linha do ‘discurso do confronto’ (expressão de Orlandi, 2008); dispositivos detectados por indícios (Ginzburg, 1989) de identificação do povo originário com o europeu. Nossa análise se guia pelo objetivo geral aqui subdividido nas seguintes questões: o que os distancia e/ou aproxima no campo do que se vinha marcando como cuidado de si? Como esses dizeres dos relatos produziram significação e violência simbólica? De que modo uma objetivação do cuidado de si pode ter consolidado um campo de sentidos para atribuição do que se estende (de forma mais ampla) como Educação na/da ancestralidade ameríndia?

Qual cuidado de si, qual alteridade e quais raízes da Educação brasileira?

A análise mostra, mediante vários recortes enumerados, o cotidiano dos tupinambás em meados do século XVI (narrado por Léry) e início do século XVII (narrado por D’Évreux). De modo geral, mostramos de que forma, nesses relatos, há gestos de identificação com o colonizador europeu. Esses processos de identificação indicam o que o indígena é ou não é em relação a este último, como deveria ser ou de que modo o narrador se surpreende ao perceber diferenças e semelhanças; esses processos de identificação estão inseridos em movimentos de violência simbólica, veiculados em discursos sobre ‘o indígena’. Vejamos:

(1) Estes cunumis, ou rapazes, na idade de oito a quinze anos, não ficam mais em casa e nem ao redor de sua mãe, e sim acompanham seus pais, tomam parte do trabalho deles imitando o que vêem fazer (D’Évreux, 2002, p. 129).

(2) eis porque sentem muito seus pais quando eles morrem nesta idade, dando-lhes em sinal de sua dor o nome de icunumi-uaçu-remee-seon, que quer dizer ‘o mancebo morto’, ou ‘o mancebo morto na sua adolescência’ (D’Évreux, 2002, p. 130, grifo do autor).

(3) Quanto ao nome, o pai da criança que eu vi nascer o denominou oropacan, isto é, ‘arco e roda’, pois a palavra se compõe de oropá (arco) e can (corda). Tal como fazemos com os nossos cachorros e outros animais, dão eles às crianças nomes de coisas ou bichos [...] (Léry, 1961, p. 204).

Esse campo da nomeação se instala nos relatos como tentativa de estabelecer equivalência direta, mesmo que haja lacunas na simbolização postas em confronto com o universo europeu. Notamos essa dispersão quando comparamos (1) e (2). A ilusão de equivalência entre ‘cunumis’ e ‘rapazes’ passa para a dúvida sinalizada em ‘mancebo morto’ ou ‘mancebo morto na adolescência’. A descrição feita por D’Évreux em (2) resvala na tentativa de busca de uma descrição que dê conta de construir um referente objetivo, preciso. Como algo escapa, não se encontra nome ideal que seria equivalente em francês, o narrador deixa uma descrição no lugar de um nome. Essa substituição indica a dispersão à qual nos referimos.

Essas manobras discursivas são analisadas por Nunes (1994, p. 68), que argumenta que, sobretudo em Léry, se nota uma “[...] ênfase no caráter objetivo [...] um imaginário científico que se constrói na observação dos costumes e da língua dos índios [...]”, e em que a busca de equivalência do tupi no sistema alfabético e, como mostramos acima, na nomeação, é calçada em um universo do discurso da ciência. Por este circulam recursos como as gramáticas e os dicionários (Nunes, 1994), os quais, por meio de evidências de naturalização, impõem uma dominação pela interpretação da leitura e, como também vemos em Daher (2012), pela escrita.

Fato relevante já notado por Orlandi (2008) é o pot-pourri de palavras indígenas. Destacamos que, ao final da edição de Jean de Léry que consultamos, há um glossário de palavras em tupi e uma gramática resumida do uso desta língua nativa. Todavia, vale lembrar que nossa pesquisa não é sobre as alteridades da língua nacional (português/ tupi, e outras), mas sobre os indícios da objetivação desse contato, na linha do que se pode denominar como um campo das raízes da Educação brasileira do período pré-pombalino.

