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Revista Brasileira de História da Educação

versão impressa ISSN 1519-5902versão On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.22  Maringá  2022  Epub 01-Set-2022

https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e234 

Artigo Original

Capas da Cacique: efeitos de sentido da infância, do brincar e da brincadeira em revista infantil (anos 1950)

Cacique covers: meaning effects of childhood, playing and game in a children's magazine (1950s)

Portadas de Cacique: efectos de significado de la infancia, jugar y juego en una revista infantil (años 1950)

Marilia Forgearini Nunes1 
http://orcid.org/0000-0003-3911-5588

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.


Resumo:

O artigo analisa capas de uma revista brasileira publicada nos anos 1950. Dentre 43 capas da Cacique assinadas pela mesma artista, foram selecionadas 18 para análise. A semiótica discursiva é a base teórico-metodológica, associada a argumentos da sociologia da infância, da técnica da ilustração e da história do impresso. Questiona-se sobre como os temas criança, brincar e brincadeira revelam efeitos de sentido e discursos relacionados ao contexto histórico da publicação. A análise demonstra que as capas transparecem uma infância restrita, com pouco espaço para uma cultura da infância, para brincar e agir criativamente. Reitera-se a importância dos impressos tanto sob a perspectiva da imanência de sentidos no objeto quanto sob a ótica dos efeitos de sentido históricos, sociais e culturais (re)construídos.

Palavras-chave: culturas da infância; imagem; impresso, semiótica

Abstract:

The article analyzes the covers of a Brazilian magazine published in the 1950s. Among 43 Cacique covers signed by the same artist, 18 were selected for analysis. Discursive semiotics is the theoretical-methodological basis, associated with arguments from the sociology of childhood, the technique of illustration and the history of print. It is questioned how the themes child, to play and playing reveal meaning effects and discourses related to the historical context of the publication. The analysis demonstrates that the covers reveal a restricted childhood, with little space for a childhood culture, to play and act creatively. The importance of printed material is reiterated both from the perspective of the immanence of meanings in the object and from the perspective of (re)constructed historical, social and cultural meaning effects.

Keywords: childhood cultures; image; print; semiotics

Resumen:

El artículo analiza las portadas de una revista brasileña publicada en la década de 1950. Entre 43 portadas de Cacique firmadas por el mismo artista, 18 fueron seleccionadas para su análisis. La semiótica discursiva es la base teórico-metodológica, asociada a argumentos de la sociología de la infancia, la técnica de la ilustración y la historia de la imprenta. Se cuestiona cómo los temas infancia, jugar y juego revelan efectos de significado y discursos relacionados con el contexto histórico de la publicación. El análisis demuestra que las portadas revelan una infancia restringida, con poco espacio para una cultura infantil, para jugar y actuar creativamente. La importancia del material impreso se reitera tanto desde la perspectiva de la inmanencia de significados en el objeto como desde la perspectiva de efectos de significado histórico, social y cultural (re)construidos.

Palabras clave: culturas de la infancia; imagen; impresión; semiótica

Introdução

Este estudo1, que se caracteriza como do tipo qualitativo-descritivo (Bogdan & Biklen, 1994), analisa 18 capas de uma publicação que circulou por quase uma década no Rio Grande Sul, Brasil. A descrição que se empreende procura evidenciar a significação das capas, colocando em diálogo, entre diferentes lentes teóricas, a semiótica discursiva, a semiótica plástica, a sociologia da infância e a história cultural.

A revista Cacique foi publicada no Rio Grande do Sul pelo Centro de Pesquisas e Orientação Educacionais - CPOE/RS da Secretaria de Educação e Cultura - SEC/RS em dois momentos distintos, sendo o primeiro de abril de 1954 a dezembro de 1959. Após breve período de interrupção de sua publicação, retornou de 1961 até 1963, quando deixou de circular2. A Cacique, segundo Bastos (2006), é um objeto representativo de uma ação político-pedagógica que pretendia “[...] divulgar o pensamento educacional oficial”. A publicação infanto-juvenil gaúcha pode ser caracterizada “[...] como uma ‘leitura de formação’, pois procura educar e moldar seus leitores, na perspectiva de ‘ensinabilidade da moral ou das virtudes’, é um periódico com função moralizadora e intenção educativa, cívica, patriótica e social” (Bastos, 2006, grifo do autor).

Neste estudo, a revista Cacique torna-se objeto de análise considerando, de maneira ampla, o argumento de que a publicação tinha função formativa (Bastos, 2006) e relacionando-o ao ser criança, ao brincar e às maneiras de brincar, elementos que, por meio das imagens da capa, eram promovidos pela Revista. Além disso, a Cacique é objeto empírico assumido como exemplar da cultura impressa de uma época, artefato cultural que interfere nos modos de ler e ser dos leitores pretendidos à época da publicação e que, contemporaneamente, pode auxiliar a traçar efeitos de sentido. O objetivo delimitado é perceber efeitos de sentidos que podem caracterizar a infância, o brincar e a brincadeira no final dos anos 1950 mediante as imagens apresentadas em um conjunto de capas dessa publicação.

A capa torna-se objeto de atenção na medida em que ela constitui um limite material de uma publicação, como um invólucro que seduz (Ramos & Panozzo, 2005) e, ao mesmo tempo, revela sentidos da publicação que ela embala. O que se apresenta na capa é assumido como rico de sentido não somente sobre o conteúdo da revista mas também sobre uma maneira de significar a infância, o brincar e a brincadeira, revelando maneiras de expressão características de uma época e de um modo de apresentar a infância, reforçando valores de uma época.

