SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22A ‘aritmética intuitiva’ da escola primária francofônica da província do Quebec: um saber indispensável a todos (1850-1920)Festa da Árvore (décadas de 1920-1930): vida ao ar livre e múltiplos sentidos da festa escolar índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista Brasileira de História da Educação

versão impressa ISSN 1519-5902versão On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.22  Maringá  2022  Epub 01-Set-2022

https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e232 

Artigo Original

Entre a Escola Nova e a Escola Básica: a modernização curricular para o ensino do português no ensino primário paulista (1949-1968)

Between the New School and Basic School: curriculum modernization for the teaching of portuguese in primary education in São Paulo (1949-1968)

Entre la Escuela Nueva y la Escuela Básica: modernización curricular para la enseñanza del portugués en educación primaria en São Paulo (1949-1968)

Fernando Rodrigues de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0002-5609-550X

1 Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP, Brasil.


Resumo:

Com o objetivo de problematizar como as prescrições para o ensino da língua portuguesa estiveram associadas a projetos de formação do povo e a ideais de Educação, focalizam-se neste artigo os programas publicados entre 1949 e 1968 em São Paulo, decorrentes de duas reformas curriculares do ensino primário. Fundamentada nas contribuições da História do Currículo, a análise desses programas indica que a modernização curricular para o ensino do português implementada em São Paulo no período estudado foi marcada pela permanência do princípio filosófico e conceitual de entendimento da língua, porém correspondeu à importante ruptura com relação à cultura escolar moldada pelo ideal republicano, marcando o intento da escola básica fundada na razão técnico-instrumental.

Palavras-chave: língua portuguesa; escola primária; prescrições para o ensino; currículo

Abstract:

In order to discuss how the prescriptions for teaching the Portuguese language were associated with projects for the formation of the people and ideals of Education, this article focuses on the programs published between 1949 and 1968 in São Paulo, resulting from two curriculum reforms from primary school. Based on the contributions of the History of Curriculum, the analysis of these programs indicates that the modernization of the curriculum for teaching Portuguese implemented in São Paulo in the period studied was marked by the permanence of the philosophical and conceptual principle of understanding the language. However, it corresponded to an important break with the school culture shaped by the republican ideal, marking the intent of the basic school founded on technical-instrumental reason.

Keywords: portuguese language; primary school; prescriptions for teaching; curriculum

Resumen:

Con el fin de discutir cómo las prescripciones para la enseñanza de la lengua portuguesa se asociaron con proyectos para la formación de las personas y los ideales de la Educación, este artículo se centra en los programas publicados entre 1949 y 1968 en São Paulo, resultado de dos reformas curriculares educativas. Con base en los aportes de la Historia del Currículo, el análisis de estos programas indica que la modernización curricular para la enseñanza del portugués impuesta en São Paulo durante el período estudiado estuvo marcada por la permanencia del principio filosófico y conceptual de comprensión de la lengua, sin embargo, correspondió a una importante ruptura en relación a la cultura escolar conformada por el ideal republicano, marcando la intención de la escuela básica fundada en la razón técnica e instrumental.

Palabras clave: lengua portuguesa; escuela primaria; prescripciones para la enseñanza; currículo

Introdução

Por que a escola ensina o que ensina? Que aspectos estão envolvidos na determinação de alguns conteúdos como ‘escolarizáveis’ e outros como dispensáveis na formação pretendida por meio dessa instituição? Quais bases teóricas e científicas balizam as escolhas sobre o que e como ensinar?

Questionamentos como esses têm motivado, nas últimas décadas, uma série de investigações, especialmente com base nas teorias do currículo e da história das disciplinas escolares, as quais problematizam a aparente natureza meramente técnica e organizativa do ensino e o analisam sob a perspectiva do fundo cultural, político e ideológico que a organização dos conteúdos escolares possui.

Nessa perspectiva, as prescrições para o ensino (programas, guias e propostas curriculares), organizadas a fim de prescrever e regrar a prática docente e condensar o sentido e o papel social da escola, ocupam lugar importante para pensar a história das práticas de escolarização, pois correspondem a determinações legais do quê e como ensinar, tendo em vista projetos de escola, de educação e de sociedade difundidos ao longo do tempo.

No que compete especificamente ao ensino da língua portuguesa, apesar de essa ter se consolidado como um dos principais signos que sintetizam a finalidade da escola brasileira e o propósito de formação do ‘futuro homem’, estudos que recaem sobre a história das suas prescrições para a escola primária são ainda escassos. O que se tem são os trabalhos relativos à história da alfabetização, em especial dos métodos de alfabetização, que focalizam o ensino inicial da leitura e da escrita em língua portuguesa, portanto, apenas parte do ensino de português. As prescrições subsequentes à etapa da alfabetização e à sua configuração como disciplina/matéria escolar não têm sido tomadas como objeto de investigação. O que há são trabalhos relativos às políticas curriculares que mencionam ou descrevem aspectos do ensino do português, mas que não se debruçam especificamente sobre esse objeto.

Em vista disso, este artigo tem como objetivo contribuir para a produção de uma história do ensino do português na escola primária, de modo a compreender os diferentes aspectos que estiveram envolvidos na organização desse ensino. Enfoca-se, dessa maneira, a modernização curricular implementada no ensino primário paulista entre 1949 e 1968, mediante análise dos programas de ensino publicados nesse período.

Para essa análise, tem-se como fundamento teórico-metodológico as contribuições da História do Currículo, sendo essa entendida como forma de adentrar os ‘padrões internos’ de escolarização, a fim de se compreender como essas instituições “[...] tanto refletem como refratam definições da sociedade sobre conhecimento culturalmente válido em formas que desafiam os modelos simplistas da teoria de reprodução” (Goodson, 2010, p. 118).

Por esse ponto de vista, o currículo é aqui concebido como uma construção histórica e social, que não se configura como entidade fixa, resultante da simples reprodução vulgarizada dos saberes científicos. Pelo contrário, trata-se de ‘amálgama mutável’, decorrente de lutas, interesses e disputas de poder implicados na definição de quais conhecimentos são social e culturalmente aceitos como válidos para serem ensinados na escola. Portanto, rompendo com a dicotomia clássica de que as prescrições pouco afetam a ‘prática’, pensar o currículo como objeto histórico é entendê-lo como epicentro do “[...] processo pelo qual se inventa tradição. [...] Não é, porém, como acontece com toda tradição, algo pronto de uma vez por todas; é, antes, algo a ser defendido onde, com o tempo, as mistificações tendem a se construir e reconstruir” (Goodson, 2010, p. 27).

Os pressupostos da Escola Nova e a problemática da modernização dos programas de ensino em São Paulo entre 1930 e 1940

A partir da década de 1920, à medida que o ideário escolanovista passou a exercer papel catalisador no debate educacional no país e foi institucionalizado mediante reformas educacionais nos diferentes estados, a questão dos programas de ensino logo assumiu importante espaço nas disputas e nos embates entre os reformistas.

Ao se estruturar na crítica do modelo estático e suplementar da ‘escola tradicional’ e na defesa por um ensino ativo, voltado à valorização da atividade, da experiência e do interesse da criança, o movimento da Escola Nova imprimiu à escola republicana uma nova feição, correspondente à profunda alteração no entendimento de sua função social e na compreensão dos processos de ensino que se devia empreender nesse aparato formativo.

Para os reformistas, mais do que corrigir antigas práticas de escolarização, a escola devia se renovar em favor do processo civilizatório e nacionalizador das crianças, propiciando ampla formação cultural, científica e moral, condizente com a ordem estabelecida pelo progresso científico e material, pelo industrialismo e pela tendência democrática. Desse ponto de vista, ainda que marcado como movimento multifacetado e não consensual, o horizonte maior sob o qual se estruturou o ideário da Escola Nova, no Brasil, foi o da reconstrução da sociedade brasileira e o da transformação do país, por meio da articulação entre projeto educacional, projeto político e mudança social.

