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Revista Brasileira de História da Educação

versão impressa ISSN 1519-5902versão On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.22  Maringá  2022  Epub 01-Set-2022

https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e233 

Artigo Original

Festa da Árvore (décadas de 1920-1930): vida ao ar livre e múltiplos sentidos da festa escolar1

Arbor Festival (1920s-1930s): outdoor life and multiple meanings of the school party

Fiesta del Árbol (1920-1930): vida al aire libre y múltiples significados del festival escolar

Nara Romero Montenegro1  * 
http://orcid.org/0000-0002-9630-2243

Carmen Lucia Soares1 
http://orcid.org/0000-0002-4347-1924

André Luiz Paulilo1 
http://orcid.org/0000-0001-8112-8070

1Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil.


Resumo:

A Festa da Árvore era uma cerimônia realizada por escolas brasileiras que tinha como prática central o plantio de árvores por alunos. Outras práticas de sentido festivo e de atuação, como canto de hinos, recitação de poesias, apresentações de ginástica, eram também inseridas na programação do evento. Este artigo tem como objetivo analisar os sentidos pedagógicos da Festa da Árvore no contexto de cidades cearenses entre as décadas de 1920 e 1930, a partir de um conjunto de fontes constituído por jornais, revistas e impressos. No período recortado, duas transformações relativas ao tema estavam em curso: a inserção do movimento Escola Nova, liderada no estado do Ceará por Lourenço Filho, e a emergência de novas concepções a respeito da vida ao livre.

Palavras-chave: festa escolar; história da educação; educação no Ceará; Festa da Árvore

Abstract:

The Arbor Festival was a ceremony held by Brazilian schools whose central practice was the planting of trees by students. Other practices of festive sense, such as singing hymns, reciting poetry, gymnastics presentations were also included in the event's program. This article aims to analyze the pedagogical meanings of the Arbor Festival in the context of cities in Ceará between the 1920s and 1930s, from a set of sources consisting of newspapers, magazines, and prints. In the period two transformations related to the theme were underway: the insertion of the Escola Nova movement, led in the state of Ceará by Lourenço Filho, and the emergence of new conceptions regarding the outdoor life.

Keywords: school festival; history of education; education in Ceará; Arbor Festival

Resumen:

La Fiesta del Árbol fue una ceremonia realizada por escuelas brasileñas cuya práctica central fue la plantación de árboles por parte de los estudiantes. Otras prácticas de sentido festivo y actoral, como cantar himnos, recitar poesía, presentaciones de gimnasia también se incluyeron en el programa del evento. Este artículo tiene como objetivo analizar los significados pedagógicos de la fiesta de los árboles en el contexto de las ciudades de Ceará entre las décadas de 1920 y 1930, a partir de un conjunto de fuentes compuesto por periódicos, revistas e impresos. En el período destacado, se estaban produciendo dos transformaciones relacionadas con el tema: la inserción del movimiento Escola Nova, liderado en el estado de Ceará por Lourenço Filho, y el surgimiento de nuevas concepciones sobre la vida libre.

Palabras clave: festival escolar; historia de la educación; educación en Ceará; Fiesta del Árbol

Introdução

A festa que ora se realizava tinha este objectivo: - fazer a propaganda do plantio e da protecção às arvores. Aquellas crianças que ali viam, tinham vindo plantar arvores para dar exemplos aos grandes. Que todos concorressem para revestir o nosso solo de florestas novas (A Ordem, 1923, p. 1).

Publicado em 1923, o excerto acima pode ser lido no jornal A Ordem e narra, com riqueza de detalhes, a realização da primeira Festa da Árvore pelo Grupo Escolar de Sobral. O núcleo do evento era bem claro, consistia em uma cerimônia na qual crianças e jovens escolares plantavam árvores em espaços públicos da cidade. Ao redor desse objetivo central, outras práticas e discursos se encaixavam, fazendo desse dia um autêntico evento que comunicava, em linguagem festiva, concepções de educação e sensibilidade, em que um apreço pela natureza e a vida ao ar livre ganhavam centralidade no âmbito de uma nova ordem urbana.

A Festa da Árvore expressava um nítido esforço da educação escolar do período de comunicação com a sociedade, evidenciando sua função pedagógica modelar, socializadora e cívica, conferindo aos alunos, e não só aos professores e aos diretores, uma ação exemplar. Afinal, eram os alunos que “[...] tinham vindo plantar arvores para dar exemplos aos grandes. Que todos concorressem para revestir o nosso solo de florestas novas” (A Ordem, 1923, p. 1).

Destacar o papel dos alunos como modelo a ser seguido é expressão que vai, por exemplo, atribuir à concepção de educação do período um sentido redentor. A Festa da Árvore seria uma das manifestações dessa concepção educacional que vinha sendo discutida e colocada em prática no contexto da jovem educação republicana brasileira, sobretudo a partir da década de 19202. Com as reformas na instrução pública realizadas no país, a fim de republicanizar a república, como menciona Carvalho (2000), à educação foi atribuída uma função essencial ao progresso da nação no combate central ao analfabetismo. A importância medular que a educação e a crença no seu potencial regenerador assumem nesse período nos discursos proferidos por autoridades públicas conferem protagonismo à agenda escolar, ao calendário e às práticas escolares, dentre as quais, as festas3 (Carvalho, 2000).

Esses eventos, como a Festa da Árvore, eram evidentemente usados como capitalização política, mas também como expressão de uma concepção nova de educação, com apelo modernizador, voltado para a ideia de progresso e com finalidades sociais. Indicado pelo reformador paulista Sampaio Dória, Lourenço Filho apresentou-se ao governador do Ceará, Justiniano Serpa, para dirigir a Instrução Pública daquele estado. Entre 1922 e 1924, Lourenço Filho promoveu uma reforma da instrução que simbolizou um importante marco na efetivação de transformações na educação cearense (Oliveira, 2010, 2013). Considerada uma precursora na difusão dos princípios da chamada Escola Nova, a reforma educacional de 19224 fez parte do amplo movimento de renovação escolar que reuniria nomes como Lourenço Filho, Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo nas iniciativas de construção de um sistema educacional público, gratuito e laico no país.