Em (3), especificamente, vemos uma comparação com ‘cachorros’. Essa busca de equivalência na nomeação retoma a influência, nessa conjuntura, da crença jesuítica (embora se trate de um huguenote calvinista) na ‘inferioridade natural’ que os coloca como ‘cães, porcos’ (Daher, 2018). A zona semântica do nome se liga também a um artefato cultural (‘arco’ e ‘roda’) como parte do corpo e indicia outra concepção de corpo biológico e social. Uma vez que seriam mais próximos da natureza e de objetos/coisas, chegamos à noção de natureza pura e idílica, já comentada aqui pela voz de outros autores (Nunes, 1994; Holanda, 2007; Orlandi, 2008). A seguir, em D’Évreux, ela aparece como a ‘boa mãe destes selvagens’.

(4) [...] cheio de ignorância, de fraqueza e de lágrimas, base de todos os outros graus. A natureza, boa mãe destes selvagens, quis que o menino saído do ventre de sua mãe, se achasse em estado de receber em si as primeiras sementes do natural comum destes selvagens [...]. É muito agradável esta idade dos meninos, e nela podereis descobrir a diferença existente entre nós pela natureza e pela graça: sem fazer comparação, acho-os mimosos, dóceis e afáveis como os meninos franceses, não esquecendo, antes tornando bem saliente, a graça do Espírito Santo concedida pelo batismo aos filhos dos cristãos (D’Évreux, 2002, p. 129).

Em (4) vemos a filiação de uma rede de sentidos tecida, cuja referência é a ‘natureza’, a ‘boa mãe destes selvagens’. Isso marca como referência maior ‘natureza’ e ‘bondade’. Essa designação também chama a atenção pela menção às ‘primeiras sementes do natural comum destes selvagens’, que nos permite lembrar também a semelhança com a parábola bíblica do semeador.

Nesse recorte, segue-se no relato uma longa descrição sobre o acompanhamento das mães pelas crianças nas tarefas cotidianas e a marcação da diferença (‘a diferença existente entre nós pela natureza e pela graça’). Em outras palavras, a alteridade, nesse ponto, é sinalizada pelo distanciamento, por uma dicotomia entre ‘nós’ (voz do colonizador, missionário francês europeu) e ‘eles’ (os nativos). A marca da designação está sob controle do locutor, que mantém distanciamento do interlocutor (do livro) e do locutário (nativo) pelo modo como distribui os referentes. ‘Nós’ (locutor-narrador e leitor) temos a graça, e eles (nativos) não a têm.

O narrador ressalta não fazer comparação (‘sem fazer comparação’), mas retroage o que diz em seguida disso, com a significação do marcador dos interlocutários (‘nós’ e ‘eles’), uma vez que é dirigida ao interlocutor (aquele que lê a narrativa), e na qual a ‘graça e a natureza’ de ambos se apartam porque ‘eles’ não foram batizados como os cristãos (‘não esquecendo, antes tornando bem saliente, a graça do Espírito Santo concedida pelo batismo aos filhos dos cristãos’).

Esse destaque, esse tornar ‘saliente’, sinaliza ao ouvinte/leitor da narrativa o desnível entre os ‘mimosos, dóceis e afáveis’ e os que ‘tiveram a graça do Espírito Santo concedida pelo batismo’. Como aponta Nunes (1994), estratifica-se, no caráter objetivo da designação, uma aliança com a objetivação vinda do discurso religioso. Objetivar no sentido de tornar evidente que sua ‘inferioridade natural’ (Daher, 2012) pode ser reparada pela ‘graça do Espírito Santo’ concedida por um mediador (missionário francês) que assim poderá substituir a filiação à ‘natureza, boa mãe destes selvagens’ por um pai ‘pelo batismo’.