Diante desse ambicioso intento, no caso específico de São Paulo, a problemática dos programas de ensino, desde muito cedo, se colocou central aos reformistas, pois era por intermédio da sistematização de conteúdos, métodos e técnicas de ensino que se entedia contemplar, em grande medida, a efetivação dos pressupostos da pedagogia nova. Em vista disso, devido à defesa da educação com base no fator psicobiológico do interesse, os defensores do escolanovismo, em São Paulo, se postaram contra o caráter rígido dos programas vigentes, bem como contra a definição apriorística, subjetiva e conservadora dos conteúdos, dos métodos e das técnicas de ensino que configuravam a ‘escola tradicional’.

Sobre esse aspecto, Lourenço Filho, quando assumiu, em 1930, a Diretoria Geral da Instrução Pública de São Paulo e deu início ao processo de institucionalização do escolanovismo no estado, asseverou sobre a importância de o trabalho pedagógico passar por radical transformação de seus processos didáticos. Segundo ele:

A escola publica não pode continuar a ser um apparelho formal de alphabetisação, ou simplemente machina que prepare alumnos para certificados de exames e de conclusão de curso, segundo programmas elaborados em abstracto, para uma criança ideal, que não existe [...] Tem que ser um organismo vivo, capaz de reflectir o meio, nas suas qualidades e de cooperar para a melhoria dos costumes [...] De adaptação, pelo interesse em affeiçoar a intelligencia infantil aos problemas de seu ambiente próprio [...] Desde as questões econômicas, básicas na organisação social, até as preocupações moraes da localidade, de tudo a escola deve reflectir a vida que a criança vive lá fora, por tudo a escola deve interessar-se; porque a escola nova deixa de ser a escola do mestre, do inspector ou do director geral, como até agora tem sido, para tornar-se a escola das crianças a que deve servir [...] De um apparelho formal, rígido, separado da vida real, teremos, pois que fazer um aparelho flexivel, animado por um espirito de finalidades social, sempre presente. A escola nova tem que ser uma escola com alma, a alma do Brasil novo (Lourenço Filho, 1930, p. 2-4).

Esses apontamentos de Lourenço Filho ganharam valor legal nos anos seguintes, mais especificamente em 1933, quando foi instituído, na gestão de Fernando de Azevedo como Diretor da Instrução Pública, o Código de Educação do estado. Esse Código estabeleceu que a organização dos programas e dos métodos gerais do ensino primário deveriam se adequar às seguintes normativas:

Art. 237 - O plano de educação primaria abrange: - Leitura, Linguagem oral e escrita, Aritmética e Geometria, Geografia, Historia do Brasil e Instrução Civica, Ciencias Fisicas e Naturais, trabalhos manuais, desenho caligrafia, canto e ginástica.

Art. 238 - O ensino terá como base essencial a observação e a experiencia pessoal do aluno, e dará a este largas oportunidades para o trabalho em comum, a atividade manual, os jogos educativos e as excursões escolares.

§ unico: - O uso de manuais escolares, indispensáveis como instrumentos auxiliares do ensino, deve ceder passo, sempre que possível a exercicios que desenvolvam o poder de criação, investigação e critica do aluno (São Paulo, 1933).

Coadunando com a lógica instituída pelo Código de Educação, no ano seguinte, em 1934, José Ribeiro Escobar, então chefe do Serviço de Programas e Livros Escolares da Diretoria Geral da Instrução Pública de São Paulo, sistematizou, no livro A construção científica dos programas, uma série de princípios que deveriam orientar a modernização dos programas na perspectiva da Escola Nova, defendendo que esses necessitariam se basear na análise científica dos processos mentais das crianças e no estudo científico da organização social. Escobar (1934) pontuou a diferenciação entre os programas ‘tradicionais’ e os escolanovistas, destacando que:

A reorganização dos programas da escola tradicional - é uma simples questão de eliminação e acréscimo; na escola nova - é um problema complexo e difícil, para o qual se vão buscar novas técnicas na racionalização do ensino.

O programa da escola tradicional - é rígido, logico discriminado em materiais: leitura; escrita; aritmerica, geografia, ciências, etc.

O programa da escola nova - é flexivel, globalizado, psicológico e seu vocabulário ressoa com projetos, unidades de trabalho, centros de interesse, situações vitais, atividade criadora, empreendimentos infantis, jogos, hora de historias, conferencias em grupos irregulares, fóruns abertos e debates, experiências em loja, cozinha, laboratórios e estúdios, pesquiza na biblioteca e no campo (Escobar, 1934, p. 9).

Essa mudança de racionalidade dos programas de ensino que se foi evidenciando no processo de renovação da educação paulista colocou, no campo pedagógico da época, um de seus grandes desafios, qual seja, o de conciliar a nova visão dos programas como lugar da experiência e de liberdade e, ao mesmo tempo, atender aos anseios de seleção cultural e cumprimento de conteúdos, herança essa decorrente do modelo paulista de escolarização do final do século XIX. A pergunta que pairava como plano de fundo das ações reformistas era a de como garantir o ensino de saberes elementares e direcionar e normatizar o trabalho docente, sem incorrer no imobilismo ou no ‘didatismo deformador’.

Souza (2009) explica que essa problemática posta sobre os programas de ensino no interior do movimento da Escola Nova correspondeu a um importante deslocamento da questão, pois “[...] [r]acionalizar os programas e reconstituí-los cientificamente significava inserir o plano de estudos dentro de outra inteligibilidade muito diferente daquela consolidada na institucionalização da escola graduada” (p. 213). Nesse sentido, complementa Souza (2009) que pensar sobre os programas deixou de ser uma atividade simples, apenas de seleção e distribuição de conteúdos em séries, e se tornou trabalho complexo, mais racional e científico, no qual se deveria considerar tanto a atuação dos professores quanto a dos alunos.

Diante dessa nova racionalidade e dos desafios decorrentes dela, como se equacionou, no caso paulista, a problemática dos programas de ensino?

Postos o desafio e a urgência em ajustar os programas à lógica escolanovista, os administradores do ensino paulista se voltaram a discutir sobre a melhor forma de estruturar os novos programas. De um lado, havia os que defendiam a formulação de programas analíticos, detalhados e pormenorizados com relação às novas orientações metodológicas. De outro, os que se colocavam favoráveis a programas sintéticos, na direção de orientações gerais e prescrições mínimas (Souza, 2009).

No contexto desse debate, a opção inicial foi pela adoção dos programas mínimos, pois, se o pressuposto da nova orientação pedagógica se centrava nas experiências que a escola devia propiciar às crianças, o mais importante era a transformação do ambiente escolar de modo a permitir a realização das potencialidades contidas na personalidade infantil (Nagle, 1974).

Com isso, em 1934, foi aprovado pelo Diretor de Ensino, Luiz Mota Mercier, o ‘Programa mínimo para o curso primário’, o qual estabeleceu o conjunto mínimo de conhecimentos exigíveis dos estudantes ao longo dos anos escolares, garantindo aos professores autonomia didática para ir além das matérias determinadas.

Apesar da aprovação desse programa ter tido como objetivo um ‘plano de estudos globalizado’, ela não correspondeu à mudança efetiva na lógica até então estabelecida. Pelo contrário, esse projeto estabeleceu que os programas até então vigentes, aprovados em 1925, deviam continuar a ser seguidos, destinando-se o programa mínimo aos grupos escolares com funcionamento em três turnos. Além disso, evidenciou-se, na explicação desse projeto, que sua elaboração não teve o propósito de “[...] subordiná-lo a determinada orientação individual ou adaptá-lo a qualquer dos tipos escolares, abrangidos pela genérica denominação de ‘escola nova’” (São Paulo, 1941, p. 67, grifo do autor). Dessa forma, o programa de 1934 não apresentou qualquer modificação significativa do ponto de vista da inovação que se pretendia, pois apenas correspondeu a uma tentativa de adequação dos programas vigentes desde 1925.