Apresenta-se e descreve-se a capa da Revista como objeto de sentido, mais especificamente, como gênero textual cujos aspectos gráfico e visual produzem sentidos a respeito de ser criança e das ações e objetos brincantes. Esses sentidos são descritos com base em conceitos da semiótica discursiva e da semiótica plástica que possibilitam ler as imagens e compreender como produzem sentidos a partir da textualidade visual. As 18 capas analisadas têm a assinatura de uma única ilustradora, a mais frequente artista das capas entre os anos 1954 e 1959: Helga Trein.

O estudo organizou-se da seguinte maneira: primeiro, reuniram-se as capas, produzidas pela mesma artista, mais frequentes nas capas da primeira fase de publicação da Cacique. Essa organização resultou em 43 capas. Em seguida, realizou-se recorte e seleção, considerando o foco temático: ser criança, brincar e brincadeiras, estabelecendo o bloco de 18 capas que se torna alvo de análise neste estudo. A leitura semiótica desse conjunto de capas foi realizada assumindo como base conceitos relacionados à semiótica discursiva e a seus desdobramentos voltados ao texto visual, isto é, à semiótica plástica. Essa leitura procura destacar efeitos de sentido levando em conta as capas, descrevendo o percurso gerativo de sentido a partir dos elementos de expressão e de conteúdo comuns a elas. Não se realiza, portanto, uma leitura individual de cada uma das 18 capas, mas sim do conjunto, destacando como as semelhanças e as diferenças evidenciam, na reciprocidade entre os planos de expressão e de conteúdo, sentidos na textualidade das capas.

Além da leitura semiótica, o percurso analítico considera as especificidades da imagem como arte da ilustração voltada à infância (Oliveira, 2008) e os argumentos da sociologia da infância (Corsaro, 2011), que auxiliam a definir como o ser criança revelado nas capas caracteriza o ser criança da época. Dessa maneira, os sentidos são entendidos como imanentes ao texto, conforme entende a semiótica discursiva, mas não ignoram os contextos de sentido social e histórico em que os textos visuais das capas se inserem. Por fim, apresentam-se considerações finais que recuperam o percurso investigativo e enfatizam a importância dos objetos impressos como documentos que auxiliam a compreender a história cultural (Chartier, 2011), caracterizando modos de ser e estar no mundo em diálogo com a época e com a sociedade.

Categorizar para delimitar o corpus de análise: o início da investigação

Nos cinco anos ininterruptos da primeira fase de publicação da Cacique, uma artista predominou como autora das capas: Helga Trein3. A artista foi responsável por produzir a imagem da capa em 43 dos 106 números da primeira fase (1954-1959) da história de publicação da Cacique. As 43 capas chamaram atenção por revelarem unidade na escolha das substâncias visuais que são empregadas na constituição da textualidade visual.

Diante do conjunto de 43 capas (Figura 1), percebem-se características visuais e plásticas comuns, considerando as substâncias visuais conforme descritas por Dondis (2007): CORES primárias predominam nas figuras humanas, e o verde (cor secundária) está quase exclusivamente nas figuras da natureza; o uso de TONS pastéis ou esmaecidos revela a técnica da aquarela ou, talvez, a qualidade da impressão na época da edição, deixando pouco evidente uma coloração chapada. Associada à TEXTURA do papel, destaca-se uma luminosidade sempre presente iluminando as figuras em primeiro plano emolduradas por plano de fundo no qual, normalmente, a tonalidade mais clara domina, configurando também o cenário. As LINHAS finas e onduladas produzem FORMAS predominantemente arredondadas com figuras humanas com rostos largos, olhos grandes, nariz pequeno; a DIMENSÃO proporcional e harmônica entre as figuras, normalmente uma dupla, oferece ao leitor a imagem que domina o espaço da capa.

Figura 1 Conjunto de capas ilustradas por Helga Trein. Fonte: Organizada pela autora. 

As substâncias visuais, similares e predominantes, revelam o aspecto estético da produção da artista que ilustrou o conjunto de capas em que prevalece uma técnica (a aquarela) e um modo de figurativizar os elementos presentes na capa com figuras pueris, de cor branca, muitas com cabelos loiros. Essa unidade por si já poderia ser deflagradora de uma análise semiótica, considerando a relação entre expressão e conteúdo, que é fundante da semiose textual. No entanto buscou-se outro critério para um novo recorte no conjunto de capas da Cacique que é objeto deste estudo, procurando também compreender o texto das capas a partir do seu contexto histórico, de conteúdos temáticos específicos e como esses temas seriam valorizados nas imagens das capas. Esse recorte também se mostrou necessário, dado o espaço de discussão possível em um artigo acadêmico como este.

Assim, após a delimitação dos elementos visuais comuns às imagens, passou-se à delimitação de possíveis temas presentes nas capas, inferidos pelas figuras e narrativas figurativizadas. As 43 capas evidenciam diferentes temas, sendo que alguns se repetem em mais de um número, conforme apresentado no Quadro 1.