Por vezes, isso também ocorre no processo de encontrar semelhanças com outro universo em que se nota que a identificação com um grupo social de referência ocorre de forma pejorativa, igualando-os a um grupo separado da sociedade francesa, a saber:

(5) Os moços casadoiros adornam-se com um dêsses grandes penachos a que chamam araroy e que são atados à cintura; [...] não fazem outra coisa todas as noites senão entrar e sair de casa em casa dançando e saltando. [...] Ao vê-los assim fazerem tantas vezes a mesma coisa vinham-me à lembrança aqueles sujeitos que em certas aldeias nossas são conhecidos por valets de la fête, os quais nos dias de festa ao padroeiro das paróquias andam vestidos de bobos com cetro em punho e guizos nas pernas, brincando e dançando à mourisca quaisquer que sejam, nunca as mulheres se misturam aos homens; se querem fazem-no em grupo separado (Léry, 1961, p. 120).

A equivalência com os ‘valets de la fête’, que nas festas são ‘vestidos de bobos’ e têm o corpo sinalizado para mostrar que fazem parte de ‘grupo separado’, ignora o campo semântico, a especificidade da diferença de notação do adorno cultural para cada grupo. A leitura etnocêntrica do narrador acerca da marca do adorno no corpo ratifica sua interpretação do indígena como grupo apartado da unidade do território que ocupa bem como da separação com o europeu. Por retroação, os ‘moços casadoiros’ são chamados de ‘bobos’.

Na superficialidade do relato, vemos uma dupla apartação, na qual o europeu é tomado como referência para olhar ‘à distância’: ora o próprio nativo em relação a seu grupo de origem, ora o francês que, em ‘aldeias nossas’, também estaria apartado da referência presente no relato. Ocorre que o sujeito das ‘aldeias nossas’, ao dançar ‘a mourisca’, não está excluído do grupo francês que o narrador, ao marcar ‘nossas’, inclui como ponto comum de origem, porque está ‘brincando’; brincar tem o valor de estar em um estado diferente, porém no grupo. Por sua vez, ‘saltar’ entre os moços casadoiros em ‘dançando e saltando’ faz do estranhamento a esta atitude marca do não pertencimento.

Orlandi (2008) ensina que o discurso da colonização é eficaz porque aposta em uma transparência. A marcação da ‘essência’ faz esse papel de articuladora de um elo entre o ‘objeto’ (denominado ‘índio’ ou ‘indígena’) e o modo como o brasileiro é falado. O brasileiro é categoria mais ampla, na qual cabe uma espécie de essência reinventada que reintegraria o ‘índio’ à nação e camufla o gesto interpretativo violento desse processo de integração.

Por conta disso, vemos essas subdivisões entre ‘nós’ e ‘eles’, entre ‘moços casadoiros’ e ‘valets de la fête’ (5), entre ‘mimosos, dóceis e afáveis’ e ‘os meninos franceses’ que têm “a graça do Espírito Santo concedida pelo batismo aos filhos dos cristãos” (4). Elas comprovam esse eixo discursivo em que a detecção de semelhanças aprofunda diferenças lidas como motes de exclusão e não pertencimento. Muitas vezes, essa apartação vem por visão da pureza do nativo:

(6) Ninguém deixará de admirar-se comigo vendo a natureza somente ter nesses bárbaros o poder de fazê-los guardar o respeito que os meninos devem a seus maiores, e fazer conter a estes no que é exigido pela diversidade das idades (D’Évreux, 2002, p. 127).

Destaquemos ‘a natureza [...] ter nesses bárbaros’ e ‘o poder de fazê-los’ (6). Ou seja, a natureza os possui e os coordena. O nome ‘bárbaro’ é deslocado da realidade europeia, da designação daqueles que em outro universo também eram estranhos ao olhar do missionário francês cristão. A respeito da sua ‘natureza’, a qual remete a dom, à índole, à vocação, ou seja, tributos divinos revelados no homem e de natureza inata, é como se afirmassem: eles têm uma natureza boa. Nessa leitura sobre a pureza, vemos a explicação dos nomes dados às crianças e dos artefatos culturais de que fazem uso como se fossem adaptações ideais aos seus corpos, como visto em (3).