Foi somente no final da década de 1940, quando foi aprovado, em caráter experimental, o Programa para o ensino primário fundamental, que se efetivou, em São Paulo, a conciliação de algumas das tensões envolvidas com a renovação pedagógica e com as prescrições de ensino.

Esse programa, publicado em cinco volumes, entre 1949 e 1950, pela Livraria Francisco Alves, resultou do trabalho de uma comissão composta por oito professores1, designados pelo então Secretário da Educação, João de Deus Cardoso de Mello, com o propósito de atualizar os programas de ensino vigentes à época. Para isso, essa comissão tomou como base “[...] as mais modernas obras pedagógicas, recorreram aos mais recentes programas do ensino primário, nacionais e estrangeiros, assim como à experiência, não só própria, como à de professores que se têm sobressaído no exercício do magistério público” (São Paulo, 1949c, p. 5).

Aderindo ao modelo de um programa detalhado, conforme propunha uma das correntes do ideário renovador, o novo programa foi subdividido em ‘objetivos de ensino’, ‘considerações’, ‘sumário da matéria’ e ‘orientação’, com “[...] sugestões para aplicação de artifícios e atividades, a fim de que sirvam de auxiliar aos professores [...]” (São Paulo, 1949c, p. 5).

Em decorrência dessas características, o programa de 1949-1950 correspondeu simbolicamente à importante conquista da Escola Nova sobre os redutos da ordenação pedagógica, conciliando modernidade pedagógica representada pelos princípios da escola ativa com tradição prescritiva fundada com a escola republicana do final do século XIX (Souza, 2009).

Bases conceituais e as prescrições para o ensino do Português no Programa do ensino primário fundamental (1949-1950)

No que compete especificamente ao ensino do português, o Programa do ensino primário fundamental estrutura-se a partir da compreensão de que a língua corresponde ao principal mecanismo de expressão do pensamento e das ideias, de tal modo que o seu aperfeiçoamento compreende valor educativo imprescindível para se alcançar êxito nas relações sociais.

Desse ponto de vista, o ensino da língua é defendido como instrumento central do progresso intelectual, moral e econômico de um povo, pois, ao lado da unidade da raça e da unidade geográfica, está um dos três pilares da integração e estruturação nacional.

Dada a importância que o ensino da língua tem para o desenvolvimento social, argumenta-se que ele deve ser pautado em torno da valorização da expressão própria, espontânea, consciente e como resultado da observação individual, visando ao aperfeiçoamento e cultivo da linguagem consciente. Entende-se que quanto maior fosse a expressão técnica da linguagem, maior seria também a consciência nacional e o nível cultural do povo.

Nesse sentido, a fim de se atender a esses pressupostos, propõe-se que o ensino da língua deve ser atividade presente desde o início da infância, para se evitar ‘obscurecer’ o pensamento e garantir a elevação do grau de civilidade das crianças.

Considerando-se o exposto, com o intuito de cumprir o seu propósito educativo, o ensino da língua portuguesa é organizado no Programa do ensino primário fundamental em cinco eixos - Linguagem oral, Leitura, Escrita, Linguagem Escrita e Gramática Aplicada -, os quais, embora concorram para finalidade única, apresentam objetivos, conteúdos, atividades e orientações metodológicas próprias e específicas.

Sobre esse modo de organização do ensino do português, cumpre esclarecer que, nos programas vigentes em São Paulo desde a implantação do modelo de escola graduada, no final do século XIX, o ensino da língua sempre esteve estruturado em três eixos: leitura, linguagem e caligrafia. Nesse sentido, o programa de 1949-1950 consiste em uma mudança no que concerne a essa organização, ampliando o ensino do português, por exemplo, para o estudo da gramática em forma aplicada e deslocando o debate sobre a caligrafia para o campo da mecanização da escrita.

Sob essas bases, o ensino do português no Programa do ensino primário fundamental se organiza em objetivos, considerações, sumário da matéria e orientações, com prescrições conforme sintetizadas no Quadro 1.

Quadro 1 Síntese das prescrições para o ensino da língua portuguesa no Programa do ensino primário fundamental (1949-1950). 