Quadro 1 Análise das temáticas das 43 capas ilustradas por Helga Trein. Fonte: Organizado pela autora 

O quadro, reunindo as capas por temas, apontou 22 ocorrências que se relacionavam aos temas que colocamos em foco: a infância, o brincar e a brincadeira. Ainda, realizamos um outro recorte, excluindo capas que revelavam o tema brincadeira, porém as figuras não eram crianças; por exemplo, a capa 75 de 1958 (Figura 1). Assim, constituiu-se um conjunto de 18 capas que revelam figuras e motivos relacionados aos temas da infância em associação ao brincar e à brincadeira sem valer-se da animização (Quadro 2). Essa reunião de capas é o objeto de atenção para a análise neste estudo com vistas a perceber os efeitos de sentidos que podem caracterizar, por meio das imagens, a infância, o brincar e a brincadeira na época histórica da publicação.

Fonte: Imagens digitalizadas do acervo da pesquisa. Quadro organizado pela autora.

Quadro 2 Conjunto de capas selecionadas para análise.  

As 18 capas produzidas entre 1956 e 1959 passaram a ser foco de atenção a partir do entendimento de que as imagens dessas capas revelam efeitos de sentido que possibilitam traçar um panorama sobre os temas em foco - infância, brincar e brincadeira -, no período histórico em que as imagens foram produzidas e veiculadas. Para descrever esse panorama, a continuidade do trabalho organiza-se em dois modos de aproximação aos textos visuais das capas. O primeiro modo de leitura assume como referencial conceitos da semiótica discursiva e da semiótica plástica (Greimas, 2004; Floch, 1985) que serão explicitados antes da leitura analítica.

Em razão do número decapas, a leitura organiza-se por meio do mapeamento de similaridades de modos de expressão e da relação de reciprocidade com os conteúdos no percurso gerativo de sentido, levando em consideração o grupo de capas, e não elas individualmente. Pretende-se dessa maneira compreender o percurso de geração dos sentidos acerca da infância, das suas maneiras de brincar e das brincadeiras que as textualidades visuais do conjunto possibilitam construir. Essa primeira etapa concentra-se nas capas como realizações significativas em si mesmas, como textos visuais cujo arranjo textual carrega sentidos.

Na segunda parte do estudo, a leitura é ampliada, quando então se consideram na análise também os contextos histórico e social nos quais elas foram produzidas e publicadas. Nesta segunda aproximação, os conceitos da sociologia da infância (Corsaro, 2011) são incluídos, articulando-se à leitura semiótica, assim como à compreensão da capa da revista como objeto cultural impresso (Chartier, 2011), a qual também carrega efeitos de sentido culturais e históricos sobre o leitor e as intencionalidades da leitura. Dessa maneira, compreende-se tanto a produção do sentido imanente ao texto quanto a sua apreensão na interação histórica e social, que se dá em ato com o leitor, colocando o texto em posição de objeto cultural de sentido.

A produção de sentido no texto-capa: sincretismo de linguagens, expressão, conteúdo e contexto sócio-histórico

Explicitam-se aqui alguns conceitos da nossa base teórico-metodológica presente na leitura analítica das capas.

A semiótica discursiva volta-se ao entendimento sobre a produção de sentido e a sua apreensão (Greimas & Courtés, 2008; Barros, 2005). O texto é o objeto empírico dessa perspectiva teórica como uma estrutura enunciativa constituída por uma única linguagem ou por diferentes linguagens em interação.

Na origem da conceitualização da semiótica discursiva, o texto verbal foi assumido como objeto de análise principal considerando a significação imanente a ele. Com o passar do tempo, outras linguagens foram assumidas e analisadas a partir de seu uso e das suas possibilidades de produção de sentido em textualidades visuais, sonoras, arquitetônicas etc. A ampliação do olhar da semiótica para outras semioses linguísticas veio também acompanhada da compreensão sobre as formas de apreensão do sentido, trazendo para a relação sensível o enunciatário/leitor que interage com o texto. Essa presença sensível em interação com o texto é o que abriu brechas para que a semiótica também se volte a compreender o sentido nas interações - entre sujeitos e textos - na perspectiva da sociossemiótica (Landowski, 2014).

Neste estudo, a semiótica auxilia a compreender o enunciado de sentido apresentado em um conjunto de capas da revista Cacique (Quadro 2), concebendo-as tanto como texto visual quanto como objeto cultural em interação com aspectos históricos e sociais da época em que foi publicado. Assim, as capas são lidas primeiro como textos visuais carregados de sentidos, depois como textos abertos à interação com leitores de uma época e de um contexto social. A leitura analítica, ao mesmo tempo que apresenta a produção de sentido, relaciona-a à interação, pretendendo entender também os modos de ser e agir implicados na textualidade visual da capa.

Em relação ao texto da capa, a semiótica caracteriza-o como texto sincrético, visto que envolve duas linguagens em interação enunciativa, a verbal e a visual. Mesmo que haja maior presença da linguagem visual na constituição da capa, a linguagem verbal está presente, sendo importante na enunciação discursiva do conteúdo apresentado. De acordo com A. C. de Oliveira e Teixeira (2009, p. 7), os objetos sincréticos são analisados como “[...] totalidades complexas articuladas […] se constituem de múltiplas linguagens, mas não podem ser estudados como resultado de uma [mera] soma de partes [...]”. Diante de um enunciado sincrético, torna-se imprescindível que a análise considere o entrelaçamento verbo-visual no traçado do percurso que possibilita acessar os efeitos de sentido dessa construção. Nessa produção de sentidos, inclui-se também, segundo A. C. de Oliveira e Teixeira (2009), o interlocutor do texto, que é afetado pelo discurso produzido pelo enunciado multilinguístico. Esse entrelaçamento verbal e visual promove uma interação sensível na leitura, resultando em uma produção que é deflagrada pelo texto em interação com o leitor, agregando também sentidos a partir do contexto em que o texto ou a leitura acontecem.