As análises de semelhanças e diferenças seguem, dessa vez, entre ‘as mulheres americanas’ e as ‘nossas mulheres’, ao se referir à alimentação das crianças.

(7) A alimentação da criança consiste em certas farinhas mastigadas e carnes tenras juntamente com o leite materno; a mãe fica de resguardo um dia ou dois; em seguida pendura o filho no pescoço por uma cinta de algodão e vai tratar da horta como de costume. Não digo isto com o fito de censurar as nossas mulheres que, por causa dos maus ares do país guardam o leito de quinze dias a três semanas e são tão delicadas que embora nada as impeça de amamentar os filhos, como as mulheres americanas, cometem a desumanidade de entregá-los a pessoas estranhas mandando-os para longe, onde muitas vezes morrem sem que o saibam as mães, as quais só os querem juntos de quando, já bem grandinhos, podem diverti-las (Léry, 1961, p. 204).

Sobre o ‘cuidado de si’ em questão, ele aparece como um modo de cuidar de si mesmo ou de um semelhante nunca dissociado da coletividade, ou mesmo deixar a outrem. Foucault (2006), ao evocar na Antiguidade a fábula do homem que deixa a filha aos cuidados alheios, explica que Epicteto, ao apresentar essa fábula, está apresentando como naquela época o amor à família era considerado natural, algo imanente à natureza. Ele também analisa a moral contida na fábula, a qual, como axioma do ‘cuidado de si’, expressa que o erro capital foi não ter cuidado de si a ponto de não conseguir cuidar da filha naturalmente.

Em (7), desse modo, vemos a pureza e a familiaridade com os ‘bárbaros’, consideradas imanentes aos nativos, deslocarem-se para um caráter humanitário fundado no modo como o narrador interpreta o cuidado de si. Agora, as mães francesas ‘cometem a desumanidade de entregá-los a pessoas estranhas’. O cometimento de uma atitude desumana, todavia, não as condena à barbaridade e à selvageria, tal como foi atribuído aos nativos nos recortes anteriores, junto da crença na natureza imanente da bondade. A esse respeito, Daher (2012, p. 143-144) pontua:

Os pressupostos do mito da bondade original do índio, presentes desde o século XVI, em narrativas francesas, consistem, com isto, não apenas na construção da figura do índio dócil e livre, embora massacrado (de Jean de Léry), mas também nessas representações do selvagem dotado de fala e, no mesmo movimento, convertível (dos capuchinhos) que culminam com a inclusão de sua língua num quadro universal de vernáculos.

Por isso, à língua é atribuída pelos narradores uma base ‘natural’, que equivaleria aos sons da natureza. Essa alegoria, ao que parece, vem para confirmar o mito da pureza, da bondade, da expressão natural genuína, límpida e transparente. Daher (2012) explica que, nos tratados franceses dessa época, mesmo a busca pela diversidade linguística indígena, muitas vezes mais perceptível na transcrição escrita e comparada ao grego, latim e hebraico, preserva a crença na língua de deus como única, como natural.

Toda essa idealização vista nos itens anteriores é em parte abalada quando se nota nos relatos a leitura de que, na verdade, os nativos viriam a tratar o outro (missionário francês estrangeiro) por interesse. Vejamos:

(8) e direi ainda que principalmente os velhos, a quem outrora faltavam machados, foices e facas, e que agora possuem esses instrumentos preciosos para as suas indústrias, tratam muito bem os franceses que os visitam e na previsão do futuro exortam os moços a que façam o mesmo (Léry, 1961, p. 218).