Eixos Séries
1º ano 2º ano 3º ano 4º ano
Linguagem oral Objetivos: estimular a criança a falar espontaneamente, com voz natural, agradável e com pronúncia articulada; cultivar o espírito de observação da realidade e adquirir ideias claras. Objetivos: habituar a criança a falar de maneira clara; levá-la a corrigir e ampliar seu vocabulário; e propiciar aquisição de hábitos sociais de conversação. Objetivos: levar a criança a exprimir-se com simplicidade, clareza e precisão; assegurar a aquisição de ideias claras e o enriquecimento de vocabulário; habituar a falar em momento oportuno; e desenvolver a imaginação. Objetivos: exercitar a elaboração de pensamentos mais amplos; fazer uso de palavras próprias; cultivar hábitos indispensáveis ao êxito na conversação; intensificar o desenvolvimento da imaginação e fazer sentir necessidade de se expressar bem.
Considerações: o ensino da língua deve se iniciar pelos exercícios de elocução, com estímulo à fala, permitindo à criança expressar-se com liberdade e linguagem própria. Desse ponto de partida, aos poucos, deve-se iniciar o cultivo da linguagem oral, visando à correção das deficiências e à formação da linguagem consciente e apropriada para as relações sociais. Considerações: em continuidade ao trabalho do 1º ano, firmar, desenvolver e aperfeiçoar, por meio de exemplos vivos, o uso da linguagem para o bom desempenho de atividades sociais e econômicas. Considerações: desenvolver atividades de linguagem a partir de assuntos correspondentes à capacidade mental das crianças, estabelecendo intercâmbio de ideias. Considerações: o professor deve possibilitar à criança maiores possibilidades expressivas, adestrando o pensamento e aperfeiçoando a linguagem através da observação direta e da leitura metódica e inteligente.
Sumário da matéria: conversação sobre fatos conhecidos, narração, recitação, dramatizações e transmissão de recados simples ou exercícios de treino social. Sumário da matéria: conversação sobre coisas conhecidas; narração, invenção de histórias, descrição de figura, recitação e pequenas dramatizações; transmissão de recados e treino social. Sumário da matéria: conversação sobre acontecimentos da vida; narração, reprodução, dramatização e invenção de histórias; descrição de cenas e recitação de poesias; transmissão de recados, expressão de polidez e treino de bons hábitos sociais. Sumário da matéria: conversação sobre fatos da vida, da escola, da sociedade e das matérias; narração, reprodução de histórias, descrição, interpretação e recitação de poesias; exercícios de treino de hábitos sociais.
Orientação: fazer uso, no ensino, das situações naturais decorrentes da vida espontânea das crianças; buscar satisfazer o interesse infantil; treinar a memória, exercitar a observação; e propor exercícios que propiciem a adaptação à vida social. Orientação: manutenção das orientações do 1º ano, porém ampliando-se o campo de observação das crianças. Orientação: propiciar a confiança nos pensamentos espontâneos, para que as crianças consigam introduzir suas ideias em processos de conversação. Investir em atividades de situação real da vida, treinando preceitos de civilidade. Orientação: estimular a conversação a partir de assuntos referentes a instituições escolares, clubes de leitura, ocorrência de festas e serviços domésticos. Envolver narrativas, histórias e poesias que mobilizam o interesse infantil.
Leitura Objetivos: dotar a criança com o conhecimento dos símbolos do pensamento e com a capacidade de ler ideias próprias e alheias. Objetivos: aperfeiçoar a leitura, tornando-a corrente e expressiva; e dotar a criança de maior capacidade em relação ao que lê. Objetivos: prosseguir no aperfeiçoamento da leitura oral e mental; e dotar a criança da capacidade de aproveitar-se da leitura como fonte de informações e recreação. Objetivos: dotar o aluno de leitura agradável e capacidade de compreender e avaliar formas corretas e bons estilos; desenvolver a capacidade de assimilar conhecimentos; e exercitar o manuseio correto dos livros e dicionários.
Considerações: enfoque no processo de alfabetização, pois é por meio da leitura que a criança desenvolve os instrumentos necessários à vida prática e à aquisição de conhecimento. Considerações: aperfeiçoamento do que foi aprendido no 1º ano, enfatizando-se o valor da leitura como fonte de informação e recreação. Considerações: desenvolver a leitura mental por meio de livros, compêndios e jornais voltados ao ensino globalizado. Considerações: como os alunos já devem, nessa série, ter dominado a leitura, deve-se despertar o interesse nos aspectos literários, na perfeição da frase e na beleza dos estilos.
Sumário da matéria: conversação para despertar interesse pela leitura; leitura oral de sentenças, palavras, sílabas; leitura silenciosa do pré-livro, cartilha e fichas; conhecimento do alfabeto e dos sinais diacríticos e de pontuação. Sumário da matéria: leitura oral corrente e expressiva em livros didáticos, com ampliação de vocabulário, exercícios de interpretação, leitura silenciosa e reprodução oral seguida de escrita; leitura corrente e expressiva em livros recreativos, com relato oral, apreciação de histórias e fichamento; leitura dialogada e dramatizada. Sumário da matéria: leitura corrente e expressiva em livros didáticos; leitura corrente expressiva oral e mental em livros recreativos; leitura oral e mental em livros de informações; fichamento e utilização de vocábulos de dicionários. Sumário da matéria: leitura oral e expressiva com rapidez; leitura oral e mental em prosa e em verso, e com interpretação; leitura de composições próprias.
Orientação: trabalho com o ensino da leitura pela marcha analítica; estimular na criança o desejo de aprender a ler; trabalhar a leitura de modo a relacionar o sentido das palavras; formar a imagem mental da escrita das palavras, para depois trabalhar sílabas e letras; e não insistir nos erros ou se demorar numa lição. Orientação: estimular a leitura mediante livros, revistas e jornais ilustrados de acordo com o desenvolvimento dos alunos e com seu interesse. Orientação: além das orientações preconizadas para o 2º ano, convém estímulo ao conhecimento dos livros (autoria, índice, páginas...), ao uso dos dicionários, à prática de exercícios de prosódia, à aquisição de vocabulário, ao treino de leitura mental e interpretação. Orientação: trabalho com leitura oral e comentada de assuntos científicos, de biografias de brasileiros e americanos notáveis na ciência, de biografias de grandes escritores e de grandes homens, de fábulas, lendas e contos clássicos da literatura infantil e de monografias de conteúdos científicos. Estimular também a leitura mental mediante exercícios diversos.
Escrita Objetivos: levar a criança a reproduzir todos os traços de letras e algarismos e a desenvolver a coordenação visomotora, como princípio de mecanização da escrita. Objetivos: levar o aluno a fixar boa atitude para com trabalhos escritos; boa proporção no tamanho das letras; regularidade na inclinação; nitidez nos traços e boa conformação; hábitos de limpeza e ordem em todos os trabalhos escritos. Objetivos: levar o aluno a fixar boa atitude para com trabalhos escritos; adquirir bom cursivo; apresentar bem trabalhos escritos, com perfeita mecanização e rapidez. Objetivos: levar o aluno a manter uma atividade correta durante todos os trabalhos escritos.
Considerações: o ensino da escrita, entendido como mecanismo de socialização, deve evitar o desenvolvimento de vícios que impedem a escrita clara, legível e rápida, eliminando movimentos inúteis que causam fadiga, monotonia e desinteresse. Considerações: o 2º ano compreende fase trabalhosa pela atenção que deverá ter o professor no ensino da escrita correta e no domínio de atividades mecanizadas, de modo a propiciar trabalho que no futuro deixe maior espaço para as atividades mais intelectuais.
Sumário da matéria: jogos de aquisição do hábito da escrita; traçado com ritmo; desenhos espontâneos; dramatização por exercícios riscados; cópia de palavras; treino de forma das letras; exercícios para desenvolver a rapidez da escrita. Sumário da matéria: exercícios ritmados de letras variadas; exercícios de cópia de sentenças e trechos de livros; exercícios envolvendo uso de tinta. Sumário da matéria: exercícios ritmados em papel de pautas duplas; exercícios de cópia; e exercícios para aquisição de rapidez. Sumário da matéria: exercícios corretivos; exercícios de letras fantasia; e exercícios para desenvolver a rapidez.
Orientação: o ensino da escrita deve sempre seguir a marcha da motivação, exercícios de ginástica, exercícios no quadro-negro e execução no papel. Deve-se usar letra vertical, levemente inclinada, sempre sob supervisão do professor. Orientação: realizar o uso de jogos e exercícios rítmicos, de modo a possibilitar ao aluno maior domínio do traço. Fazer uso de palmas, música ou sinais para marchar o ritmo dos traços das letras. Orientação: possibilitar liberdade na escolha do tipo de letra que as crianças preferem, orientando na boa apresentação de trabalhos escritos, garantindo legibilidade e rapidez. Orientação: aulas especiais de escrita, com oportunidade de aquisição de firma e rubricas, assim como o aprendizado de letras fantasia.
Linguagem escrita Objetivos: habilitar a criança a pensar antes de escrever e a expressar seus pensamentos por escrito; possibilitar a expressão com vocabulário e forma correta. Objetivos: assegurar o hábito de organizar o pensamento antes de escrever; desenvolver a capacidade de escrever com simplicidade e propriedade; levar a criança a ver a utilidade da expressão escrita como meio de comunicação. Objetivos: levar a criança a adquirir maior capacidade de organizar mentalmente o pensamento e de exprimi-lo por escrito; desenvolver a imaginação e estimular o interesse pelo aperfeiçoamento da escrita. Objetivos: levar a criança a se exprimir com facilidade, clareza, correção e elegância; firmar o hábito de pensar no que se vai escrever; desenvolver a imaginação e o poder inventivo.
Considerações: após a criança desenvolver a escrita mecanizada, iniciar o ensino da linguagem escrita com estímulo, para que a criança, sempre ativa, componha textos decorrentes de suas ideias e opiniões. Considerações: o professor deve voltar o seu trabalho para o hábito de elaboração do pensamento antes de escrevê-lo, a fim de buscar exercícios que fixem essa prática. Deve-se investir também em trabalhos individuais, curtos e simples. Considerações: deve o professor estimular o aperfeiçoamento da linguagem escrita, com predominância dos trabalhos individuais que propiciem a expressão do pensamento infantil. Considerações: dado o conhecimento dos anos anteriores, deve-se trabalhar com as correspondências (cartas, bilhetes, telegramas e convites), bem como com os jornais de classe, como estímulo ao desenvolvimento da expressão escrita.
Sumário da matéria: cópia de palavras associadas a desenhos; cópia de sentenças; ordenação de palavras; completar e formar sentenças; exercícios de vocabulários; respostas a perguntas; e ditado. Sumário da matéria: copiar, formar e completar sentenças; compor e reproduzir historietas; responder a perguntas orais ou escritas; redigir bilhetes e cartinhas; exercícios de vocabulário e ditado. Sumário da matéria: formar, completar, ordenar e reduzir sentenças; compor e reproduzir histórias e resumir contos; transformar prosa em poesia; descrever pessoas, animais, objetos, gravuras e cenas; cópia e ditado. Sumário da matéria: reproduzir e compor histórias; empregar e desenvolver provérbios; resumir assuntos; passar prosa para poesia; descrever gravuras; redigir correspondências e biografias; e realizar ditados.
Orientação: trabalhar a linguagem escrita sempre associada a desenhos, inicialmente com a cópia e depois com formulações próprias. Estimular a organização das ideias e a ampliação do vocabulário mediante situações reais da vida das crianças. Orientação: o trabalho com a linguagem escrita deve ser uma ligeira ampliação do desenvolvido no 1º ano, com a preocupação de incutir na criança o hábito de realizar seu trabalho da melhor maneira possível, observando e pensando antes de escrever. Orientação: trabalhar com composições fruto das motivações individuais, para garantir que os alunos estejam suficientemente informados sobre os temas ou assuntos. Não exigir longos trabalhos, estimular a expressão do pensamento próprio infantil e habituar a criança a rever e a ajudar os colegas. Orientação: a composição escrita deve ter como ponto de partida as atividades da classe ou da escola e as demais disciplinas do programa, sempre vinculada a atividades de interesse das crianças.
Gramática aplicada Objetivos: despertar o interesse pela linguagem correta, fazendo sentir o seu valor nas relações sociais; habilitar a criança a descobrir os próprios erros e a falar e escrever corretamente. Considerações: o professor deve manter o trabalho iniciado no 1º ano, mediante aulas de conversação, de leitura, de preparo, de correção de trabalhos escritos, de exercícios e de jogos especiais. Além disso, deve estimular o emprego dos conhecimentos adquiridos no cotidiano de uso da linguagem. Considerações: a partir do 3º ano, deve-se empregar a nomenclatura gramatical, mas de modo cuidadoso, dando ensejo à observação direta dos fatos da língua, a fim de levar a criança a generalizar normas. Considerações: devido ao cabedal de conhecimentos acumulados nos anos anteriores, no 4º ano, deve-se induzir algumas abstrações, com atividades de ordenação, classificação e compreensão das regras gramaticais.
Considerações: o ensino da gramática deve ser feito de modo prático e indutivo, partindo-se do empirismo ligado às experiências infantis e às leis gramaticais.
Sumário da matéria: exercícios para aperfeiçoamento da expressão e correção de erros e vícios; flexão de número e gênero das palavras simples; uso do ponto final, da interrogação e da exclamação; e emprego de maiúsculas e parágrafo. Sumário da matéria: estudo do substantivo, do adjetivo, do verbo; dos sinônimos e antônimos; contagem do número de sílabas; emprego de ponto final, interrogação, exclamação, vírgula, maiúsculas e parágrafo. Sumário da matéria: estudo do sujeito e de seu predicado; substantivo, adjetivo, pronome e verbo; classificação de sentenças e palavras; emprego de pontuação e parágrafo. Sumário da matéria: estudo da sentença (sujeito, predicado, substantivo, adjetivo, pronome pessoal e de referência e preposição); conjugação dos verbos; classificação das sentenças e das palavras; formação das palavras; pontuação e acentuação.
Orientação: por meio de situações interessantes, motivadoras e lúdicas (como jogos), promover exercícios que visem à expressão clara e perfeita de um pensamento. Orientação: ampliar o desenvolvimento da linguagem por meio do enriquecimento das experiências decorrentes do contato com situações reais e favoráveis proporcionadas por livros, recortes, jogos e outros recursos atrativos. Orientação: o ensino da gramática nessa série deve afastar as classificações complicadas, organizando-se em duas etapas: a primeira voltada ao conhecimento prático dos fatos gramaticais; a segunda voltada à indução das regras, definições e classificações. Orientação: deve-se seguir as mesmas orientações dos anos anteriores, com garantia da necessária motivação através de exercícios interessantes.