É necessário, porém, observar que a construção de sentido para a semiótica é imanente (o que não é sinônimo de exclusividade) ao texto independente da linguagem presente em seu enunciado, sendo ele o objeto deflagrador do sentido. Isso é consequência de uma constituição que se baseia na pressuposição recíproca entre expressão e conteúdo, sendo que todo o texto é fruto de tal pressuposto. O plano de expressão diz respeito aos elementos sensíveis que nos apresentam ao texto, dando-lhe lisibilidade (Oliveira, 2001). No caso do texto visual, o modo como o espaço é ocupado, a relação entre linhas e cores, a constituição matérica; no texto verbal, as escolhas de estruturas semânticas e sintáticas são os elementos de expressão que são acionados.

Assim, o modo como os elementos semânticos, sejam eles visuais ou verbais, se organizam, do ponto de vista sintático, possibilita que o plano do conteúdo se realize. Essa realização semiótica é imanente ao texto pela sua construção, porém não se encerra nele como já se destacou. O sentido é decorrente do texto e se enriquece a partir do olhar de quem o lê: texto e leitor associam-se, o sentido decorre do texto e da interação decorrente da leitura. O que se vê/lê, portanto, resulta em conteúdo de sentido, consequência da organização expressiva de conteúdos cujos sentidos são fruto do contexto, já que a leitura é ação de um leitor social e historicamente localizado, assim como o texto também possui caráter histórico e social.

Essa emergência do sentido imanente ao texto tem como modelo de organização o percurso gerativo de sentido que desenha o caminho contido na textualidade enunciada e que se oferece à leitura. Esse percurso divide-se em três níveis que se complexificam (Barros, 2005): 1) o nível fundamental é o mais abstrato de todos, identifica a oposição de ideias sobre a qual o sentido emerge; 2) o nível narrativo é aquele em se (re)conhece como essas ideias opostas se mostram em figuras presentes na estrutura narrativa, em nível superficial, revelando transformações e relações implícitas nas mudanças de estado ou na sucessão de rupturas estabelecidas entre destinador e destinatário (Barros, 2005, p. 20) até que se alcance o último nível; 3) o nível discursivo é o que configura o discurso a partir da delimitação de um tema, em nível mais profundo.

No texto visual, esse percurso é traçado a partir dos elementos de expressão que constituem a imagem. Compreender a construção de sentido da imagem não é uma mera descrição do que podemos ver, identificando as figuras construídas por meio da linguagem visual, figuratividade stricto sensu ou de superfície, assim denominada por Landowski (2017). Como nos diz Jean Marie Floch (1985, p. 75)4, a imagem “[…] não pretende substituir o dizível ao visível [...] ela se empenha em [nos possibilitar] constatar as qualidades sensíveis [...]” que a constituem e que sentidos podem se apreender no encontro com tais qualidades. Trata-se da figuratividade lato sensu ou profunda (Landowski, 2017) e que possibilita articular os temas. Ler a imagem, portanto, não é uma operação de identificação ou reconhecimento, mas sim um encontro com as figuras cuja apreensão passa pelas qualidades sensíveis que possibilitam os discursos. Em outras palavras, as figuras estruturam e abrem caminho para a narrativa, a constituição plástica que as figurativiza abre-se ao discurso (Landowski, 2017).

Identificar as ‘qualidades sensíveis’ da imagem significa delimitar o que a constitui plasticamente, isto é, linhas, formas, cores, aspectos matéricos, tudo o que revela a constituição estética do que vemos. Essa identificação é um dos aspectos no processo de descrição dos efeitos de sentido decorrentes da imagem, pois ajuda a iniciar o percurso para a significação, e essa compreensão revela que os sentidos de uma imagem não estão reduzidos apenas às figuras que ela apresenta. Segundo Greimas (2004, p. 89), “[…] os formantes figurativos não se põem a significar por assim dizer […]”, as figuras assumem um sentido a partir do que o leitor entende e constrói, o que pode se denominar “[...] crivo de leitura natural” (Greimas, 2004, p. 89). Para compreender a produção de sentido como algo inerente à imagem pela sua construção semântica e sintática, os formantes plásticos precisam ser considerados, e isso é o que possibilita “[…] falar de ‘linguagem plástica’ e a circunscrever sua especificidade” (Greimas, 2004, p. 89, grifo do autor).

A leitura das imagens que faremos, portanto, além de considerar as figuras em seu modo aparente, alerta o olhar para os elementos específicos da linguagem visual em um procedimento de desconstrução, a fim de estabelecer relações entre os elementos sensíveis que se abrem à significação. Essas relações é que tornam visíveis as figuras e possibilitam o entrelaçamento entre expressão e conteúdo, uma pressuposição básica para o modo como a semiótica discursiva e a semiótica plástica entendem a construção do sentido de modo imanente ao texto.

Imagens das capas: textos visuais, sentidos da infância de uma época

As capas selecionadas para este estudo são textos sincréticos cujos efeitos de sentidos decorrem de enunciado verbal-visual e são textos inseridos temporal e socialmente, o que também precisa ser considerado na leitura. Apresenta-se a seguir uma leitura semiótica que oferece um esquema da relação entre expressão e conteúdo, considerando o texto em si, e depois relaciona-se a textualidade ao seu contexto de sentido na perspectiva histórica e social que caracteriza os temas figurativizados. Esse percurso é um modo de acessar a geração do sentido no texto em si e permite compreender a produção de sentido em interação com o contexto sócio-histórico no nível da apreensão.