Dentre as inúmeras transformações nas esferas educacionais, novas práticas realizadas pelas escolas desejaram transpor os muros escolares. Esse foi o caso da Festa da Árvore, evento que se estendia pelas cidades afirmando-se não apenas em sua materialidade com o plantio de árvores mas também em suas dimensões sociais e morais. A Festa da Árvore, como dispositivo simbólico, manifestou ideais de educação, de sociedade pretendida, de identidade, de passado e de futuro. De certo modo, pode-se inferir que essa festa estava em sintonia com uma exortação da vida ao ar livre na cidade em que certa atenção pedagógica, ainda que muitas vezes de maneira informal, era dedicada a uma concepção benéfica da natureza em formação.

No cenário em que emerge um modelo escolar que buscava evidenciar, divulgar e assimilar preceitos republicanos, as festas tornam-se parte dessa cultura escolar ancorada na ideia de uma educação das sensibilidades e da celebração de uma concepção de natureza e vida ao ar livre decorrentes da nova ordem urbana que se instaurava. É, pois, nesse contexto que este artigo toma a Festa da Árvore no Ceará como objeto para examinar os múltiplos sentidos pedagógicos ali inscritos. A Festa da Árvore será tomada entre as décadas de 1920 e 1930, período de grande disseminação no Brasil do movimento Escola Nova, especificamente, no Ceará pela chegada, com certo ânimo, de Lourenço Filho, um dos seus principais idealizadores.

A metodologia deste artigo é de caráter bibliográfico-documental, sendo mobilizadas, além da historiografia das festas escolares, da educação brasileira e cearense, fontes históricas constituídas por edições dos jornais A Ordem e A Lucta, de Sobral, bem como o jornal A Razão, de Fortaleza5. As edições consultadas correspondem aos anos de 1923 a 1938, período disponibilizado pela plataforma de busca realizada na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Mobilizamos, ainda, o Hino da Árvore e publicações da Revista de Ensino, sobretudo aquelas redigidas pelo educador Lourenço Filho, diretor da instrução pública do estado do Ceará em parte do período recortado.

A Festa da Árvore e a exortação da vida ao ar livre

A Festa da Árvore guarda, mesmo que indelevelmente, vestígios de sentimentos e gestos de certa celebração em relação ao mundo vegetal, sendo oportuno tentar capturar parte desse universo sensível. Conforme analisou Corbin:

Desde a Antiguidade, as árvores, notadamente as maiores entre elas impuseram a sensação de aspiração, aquela do elam sugerido pela manifestação súbita do tronco, que se projeta em direção ao céu. Mais tarde, durante a Idade Média, essa propulsão simboliza o desejo de perfeição. Para os cristãos desse tempo, a árvore é promessa de vida e de saúde. Ela representa a esperança. Não deixa de ser surpreendente que tenha sido desenvolvido, na profundidade do tempo, um vivo culto da árvore, sendo ela considerada divina, como um ‘colosso mitológico’ (Corbin, 2013, p. 56, grifo do autor).

Ainda, segundo o autor, no fio do tempo, “[...] a emoção mais fortemente sentida na presença de uma árvore sublinha sua sacralidade [...]”; sua presença organiza o espaço, demonstra a passagem do tempo, ela “[...] é o calendário que anuncia o eterno retorno das estações, estrangeira que ela é ao tempo linear e irreversível do homem [...]” (Corbin, 2013, p. 46). Para Gaston Bachelard (1990):

[...] A árvore reúne e ordena os elementos os mais diversos [...] a árvore é, pois, um ser que o sonho profundo não mutila [...] A vida vegetal, se estiver presente em nós, infunde-nos uma tranquilidade do ritmo lento, seu grande ritmo tranquilo. A árvore é o ser do grande ritmo, o verdadeiro ser do ritmo anual. É ela que se mostra a mais nítida, a mais exata, a mais segura, a mais rica, a mais exuberante em suas manifestações rítmicas [...] (Bacherlard, 1990, p. 210, 228).

Calendário do mundo, marcador das estações, portadora de sombra e frutos, as árvores simbolizam generosidade, beleza, proteção de uma terra que, sem elas, torna-se árida, sem vida. Em seus galhos e folhas, tronco e raízes habitam pássaros e insetos, e as crianças vêm ali brincar. As árvores parecem ser um verdadeiro parque de jogos, morada fantástica que abriga sonhos infantis. É nas copas das árvores que o personagem de Italo Calvino6, o pequeno Barão, vai viver; ele abandona a vida terrestre e segue seu desejo pelas alturas, misturado às ramagens, olhando o céu por entre os galhos, se abrigando do sereno com as folhas, se alimentando dos frutos. As árvores, assim, nutrem não apenas o solo, a terra, as rochas mas também a imaginação.

Efetivamente, celebrações que dão centralidade às árvores, plantas e estações, ou seja, que enaltecem o mundo vegetal, são práticas milenares elaboradas por inúmeras sociedades, devido à relação entre natureza e tempo, o ciclo da vida, a morte, o passado e o futuro. A Festa da Árvore aqui analisada, inserida no modelo escolar republicano brasileiro, ainda que conserve parte da relação simbólica da natureza-tempo, deve ser considerada no âmbito de uma instituição moderna, de intenções laicas, em consonância com a crescente urbanização nas cidades, baseada no racionalismo científico e paralela à formação de identidade nacional e regional que congregava esse novo cenário.

Em diferentes países, a Festa da Árvore realizada por escolas ocorreu na celebração da natureza e de seus benefícios já constatados pela ciência moderna. Em Portugal, por exemplo, essa festa ocorria desde o período monárquico, e seu apogeu deu-se na primeira república portuguesa, de forma que, no ano de 1913, grande parte das escolas do país realizava a referida festa (Rodrigues, 2010). Suas origens modernas, ainda segundo Rodrigues (2010), remontam à Revolução Francesa, em que plantações comemorativas com intensas cargas simbólicas eram dedicadas ao novo regime. Remetem também à celebração do Arbol Day nos Estados Unidos a partir da segunda metade do século XIX, comemoração em torno do plantio de árvores e ações de propaganda dos benefícios da arborização.