Fonte: São Paulo (1949a, 1949b, 1949c, 1950)

Conforme se pode verificar pelas informações sintetizadas no Quadro 1, o programa de 1949-1950 apresenta, de forma detalhada, os objetivos, os conteúdos e as orientações didáticas para o ensino da língua portuguesa no ensino primário, buscando coerência com os princípios de uma escola ativa, a qual valoriza a experiência e as vivências do aprendiz, favorecendo o trabalho voltado ao interesse e à atividade como construção de bases sólidas para o desenvolvimento da civilidade e do progresso individual e coletivo.

Ao tomar a linguagem como elemento de estruturação e expressão do pensamento, subjaz a essas prescrições o pressuposto de que a erudição e o uso correto da língua possibilitam à criança maior treino dos hábitos necessários ao convívio social, de tal modo que ela aprenda como expressar-se corretamente em público, saiba fazer uso apropriado da linguagem oral e da linguagem escrita, em função de suas necessidades cotidianas, utilize a leitura como modelo de correção e como meio de assimilação de conhecimentos e busque, na expressão verbal, a elegância e a organização das ideias necessárias ao desempenho das atividades sociais. Com isso, destaca-se nesse programa a proposta de um trabalho que visava à aprendizagem prática e indutiva da língua, partindo-se do empirismo, que conectava a ‘experiência’ às ‘leis’. Caberia ao professor, dessa forma:

[...] levar a criança a adquirir a noção experimental dos fatos da linguagem, a exprimir seus pensamentos com vocabulário próprio e boa síntaxe [...] Mais tarde, porém [...] já possuindo a criança maior desenvolvimento da capacidade de compreender o domínio prático dos princípios da linguagem, a sistematização do ensino torna-se necessário, para que ela infira dos fatos as leis que os regulem, melhor os compreenda e mais firmemente os retenha.

O ensino deve ser feito do particular para o geral em passos sucessivos, levando a criança a perceber as relações e atributos, a desdobrar, precisar e completar as noções, a prover para, espontaneamente, generalizar e formular as definições e regras da linguagem (São Paulo, 1949a, p. 45).

Com relação ao aspecto metodológico, observa-se nessas prescrições a orientação para o uso de conjunto diversificado de técnicas e recursos pedagógicos, todos com a finalidade de aproximar a escola da atividade espontânea, sendo a vivência do aluno o centro do processo educativo. Para isso, são sugeridas atividades como: utilização de gravuras do cotidiano infantil; descrição e composição a partir de pessoas, animais e fatos conhecidos; observação do contexto doméstico e escolar; abordagem nos exercícios orais e escritos de temas correntes (vestuário, alimentação, afazeres domésticos, estudos etc.); utilização de comentários e expressões das crianças como elementos de estudo; transmissão e composição de recados ou textos que propiciem treino social; palestras; jogos e atividades lúdicas; invenção de histórias; criação de jornal escolar; conversação; pesquisas; realização de excursões; uso de diário; simulação de lojinhas; organização de festas; organização de bibliotecas de sala de aula; sistematização e registro de relatos, dentre outros.

Como se observa, é possível compreender o regramento do ensino da língua aliado à vida da criança, especialmente pela adoção de recursos didáticos e metodológicos centrados na noção do ‘aprender fazendo’, que imprime a esse programa uma de suas principais marcas de inovação com relação à tradução do ideário escolanovista para o campo das prescrições pedagógicas. Desse ponto de vista, ainda que parte dos conteúdos elencados nesse programa de 1949-1950 remonte a aspectos do ensino da língua previstos em programas anteriores (Oliveira, 2016), ele representa importante inovação no campo pedagógico da época, seja pelo formato detalhado e minucioso, seja pelo redirecionamento do papel da língua na formação escolar da criança, ou pelo emprego de metodologia e recursos didáticos sob outra lógica.

O sentido da Escola Básica e a reorientação curricular na década de 1960

Após a publicação do programa de ensino de 1949-1950, que representou a conquista de um dos últimos terrenos do campo pedagógico pelos renovadores paulistas, até o início da década seguinte, 1960, o pensamento escolanovista permaneceu como base das orientações pedagógicas no estado de São Paulo, porém não mais com o tom combativo, publicitário e de persuasão das primeiras décadas do século XX (Souza, 2009).

Em 1959, como sintoma de uma nova etapa do movimento de reconstrução educacional (Sanfelice, 2007), os pioneiros da renovação ‘mais uma vez convocados’ e os representantes de novas gerações de educadores preocupados com o presente e o futuro da escola pública lançaram um novo manifesto2 ‘ao povo e ao governo’, a fim de reafirmar e atualizar o compromisso e a luta por uma escola de qualidade, de acesso democrático e voltada ao desenvolvimento social. Na sua nova versão, o manifesto de 1959:

[...] sem abandonar sua linha de pensamento original, deixava um pouco de lado a preocupação de afirmar os princípios da Escola Nova, para, acima de tudo, tratar do aspecto social da educação, dos deveres do Estado Democrático e da imperiosa necessidade de não só cuidar o Estado da sobrevivência da escola pública, como também de efetivamente assegurá-la a todos (Romanelli, 1986, p. 179).