Em (8), ‘os velhos’ são significados como os que ‘tratam muito bem os franceses’ porque ‘agora possuem’ os ‘instrumentos preciosos’ para suas ‘indústrias’. Sabemos que o uso deste termo talvez não seja o mais adequado para a tradução que se nos apresenta, já que a indústria veio séculos adiante, mas se refere a ‘empreendimento’, à ‘empreitada’, a ‘trabalho’ em um sentido, o do capitalismo nascente, que ignora a realidade do fazer cotidiano do nativo, em outro universo simbólico. Essa significação, no entanto, de uma atitude em que ‘tratam bem’ para obter ‘instrumentos preciosos’ é contradita com o trecho que se segue:

(9) Não fazendo estes selvagens caso algum de recompensas humanas, porém empenhando todas as suas forças para conseguirem essas horas, provam com isto o quanto apreciam não só os atos de heroísmo de seus pais, mas também a serem estimados por causa deles (D’Évreux, 2002, p. 132).

Ao indicar que ‘não fazendo estes selvagens caso algum de recompensas humanas’, o missionário resgata o idealismo pueril a que nos referíamos. Ao mesmo tempo exorta uma ambiguidade em ‘recompensas humanas’, pois a não reivindicação destas poder-se-ia depreender que esbarra no fato mesmo de sua condição indígena menos humana. Por silogismo, não haveria como um ‘selvagem’ reivindicar recompensa ‘humana’, já que se trataria de pares opostos.

A respeito da reivindicação da humanidade para o próprio lado nesse jogo com o valor da troca, lembremos novamente que Lestringant (2000) aponta em Léry uma protoantropologia depois reconhecida por Lévi-Strauss, bem como vemos o embrião de uma antropologia moderna em uma passagem do filósofo francês Montaigne (1972, p. 105) quando afirma que “[...] não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra [...]”, ao pôr em xeque inclusive a imagem tenebrosa do canibalismo exclusivamente ‘indígena’ veiculada pelos europeus, que se esqueciam, de acordo com o filósofo, das próprias carnificinas em suas batalhas.

Nos relatos de Léry (1961), aparece a defesa da bondade do selvagem. De modo contraditório, o selvagem é significado como descendente de Cam e próximo da imagem do huguenote fracassado (Daher, 2012). Não à toa, Léry (1961) destina um capítulo intitulado ‘da guerra, combate e bravura dos selvagens’. Esse embate entre o sagrado e o profano, entre o selvagem e bárbaro e sua bondade pueril no cuidado de si e com o outro e o civilizado pode ser retratado do ponto de vista da relação com o plano metafísico cristão, especificamente a respeito da morte, a saber:

(10) embora esses cães aleguem que o corpo morto jamais se levanta. [...] os próprios diabos, como afirma São Tiago, crêem na existência de um Deus e o temme. [...] Embora os nossos americanos não o confessem francamente, estão na verdade convencidos da existência de alguma divindade; portanto, não podendo alegar ignorância não estarão isentos de pecados [...] os selvagens admitem certos falsos profetas chamados ‘caraíbas’ (Léry, 1961, p. 189, grifo do autor).

(11) Esta desgraçada mulher, prisioneira de Satã [...] procurando ver se alguém lhe aparecia para mandar chamar os padres, a fim de ser lavada com as águas do batismo (D’Évreux, 2002, p. 261).

A questão da pureza, da bondade natural e ao mesmo tempo das corruptelas morais inseridas em um corpo social, agora significadas como pecaminosas, que também é lida a partir do corpo biológico, aparece em outros trechos dos relatos.

São uns ‘cães’ (10) com quem nem o diabo pode ser comparado, pois, inclusive, este crê em Deus e o teme. Nesse ponto, a inocência, bondade e pureza de outrora começam a ser abaladas, pois se começa a conhecer mais a fundo este corpo social do qual o nativo faz parte. Em meio ao processo educacional em questão, que nesse momento é reduzido à conversão, uma vez em curso, não permite mais alegar pureza, ingenuidade e bondade que, agora, passam a ser significadas como ‘ignorância’, pois já foi instalado o parâmetro da noção de ‘pecado’. Isso aparece em ‘(10) não podendo alegar ignorância não estarão isentos de pecados’.

Então, o referente ‘pecado’ é eleito para designar o lugar do antes e do depois, do isento de culpa para o culpado, caso prefira ignorar algo que lhe foi imposto, mesmo com o qual não concorde. Inicia-se uma etapa do discurso sobre o processo educacional que se consolida naquilo que Orlandi (2008) apontou como a alternância entre ora permanecer calado, ora autorizado a falar, desde que nesta última situação não faça denúncias, como aponta Lestringant (1988 como citado em Daher, 2012).

Para servir de exemplo, citamos o modelo punitivo da época marcado pela sevícia, tortura, exposição pública, ou pelo incêndio em praça pública (Vainfas, 1995), em ‘(11) a desgraçada mulher, prisioneira de Satã’, frase que materializa o que se expõe em (10). Apesar da acolhida das chamadas ‘Marias Índias’ na Santidade do Jaguaripe, por exemplo, Vainfas (1995) explica que a punição em meio ao processo de perseguição e conversão contra essas populações requeria a eleição de uma figura mais central terrena, como foi a redefinição da ‘Santa Maria’ entre os nativos como a ‘Mãe de Deus’, a partir de então dada como figura central da Santidade na fazenda de Fernão Cabral.

Em (11), aqui destacado, vemos parte do relato sobre uma mulher que Vainfas (1995) explica ter sido designada como bruxa no Maranhão, em meio a um grupo de caraíbas, e a quem se atribuía espumar a boca e convulsões como sinais de possessão demoníaca em sessões diante de homens caraíbas. O processo educacional da conversão, portanto, tinha que passar pela exposição do caso exemplar e da cura, mas com movimentos de resistência às acusações de idolatria.

Por fim, no atrelamento desses discursos sobre pecado e conversão no entremeio desses processos educacionais, vemos processos de identificação que englobam um modo do cuidado de si no qual a moral contra a avareza se filia a um universo europeu:

(12) Se o finado é pessoa de destaque sepultam-no na própria casa, envolvido em sua rede, juntamente com os seus colares, plumas e outros objetos de uso pessoal. [...] Sem ir tão longe, direi que os índios do Peru terra contígua a dos brasileiros, enterram com seus reis e caciques grande quantidade de ouro e prata preciosas. [...] E asses avarentos bem se poderia aplicar o dístico que, segundo Plutarco a rainha Semíramis mandara gravar na sua sepultura [...]. (Léry, 1961, p. 223).

A alusão em referência a uma parábola bíblica de Semíramis na qual o túmulo é aberto e o avarento não encontra a riqueza ambicionada é utilizada na sequência desse trecho (12), para se fazer um alerta contra a avareza. A alusão a Plutarco aparece na linha da montagem de uma concepção de cuidado de si que, conforme Foucault (2006), não à toa, portanto, aparece em Cícero (10) para significar a moralidade contra a avareza, um dos sete pecados capitais; em (10), vemos como essa herança abordada em uma espécie de pré-história do cuidado de si na filosofia antiga chega na leitura do europeu colonizador do nativo americano.

Esses procedimentos com o corpo cadavérico, por sua vez, podem ser lidos conforme o que Daher (2018, p. 25) denunciou como “[...] invenção da memória do pecado [...]” a que se submetiam os nativos sob a óptica do viajante francês que lhes prescrevia senão uma normativa prescrita clara acerca dos modos de vida cotidianos, no mínimo a preparação, e aqui acrescentamos, de um terreno propício para tal implantação. O corpo pecaminoso como uma espécie de elo perdido da ingenuidade pueril vista em (3), (4) e (7) estará sempre a ser corrigido.

Orlandi (2008) mostra como vários desses relatos subsidiaram, na virada para o século XX, uma ciência compreensiva do índio como objeto de conhecimento, objeto este que apazigua confrontos do corpo e da alma e moldam uma iconografia do universo nacional. Como afirma Orlandi (2008), o discurso naturalista, classificador e que tem por base a construção do lugar do ‘índio’ como objeto de conhecimento opera na dicotomia entre o europeu detentor da ‘razão e fé’ e da ‘vida racional e política’ versus ‘índios’ voltados ao ‘sentido e desordem’.

A força dessa cientificidade vem também do fato de se tratar da imposição de uma cultura letrada escrita. São exemplos disso a imersão de Léry (1961) e os intérpretes (que serviriam aos mercadores compatriotas franceses) entre os tupinambás, da costa para dentro do território, e a escuta de Pacamão sobre o que as escrituras diziam sobre Noé, agora considerado seu ancestral, pela via da leitura feita por D’Évreux (2002). (Daher, 2012). Cientificidade que nos encaminha para finalizar abordando mais diretamente ainda as raízes da educação brasileira.

Thomas e Soares (2014) ensinam que, nos relatos de viajantes europeus, o cotidiano dos tupinambás narra uma invisibilidade da criança. Ternura e forte inserção na vida social mais global marcam o modo de abordar a educação e, por vezes, uma descrição idealizada destes corpos com apelo à perfeição. Esses autores destacam, como ponto em comum, o detalhamento sobre a alimentação, sobre o caminhar com autonomia, a divisão de tarefas entre os gêneros e o fato de as crianças não apanharem e respeitarem os mais velhos. Em resumo, esses autores mostram que as descrições dos relatos confrontam a própria visão europeia de que os tupinambás não teriam preceitos, leis ou normas e ordens educativas.

Toda essa análise retoma Florestan Fernandes (1964 como citado em Thomas & Soares, 2014), pois este último, ao analisar o esforço europeu para inserir os tupinambás na civilização, opera um ponto de giro nessa visão etnocêntrica, ao valorizar a Pedagogia não coercitiva dos tupinambás. Mas Thomas e Soares (2014) alertam para o fato de que essa idealização do aparato educacional pelo sociólogo brasileiro é criticável, posto que centrado na sociedade do século XX, o que desconsidera um deslocamento temporal que teria sido necessário.

Uma vez que não podemos tomar a educação do homem europeu daquela época, nem do europeu desta época, nem também o indígena de outra etnia (seja daquela ou da nossa época), nem o brasileiro urbanizado moderno (e aqui cabe perguntar quem é o indígena brasileiro ou se haveria brasileiro sem ancestralidade indígena nos limites da delimitação de uma nacionalidade e de um Estado-nação), compete indagar: como revisitar o jogo interpretativo até aqui mostrado no campo de pesquisa das raízes da educação brasileira?

A construção do olhar interpretativo europeu para um lugar das raízes do modo ‘brasileiro’ de educar finca seus parâmetros nesses relatos de viajantes europeus. Nesta pesquisa, focamos com mais acuidade os relatos dos franceses aqui analisados, destacando que a análise de cada um desses registros ou de modelos mais centrados e comparativos como o nosso traz como ganho uma acuidade que, por vezes, análises que englobam muitos desses relatos acabam por deixar um pouco de lado, como no caso do estudo de Thomas e Soares (2014), o que não o desvaloriza. Ainda faltam mais estudos no campo da Educação voltados para esse ‘objeto’, mas, como aponta Albuquerque (2011), desde que em uma visão deslocada da centralidade da educação escolar e comprometida com o cotidiano, com os hábitos mais ordinários, a exemplo de comer e beber.