No Brasil, de acordo com a Revista de Ensino de 1902, uma das primeiras Festas da Árvore realizada e registrada por uma instituição escolar teria ocorrido nos primeiros anos de República, na cidade de Araras no interior de São Paulo (Cândido, 2019a). Em Minas Gerais, segundo Gerken (2009), já na década de 1920, um decreto-lei sobre o Regulamento do Ensino Primário instituía a realização anual da Festa da Árvore nas escolas do estado no dia 21 de setembro7. No esforço de discutir o que significavam as festas escolares no período de modernidade pedagógica e expansão do sistema público e estatal de ensino, Cândido (2019a) destaca algumas rupturas (apesar da conservação de sua função ritualística), amparadas no modelo republicano, nas quais a educação se tornava gradualmente uma questão pública, menos associada à esfera privada. Ademais, era uma instituição representativa da figura do Estado e, portanto, indicativa dos progressos do modelo político implantado. Celebrar essa nova escola era marcar uma ruptura com a educação anterior e, consequentemente, com o modelo político que a antecedeu.

No Ceará, a realização da Festa da Árvore nesses moldes coincide com a difusão do movimento da Escola Nova no estado. Em linhas gerais, certos ideários e orientações desse movimento já vinham sendo implantados por meio de reformas na década de 1920 ao redor do país. Segundo Nagle (1974), nesse momento, um grande entusiasmo rondou a educação, atribuindo-lhe um papel fundamental no suposto desenvolvimento pretendido da nação. Discursos do período passaram a favorecer a multiplicação das escolas, tornando-as mais acessíveis às camadas sociais menos favorecidas da população. Educação, portanto, passou a ser um fator de progresso nacional, embora as reformas tenham sido encaminhadas por cada estado da federação de forma quase autônoma, de acordo com um modelo político descentralizado da época.

A reforma da instrução pública, no Ceará, foi realizada no ano de 1922, no governo de Justiniano Serpa, resultante da Lei nº 1.953, que dispunha sobre Instrução Pública do Ceará. O pedagogo paulista Lourenço Filho desempenhou papel central em sua elaboração e realização, tornando-se, naquele momento Diretor Geral da Instrução Pública do Estado, cargo criado no âmbito dessa nova legislação. Oliveira (2010) destaca, como importantes mudanças da reforma de 1922, além da criação de uma gestão pública sistematizada a partir da diretoria geral da instrução, que dividia o estado em regiões administrativas, a criação de cursos de formação de professores sobre a pedagogia nova, o reforço da inspeção escolar e um amplo e precursor recenseamento das escolas do Ceará.

Carvalho (2000) acrescenta ainda que houve uma investida na mudança de mentalidade do professorado, em especial no âmbito da Escola Normal e na criação da Escola Modelo8. Foram várias as iniciativas para alcançar essa finalidade e, dentre elas, destaca-se a criação de curso de férias, organizado e ministrado por Lourenço Filho, que assume no momento “[...] as cátedras de Pedagogia e Psicologia na Escola Normal do Estado, atingindo dois terços do professorado cearense” (Carvalho, 2000, p. 234). Essa nova mentalidade expressava uma intenção de alcançar um desenvolvimento mais amplo de todas as aptidões da criança em que não se negligenciavam os aspectos emocionais e físicos, o estímulo a uma vida ao ar livre com a realização de excursões, piqueniques, estudos do meio. As festas escolares estavam, assim, no coração das ideias pedagógicas da época, as quais a reforma incorporava.

O significativo aumento de matrículas após a implantação da reforma atesta sua importância. Segundo Nagle, “A reforma cearense pode ser considerada pioneira quanto à penetração do ideário escolanovista nos sistemas escolares estaduais e do Distrito Federal” (Nagle, 1974, p. 250).

Em linhas gerais, considera-se, como uma marcante característica da Escola Nova e de boa parte das reformas que a antecederam, a centralidade que a criança adquire nesse modelo pedagógico9. O método intuitivo trazia elementos inéditos para a esfera escolar.

Pressupondo um ensino que partisse do concreto para o abstrato, do próximo para o distante, o método valorizava a aquisição de conhecimentos pelos sentidos. Era pela visão, tato, audição, paladar e olfato que a criança seria levada a conhecer o mundo que a cercava. O ensino seria realizado pelas ‘lições de coisas’ - maneira como foi vulgarizado (Vidal, 2000, p. 509, grifo do autor).

A partir dessa perspectiva, o método intuitivo, mais experimental, mais prático, passa a valorizar as variedades de objetos e espaços como recursos pedagógicos. Novos objetos entram na escola, e alguns de seus espaços passam por reestruturações, construindo-se, por exemplo, museus pedagógicos e ambientes mais amplos e arejados para desenvolvimento de novas práticas, como a ginástica ao ar livre. Justificavam-se ainda as saídas dos escolares para outros locais da cidade, seja para aprendizagem com objetos, fatos da natureza e coleta de materiais, seja por meio de excursões, passeios e apresentações com finalidades cívicas e festivas (Vidal, 2000).

O sentimento de medo e fascínio diante das diversas mudanças que vinham ocorrendo nas cidades em crescente urbanização e modernização exigia novas formas de apreciá-las. Nesse sentido, as festas apostaram em renovados lugares para harmonia e fruição dos espaços, de forma que a “As cidades precisariam tornar-se um local de deslocamento, de trabalho, mas também de culto à pátria, de comunhão cívica, da recepção estética, do cultivo do belo, da harmonia e da ordem” (Veiga, 2000, p. 401). Prédios escolares, jardins, praças, parques, dentre outros ambientes da cidade, passaram a ser desfrutados a partir de sua dimensão sensível e de sua capacidade de despertar variadas sensibilidades.