A capa une linguagem verbal e visual, estabelecendo um texto sincrético cuja função principal é apresentar a publicação. O que se mostra pelo verbal poderá sofrer pouca ou quase nenhuma alteração que afete o sentido produzido, visto que apresenta o título configurando a identidade da publicação ou uma espécie de logotipo5 ou logotipo-marca. A imagem, ao contrário, além de dominar o espaço físico da capa, abre-se à produção de efeitos de sentido, alternando-se a cada nova edição. Faz-se importante destacar que essa diferença das possibilidades de significação não torna uma linguagem mais relevante do que a outra, tendo em vista que elas constituem um enunciado único.

O título carrega em si a função de enunciar a identidade da publicação, e essa identidade une-se à imagem, configurando um discurso coerente com a publicação e que oferece brechas para elaborar sentidos sobre a infância da época, como a análise a seguir explicita. O conjunto visual da capa apresenta a publicação ao leitor e convida-o a ler.

A análise inicia propondo uma descrição geral do formato da capa, identificando o que está presente em todas, configurando as propriedades que a caracterizam como gênero textual (Figura 2):

‘CAPA (v. FOLHA DE ROSTO)’: embora a capa faça parte de um todo que é um suporte (livro, revista ou periódico, por exemplo), tem a função de promover o primeiro contato do consumidor com o produto. Por isso, além de sempre possuir um apelo visual que a transforma em uma espécie de peça promocional, obrigatoriamente, no caso dos livros, periódicos ou revistas, deve conter algumas informações essenciais, entre outras, o título (v.), o subtítulo (v.), o nome do(s) autore(s), a editora, a edição e data, o que para nós, nesse caso, faz da capa um gênero (Costa, 2012, p. 60, grifo do autor).

Fonte: Imagem digitalizada a partir do acervo da pesquisa. Organizado pela autora.

Figura 2 A capa como gênero textual. 

A leitura reúne, além dos elementos estruturais comuns, os elementos de expressão que se repetem, estabelecendo como linhas, formas e cores ocupam o espaço da capa. A identificação desses elementos de expressão auxilia a perceber semelhanças em relação às figuras tematizadas no conjunto de capas, um processo semelhante ao que já apresentamos no Quadro 1, porém agora mais detalhado a partir da delimitação de temas. Essa reunião, que pretende traçar um perfil da textualidade das capas, contribui para realizar uma análise compatível ao espaço do artigo, pois não seria possível ler cada uma das 18 capas de maneira detalhada e individual.

Nos aspectos que caracterizam a capa como gênero textual (Figura 2), identificam-se alguns elementos da expressão que serão recorrentes em textos-capa. Observa-se primeiro como o espaço é ocupado, algo que configura um padrão, como pode ser explicitado no esquema da Figura 3.

Fonte: Imagem digitalizada a partir do acervo da pesquisa. Organizado pela autora.

Figura 3 Organização padrão do espaço da capa.  

Esse esquema revela que a capa se organiza em dois espaços: 1) a parte superior, em que se apresentam o título, as informações da edição e o preço da revista; 2) a região central, que se estende até a parte inferior, ocupando mais ou menos 80% do espaço, na qual são dispostas as demais informações: imagem, assinatura da ilustradora e número da edição. Esse segundo espaço é o que adquire mais destaque.

Considerando os leitores pretendidos pela revista, crianças em fase inicial de leitura, essa organização é coerente, visto que a imagem predomina (o pensamento da Alice de Lewis Carroll (2009, p. 13), “[...] de que serve um livro sem figuras nem diálogo [...]”, é uma justificativa para a presença massiva da imagem). Sobreposta à imagem, mas sem muito destaque, a assinatura da ilustradora ocupa o canto inferior, normalmente, o direito. O número da revista se mostra em fonte maior e mais arredondada do que a do título, sempre em cor diferente. No conjunto das 18 capas, observa-se que esse número não está presente em apenas duas capas: dezembro/1956 e fevereiro/1957 (Quadro 2), e nas demais é apresentado na parte superior junto às informações da edição.

Esse acréscimo de informação, ordenando numericamente as revistas, não revela somente a numeração crescente das revistas. A Cacique era mensal, constituindo uma coleção anual, e poderia ser colecionada por seus leitores. O colecionismo, segundo Lopes (2010, p. 382, grifo do autor), “[…] pode ser definido como o hábito de juntar ‘coisas’ que possuem propriedades ou características comuns e que servem para conhecer o mundo”, e acrescenta: “[…] desde criança, todo ser humano é impelido a discriminar e selecionar tais ‘coisas’, condicionado por práticas sociais associadas às representações dos ciclos de vida”. O conceito explicado por Lopes (2010), portanto, demonstra que não é casual que o número esteja em destaque na capa. Essa numeração em relevo é estratégica para indicar o colecionismo.

Em relação à imagem, elemento central do enunciado da capa, o grupo das 18 capas permite observar que há um padrão visual, como já foi comentado no início deste texto, com escolhas de elementos de expressão que tanto demonstram o fazer da artista-ilustradora quanto revelam efeitos de sentido que podem ser apreendidos e que este trabalho busca identificar e compreender.