Nesse contexto, a luta continuava a ser contra a ‘escola tradicional’ e suas características, mas outras urgências e problemas foram se impondo à educação paulista, por exemplo, como a precariedade das escolas, a insuficiência de vagas, a descontinuidade entre ensino primário e secundário, a má formação dos professores, o rendimento escolar e a inexequibilidade dos programas. Com isso, ao longo dos anos de 1960, especialmente após a aprovação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em dezembro de 1961 (Lei Federal nº 4.024), e a difusão das orientações do Programa de Assistência Brasileira-Americana ao Ensino Elementar (PABAEE), diferentes iniciativas reformistas foram ensaiadas em São Paulo, com o propósito de promover melhorias na escola pública e reagir contra as críticas de perda de qualidade de seu ensino (Souza, 2008).

Dentre essas iniciativas, ganharam destaque as ações reformistas efetuadas entre 1967 e 1970, quando Antônio de Barros Ulhôa Cintra ocupou o cargo de Secretário da Educação do estado de São Paulo, e José Mário Pires Azanha, o cargo de Diretor do Departamento de Educação.

Logo que assumiram esses cargos, Ulhôa Cintra e José Mário Pires Azanha se incumbiram de promover duas importantes reformas na educação paulista, uma de caráter administrativo, com vistas à modernização da pasta e em consonância com os anseios do então governador, Abreu Sodré, e outra direcionada à reformulação do próprio sistema de ensino, objetivando a implantação de uma nova política educacional. Desse modo, já nos primeiros meses de 1967, o Departamento de Educação produziu, em versão preliminar, o documento direcionador de suas ações, o Plano de educação de São Paulo, no qual se desenhou o perfil das medidas a serem implantadas nos anos seguintes.

Nesse plano, no tocante ao ensino primário, há destaque para a necessidade fundamental de as políticas educacionais da época se voltarem aos problemas da expansão do atendimento e da melhoria qualitativa da educação paulista, pois esses constituíam a principal fragilidade a ser enfrentada para concretização de um ensino público universal e de qualidade. Para tanto, na visão dos gestores da Secretaria da Educação, a carência de vagas e a qualidade do ensino não podiam ser vistos como problemas dissociáveis ou alternativos. Para eles,

[...] o ‘déficit’ de vagas tem de tal modo sido sobreposto aos demais problemas, que a melhoria da qualidade apenas mereceu tratamento parcial e aleatório e, por isso mesmo sem resultados expressivos e cumulativos. Essa situação tem se agravado tão rapidamente nos últimos anos, que a ninguém escapa, nem mesmo ao leigo, a flagrante deteriorização dos padrões de ensino oferecido nas escolas primárias. No entanto, tal constatação não deve conduzir ao êrro oposto do que se tem cometido. Expansão da rêde e melhoria do ensino não são e não podem ser objeto de uma opção que seria absurda, pois nem o reerguimento do ensino primário pode ser remetido para um tempo em que a última criança encontra vaga nas escolas, nem a ampliação do atendimento pode ser detida até que se complete uma renovação dos padrões do ensino. Ambos os problemas exigem uma abordagem conjunta e integrada (São Paulo, 1967, p. 4, grifo do autor).

Diante desse desafio, com relação à ampliação da rede, o Plano de educação de São Paulo, de 1967, propôs o esforço de desenvolvimento e de aplicação de recursos estaduais, municipais e federais na busca de novas soluções para se evitar a expansão tumultuada e desorganizada da rede, assim como a mobilização da opinião pública, de entidades e de instituições particulares, para cederem espaço para a instalação de novas escolas até que a construção de novos edifícios fosse possível.

Com relação à melhoria da qualidade do ensino, o plano de 1967 destaca que a questão a ser reformulada correspondia a problema muito maior que a simples renovação dos métodos, pois se tratava da necessidade de profundo redimensionamento de todo processo educativo elementar. Com isso, se entendia necessário romper com a concepção das funções sociais da escola primária, que desde as primeiras décadas do século XX insistia em atribuir a essa instituição o papel de ‘agência realizadora’ de tarefas que extrapolavam seus limites e finalidades. Nessa lógica, argumenta-se nesse plano que:

[...] num contexto urbano-industrial em elevado estágio de desenvolvimento, a escola primária forme a personalidade integral do educando, não é, de maneira alguma, valorizar-lhe as funções. É antes uma colocação ingênua e até certo ponto prejudicial por quê, desconsiderando as reais possibilidades de ação da escola primária, lhe propõe objetivos quê, por inatingíveis, não propiciam ao processo educativo a orientação, necessária à sua organização e desenvolvimento. Uma instituição que retém a criança durante apenas algumas horas do dia, quase sempre empobrecendo o seu ambiente, não pode nem deve se propor à formação integral de personalidade dessa criança porque essa é uma tarefa irrealizável nessas condições (São Paulo, 1967, p. 5-6).

Mediante essa visão e planificação ainda preliminar, em março de 1967, foi nomeado pelo Secretário da Educação um grupo de trabalho para reformulação do currículo e dos programas do ensino primário de todo estado, adotando-se como ‘espírito’ o pressuposto de uma educação primária verdadeiramente fundamental e básica, com base em modelo de escola que pudesse garantir o possível e o mínimo necessários para o progresso das aptidões pessoais dos educandos. Competiu a esse grupo, portanto, a missão de elaborar um programa simples e singelo, responsável apenas por exercer papel integrador das experiências dos alunos, contribuindo para o desenvolvimento harmônico de suas respectivas personalidades.

Nessa lógica, o ideal de simplicidade não compreendia apenas medida para fugir das prescrições minuciosas tão criticadas nas reformas anteriores, mas

[...] condição de diferenciação e de complementação, que se fará levando em conta as características peculiares a cada comunidade em que a escola viva. Somente assim - básico e comum -, haverá o ensejo para que a escola realize a experiência integradora de experiências (São Paulo, 1968, p. 8).

No ano seguinte ao da formação desse grupo de trabalho, em 1968, foi publicado o documento Programa da escola primária do Estado de São Paulo (São Paulo, 1968), o qual incidiu, além da definição de novas prescrições de ensino, em nova reorganização da escolarização primária. A partir desse novo programa, o ensino primário, ministrado em quatro anos, passou a compreender dois níveis: o nível I, correspondente à primeira e segunda séries, e o nível II, correspondente à terceira e quarta séries. Essa medida, conforme explica Souza (2008), significou, de certo modo, a adoção da ideia de ciclos de estudos, alterando também a lógica do sistema de avaliação do rendimento escolar, pois em cada nível os exames tinham função diagnóstica e não mais seletiva.

Com essa nova organização, o nível I tinha caráter preparatório e sua avaliação se voltava predominantemente ao ensino da língua, entendida como aquisição do mecanismo da leitura. O nível II consistia em ensino sistemático e mais normativo, abrangendo sete áreas de estudo.

Essas mudanças operacionalizadas no ensino primário paulista, embora tenham permanecido em vigor por tempo relativamente curto, pois a instituição do ensino de 1º e 2º graus, em 1971, viria alterar profunda e definitivamente esse ensino, corresponderam a importante movimento de instauração de um novo conceito de escola no estado de São Paulo, antecipando e delineando a configuração da chamada ‘escola básica’, que se desenvolveu nas décadas seguintes (Souza, 2009).

Bases conceituais e prescrições para o ensino do português no advento da Escola Básica (1968)

Quanto ao ensino da língua portuguesa no Programa da escola primária, de 1968, no diálogo com os propósitos ‘singelos’, sem ‘excessos’, sem ‘conteúdos exaustivos’ e ‘básicos’, verifica-se a manutenção de alguns dos princípios da escola ativa, em especial o do trabalho centrado na atividade e na experiência do aluno, porém a finalidade desse ensino passou a se restringir à criação das primeiras condições para o desenvolvimento de sensibilidades necessárias à identificação do mundo físico existente.