A Escola Nova, que tinha o prazer e o interesse pelo conhecimento autônomo, individualizado e racionalizado como âmago de seu método pedagógico, recorreu à educação dos sentidos10, com base em práticas pedagógicas ocorridas nas ruas e na realização de festas escolares. Por outro lado, nessa concepção de educação, na qual a linguagem é uma experiência sensível, as festas escolares eram uma importante manifestação, visto que favorecia a formação de um espírito de coletividade, de harmonia, de comunidade, pois eram publicamente visíveis e compartilhadas com a população (Veiga, 2000).

Cândido (2019a) divide as festas escolares realizadas no período em três categorias: festas da escola (início e final do ano letivo, aniversário da escola), festas cívicas (Tiradentes, Independência, Proclamação da República) e festas da natureza (aves e árvores). A Festa da Árvore, inserida na terceira categoria, tinha, segundo a autora, a função dupla de incutir valores relacionados à natureza num contexto de crescente urbanização e, ao mesmo tempo, associá-la a conceitos abstratos de pátria, nação, república, civismo.

No começo do século XX, especialmente em capitais brasileiras e cidades mais populosas, um ideário de vida ao ar livre ligado a uma concepção de natureza domesticada passou a ser evocado por médicos, educadores e urbanistas. Essa natureza era vista como uma possibilidade de desintoxicação dos novos regimes próprios da vida urbana e dos males modernos. Nesse período, tem-se a construção de diversos parques, jardins públicos, clubes, associações recreativas e esportivas na beira de rios, lagos e mares em diversas cidades do país, de forma que tais preceitos produziam representações de uma natureza ligada ao divertimento e à aventura, a qual era um dispositivo pedagógico e de saúde (Soares, 2016).

Portanto, essa natureza regeneradora e o ideário de uma vida ao ar livre chegam também ao espaço educacional.

[...] a ainda incipiente escola pública também é alcançada por esse ideário. Desde sua arquitetura que se deve deixar invadir pelos raios de sol até seu currículo que se deve modificar para acolher jogos e exercícios feitos ao ar livre, vivem-se novidades, disposições e atitudes inéditas em relação a uma natureza feita jardim que configura, pois, modos de educar e de curar, modos de sentir e de regenerar o corpo (Soares, 2016, p. 17-18).

Na capital do estado, Fortaleza, por exemplo, praças, parques e jardins foram construídos ou remodelados, canteiros de flores, chafarizes, pavilhões introduzidos. Mecanismos, certamente, de aformoseamento, mas também de valorização de espaços que permitiam maior circulação de ar e de pessoas, além da prática de exercícios e de outras atividades ao ar livre. “Médicos e higienistas recomendavam como salutares os passeios ao ar livre, as práticas esportivas, o movimento e o exercício dos corpos. Franziam os cenhos para a concentração de muitas pessoas em lugares fechados e pouco arejados [...]” (Ponte, 1993, p. 43).

É nesse cenário, portanto, que analisamos a Festa da Árvore no contexto cearense, considerando a ascensão de novas ideias pedagógicas e sua efetiva conformação no âmbito da Escola Nova. A festa passa a ser compreendia como recurso ampliado de educação e, ao mesmo tempo, símbolo de comunhão da sociedade, de uma ampla valorização institucional da vida ao ar livre e a reinvenção da natureza na cidade.

A Festa da Árvore no Ceará

Uma das comemorações mais gradas aos escolares é, sem duvida, a festa da arvore. O plantio de uma arvore, cantos e recitativos, um passeio e, ás vezes, um convescote, são esperados com verdadeira ansiedade pelo mundo infantil (A Razão, 1936a, p. 2).

A Festa da Árvore - como assinala o excerto do jornal A Razão - era uma cerimônia esperada entusiasticamente, realizada desde a década de 1920 por grupos escolares de cidades cearenses consideradas mais urbanizadas11. A Festa da Árvore teria sido instaurada oficialmente a partir de reforma da instrução pública do Ceará de 1922 por seu mentor Lourenço Filho, segundo Almeida (2009). Nesse evento, previsto para ocorrer no primeiro sábado de maio em todos os estabelecimentos do ensino primário do estado, havia práticas tradicionalmente escolares e não escolares, em ambientes diversificados, além da participação de membros de vários grupos sociais com interesses diversos, desde a recreação até os políticos, os quais se reuniam em torno de um elemento bastante emblemático da natureza: a árvore. O regulamento da reforma, então, se ocupou de orientar como a Festa da Árvore deveria ser organizada:

Essa festa que será feita em lugar combinado pelos professores da localidade, ou directores com as autoridades municipais, constará do plantio de árvores úteis, realizado por um grupo dos alunos mais distintos, e por ocasião do qual um dos professores explicará o fim da festa, que é o de despertar, nos brasileiros, a compreensão da riqueza das florestas e do beneficio que as plantas trazem à alimentação, ao conforto e a regularidade do clima. As crianças cantarão o Hyno das Árvores, aprovado pela Directoria da Instrucção, e recitarão trechos alusivos ao acto (Ceará apud Vieira, 2006, p. 184).

Essas festas contavam com a participação de estudantes, professores, diretores, políticos, bem como da população em geral, na qualidade de plateia ou assistência. Eram anunciadas antecipadamente na imprensa, numa linguagem entusiasmada, e posteriormente noticiadas com abundância de detalhes, tendo sua programação em partes narradas, os discursos comentados e as diversas reações descritas. O momento central do evento era o plantio de árvores pelos estudantes, entretanto a ela antecediam e sucediam outras práticas de caráter cívico, artístico, estético, pedagógico, político e recreativo.