Essa compreensão inicia-se a partir do estabelecimento do percurso gerativo de sentido, percorrendo os três níveis que o compõem. No nível fundamental, algumas oposições de ideias podem ser pontuadas, tendo em conta os temas em foco e analisando o conjunto que se apresenta no Quadro 2: em torno da caracterização da infância, ‘asseada x enxovalhada’; em torno do brincar, ‘brincar sozinho x brincar em companhia’; ou em torno da brincadeira, ‘estruturada x criativa’. Essas ideias revelam-se ora eufóricas, isto é, predominantes, em algumas capas, ora disfóricas, isto é, ausentes ou pouco presentes, mas sendo possível inferi-las.

A percepção sobre essas oposições relacionadas aos temas que se tem em foco neste estudo leva aos seguintes enunciados de sentido. Primeiro, caracterizando as crianças: as crianças são, em sua maioria, asseadas, vestem roupas em perfeito estado, i. e., claras, limpas, sem manchas, não amarrotadas nem rotas. Depois, no que diz respeito ao brincar, grande parte das capas mostra crianças em companhia de outra, configurando uma dupla. Apenas a capa de agosto de 1958 apresenta um grupo com 3 crianças brincando juntas. Além disso, sobre o tipo de brincadeira ou como a brincadeira se organiza, percebe-se que apenas 5 capas trazem crianças brincando de modo mais livre e criativo, sem a presença de brinquedos estruturados ou objetos do cotidiano adulto como parte da ação mostrada na cena. No Quadro 3, alguns exemplos revelam essas oposições que possibilitam enunciar as narrativas descritas.

Fonte: Organizado pela autora.

Quadro 3 Capas em contraste: oposições que evidenciam narrativas 

As capas oferecem sentidos que configuram uma infância asseada, crianças que interagem com pares, mas de modo bastante seletivo e cujas brincadeiras revelam sentidos também limitados e, principalmente, pouco criativos. Isso é reforçado pelas figuras e ações apresentadas na narrativa das imagens da maioria das capas. Na capa de dezembro de 1957, por exemplo, temos a figura de duas crianças, um menino e uma menina. São duas crianças brancas, o menino com cabelo castanho, e a menina com cabelo loiro; o menino segura uma bola, enquanto a menina segura uma boneca. Os dois contemplam uma árvore de Natal, figurativizada pelos ramos característicos do pinheiro e pelos enfeites - velas, estrela, anjo e bolas - distribuídos entre os ramos. Essa atitude contemplativa, bem como os brinquedos revelam uma concepção de infância prospectiva, conforme define Corsaro (2011, p. 18): “[...] uma perspectiva do que [as crianças] se tornarão - futuros adultos, com um lugar na ordem social [...]”. Essa concepção de infância ignora as características da criança, seu modo de ser e agir, suas necessidades e desejos como sujeitos sociais.

Esse modo de apresentar a infância se repete em praticamente todas as capas, as quais mostram crianças até mesmo em ação imitando adultos. Por exemplo, indo pescar, como na capa de janeiro de 1959 (Quadro 2), ou lendo uma revista e tricotando, sentados na sala como um casal de adultos, cena apresentada na capa de agosto de 1959 (Quadro 2). A reprodução de um comportamento maternal relacionado às meninas também reitera a infância como uma etapa a ser superada para se chegar à idade adulta ou a um estágio preparatório. Exemplificam isso: a menina na capa de agosto de 1958, que está sentada recostada a uma árvore segurando uma vasilha com frutas e alimentando passarinhos, e a menina da capa de julho de 1958, que está sentada próximo a algo que se parece com um lago, segura em seus braços dois patinhos como se conversasse com a pata, provavelmente, mãe dos patinhos. Esses dois exemplos apresentam meninas interagindo com a natureza, mas de um jeito maternal, ao alimentar os passarinhos, ou acolhendo pequenos animais em seus braços de maneira carinhosa.

As narrativas de algumas poucas capas do conjunto levam a inferir uma infância considerada estrutural, isto é, que entende que “[...] as crianças [...] são agentes ativos que constroem suas próprias culturas e contribuem para a produção do mundo adulto [...] [sendo] parte da sociedade” (Corsaro, 2011, p. 16). As capas de agosto e outubro de 1959 são bem representativas disso, pois apresentam crianças em brincadeiras criativas, valendo-se de objetos do cotidiano - caixotes de madeira, por exemplo - para reproduzir situações cotidianas a seu modo, como pegar o trem na estação ou consertar o carro na oficina.

O brincar mais livre, porém, em algumas capas, é apresentado associado à ideia de peraltice, de algum modo, com viés que tende a ser negativo e afastado do sentido de asseio que predomina no conjunto em análise. As capas de fevereiro de 1957, julho de 1958 e fevereiro de 1959 (Quadro 3) apresentam crianças descalças, molhadas, sentadas no chão, sujas pela fruta que foi devorada. O rosto delas revela feições com formas que se alternam entre o prazer pela fruta degustada (fevereiro de 1957, Quadro 3) ou a surpresa porque algo não aconteceu como esperado, levando ao surpreendente, como cair sentado dentro de uma bacia cheia de água (fevereiro de 1959, Quadro 3), perder um pé de sapato ou sujar-se completamente. É provável que não seja casual que tais peraltices sejam narradas nas imagens das capas de meses de período de férias escolares de verão.