Por esse prisma, o ensino do português, cuja matéria passou a ser denominada ‘Língua pátria’, permaneceu definido com base no pressuposto da linguagem como expressão do pensamento, no entanto assumiu uma outra finalidade, a de dotação da criança de suas capacidades de criação e expressão mediante a fala e a escrita. Explicita-se, com isso, que o ‘bom ensino’ da língua deveria corresponder ao ensino da leitura integral e da composição plena para fins práticos, sendo tudo o mais secundário, inclusive a gramática.

E razão desses pressupostos, se definem como objetivos gerais do ensino da língua portuguesa nos dois níveis do ensino primário: possibilitar à criança expressão precisa e correta de suas ideias; favorecer o enriquecimento do vocabulário; desenvolver técnicas específicas de linguagem como integração ao meio social; e possibilitar a criança a apreciar o que é significativo e belo na língua escrita e falada.

Para atender a esses objetivos, as prescrições para ‘Língua pátria’ se organizam em leitura, composição oral e escrita e iniciação gramatical, conforme síntese apresentada na Quadro 2.

Quadro 2 Síntese das prescrições para o ensino da língua portuguesa no Programa da escola primária do Estado de São Paulo (1968). 

Leitura Composição oral e escrita Iniciação gramatical
Nível
I
Primeira e segunda séries Ensino organizado em: - aprendizagem da leitura - voltada ao domínio da leitura, à formação de vocabulário básico, ao reconhecimento do significado das palavras, ao desenvolvimento de habilidades de compreensão (leitura silenciosa), à formação e ao desenvolvimento de hábitos e atitudes de leitura oral e ao enriquecimento da expressão; - leitura recreativa - direcionada à valorização da leitura como meio de recreação; - leitura informativa - voltada à aquisição e fixação de conhecimentos. Centralidade no trabalho com a composição prática e que atenda às necessidades sociais de comunicação, possibilitando a expansão do poder criador. Propõe-se trabalho com a valorização da expressão escrita como instrumento de comunicação do pensamento, tendo como centralidade as finalidades práticas da escrita (bilhetes, recados, relatórios, convites, notícias, informações, ordens). Trabalho voltado: à aprendizagem das formas corretas de grafia; ao estímulo de ver, ouvir, pronunciar e escrever vocábulos, sílabas e letras; a induzir princípios simples de ortografia; e a desenvolver, de forma incidental, a expressão correta do pensamento, mediante a composição oral e escrita.
Nível II Terceira série O ensino deve compreender: melhoria do domínio da leitura; enriquecimento vocabular e de experiências; desenvolvimento da compreensão e da velocidade; e ampliação das habilidades de leitura para fins de estudo. Manutenção da centralidade na composição, com ênfase: no desenvolvimento da composição imaginativa e de expansão do potencial criador; no desenvolvimento da composição prática para situações reais de comunicação; no desenvolvimento das habilidades de audição; na valorização da expressão escrita como instrumento de pensamento; e na observação das próprias falhas para se alcançar bons padrões de escrita. O trabalho com a gramática deve ter como finalidade a leitura. Deve-se abandonar o ‘endeusamento’ da palavra e voltar-se à oração, pois é somente por meio dessa matéria-prima que se pode aprender conhecimentos gramaticais. Como é a leitura que constitui a finalidade do ensino do idioma, não se deve tratar de normas gramaticais sem se tomar como medida o texto sugestivo, rápido e útil.
Quarta série O ensino deve compreender: aperfeiçoamento da leitura; ampliação vocabular; enriquecimento de experiências; intensificar e aperfeiçoar hábitos orais; intensificar a velocidade da leitura; valorizar a leitura como fonte de recreação; incentivar a leitura espontânea; intensificar e valorizar a leitura para fins de estudo. O trabalho deve: desenvolver a composição imaginativa e a composição prática, bem como o aperfeiçoamento da capacidade de pensar e organizar ideias; ampliar os domínios da composição prática e das habilidades de audição; e valorizar a expressão escrita como instrumento de comunicação do pensamento. Trabalho com dez classes gramaticais e estudo da oração (sujeito e predicado) e do período simples e composto.

Fonte: São Paulo (1968).

Conforme se verifica pelos dados apresentados na Quadro 2, o programa de 1968 se apresenta bastante sintético, sobretudo se comparado ao programa anterior, de 1949-1950. As prescrições contidas nele consistem na definição apenas de pontos genéricos a serem ensinados com relação à língua, tendo como direcionamento três perguntas básicas: o que deve a criança aprender? O que pode a criança aprender? Para que deve aprender?

Reconhecida a limitação que a escola representa como aparato de formação integral, o ensino da língua se apresenta aberto, de tal modo que se busca garantir apenas noções básicas sobre o papel da leitura e da composição como instrumentos de organização e sistematização do pensamento e como elementos imprescindíveis para o desenvolvimento de outras capacidades de comunicação social e potencialidades expressivas.

Nota-se, com isso, que não há grande diversificação das prescrições para cada uma das séries. O que perpassa é a ideia de enriquecimento gradativo das experiências e das atividades envolvendo o uso da língua, visando sempre ao preparo para a realidade prática. Trata-se de prescrições pautadas no pressuposto da revisão, consolidação, ampliação, aprofundamento e sistematização ao longo de cada nível e cada série. Nesse aspecto, merece destaque a importância que se observa com relação ao lugar ocupado pela composição, pois esse componente da língua é entendido como uma forma de reunir ideias e transmitir/expressar pensamentos e sentimentos, ou seja, compreende toda a finalidade do ensino da linguagem.

Também se observa nessas prescrições pouca ênfase nos conhecimentos de natureza gramatical, asseverando-se o discurso contrário à normatização da língua e ao estudo de regras.

Outro diferencial do programa de 1968 é quanto às orientações metodológicas. As prescrições para o ensino da língua contidas nesse programa são excessivamente abertas, quase lacunares, com a ausência total de orientação metodológica. Diferentemente do programa anterior, esse se coloca contrário às indicações dessa natureza, pois parte-se do princípio de que o programa não se encerra em si mesmo. Ao se propor a apresentar um conteúdo funcional, a ideia é que o programa permitisse “[...] processos criadores e de espírito de pesquisa; [valorizasse] a capacidade individual” (São Paulo, 1968, p. 6).

Dessa forma, cabe ao professor realizar trabalho pautado na ampla liberdade, que se descobre em práticas de ensino que propicie a preparação para o futuro. É função dele, então: “[...] ser um técnico. Profissional hábil. Competente. Atualizado. Líder. O estudo é seu descanso. Um intelectual” (São Paulo, 1968, p. 139).

Por intermédio dessas características, pode-se compreender que as prescrições contidas no programa de 1968 significaram um importante movimento de conversão do ensino da língua, antes de caráter ampliado e estruturante da própria sociedade, em aprendizagens básicas e elementares, com finalidade prática e de realização futura, corporificando o ideal de escola básica ou mínima.

Considerações finais

Estritamente ligados à ideia de que o ordenamento de conteúdos e a determinação de orientações curriculares configuram lócus central de consolidação dos projetos de educação e sociedade que se impõem à escola, os documentos aqui analisados indicam importante movimento de modernização das propostas para o ensino da língua portuguesa entre as décadas de 1940 e 1960, apontando redefinição de sua finalidade e de seu papel na formação do alunado. Nesse sentido, mais do que corresponder a uma simples seleção cultural de conteúdos, esses programas assumiram, no interior das reformas de que decorreram, a missão de concretizar grande parte dos ideais pedagógicos que se disseminaram no período.

Nesse sentido, o que se nota, tanto nos programas estabelecidos em 1949-1950 quanto na reformulação ocasionada em 1968, é a manutenção de uma base conceitual centrada na concepção de língua e de linguagem como mecanismo de expressão do pensamento, referindo-se ao papel da escola como o de desenvolver nas crianças a capacidade dessa expressão.