O hasteamento da bandeira nacional e o canto de hinos (hino nacional, hino da independência, hino da escola, hino da árvore) apareciam como parte da programação de todas as festas da árvore analisadas. Ensaiar e cantar um mesmo hino servia ali à formação de um espírito coletivo de comunidade, delineando-se um evento também cívico. O hino nacional e o da independência, certamente, tinham a intenção de congregar toda a comunidade escolar com a população. O hino da escola oferecia o mesmo sentimento, mas reduzido, sobretudo à comunidade escolar, e, como apresentação ao público, explicitava-se a função socializadora da escola. Por sua vez, o hino da árvore manifestava, acompanhadas da força estética de um conjunto de crianças apresentando-o, as representações da convidada principal da festa: a árvore, como nota-se nos seguintes versos do poeta Olavo Bilac, consagrado no período.

Quem planta uma árvore enriquece

a terra, mãe piedosa e boa;

E a terra aos homens agradece,

a mãe aos filhos abençoa.

A árvore, alçando o colo cheio

de seiva forte e de esplendor,

deixa cair do verde seio

a flor e o fruto, a sombra e o amor.

Crescei, crescei, na grande festa

da luz, do aroma e da bondade,

árvores-glória da floresta!

árvores-vida da cidade!

Crescei, crescei, sobre os caminhos,

árvores belas, maternais,

dando morada aos passarinhos,

dando alimento aos animais!

Outros verão os vossos pomos!

Se hoje sois fracas e crianças,

nós esperanças também somos:

plantamos outras esperanças!

Para o futuro trabalhamos:

pois, no porvir, nossos irmãos

hão de cantar sob estes ramos,

e bendizer as nossas mãos! (Hino da Árvore apud Rodrigues 2010).

Os versos do hino trazem à festa diversas possibilidades de representações da árvore e da cerimônia que a homenageava. Na primeira estrofe, “Quem planta uma árvore enriquece/a terra, mãe piedosa e boa;”, anuncia-se o sentido duplamente redentor do ato de plantar uma árvore: o revigorar de uma terra no seu sentido mais literal possível e, ao mesmo tempo, no sentido alegórico, como terra mãe, terra pátria.

O sentido festivo do hino também é explícito, quando aparecem harmonicamente os convidados, os pássaros, os animais, a beleza e os filhos da terra que “hão de cantar sob estes ramos,/e bendizer as nossas mãos”, e conclama a árvore ao seu espaço tradicional: “árvores-gloria da floresta!”, mas também é bem-vinda ao novo espaço urbano: “árvores-vida da cidade!”.

O uso de expressões que marcam ciclos do crescimento das árvores (a seiva, a flor, o fruto, o aroma), as explicitações repetidas vezes do desejo ‘crescei’ e o contraponto entre o presente ‘se hoje sois’ e ‘plantamos outras esperanças’ com o futuro ‘outros verão’ e ‘no porvir’ estabelecem relação profunda entre a árvore e o tempo. Alegoria de memória, de ligação entre passado, presente e futuro, símbolo de uma regeneração dupla, a árvore e a festa das árvores encenavam, a partir de uma proposta educacional, representações que misturavam intenções literais e cívicas em torno do novo propósito republicano e de um modelo escolar em implantação.

Era uma festa, portanto, que tinha como função despertar o apreço e cuidado pela natureza no contexto de urbanização e industrialização; ao mesmo tempo, nas palavras de Cândido (2019a, p. 242), eram acrescidas outras funções “[...] com o advento da república brasileira associadas à concretização de conceitos abstratos como pátria, nação, república e civismo”. Não por acaso, eram comuns discursos de diretores da instrução pública ou de grupos escolares, além da presença de políticos ou autoridades, como na Festa da Árvore do Grupo Escolar de Sobral de 1923, em que estiveram presentes o prefeito municipal, um padre representando o bispo diocesano, o inspetor escolar local, um coronel representando o Grêmio Sobralense e um deputado (A Ordem, 1923).

Os significados políticos e cívicos da Festa da Árvore, bem como o interesse no capital político que ela despertava para alguns membros daquela sociedade eram evidentes. A partir de um esforço de afastar-se de uma concepção interpretativa de sentido e representação única, entende-se que as fontes também comunicavam outras intenções pedagógicas, novas práticas e interesses de um modelo escolar em implantação, que estava certamente ancorado no modelo político republicano, mas que não o era totalmente por ele explicado.

No discurso de abertura da primeira Festa da Árvore realizada na cidade de Sobral, Newton Craveiro, então delegado do ensino e principal auxiliar de Lourenço Filho, teria feito um discurso destacando a importância da preservação, da proteção e do plantio de árvores, associando-as aos rios, ao solo e ao clima do estado do Ceará:

O território do Ceará era coberto antigamente por florestas não tão grandes como as da Amazonia, mas suficientes para proteger o solo contra as soalheiras intensas dos trópicos. Tinhamos rios permanentes; as arvores espalharam por todos os recantos, a sombra e a frescura, a melodia dos passaros e o contorno das paisagens. E agora, o que é que vemos? O machado, a foice, as queimadas destruíram tudo. Os rios secaram, o solo se torna desvestido e inabitável. Si os homens não intervirem immediatamente para por termo a essa obra brutal de destruição dentro de pouco tempo o Ceará estará transformado num deserto. E’ preciso, por isso, que todos se congracem para a defesa das arvores, que são o encanto da vida e dão matéria prima das industrias, das arvores que fazem os climas, que atraem as bençãos do cèo: - as chuvas. A festa que ora se realizava tinha este objectivo: - fazer a propaganda do plantio e da protecção ás arvores. Aquellas crianças que ali viam, tinham vindo plantar arvores para dar exemplos aos grandes. Que todos concorressem para revestir o nosso solo de florestas novas. A solução do problema da sêcca dependia em grande parte do reflorestamento. Seria das florestas que havia de surgir a grandeza economica do Estado (A Ordem, 1923, p. 1).

Em seu discurso, Craveiro buscava sensibilizar uma plateia de crianças e adultos para a importância da árvore e de seu reflorestamento contra o fenômeno mais trágico que assolava o estado: as grandes secas, caracterizadas por períodos de estiagem prolongada. Em seu discurso, a origem do problema partiu da mão humana: “[...] o machado, a foice, as queimadas destruíram tudo”. A solução poderia vir desta mesma origem “[...] que todos se congracem para a defesa das arvores que fazem os climas, que atraem as bençãos aos céus - a chuvas [...]” e “A solução do problema da sêcca dependia em grande parte do reflorestamento”.

O desenvolvimento econômico da região dependia, em alguma medida, do esforço de mudança de atitude em relação à natureza. A escola, considerada por sua perspectiva de educação como motor da sociedade, tinha papel fundamental nessa sensibilização. Diferentemente de uma natureza alegórica, natureza como terra-mãe significando pátria, a natureza do discurso de Craveiro é muito mais material, causa da pobreza ao mesmo tempo que potencial de seu desenvolvimento. O cuidar da terra e reflorestá-la pensando em sua prosperidade econômica e social não necessariamente se opõem aos discursos que associavam a natureza à identidade nacional e regional em forma alegórica. Entretanto o argumento que se evidencia na sensibilização da questão no discurso do educador Newton Craveiro passa muito mais pela assimilação de uma racionalidade prática, a qual é mais técnica do que metafórica, muito diferente dos versos do Hino da Árvore de Olavo Bilac.

Nesse sentido, havia uma intenção, mesmo tipicamente pedagógica, manifestada, sobretudo nas palestras sobre a importância do plantio de árvores, do reflorestamento para o bem comum e do desenvolvimento local. Além de outros pequenos momentos, por exemplo, na identificação das árvores a serem plantadas, na qual havia uma turma de crianças vencedoras de outros prêmios, conduzindo as múdas das arvores a serem plantadas; após, em duas alas, [havia] os alunos do Grupo que conduziam magníficos estandartes em sêda onde se liam: ‘Algodoeiro’, ‘Joaseiro’, ‘Carnahubeira’, ‘Oiticica’ (A Ordem, 1923). Existia ali o objetivo de ensinar a importância do plantio de árvores, assim como instruir o olhar a identificá-las, nomeá-las, distingui-las e valorizá-las.

Em outras partes da programação dos eventos, evidenciavam-se práticas de linguagem mais alegóricas e artísticas: bandas, desfiles, leitura de versos, cançonetas e cânticos, apresentações de ginástica, bailados. Os próprios prédios escolares eram “[...] artisticamente ornamentados” (A Ordem, 1923, p. 1), expressando, em sua arquitetura, a intenção contemplativa daquela festa. Algumas dessas práticas exaltavam as cidades, outras a escola, algumas ainda tinham teor religioso, a maioria, entretanto, se referia ao personagem principal da festa: a árvore. Ela era o tema dos versos declamados e das cançonetas cantadas, entremeadas com apresentações de ginástica e bailados ensaiados, formando um espetáculo com uma linguagem múltipla, mas coerente, e proporcionando harmonia entre escola e sociedade, cidade e natureza.

Os poemas eram alguns escritos e declamados por alunos, outros de autoria de poetas consagrados, como Olavo Bilac, Paulo Setúbal e Olegário Mariano. Em seus títulos, novamente, destacava-se a relação do tempo com a árvore, em O velho tronco e Árvore nova, velhas árvores, de Olavo Bilac, e Árvores antigas, de Olegário Mariano (A Razão, 1936b; A Razão, 1936a, p. 2). Por sua longevidade, sua dimensão, as árvores assumem um caráter quase transcendental, formando, nas palavras de Rodrigues (2010, p. 99), “[...] elos de ligação entre tempo passado e o tempo vindouro [...]”, entre a geração passada, a presente e a futura, entre as possibilidades do que a cidade foi e do que poderá ser.

Havia ainda versos que expressavam uma visão humanizada da árvore, atribuindo-lhe sentimentos, como em Árvores tristes (Paulo Setúbal), A voz das cinzas(A Razão, 1936a) e o que parece ser uma fábula em poesia, em O algodoeiro e a seringueira (A Razão, 1936b); e a cançoneta A camponesa e o arboricultor (A Razão, 1936c). Aqui aparece um casal, um par supostamente romântico, entre o algodão e a borracha, importantes produtos nos ciclos econômicos locais e nacionais, assim como na relação conjugal entre a mulher, expressa no substantivo feminino ‘camponesa’, e o homem, quando adotado o substantivo masculino ‘arboricultor’. Outros poemas e canções centralizavam a relação mais ampla com outros elementos da natureza e misturavam-se a bailados, como em A árvore e a lagoa, Canção das flores e bailado, Canção dos pássaros e bailado, Canção a natureza (A Razão, 1936a, p. 2; A Razão, 1936b).

Os sentimentos humanos que as relações com as árvores são capazes de despertar remetem as suas diversas representações12. Desde sua sabedoria baseada na sobrevivência duradoura, na experiência do tempo e da idade até a admiração diante dos mistérios de seu funcionamento, sua sobrevivência e alimentação. Seu caráter cíclico de existência, com folhagens ora abundantes, ora secas, reflete ideias de riqueza e escassez, proteção e desamparo, frio e calor, alegria e tristeza. Apreendem-se ideias de vida desse resistente vegetal, assimilando-os a códigos e sensações humanas.

[...] todas as árvores são símbolos da verticalidade ao estabelecerem a ligação entre o mundo subterrâneo (onde residem as raízes), a superfície da terra (através do tronco) e as alturas (onde se estendem os ramos e as folhas); mas também são símbolo da vida, da transformação e da evolução (ciclos anuais, morte e regeneração), da fecundidade e fertilidade, da segurança (pela sua estabilidade) e de proteção (pela sombra que proporcionam) (Rodrigues, 2010, p. 99).

Junto aos poemas, às cançonetas e aos bailados, também eram comuns apresentações de ginástica. Na Festa da Árvore do grupo escolar de Quixadá de 1936, realizou-se um “[...] número de ginastica dramatizada por pequenas alunas ao som da cançoneta a camponesa e o arboricultor” (A Razão, 1936c, p. 7). Em Sobral, na primeira Festa da Árvore realizada na cidade, um desfile escolar de 350 crianças uniformizadas teria sido ensaiado e comandado pela professora de ginástica sueca, ao som da “Marcha do Centenario e Euterpe Sobralense” (A Ordem, 1923, p. 1). Na Festa da Árvore de Fortaleza, em 1936, houve também uma “[...] demonstração de uma lição de cultura física, pelos alunos do grupo José Gonzaga e Olavio Pereira” (A Razão, 1936a, p. 2).

A ginástica do período, incluindo sua presença na instituição escolar, era fruto de uma expressão de caráter científico, partindo de princípios de utilidade dos gestos, da economia de energia, da simetria, do caráter ordenativo, metódico (Soares, 1998). A referência a uma professora de ginástica sueca13 supõe que aquelas apresentações estavam inseridas nessa lógica científica de raízes europeias, racionais, simétricas, além de sua própria expressão aparecer em forma de desfile, isto é, caminhada milimetricamente ensaiada, realizada por alunos uniformizados ao som de uma marcha de caráter cívico.

As apresentações de ginástica no ambiente escolar tinham ainda o potencial de evidenciar a importância do projeto educacional em curso. Seria uma forma de exaltá-lo, a partir de uma linguagem que recorria a códigos de emoções, harmonia e beleza: “Expressão de cultura física, cultura estética e emoção cívica, os números apresentados pareciam consolidar o ideal daqueles que diziam ser o povo alheio ao belo e, por isso, precisava ser educado” (Veiga, 2000, p. 417). A demonstração em público representa muito mais do que simplesmente o ensaio de movimentos e gestos, manifesta sobretudo o resultado de um projeto maior capaz de mobilizar simbolicamente toda função socializadora de uma educação institucionalizada.

Nesse mesmo sentido, o próprio educador Lourenço Filho teria interpretado a força pedagógica e social das diversas apresentações das festas escolares. Ao colocar-se em público, as crianças estariam experienciando toda a dimensão de uma preparação sistematizada, estabelecendo relações com valores da disciplina, bem como códigos de socialização como a ordem e as linguagens de recompensas e desaprovação.

As festas educam pelos números de canto, de ginástica, pela evocação ou representação de fatos dignos de serem imitados, pela atitude de maior espontaneidade em que as crianças se devem encontrar. [...] obedecendo prontamente a um gesto de silêncio ou de ação; sabendo guardar a necessária disciplina, as crianças têm oportunidade para gravar, indelevelmente, muitas lições proveitosas. [...] As festas são lições vividas, pelas quais o aluno tem o maior interesse. A criança começa também aí a sentir o efeito da sanção social sobre os seus atos, pelos aplausos ou sinais de enfado e de crítica que percebe: sente que há um público, um conjunto de pessoas que louvam ou reprovam (Lourenço Filho, 1924, p. 71).

Os sentidos cívico e educativo das festas eram intenções constituintes desse evento, sem, contudo, resumir-se unicamente a isso. O sentido festivo associado à diversão e ao contentamento também era evidenciado. Era comum as programações contarem ainda com passeios e piqueniques, bem como jogos com bolas e brincadeiras do período, como bola ao círculo, corrida de estafetas, miss ball, bola aérea, de forma que o jornal não deixava de sublinhar esses momentos de animação e entusiasmo em expressões como “A parte da educação física, que interessou sobremodo a meninada e a assistência numerosa” (A Razão, 1936a, p. 2). Eram, portanto, momentos de recreação para as crianças e que compunha, talvez, partes de imprevisibilidade, espontaneidade e expressividade, ensejando, além da relação afetiva entre as crianças, vínculos com espaços da cidade, praças, jardins, parques públicos ao ar livre.

Os momentos recreativos, de animação e entusiasmo propiciados pela Festa da Árvore eram preparados e aproveitados na sala de aula. As aproximações entre a escola e a civilidade não escaparam à preocupação educativa do legislador quando determinava:

Sempre que houver oportunidade, em qualquer aula, o professor chamará a atenção da classe para o carinho que deve ser dispensado às árvores mostrando quanto é prejudicial sua destruição, e acentuando que é imprevidente e falta de espírito de civilização todo aquele que destrói as árvores ou danifica qualquer planta útil (Ceará apud Vieira, 2006, p. 184).

Portanto, como procuramos mostrar aqui, a Festa da Árvore era assistida e aproveitada pela ‘meninada’ e suas famílias em espaços outros que a escola, através de outros meios que não a aula. As palavras de um discurso pronunciado ou de uma canção entoada, as apresentações de ginástica, os jogos ou os passeios e piqueniques associavam ao preparo escolar da criança uma vivência ao ar livre da cidade.

Considerações Finais

A Festa da Árvore, como parte de uma cultura festiva escolar e da sociedade, era um evento realizado nas escolas e locais públicos no começo do século XX, em várias cidades brasileiras, no contexto de consolidação do sistema republicano e da implementação de um modelo escolar moderno representado pelo movimento Escola Nova.

No contexto de cidades cearenses, em que reformas na instrução pública foram movidas por intelectuais escolanovistas como Lourenço Filho, já na década de 1920, a Festa da Árvore era uma cerimônia que aparecia como parte da programação de grupos escolares de algumas cidades do estado, demonstrando um novo lugar para a escola naquela sociedade, com ênfase na educação dos sentidos e na valorização da vida ao ar livre.

A Festa da Árvore reunia membros da comunidade escolar, alunos, professores, diretores, autoridades locais e parte da população como espectadores. Era, dessa forma, um momento de encontro da escola com a sociedade, entremeado por uma programação que comunicava em diversas linguagens (símbolos nacionais e regionais, palestras argumentativas, demonstrações artísticas e gímnicas, práticas recreativas) a valorização e aproximação com as árvores. O conjunto da festa reverberava, a partir da árvore, em sentidos voltados ao nacionalismo republicano, à modernidade, ao tempo, à disciplina, à preservação da natureza, à função socializadora da escola, aos benefícios de uma vida ao ar livre, enfim, numa série de mensagens formando um complexo aparentemente harmônico e festivo.

A Festa da Árvore aqui analisada, portanto, não deve ser representada apenas como uma expressão de uma escola disciplinadora e propagandista do incipiente sistema republicano. Embora esses aspectos se façam presentes para a compreensão do evento, outras dimensões eram também convidadas à festa. Intenções de reelaboração da relação da sociedade com a natureza eram evidentes, por meio do incentivo ao plantio e, em maior escala, ao reflorestamento, mediante palestras com argumentos de conscientização em relação à preservação da natureza. Além disso, uma linguagem sensível, emocional e estética se expressava através de poemas, danças e canções, estabelecendo importantes vínculos afetivos com a árvore, a natureza e a vida ao ar livre.

Essas apresentações, bem como as de ginástica, serviam certamente aos simbolismos cívicos e disciplinadores, mas também estabeleciam uma importante relação da escola com o seu exterior, do espaço privado com o público, da esfera fechada da sala com o ambiente aberto ao ar livre, explicitando-se sua função socializadora e eminentemente pública. De forma similar, as práticas recreativas de jogos e brincadeiras, passeios e piqueniques, inauguravam espaços na cidade, ao ar livre, e instituíam relações diversas, comunitárias e de sentidos múltiplos.

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1 Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES).

2Outras estratégias de difusão dos ideais renovados de educação podem ser encontradas em Carvalho (2000), Veiga (2000), Vidal (2000) e Paulilo (2009, 2015).

3A festas escolares vêm sendo tema de pesquisas no campo da história da educação. Ver, dentre outros, Cândido (2019a, 2019b); Silva (2017); Moraies e Nanael (2020); Silva (2015); Veiga (2000); Gerken, (2009).

4A reforma educacional de 1922 corresponde à Lei nº 1.953 (1922), que dispõe sobre a Instrução Pública do Estado do Ceará.

5O jornal A Ordem era dirigido por Craveiro Filho, integrante do partido político republicano conservador sobralense. O jornal A Lucta era dirigido por Deolindo Barreto Lima, o qual possuía alinhamento republicano e liberal. O jornal A Razão, de Fortaleza, tinha como diretor Monte Arraes, opositor da Aliança Liberal.

6Italo Calvino escreve o romance Os nossos Antepassados em 1990, sendo a tradução brasileira feita pela Companhia das Letras, em 1997. Nesse livro, constituído de três partes, encontra-se aquela denominada ‘O barão nas árvores’, em que o personagem central, o pequeno Barão Cosme, vai viver nas copas das árvores.

7A Festa da Árvore consta no art. 297 da Lei nº 7.970-A, de 15 de outubro de 1927, o qual versa sobre o Regulamento do Ensino Primário (Gerken, 2009).

8Foi ainda iniciada a profissionalização do curso normal e a inclusão de novas disciplinas, como: anatomia e fisiologia humanas, pedagogia, história da educação, sociologia e psicologia (Oliveira, 2013).

9Cabe sublinhar que a Escola Nova não inventou o método intuitivo. Esse método já vinha sendo discutido desde final do XIX. Com o movimento escolanovista, entretanto, pode-se dizer que foi amplamente debatido e entrou efetivamente em prática em alguns contextos (Vidal, 2000).

10A educação dos sentidos e das sensibilidades é um campo em que se busca a definição, mobilização, estabilização e transformação das sensibilidades, atribuindo, portanto, centralidade à educação dos sentidos corporais e das emoções em detrimento das normativas e dos ideais pedagógicos. Vem sendo tema de diversas pesquisas no campo da história da educação, principalmente no domínio das práticas, dos usos, dos modos de fazer, agir e sentir (Taborda de Oliveira, 2018; Taborda de Oliveira, 2014; Somoza; Ângulo; Rocha, 2015).

11Neste artigo reunimos fontes das cidades de Fortaleza, Sobral e Quixadá.

12O livro de Corbin, La douceur de l’ombre: l’arbre source d’émotions, de l’Antiquité à nos jours, nos auxilia nesta análise acerca dos sentimentos despertados pelas árvores.

13Sobre a ginástica sueca no Brasil, ver os trabalhos de Moreno (2015); Moreno e Baia (2019); Moreno, Baia e Bonifácio (2019).

18Rodadas de avaliação: R1: três convites; duas avaliações recebidas.

19Como citar este artigo: Montenegro, N. R., Soares, C. L., & Paulilo, A. L. Festa da Árvore (décadas de 1920-1930): vida ao ar livre e múltiplos sentidos da festa escolar. (2022). Revista Brasileira de História da Educação, 22. DOI: http://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e233

Recebido: 09 de Agosto de 2021; Aceito: 08 de Dezembro de 2021; Publicado: 30 de Setembro de 2022

* Autora para correspondência. E-mail: nararomerom@hotmail.com.

Nara Romero Montenegro é Mestre em Educação, na linha de pesquisa Educação e História Cultural, no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Unicamp (2020). Possui Licenciatura em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (2016). Realizou a pesquisa de mestrado com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). É integrante do FOCUS- Grupo de pesquisa sobre Educação, Instituições e Desigualdade, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação da Unicamp. E-mail: nararomerom@hotmail.com https://orcid.org/0000-0002-9630-2243

Carmen Lucia Soares é professora titular da Unicamp e docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da mesma instituição; pesquisadora do CNPq-CA-ED-2 e editora-adjunta da Revista Pro-Posições. Foi Coordenadora de Área Ciências Humanas e Sociais - CHS III (Educação) da FAPESP (2017-2022). E-mail: carmenls@unicamp.br https://orcid.org/0000-0002-4347-1924

André Luiz Paulilo é Professor Associado da Unicamp e docente no Programa de Pós-Graduação em Educação da mesma Universidade. É coordenador do Centro de Memória-Unicamp e pesquisador do CNPq-CA-ED-2. E-mail: paulilo@unicamp.br https://orcid.org/0000-0001-8112-8070

Editor-associado responsável: Alicia Civera Cerecedo (Cinvestav - México) E-mail: malixa44@hotmail.com https://orcid.org/0000-0003-0021-2911

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