O que prevalece como conteúdo discursivo das capas é uma perspectiva de infância passiva e que, quando se torna um pouco mais ativa, gera problemas, situações pouco adequadas em termos comportamentais ou até mesmo perigosas. A infância que predomina nas figuras das crianças apresentadas pela maioria das capas do conjunto é, como já se disse, asseada, passiva, contemplativa. O modo de existir no mundo da criança figurativizada reproduz situações adultas, modos de ser e agir como sujeitos iniciantes na vida, em preparação para serem adultos.

Os elementos de expressão visual auxiliam a compor esse modelo funcionalista de infância que foi bastante popular nas décadas de 1950 e 1960 (Corsaro, 2011), período coincidente ao de publicação da Cacique. Esses efeitos de sentido ainda ganham em argumento quando considera que o leitor da Cacique, ao encontrar com a capa da revista, estava diante de uma cena revelada em uma perspectiva paralela, portanto, uma visão tranquila da cena que convida a uma leitura ordenada (Oliveira, 2008). O leitor se vê diante de espaços que focalizam figuras em uma ação específica, podendo percorrer a cena e seus detalhes. Percebe-se que a ilustradora optou por colocar os leitores ante a realidades físicas e táteis, provocando a integração com a cena ou com a situação narrativa.

Considerando que os leitores pretendidos pela revista eram tanto meninos quanto meninas, o que se mostra na capa se alterna, ora voltado mais a temas femininos, ora mais masculinos, pretendendo que a capa cumpra com sua função de envolvimento físico com os leitores (Powers, 2008). Porém a brincadeira criativa só acontece quando estão em grupos do mesmo gênero, somente meninas (agosto de 1958, n. 74 - Quadro 3) ou somente meninos (outubro de 1958, n. 78 - Quadro 3). Quando estão um menino e uma menina, a cena retrata algo mais relacionado ao mundo adulto, numa perspectiva da infância se preparando para chegar à idade adulta (conforme o viés de uma infância prospectiva já mencionada). Por exemplo, as capas de dezembro de 1956 e de agosto de 1959 (Quadro 3).

Outro aspecto que cabe ser destacado na semiose visual das capas analisadas neste estudo é a forma que nos mostra a figura humana, seja ela a de um menino, seja de uma menina. Observa-se que há um predomínio de figuras que o ilustrador Rui de Oliveira (2008, p. 36, grifo do autor) denomina “[...] doce de coco [...] imagens geralmente em traços ‘ingênuos’ e cores chapadas, um naifismo aculturado e contrabandeado dos cartuns, RPGs, gibis e séries de TV”. No caso das capas, pode-se dizer que somente a cor não cabe nessa caracterização dos ilustradores, porque se percebe o uso do aquarelado, conferindo, como já se destacou, cores em tons esmaecidos e uma escolha de cores pastéis (por exemplo, a capa de julho de 1958, n. 72, Quadro 3). Em relação à cor, é possível perceber que há uma mudança provavelmente decorrente do avanço do modo de impressão que permitiu que as cores da capa de agosto de 1959 (Quadro 3) sejam mais vivas e chapadas do que a capa de dezembro de 1956 (Quadro 3). No entanto as figuras das crianças apresentadas no conjunto revelam traços ingênuos, conforme a descrição de R. de Oliveira (2008), com predomínio de crianças brancas e louras, o que também carrega efeitos de sentido sobre qual é a infância mostrada pela Revista, com quais crianças se esperava buscar identificação e tantos outros questionamentos contemporâneos que fazem com que essas imagens possam resultar em sentidos com viés mais crítico.

Considerações finais

Este trabalho se propôs a colocar em análise um conjunto de capas da Cacique, uma revista infantil publicada nos anos 1950 no Rio Grande do Sul, Brasil. O foco dessa análise foi buscar efeitos de sentido nas imagens da capa para caracterizar a infância, o brincar e a brincadeira da época da publicação. O estudo selecionou 18 capas de uma mesma ilustradora para que o percurso de sentido já iniciasse pelo modo de constituição das imagens, a partir de escolhas de elementos sensíveis de expressão e da técnica de constituição das figuras, sendo possível concentrar atenção ao conteúdo presentificado por essas escolhas visuais.

Os conceitos da semiótica discursiva e seu modo de compreender a produção de sentido contribuíram para a percepção de como os temas cercados por este estudo se concretizam nas escolhas semânticas e na organização sintática que ordenam o plano de expressão em reciprocidade ao conteúdo discursivo. A escolha de cores claras, traços limpos e cenas nas quais predominam o asseio e a organização apresenta uma infância praticamente ignorada como cultura, com pouco ou nenhum espaço para ser e agir como criança. As cenas mostram brincadeiras muito centradas no mundo adulto, pouco abertas à criação infantil, com brinquedos estruturados ou com ações que replicam modos de ser adulto. Tudo isso, na perspectiva de Corsaro (2011), reforça o papel instrutivo da revista, deixando espaço acanhado para uma infância cri(ativa) e participante da cultura.

Mesmo sendo um elemento que pode assumir uma função exclusivamente de sedução ao leitor pretendido, a capa de uma publicação como a Cacique pode também revelar sentidos por meio de elementos de expressão visual que se relacionam reciprocamente a conteúdos de significação da infância, do brincar e da brincadeira que deixam marcas de um contexto histórico e social e dos valores atribuídos a esses temas.

As capas resguardam um ponto de vista socialmente datado que pode ser contrastado com o contemporâneo. Daí a importância de um estudo analítico de um objeto da cultura impressa. Além disso, a partir das ideias de Chartier (2011), pode-se dizer que essa constituição gráfica da capa inscreve no impresso também um modo de ser leitor.

O leitor pretendido pela Revista se depara com uma capa dominada pela imagem, a qual apresenta uma narrativa de ser criança. A cena isolada dessa narrativa convida o leitor a complementá-la, porém deixa marcas para alguns sentidos estabelecidos que caracterizam as ações e os comportamentos das crianças figurativizadas. O convite para ler é explícito, assim como para continuar a narrativa visual que se mostra, porém os caminhos possíveis para essa continuidade são limitados aos valores que caracterizam a infância que a Revista considera como positivos.

As figuras de crianças asseadas, de meninas em situações maternais e de peraltices podem ser consideradas “[...] senhas, explícitas ou implícitas, que um autor inscreve em sua obra a fim de produzir uma leitura correta dela, ou seja, aquela que estará de acordo com a intenção” (Chartier, 2011, p. 96). A artista que produziu as capas analisadas neste estudo compreendia a intencionalidade educativa e formativa da revista Cacique e suas narrativas visuais produzidas para as capas, as quais reiteram e reforçam essa intenção.

Este estudo pretende oferecer uma perspectiva de compreensão do texto tanto em relação à sua significação como objeto de sentido quanto como objeto cultural e histórico. Em outras palavras, o percurso investigativo fortalece a possibilidade significativa dos objetos impressos, pois responde à pergunta: como a infância, o brincar e a brincadeira de uma época podem ser significados por meio de capas de uma publicação dos anos 1950? E destaca a importância de estudos sobre impressos que carregam sentidos imanentes à sua composição gráfico-visual e sentidos culturais, sociais e históricos.

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1 Este estudo é parte da pesquisa ‘A revista Cacique e a infância gaúcha dos anos 50 - textos e leituras (fase I)’, coordenada pela Profa. Dra. Rosa Hessel da Silveira (UFRGS, PPGEDU), que foi realizada entre 2019 e 2021 e que teve como objetivo realizar estudos e análises da revista infantil Cacique (1ª fase - 1954-1959), com ênfase na análise da materialidade de suas 106 edições, a partir de bibliografia especializada em leitura, história da leitura e demais temas implicados, assim como de uma contextualização adequada.

2A análise está concentrada nas capas produzidas por Helga Joana Raabe Trein, artista que assinava Helga Trein e que foi a ilustradora que mais assinou capas na primeira fase de publicação da revista Cacique.

3Este estudo não se aprofundou na pesquisa da biografia da artista, pois a leitura analítica pretendida está centrada na semiose do texto em interação com o contexto histórico e social que auxilia a construir sentidos sobre a infância. Encontramos referência à artista Helga Trein na página Guia dos Quadrinhos http://www.guiadosquadrinhos.com/artista/trabalhos-de/helga-j-trein/9872: “Escritora e desenhista brasileira nas décadas de 1950 e 1960, com trabalhos notadamente na revista Cacique e em diversos livros infantis”; nos artigos ‘Autoras de obras didáticas e livros para o ensino da leitura produzidos no Rio Grande do Sul: contribuições à história da alfabetização’ (Peres, 2008) e ‘Estratégias de Renovação Pedagógica: a atuação da Comissão de Estudo do Livro e do Material Didático do CPOE/RS na escolha dos livros didáticos de matemática nos anos 1960’ (Rios & Fischer, 2018) e na tese A iconografia e a iconologia nos livros didáticos das edições Tabajara: um estudo das imagens na coleção Guri (Rio grande do Sul, década de 1960) (Ramil, 2018), que apresentam dados que reforçam a presença da produção da artista e escritora em publicações voltadas ao público infantil e com intenções didáticas de acordo com a intencionalidade editorial da época.

4Linguista e precursor da Semiótica Plástica ou Visual.

5Segundo o Dicionário do livro (Faria & Pericão, 2008, p. 472), logotipo é “[...] pequeno grupo de letras moldado como uma unidade, matriz, tipo ou clichê formado pela reunião, numa só peça de duas ou mais letras ou mesmo de uma palavra inteira [...]” e logotipo-marca é o “[...] conjunto de elementos gráficos constituído por um logotipo e por uma marca”.

8Rodadas de avaliação: R1: três convites; duas avaliações recebidas. R2: um convite; uma avaliação recebida.

10Como citar este artigo: Nunes, M. F. Capas da “Cacique”: efeitos de sentido da infância, do brincar e da brincadeira em revista infantil (anos 1950). (2022). Revista Brasileira de História da Educação, 22. DOI: http://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e234

Recebido: 01 de Junho de 2021; Aceito: 27 de Abril de 2022; Publicado: 30 de Setembro de 2022

E-mail: mariliaforginunes@gmail.com.

Marília Forgearini Nunes é Doutora em Educação. Docente na UFRGS vinculada ao Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação e ao Programa de Pós-graduação em Educação na linha Arte, Linguagem e Currículo. Integrante dos grupos de pesquisa Educação e Arte (GEARTE/CNPq) e Educação e Disciplinamento (GPED/CNPq) e do grupo de estudos Grupo Aula: alfabetização, linguagem e ensino. Coordena o Programa de Extensão Universitária "Quem quer brincar?" e o LER: Clube de Leitura (Lendo Em Roda), é parte da equipe da Didacoteca: acervo de recursos didáticos. E-mail: mariliaforginunes@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-3911-5588

Editor-associado responsável: Evelyn de Almeida Orlando (PUC-PR) E-mail: evelynorlando@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-5795-943X

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