Considerações finais

Nos relatos analisados, o paradigma ‘defeito versus superioridade’ aparece na defesa da ‘pureza’ dos nativos e na objetivação de suas condutas. Obviamente, naquela conjuntura, as Ciências Humanas e Sociais não existiam tal como hoje. Entretanto, o astuto olhar descritivo já lançava os fundamentos do que posteriormente será a consolidação de um olhar empírico disciplinado voltado às nuances da alteridade com que este sujeito moderno, cuja constituição pelo duplo de si mesmo é objetivada, terá que se haver.

O jogo do distanciamento e da aproximação entre ambos os processos educacionais é marcado pelo modo como os relatos significam o cotidiano do cuidado de si entre os tupinambás do período colonial pela dicotomia do bem e do mal na qual se destaca relativa pureza e a conversão do pecado inato para uma tomada de consciência que permita escapar da ignorância e, com isso, atribuir culpa e punição exemplares. Essas ações de leitura (interpretação) indiciam as radículas de uma visada sobre um processo educacional imbuído das trivialidades do cotidiano, embora não se mostre claramente nesses relatos dos viajantes, em suas observações sobre o cuidado de si tupinambá, planejamento e método pedagógico, como se nota na missão franciscana maranhense pesquisada por Toledo e Barboza (2017), por exemplo.

Esse processo faz parte das raízes da educação brasileira como parcela de uma violência simbólica estrutural que, como se pode notar pela análise dos relatos de viajantes franceses que passaram pelo Brasil Colonial nos séculos XVI (Jean de Léry) e XVII (Yves D’Évreux), começa com esses discursos a instalar um valor de se ‘salvar’ no cotidiano, de hábitos lidos como formas de cuidar de si entre os tupinambás, objetivados como aquém de um processo civilizatório mais amplo.

Este estudo e demais podem lançar balizas para entendermos algumas heranças no processo educacional. O relato mostra raízes de um processo de conversão, que não é propriamente uma proposta educacional no sentido moderno, posto que o convertido ou em processo de conversão aparece como tendo sido salvo de um corpo falido ou de uma trajetória fracassada, em que o nativo, cada vez mais visto de longe, é posto à distância.

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1 Quando fazemos menção ao livro de D’Évreux, nos referimos à edição que utilizamos e que compila dois tratados desse missionário francês. Ela foi agrupada em dois tratados: ‘Continuação da História das coisas mais memoráveis havidas em Maranhão nos anos de 1613 e 1614 - primeiro tratado’ e ‘Continuação da história das coisas mais memoráveis acontecidas no Maranhão nos anos de 1613 e 1614 - segundo tratado’, tendo por referência a edição traduzida por César Augusto Marques (1826-1900), publicada originalmente no Maranhão em 1874 e republicada em 2002, em parceria entre o governo daquele estado (coleção ‘Maranhão sempre’) e a editora siciliano (ver prefácio de Sebastião Moreira Duarte).

4Rodadas de avaliação: R1: quatro convites; três avaliações recebidas

5Como citar este artigo: Pereira, A. C. O cuidado indígena tupinambá em narrativas de viajantes franceses no Brasil Colonial (séculos XVI e XVII): discursos sobre processos educacionais. (2022). Revista Brasileira de História da Educação, 22. DOI: http://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e229

6Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Recebido: 19 de Julho de 2021; Aceito: 22 de Outubro de 2021; Publicado: 23 de Setembro de 2022

*E-mail: anderson.pereira@uesb.edu.br.

Anderson de Carvalho Pereira realizou graduação (Psicologia), mestrado e doutorado (Ciências) na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, com estágio doutoral na Universidade de Paris XIII. Docente dos cursos de licenciatura junto ao Departamento de CIências, Humanas, Educação e Linguagem e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Líder do Grupo de investigação sobre narrativas, práticas letradas e discurso (Grinpraled/CNPq/UESB). E-mail: anderson.pereira@uesb.edu.br https://orcid.org/0000-0002-1485-0095

Editor-associado responsável: José Gonçalves Gondra (UERJ) E-mail: gondra.uerj@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-0669-1661

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