Esse entendimento sobre a língua/linguagem se vincula, em certa medida, à tradição filosófica iniciada entre os séculos XVIII e XIX, denominada por Bakthin (2009) ‘subjetivismo idealista’, que se fundou na defesa de profunda interdependência entre a palavra e o pensamento. Nessa tradição, a linguagem constitui a própria razão, pois sem a primeira não pode haver o pensamento. Rompe-se, portanto, com a ideia da linguagem como sistema acabado, como um produto, atribuindo-se a ela aspecto criador, como atividade e produção, seja em perspectiva pragmática, seja em perspectiva semântica.

Em vista disso, embora os programas aqui analisados se sustentam em mesma base conceitual para o entendimento da língua/linguagem, verifica-se entre eles uma alteração substancial no que se refere à finalidade e ao sentido do ensino do português.

Enquanto no projeto escolanovista esse ensino se volta à erudição, com base na correção por meio de treino e de exploração quase exaustiva de conteúdos, no projeto da escola básica, a centralidade da aprendizagem da língua está no mínimo necessário para o desenvolvimento da capacidade de composição e de leitura, com vistas ao uso ‘prático’. De um modelo prescritivo minucioso, que almejava grandiosa formação cultural associada ao desenvolvimento da moralidade, da civilidade e do sentimento nacionalista, se apresentam, no rompimento com as funções sociais realizadoras da escola, prescrições simplificadas, direcionadas ao modesto incremento de alguns aspectos da personalidade mediante experiências integradoras.

Dessa forma, enquanto na modernização curricular operada pelo princípio escolanovista prevalece a ideia enciclopédica do ensino da língua, visando a atingir o máximo de aperfeiçoamento da expressão verbal e oral como um dos pilares do intento civilizatório, a modernização prescrita sob os princípios da escola básica se ancora no mínimo necessário para o desenvolvimento de potencialidades futuras e capacidades expressivas em razão da ‘educação para a vida’. Passa a ter a escola, no que compete ao ensino do português, a “[...] finalidade soberana [de] ensinar a criança a pensar” (São Paulo, 1968, p. 139), em contraposição à ideia de integralidade de formação do sujeito.

Pelo exposto, ainda que o movimento de modernização curricular para o ensino da língua portuguesa levado a cabo no estado de São Paulo entre 1949 e 1968 seja marcado por algumas permanências, sobretudo no que tange ao princípio filosófico e conceitual de entendimento da língua e da linguagem, vislumbra-se e confirma-se, por meio dele, o movimento de ruptura entre a cultura escolar moldada desde o início da República e o despontar de um modelo de escola básica desenvolvido a partir das décadas finais do século XX pelo prisma da razão técnico-instrumental (Souza, 2009).

Referências

Bakhtin, M. (2009). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, SP: Haucitec. [ Links ]

Escobar, J. R. (1934). A construção científica dos programas. São Paulo, SP: Imprensa Oficial. [ Links ]

Goodson, I. (2010). Currículo: teoria e história. Petrópolis, RJ: Vozes. [ Links ]

Lourenço Filho. (1930). Escola Nova. Revista Escola Nova, 1(1) 3-8. [ Links ]

Mais uma vez convocados: manifesto ao povo e ao governo. (1959). O Estado de S. Paulo. [ Links ]

Nagle, J. (1974). Educação e sociedade na primeira república. São Paulo, SP: EPU. [ Links ]

Oliveira, F. R. (2016). A reforma do ensino da língua portuguesa na escola primária paulista sob a égide da escola ativa (1949-1950). São Carlos, SP: Pedro & João Editores. [ Links ]

Romanelli, O. (1986). História da educação no Brasil: 1930-1973. Petrópolis, RJ: Vozes. [ Links ]

Sanfelice, J. L. (2007). O manifesto dos educadores (1959) à luz da história. Educação e Sociedade, 28(99). [ Links ]

São Paulo. (1949a). Ato nº 17, de 23 de fevereiro de 1949. Programa para o ensino primário fundamental - 1º ano. São Paulo, SP: Livraria Francisco Alves. [ Links ]

São Paulo. (1949b). Ato nº 24, de 07 de abril de 1949. Programa para o ensino primário fundamental - 2º ano. São Paulo, SP: Livraria Francisco Alves. [ Links ]

São Paulo. (1949c). Ato nº 46, de 26 de julho de 1949. Programa para o ensino primário fundamental - 3º ano. São Paulo, SP: Livraria Francisco Alves. [ Links ]

São Paulo. (1950). Ato nº 05, de 09 de janeiro de 1950. Programa para o ensino primário fundamental -4º ano. São Paulo, SP: Livraria Francisco Alves. [ Links ]

São Paulo. Secretaria da Educação e da Saúde Pública. (1933). Decreto nº 5.884, de 21 de abril de 1933. Código de educação do Estado de São Paulo. São Paulo, SP: Imprensa Oficial. [ Links ]

São Paulo. Secretaria de Educação. Departamento de Educação. (1967). Plano de educação de São Paulo (documento preliminar). [ Links ]

São Paulo. Secretaria de Educação. Departamento de Educação. (1968). Chefia do Ensino Primário. Programa da escola primária do Estado de São Paulo - nível I. São Paulo: Secretaria da Educação. [ Links ]

São Paulo. Secretaria de Estado dos Negócios da Educação e Saúde Pública. (1941). Programa de ensino para as escolas primárias [1925]. São Paulo, SP: Serviço Técnico de Publicidade. [ Links ]

Souza, R. F. (2008). História da organização do trabalho escolar e do currículo no século XX: ensino primário e secundário no Brasil. São Paulo, SP: Cortez. [ Links ]

Souza, R. F. (2009). Alicerces da pátria: história da escola primária no estado de São Paulo (1890-1976). Campinas, SP: Mercado de Letras. [ Links ]

1Integraram essa comissão: Luiz G. C. Castro (presidente); Dirce Ribeiro de Arruda; Francisca Portugal Gouvêa; Maria Aparecida Pimenta; Maria Odila Guimarães Bueno; Mathilde Brasiliense Almeida Bessa; Orlando Simonetti; e Palmyra Amazonas Sampaio Morais (São Paulo, 1949c).

2Esse novo manifesto, intitulado ‘Mais uma vez convocados: Manifesto ao povo e ao governo’, foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 1º de julho de 1959, com a assinatura de mais de 80 educadores e escritores da ‘antiga’ e ‘nova’ geração dos sujeitos que se empenhavam em “[...] resguardar a escola pública das ameaças que pesam sobre ela” (Mais uma vez convocados..., 1959, p. 8). Esse documento, assim como o de 1932, foi redigido por Fernando de Azevedo.

5Rodadas de avaliação: R1: três convites; uma avaliação recebida. R2: três convites; uma avaliação recebida.

6Como citar este artigo: Oliveira, F. R. Entre a Escola Nova e a Escola Básica: a modernização curricular para o ensino do português no ensino primário paulista (1949-1968). (2022). Revista Brasileira de História da Educação, 22. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e232

Recebido: 12 de Julho de 2021; Aceito: 27 de Dezembro de 2021; Publicado: 24 de Setembro de 2022

E-mail: fer.tupa@gmail.com.

Fernando Rodrigues de Oliveira é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Departamento da Universidade Federal de São Paulo. Pós-doutorado em História da Educação junto à Unesp-Araraquara. Mestre e Doutor em Educação pela Unesp-Marília; graduado em Pedagogia pela Unesp-Marília e em Letras pela Faculdade da Alta Paulista. Coordenador do NIPELL - Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Ensino de Língua e Literatura. Atua com pesquisas históricas sobre: Literatura infantil e juvenil; Ensino de Língua Portuguesa e de Literatura; Currículo, Disciplinas Escolares e edições didáticas. E-mail: fer.tupa@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-5609-550X

Editor-associado responsável: Cláudia Engler Cury E-mail: claudiaenglercury73@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-2540-2949

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons