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Revista Brasileira de História da Educação

versão impressa ISSN 1519-5902versão On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.22  Maringá  2022  Epub 07-Out-2022

https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e237 

Artigo Original

Das maquinações aos estratagemas: a representação da ação jesuítica a partir da percepção da decadência portuguesa1

From machinations to stratagems: the representation of the Jesuit action from the perception of the Portuguese decadence

De las maquinaciones a las estratagemas: la representación de la acción jesuita a partir de la percepción de la decadencia portuguesa

Rafael de Paula Cardoso1  * 
http://orcid.org/0000-0002-7357-7471

Thiago Borges de Aguiar2 
http://orcid.org/0000-0002-7294-1200

1Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, SP, Brasil.

2 Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.


Resumo:

Neste texto, analisamos a representação da ação jesuítica em Portugal a partir do conceito de decadência na obra Compêndio histórico da Universidade de Coimbra, de 1771. A literatura antijesuítica construída pelo ministério pombalino descreve o período jesuítico como uma época de ‘trevas’. Além do debate entre antigos e modernos, a percepção de decadência do Reino, recorrente nos escritos dos letrados portugueses, reforçou a responsabilidade dos inacianos por esse cenário. São vistos como o inimigo interno que conspira e maquina contra o corpo social e, por meio de seus Estatutos, causaram a decadência da Universidade de Coimbra. A análise busca aprofundar a compreensão da retórica antijesuítica do ministério pombalino e compreender as mudanças dos paradigmas modernos de educação no contexto lusitano.

Palavras-chave: antijesuitismo; jesuítas; reformas pombalinas; Universidade de Coimbra

Abstract:

In this text, the representation of the Jesuit action in Portugal from the concept of decadence in the 1771 work Compendio histórico da Universidade de Coimbra is analyzed. The anti-Jesuit literature constructed by the Pombaline ministry describes the Jesuit period as a time of ‘darkness’. In addition to the debate between ancients and moderns, the perception of the Kingdom’s decadence recurrent in the writings of the Portuguese scholars reinforced the Ignatians’ responsibility for this scenario. They are seen as the internal enemy that conspires and machinates against the social body, and through their Statutes, they caused the decay of the University of Coimbra. The analysis seeks to deepen the understanding of the anti-Jesuit rhetoric of the Pombaline ministry and to understand the changes in modern education paradigms in the Portuguese context.

Keywords: anti-jesuitism; jesuits; pombaline reforms; University of Coimbra

Resumen:

En este texto, se analiza la representación de la acción jesuita en Portugal a partir del concepto de decadencia en la obra Compendio histórico da Universidade de Coimbra (1771). La literatura anti-jesuita construida por el ministerio pombalino describe el período jesuita como un tiempo de ‘oscuridad’. Además del debate entre antiguos y modernos, la percepción de decadencia del Reino recurrente en los escritos de los letrados portugueses reforzó la responsabilidad de los ignacianos en este escenario. Son vistos como el enemigo interno que conspira y maquina contra el cuerpo social y, por medio de sus Estatutos, provocaron la decadencia de la Universidad de Coimbra. El análisis busca profundizar la comprensión de la retórica anti-jesuita del ministerio pombalino y comprender los cambios en los paradigmas educativos modernos en el contexto portugués.

Palabras clave: anti-jesuitismo; jesuítas; reformas pombalinas; Universidad de Coimbra

Introdução

No dia 3 de julho de 1758, ocorreu um dos fatos que mais agitaram o gabinete ministerial de Sebastião José de Carvalho e Melo, no momento Conde de Oeiras e futuramente conhecido como Marquês de Pombal. Trata-se da tentativa de assassinato de D. José I, atribuída a uma série de desavenças do monarca com membros da família Távora, aliados ao Duque de Aveiro. Após três meses de investigações e prisões, foi noticiado o escândalo da conspiração jesuítica por trás da tentativa de regicídio, informação arrancada sob tortura do Duque de Aveiro (Bangert, 1985). Após oito dias da execução dos Távoras, oito jesuítas foram presos por suposta cumplicidade e conspiração na tentativa de regicídio. Foi nesse contexto que um alvará real, em 3 de setembro de 1759, declarou que os jesuítas estavam em rebelião contra a coroa, reforçando o Decreto Real de 21 de julho do mesmo ano, que ordenava a prisão e a expulsão dos jesuítas do Brasil. Na altura de março e abril do ano seguinte, 119 jesuítas haviam sido expulsos do Rio de Janeiro, 117 da Bahia e 119 do Recife. As vastas propriedades da Ordem no Brasil, em Portugal e em todo o império português foram expropriadas (Maxwell, 1996).

A expulsão dos jesuítas de Portugal e seus domínios, fato de grande relevância para a educação portuguesa e de grande impacto sobre a estrutura dos colégios e das missões jesuítas no Brasil, é recorrentemente citada na historiografia da educação. No entanto, a representação detratora dos inacianos remonta a um processo de construção ao longo da Modernidade, tendo os fatos ocorridos em Portugal impulsionado a consolidação da retórica antijesuítica que orientou o gabinete pombalino no contexto das reformas educacionais.

Compreendemos o conceito de representação como esquemas geradores de classificações e percepções sobre a realidade social. Identificarmos que essas representações nos permitem compreender como uma sociedade, em determinado momento histórico, é “[...] construída, pensada e dada a ler criando classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real” (Chartier, 1990, p. 17). Esses elementos partilhados entre grupos sociais cristalizam uma determinada visão de mundo. É um conceito que Chartier (1990, p. 47) define como um “[...] conjunto de aspirações, de sentimentos e de ideias que reúnem os membros de um mesmo grupo e os opõem aos outros grupos”. Dessa forma, as representações são colocadas em uma zona de concorrência e disputas entre esses grupos, não sendo, de forma alguma, discursos neutros, pois elas

[...] produzem estratégias e práticas que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrência e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio (Chartier, 1990, p. 17).

Segundo Chartier (1990), as representações são decisivas para compreender a concepção do discurso histórico na forma como cada época constrói sua representação do passado conforme suas preocupações. Desse modo, a produção literária, a forma como são lidas, ouvidas e vistas são fundamentais para a construção social das representações (Chartier, 2009).

Assim sendo, buscamos analisar, neste artigo, a representação da ação jesuítica na obra Compêndio histórico da Universidade de Coimbra, publicada em 17712. Essa obra encontra-se dividida em duas partes. A primeira parte divide-se em quatro prelúdios. Todos eles são encimados pelas palavras “Dos estragos que...”, reforçando a marca pejorativa imputada aos jesuítas no tocante ao processo educativo em Portugal e suas colônias. O primeiro prelúdio analisa a influência dos jesuítas no Reino desde sua entrada até o reinado de D. Sebastião. O segundo prelúdio destaca os ‘estragos’ cometidos pelos jesuítas durante o reinado de D. Felipe II. O terceiro prelúdio aponta sete estatutos que teriam causado a destruição das Leis, das Regras e dos Métodos da Universidade de Coimbra, acabando por “[...] desterrar destes Reinos e seus Domínios as Artes e as Ciências, sepultando a Monarquia Portuguesa nas trevas da ignorância” (Pombal, 2008, p. 100). No quarto e último prelúdio, são apontados três ‘estratagemas’, quer dizer, um plano, manobra ou ação com o intuito de causar estragos ou provocar um mal que os jesuítas teriam articulado contra a Coroa portuguesa3.

Destarte, percebemos a inserção do Compêndio na literatura antijesuítica ao representar o período de influência dos inacianos como um ‘período de ferro’, em que a ação e a influência tanto política como pedagógica dos inacianos afundaram o Reino de Portugal em um período de ‘trevas’, caracterizando os jesuítas como uma ‘lenda negra’ na história lusitana (Franco, 2005; Wright, 2006). Segundo Franco (2012), esse conjunto de representações relaciona-se com o debate entre Antigos e Modernos que permeou a percepção temporal da literatura europeia até meados do século XVIII. Trata-se de um conflito que já estava presente na Antiguidade, alternou entre a defesa de um ou de outro lado na história intelectual europeia e que, como aponta Le Goff (2003, p. 184), foi “[...] preciso chegar às vésperas da Revolução Francesa para que o século das Luzes adotasse a ideia de progresso, sem restrições”. Para Mateus (2012, p. 2), consolida-se a concepção de uma temporalidade sequencial, linear e cumulativa associada a um “[...] tempo galopante, final e irrepetível, fazendo um corte profundo entre um passado e um futuro [...]”, e da qual a tradição literária seria uma das principais representantes.

Buscaremos completar esse debate com o conceito de decadência proposto por Peter Burke no texto ‘Tradition and experience: the idea of decline from Bruni to Gibbon’. Para Burke (1976), a percepção da mudança temporal de algo positivo, ou uma ‘Idade de ouro’, para algo negativo, ou uma ‘Idade das Trevas’, leva à sensação de decadência, na qual instituições políticas, atores sociais e paradigmas morais e culturais são questionados. A percepção de decadência foi recorrente nos textos de letrados portugueses do século XVII e XVIII. Assim, analisarmos como essa percepção dialoga com a retórica antijesuítica nos permite aprofundar não só as tensões políticas e pedagógicas que levaram à expulsão da Companhia de Jesus mas também todo um conjunto de representações fundamentais para compreendermos os paradigmas modernos de educação. Nesse sentido, neste artigo, direcionaremos nosso olhar, especialmente, para as representações antijesuíticas presentes no Compêndio que possam ser compreendidas a partir do conceito de decadência.

Entre a decadência e a busca pelo progresso, um obstáculo: os jesuítas

Segundo Burke (1976), diversas obras utilizaram uma série de metáforas para expressar a mudança para algo pior, a percepção de decadência. Ela pode ser traduzida como

[...] a vinda do outono ou como perda do calor ou do fervor, como aproximação da escuridão, ou pôr do sol, o retroceder do mar, ou, mutualmente, como a vinda de uma inundação de infortúnios [...] pode ser observada em termos de arquitetura, como a decadência ou ruína de um prédio, ou em termos de agricultura, como a exaustão de um solo que já foi fértil (Burke, 1976, p. 138).

Por trás da decadência, destacam-se os motivos, variando desde uma ordem cósmica até a decadência moral, política ou econômica. Os motivos de ordem cósmica abrangem a ação da providência divina, sendo explicados em termos de punição divina pelos pecados de seus governantes ou população, ou por uma concepção cosmológica. Por exemplo, segundo a concepção humanista, existiria uma correspondência entre o macrocosmo e o microcosmo, levando, assim como todo animal ou organismo, o universo a sentir o declínio por meio do envelhecimento. Era usual em tal concepção referências à ‘velhice do mundo’ (Burke, 1976). A partir do século XVII, muito provavelmente devido à consolidação da racionalidade científica, percebe-se uma mudança da visão de decadência segundo uma ordem divina e cosmológica para uma ênfase maior em motivos econômicos e culturais (Burke, 1976). Desse modo, é fundamental a análise das especificidades históricas de cada contexto em que podemos identificar essa estrutura narrativa, em nosso caso, o contexto lusitano do século XVIII.

A percepção da decadência portuguesa já se fazia presente em círculos letrados desde o século XVII. Afirmavam que o humanismo, que encontrou eco na Portugal do século XVI, foi um ‘brilho fugaz’, posteriormente ofuscado pelo conservadorismo da aristocracia-burguesa avessa aos debates e às inovações modernas do século XVII. Essa realidade foi compartilhada pela Espanha, levando os países ibéricos a entrarem no século XVIII “[...] em boa parte cristalizados em suas instituições, com seus costumes e ideias francamente destoantes e defasados em relação aos seus vizinhos” (Falcon, 1982, p. 158).

Esses letrados, referenciados como ‘intelectuais estrangeirados’, experimentavam a realidade de outras cortes no contexto de mudanças da Modernidade, desenvolvendo a consciência do “[...] desajustamento entre o tempo português e europeu transpirenaico”4 (Serrão, 1971, p. 785). Filósofos, literatos e estadistas expressaram em seus escritos um passado-paradigmático a ser resgatado - aquele ligado ao Império português ou até mesmo à consolidação do Estado luso no contexto medieval - em função de um projeto nacional expresso no desejo de um porvir que rompesse com o ‘universo barroco’ português (Serrão, 1971).

Dentre esses letrados, destacamos o próprio Pombal. Ainda jovem, experimentou, enquanto diplomata, as cortes de Viena e Londres. Ao assumir os primeiros cargos durante o reinado de D. José I, já destacava, em seus escritos, os motivos para a decadência econômica de Portugal. Para o ministro, um dos principais motivos para essa decadência seria a influência inglesa sobre Portugal que se fazia “[...] senhora de todo o comércio de Portugal” (Melo, n.d., p. 144). Por exemplo, diante dos acordos comerciais:

A nação caiu em uma espécie de frio letárgico; a ociosidade e a preguiça senhorearam-se de todos os corações, não deixando neles lugar para as outras paixões, e a indolência dos portugueses aumentou-se a medida do grau de grandeza que subia a avareza britânica. (Melo, n.d., p. 144).

A despeito da forte presença da ameaça inglesa nos escritos pombalinos, um dos alvos principais, durante todo o ministério pombalino, foi a Companhia de Jesus. Dentre as principais acusações, estava a influência territorial nas porções mais ao Norte, seja com o domínio das missões, seja pelo controle da mão de obra indígena. Ao Sul essa influência chegou a ameaçar a efetivação dos acordos de limites postos pelo Tratado de Madri, levando a uma série de atritos entre os jesuítas espanhóis e a Coroa portuguesa (Maxwell, 1996).

Apesar dessa constatação, devemos ponderar a ação jesuítica no Reino de Portugal com cautela, já que a própria consolidação do Estado lusitano ao longo da Modernidade se deu em articulação com a ordem inaciana, tanto nos domínios coloniais quanto na estrutura de corte ou mesmo no direcionamento dos estudos menores e maiores, sendo os jesuítas, muitas vezes, associados aos paradigmas mais modernos de educação5. Um dos exemplos desse processo foi a Universidade de Coimbra. Até a Restauração, em 1640, Coimbra foi, segundo Bangert (1985), o ‘grande alfobre’ dos missionários jesuítas6.

D. João III fez deste colégio a menina dos seus olhos. Também o Cardeal D. Henrique, ativo mecenas das letras, ambicionava fazer de Évora um florescente centro intelectual. Continuou a sua fundação do Colégio de Lisboa em 1565 com mais três colégios em Évora entregues à Companhia (Bangert, 1985, p. 84).

Qual a dificuldade de Pombal em perpetuar essa articulação? Já no ‘Discurso político sobre as vantagens que o reino de Portugal pode tirar da sua desgraça por ocasião do terremoto de 1º de novembro de 1755’, podemos identificar a postura política e intelectual que levou à ruptura com os jesuítas. Segundo Pombal,

Portugal está abrir hoje os olhos sobre o perigo em que se tem achado [...] Quando os princípios de um governo estão de uma vez corrompidos, quando a sua constituição foi moldada sobre abusos, quando os preceitos antigos tem servido a formar um novo gênio, quando um grande luxo se senhorou da nação, quando as máximas depravadas tomaram o lugar das boas, quando o povo perdeu a norma dos seus antigos costumes, digo que as melhores leis não acham em que pegar: é preciso então, para me explicar assim, é necessário um golpe de raio, que abisme e subverta tudo, para tudo reformar (Melo, n.d., p. 15).

A corrupção moral, recorrente nas metáforas decadentistas, aparece no discurso de Pombal não só para diagnosticar a situação do Reino mas também para propor a urgência das reformas de Estado. Propõe-se uma abertura para os novos ideais do século ligados à Ilustração, não aquela de cariz revolucionária, mas sim a voltada para o pragmatismo político com o qual se poderia modernizar as estruturas políticas e econômicas do Reino, rompendo, assim, com a sensação de decadência. Partindo dos moldes de uma Ilustração conservadora, o soberano ainda era uma figura central. Tinha-se a convicção de que um príncipe filósofo poderia perfeitamente varrer as trevas do seu reino e implantar a razão por meio de leis e de instituições humanas, naturais, benfazejas (Falcon, 1982).

Dentre as medidas reformistas, destacaram-se a reestruturação da sociedade de corte portuguesa e as reformas no âmbito fiscal e econômico ao longo de todo o Império. Contudo, um obstáculo fazia-se sentir diante das reforças educacionais: a forte presença jesuítica em toda sua estrutura. Para romper essa barreira, o Estado luso, orientado por meio da propaganda antijesuítica, foi eficiente em mobilizar uma série de representações e estruturas discursivas que ganharam força ao longo da Modernidade, cristalizando o mito, a ‘lenda negra’, da ameaça jesuítica (Franco, 2005). Talvez por isso a sua eficiência em justificar as contínuas ações políticas para suprimir a Ordem. O ministério pombalino, junto à parte da intelectualidade lusitana e à Companhia de Jesus, envolveu-se em uma guerra cultural, na qual o que esteve em disputa não foi somente a atuação política e educacional mas também a apropriação dos paradigmas modernos tão almejados pelo reformismo pombalino.

No entanto, devemos ressaltar que o antijesuitismo não é exclusivo à realidade portuguesa. Segundo Franco (2012), o antijesuitismo é um ‘fenômeno de longa duração’ que se consolidou entre o século XVI e o XVIII. Ele acompanhou o sucesso da Companhia de Jesus e solidificou um ‘mito’ sobre a ação desta. Sua ascensão acompanhou o ‘signo de hostilidade, da suspeita e da perquirição’, criando uma ‘lenda negra’ sobre os jesuítas. Wright (2006) alinha-se a essa interpretação e reforça que a propaganda antijesuítica ganha força no contexto das guerras religiosas do século XVI. A Reforma e, posteriormente, a Contrarreforma incitaram as tensões entre protestantes e a Igreja Católica, tendo esta como um de seus principais representantes a Companhia de Jesus. Foi um momento tenso, “[...] levando inimigos religiosos a cuspirem uns nos outros nas ruas, ou desenterrarem os mortos para queimar seus corpos ou outras coisas bem piores” (Wright, 2006, p. 34). Para deslocarem-se pela Europa afora, os jesuítas tinham de andar disfarçados e com nomes falsos. Denominados de “[...] turba de frades vagabundos [...]”, eram sujeitos a suportar todo o tipo de violência da legislação anticatólica (Franco, 2012, p. 23).

A propaganda antijesuítica ganhou uma força descomunal a partir de meados do século XVIII. Potencializada pela panfletagem ilustrada, todo arsenal de metáforas, analogias e discursos antijesuíticos existentes desde o século XVII se organizou em uma poderosa arma nas mãos dos Estados nacionais da época. Portugal foi o caso mais emblemático. Segundo Franco e Vogel (2003, p. 139), foi com o Marquês de Pombal que o mito jesuítico se estruturou doutrinalmente e de forma sistemática. Ele deu forma teórica acabada ao mito dos jesuítas, “[...] imprimindo-lhes a eficácia que as críticas esparsas e circunstanciais feitas aos jesuítas careciam”. Pombal criou uma

[...] vasta e prolixa forma literária e conteúdo doutrinário. Escreve, promove, supervisiona e patrocina a produção de obras, de panfletos, de libelos, leis e iconografia contra os Jesuítas. Estes documentos constituem aquilo que se pode denominar de uma forma geral de literatura antijesuítica pombalina (Franco & Vogel, 2003, p. 140).

Segundo Wright (2006), devemos lembrar que a criação do mito jesuítico tem um alto teor político. Pombal precisava legitimar suas ações em relação à Companhia. A partir de seus órgãos de censura, buscou levantar todo um conjunto de documentos de caráter antijesuítico (leis, panfletos, sentenças, memórias diplomáticas, petições, relatórios, epistolografias, teses, tratados, regimentos, iconografia etc.) para ferir a imagem de prestígio da Ordem. Segundo Franco (2005, p. 248), mesmo Pombal não sendo o redator da totalidade das obras, ele foi

[...] sem dúvida o seu modelador, o inspirador e sempre o revisor, pois nada vinha a público sem passar pelas suas mãos. Por isso, Carvalho e Melo é o autor implícito, ou o autor tutelar que imprime a direcção hermenêutica que devia presidir à escolha e à leitura dos dados apresentados.

O terremoto de 1º de novembro de 1755, pretexto para a implementação de muitas reformas, também foi o início do ataque massivo em relação à Companhia de Jesus, produzindo um dos documentos de propaganda antijesuítica mais emblemáticos da época, a Relação abreviada7. Esse documento foi publicado em 1757 e se propôs a um levantamento da ação jesuítica nos Reinos ibéricos. Podemos perceber, no seu extenso título, as acusações, já apontadas, à prática dos jesuítas: a oposição dos inacianos à consolidação dos Estados-nações e o perigo que representavam como uma ‘república’, verdadeiro poder paralelo às monarquias, inviabilizando seus projetos e suas ações. Segundo Franco (2005, p. 250-251), o texto relata a construção de uma República

[...] oculta e autónoma que os Jesuítas teriam erguido nos territórios missionários do Paraguai à revelia dos poderes dos dois Estados ibéricos, usurpando a autoridade legítima dos seus monarcas sobre aqueles. (Assim o documento estabelece um dos) mitemas matriciais do mito de complot dos Jesuítas em Portugal: o seu projecto de constituição de um império tirânico de amplitude universal, cujo ponto de partida e o balão de ensaio seria essa formidável República dos Guaranis.

Ferreira Neto (2021) aponta que o incômodo em relação aos jesuítas no Brasil se arrastava desde o século XVI e contribuiu decisivamente para o sentimento antijesuítico. Além da tensão com o clero local, tivemos a disputa do controle sobre a população indígena com os colonos. A tensão entre evangelização, defendida pelos inacianos, e escravidão, ambicionada pelos colonos, levou a motins com forte conotação antijesuítica na Bahia, no Maranhão, no Rio de Janeiro e em São Paulo8. Consolidava-se uma retórica do privilégio jesuítico em terras brasileiras que, posteriormente, daria força à ideia de um ‘império jesuítico’.

A narrativa da Relação abreviada estrutura-se de forma a demonstrar que esse Império estaria em constante organização e expansão. Iniciando-se no Brasil, partiria para o Reino, depois para toda a Europa católica, transvasando até o Oriente (Franco, 2005). Segundo Maxwell (1996), mais de 20 mil cópias desse documento foram distribuídas ao longo de toda a Europa, colocando ainda mais fogo na propaganda antijesuítica. Logo em seguida, buscando afirmar suas ações contra a Companhia perante o clero católico, é publicado o texto Erros ímpios e sediciosos que os Religiosos da Companhia de Jesus ensinarão aos reos, que forão justiçados e prentenderão espalhar nos póvos destes reynos9. O breve texto de 32 páginas circulou inicialmente de forma anônima. Depois foi enviado, de forma anexa à Carta Régia de 19 de janeiro de 1759, aos bispos das dioceses da Metrópole e do Ultramar, para que eles prevenissem seus fiéis dos supostos “[...] crimes e doutrinas demoníacas destes religiosos (jesuítas)” (Franco, 2005, p. 253).

Esse documento teve como motivador principal não só os interesses políticos no combate à Companhia de Jesus mas também a brecha gerada com o alvoroço da tentativa de assassinato de D. José I, em 3 de setembro de 1758. O Erros ímpios atribui a tentativa de regicídio à moral relaxada dos jesuítas: “[...] enquadra-se este crime historicamente na esteira de uma série de outros atentados à pessoa de outras autoridades soberanas, também registados pela tradição antijesuítica europeia como sendo devedores da moral jesuítica de feição probabilística e relaxada” (Franco, 2005, p. 253). Assim, Portugal foi pioneira não somente dessa propaganda institucionalizada como também da primeira ação concreta contra os jesuítas. Em 3 de setembro de 1759, por meio de Alvará régio, Pombal expulsou a Companhia de Jesus de todos os domínios de Portugal.

Devemos reforçar que essa tensão política que embasou a literatura antijesuítica se materializou em metáforas que remetem ao próprio discurso decadentista, no qual a situação de crise é atribuída a um inimigo externo, seja a partir de fora ou mesmo a partir de própria estrutura interna do Reino. A ideia de ‘império jesuítico’, ou mesmo de complot, cabe nessa estrutura e deu força às diretrizes pombalinas. Burke (1976) lembra de um outro elemento central na concepção de decadência social, que é a de desvirtuamento moral. Ela se dá pela corrupção da estrutura interna ou pela ação de elementos que impedem uma ordem natural. Geralmente, esses elementos articulam-se na construção do inimigo externo. Essa questão é de grande relevo para compreendermos a representação do perigo jesuítico no campo da educação, quando os inacianos são distanciados dos pressupostos modernos de educação e são associados às trevas.

Um documento central para compreendermos esse processo foi o Compêndio histórico do Estado da Universidade de Coimbra no tempo da invasão dos denominados jesuítas e dos Estragos feitos nas ciências e nos professores, e diretores que a regiam pelas maquinações, e publicações dos estatutos por eles fabricados. Além de ter se inserido, como já salientamos, no contexto político de ataque à Companhia de Jesus, ele mobilizou uma série de representações construídas desde o século XVII para justificar a supressão da Ordem. Nesse sentido, ele se apresenta como um libelo contra a Companhia de Jesus, sendo fundamental para compreendermos a construção da representação dos jesuítas.

O Compêndio foi formulado pela Junta de Providência Libertária formada em 1770. Esse colegiado de intelectuais foi criado sob a ordem de D. José a partir do Alvará de 23 de dezembro. Ele estava sob responsabilidade do Cardeal da Cunha e do próprio Marquês de Pombal e tinha como principal objetivo redigir e reformar os Estatutos da Universidade de Coimbra que coroariam as propostas pedagógicas propostas pelo gabinete pombalino10. Carvalho (1978) afirma que, apesar da parcialidade, o Compêndio representa um programa de alta significação pedagógica-cultural, sendo uma referência para entender a situação da Universidade de Coimbra nas vésperas das Reformas.

Em 1771, a Junta apresentou seu ‘relatório acadêmico-pedagógico’, no qual são “[...] averiguadas as causas do declínio do ensino e da investigação científica naquela universidade, constituída como fonte donde dimanou uma influência decadente para o ensino de todo o reino e seus senhorios planetários” (Franco, 2005, p. 261). Essa lógica nos permite refletir sobre as mudanças dos paradigmas educativos no século XVIII. Ao construir uma imagem sobre os jesuítas, o Compêndio recorre a uma série de mitos e representações que dizem muito mais sobre as concepções e as lógicas de pensamento ilustrado do que sobre as próprias concepções educacionais dos jesuítas. Aliás, ele resume todo o legado da Companhia de Jesus a um “[...] jesuitismo pedagógico e este com a escolástica que teria feito mergulhar as letras e as ciências lusitanas numa escuridão que urgia iluminar através de um processo reformista radical e depuratório das causas recenseadas de tão devastadora decadência” (Franco, 2005, p. 260). Essa perspectiva histórico-pedagógica dada ao Compêndio é recorrente na estrutura narrativa que pauta os documentos pombalinos. Dessa forma,

[...] a argumentação onde o passado, apresentado pela sua historiografia de pendor jurídico-historicista tem um papel estruturante e fundamentador, a que se faz constantemente apelo como meio e base inesgotável de argumentos e provas e como lugar de justificação para iluminar a explicação (Franco, 2012, p. 14).

Aqui se desenha uma representação da decadência de Portugal recorrente nos escritos da obra por nós analisada. A introdução já traz a carta de D. José ordenando a organização da Junta de Providência Literária que seria responsável pela formulação do Compêndio histórico. Nessa carta, identificamos a tensão em relação aos jesuítas:

[...] a mesma Universidade foi tão admirada na Europa até ao ano de mil quinhentos e cinquenta e cinco, no qual os denominados Jesuítas, depois de haverem arruinado os Estudos Menores com a ocupação do Real Colégio das Artes [...] passaram a destruir também sucessivamente os outros Estudos Maiores, com o mau fim, hoje a todos manifesto, de precipitarem os meus Reinos e vassalos deles nas trevas da ignorância (Pombal, 2008, p. 95).

A Universidade que teve seus estudantes levados às trevas da ignorância deveria ser reformada, assim como todo o reino português, para que o principal causador daquele estado de decadência pudesse ser eliminado e uma nova luz surgisse em Portugal.

Das maquinações aos estratagemas: a ação jesuítica para a decadência portuguesa

A ação jesuítica retratada no Compêndio a partir do estreito diálogo com a literatura antijesuítica traz diversos elementos das estruturas da narrativa de decadência na literatura moderna. Percebemos essa estrutura na primeira parte da obra quando ela recorre à ‘Dedução Cronológica e Analítica’ para dissertar sobre o percurso histórico do Reino de Portugal ao longo da Modernidade. Esse documento, organizado entre 1767-1768 por Miguel Manescal da Costa, Marquês de Pombal, Antônio Lourenço Caminha e membros da Ordem dos Carmelitas Descalços, visava a apontar os ‘horrorosos estragos’ cometidos pelos jesuítas desde o reinado de D. João III.

O Prelúdio I, ao ponderar a ação dos jesuítas, destaca os “[...] horrorosos efeitos das façanhosas atrocidades dos denominados jesuítas [...]”, que teriam ignorado as regras do ‘Direito Natural e Divino’ e optado por uma “[...] jurisprudência sem outras bases ou fundamentos que não fossem os das autoridades extrínsecas dos que a escreveram” (Pombal, 2008, p. 108). Identificamos nessa representação uma ação que se dá à parte dos domínios régios e aos poucos se infiltra nas estruturas políticas. É um processo associado à ideia de ‘corrupção’ que dialoga com a noção de decadência política a partir da ação de um grupo ou sujeito externo. No Compêndio, essa lógica manifesta-se diversas vezes com a ideia de ‘maquinação’, ações sistemáticas e persistentes dos inacianos em vistas a assumir a estrutura do poder lusitano. No Prelúdio II, essa representação é utilizada para argumentar um crítico episódio da história portuguesa. Com a morte de D. Sebastião, os jesuítas teriam ‘arquitetado’ a posse de D. Filipe II, monarca espanhol, no trono luso como forma de

[...] arruinarem no mesmo Reino todas as pessoas que podiam nele arguilhos, e promover o castigo dos seus disformes atentados. Por outra parte, o terceiro interesse de aproveitarem os mesmos Jesuítas as maiores forças, que lhes acrescentava o grande poder daquele Monarca Espanhol com eles coligado (Pombal, 2008, p. 116).

Identificamos, nesse prelúdio, a ideia de complot jesuítico recorrente à narrativa do inimigo externo. Segundo Franco (2012, p. 25), foi uma metáfora que recorria muito à biografia militar de Inácio de Loyola, que foi utilizado nos séculos XVII e XVIII para retratar os membros da Ordem como uma “[...] milícia de soldados veteranos ou de uma elite obediente, bem treinados, representados de cabeça baixa, comandados por um general papista”. Wright (2006, p. 162) também destaca que os jesuítas, muitas vezes, eram vistos como uma “[...] organização orgulhosamente supranacional e com uma lealdade explícita a Roma”. Destacamos que essa acusação foi feita pela própria Igreja Católica aos jesuítas, sendo retratados como uma ordem austera e fechada que só respondia ao comando de seu Principal, o que demonstrava um incômodo com a crescente presença e com o dinamismo da Ordem perante a estrutura clerical da época. Dessa forma:

A teoria complotística que estrutura o mito jesuíta intrinsecamente tem na base a ideia de que os dinamismos sociais negativos, decadentistas, obedecem a uma ação voluntarista de um grupo de aversão ou de conspiração, e como tal resultam de uma intencionalidade diretiva que lhe está na origem (Franco & Vogel, 2003, p. 127).

Une-se a essa representação a metáfora do ‘jesuíta de casaca’ ou o ‘jesuíta secreto e disfarçado’, uma ordem secreta que agiria à parte do poder secular, minando-o para conquistar espaço e acúmulo de riquezas pelos mais diversos meios. Era uma visão que circulava em diversos Reinos. Étienne Pasquier (1529-1615) chegou a apontar o caso de Portugal, no qual os jesuítas são acusados de terem preparado a derrota de D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir e organizado a Noite de São Bartolomeu na França. Percebemos, assim, que a ‘lenda negra’ dos jesuítas se constitui juntamente ao sucesso da Companhia. Cada vez mais os inacianos eram vistos com desconfiança, quando não eram veementemente atacados. Tais conflitos desencadearam

[...] uma espécie de histeria crítica da parte dos seus inimigos e concorrentes nas suas áreas de actuação e de interesse. Eles começam, nesta fase, a ser colocados, sem cedências, do lado negro da história, elevados a autênticas vedetas do mal, acusados de serem envenenadores de almas, instigadores de paixões públicas, usurpadores do nome de Jesus, corruptores da juventude, subvertores da autoridade episcopal, além de ostentarem um orgulho e uma vaidade desmesurada, de tal modo que o arcebispo de Dublin chegou a considerá-los mais perigosos que Martinho Lutero e piores que os Judeus (Franco, 2012, p. 58).

O Prelúdio IV retrata essa intencionalidade descrevendo os ‘estratagemas’ utilizados pelos jesuítas para levar o Reino de Portugal à decadência. Eles podem ser entendidos como Manobra, plano empregado em guerras para enganar, confundir o inimigo. Plano, esquema, previamente estudado e posto em prática para atingir determinado objetivo. Em uma definição contemporânea ao Compêndio, o dicionário de Rafael Bluteau define o estratagema como uma ação de astúcia militar para fazer dano ao inimigo, uma maquinação política para conferir algum fim (Bluteau, 1798)11. Assim, os estratagemas sempre são representados como ações sorrateiras e voltadas aos seus próprios interesses. Essa imagem pode ser destacada no segundo estratagema que trata da ‘máxima da calúnia’. Nela o Compêndio aponta que

[...] todo aquele que quiser arruinar qualquer pessoa ou Governo, deve principiar esta obra espalhando calúnias para difamar a sobredita pessoa ou Governo, porque sendo certo, que o tal Caluniador acabará sempre da sua parte o grande número de homens, que ordinariamente se encontram propensos para crerem o mal, daí se seguirá que, tirando dentro em pouco tempo o crédito ao Caluniado, perderá este logo com a fama todas as forças que principalmente consistem na reputação, para sucumbir ao Caluniador que dele se pretende vingar (Pombal, 2008, p. 152).

Ao longo desse trecho, são elencadas, inclusive, diversas figuras públicas que teriam ajudado ou sido corrompidas pelos jesuítas para tramar a decadência do Reino (Pombal, 2008). Um deles foi D. Jorge de Ataíde, bispo de Viseu e embaixador português no Concílio de Trento. Contudo, teria sido orientado e controlado por seu confessor, o jesuíta Bartolomeu Guerreiro, garantindo que tomasse as diretrizes para firmar os interesses da Ordem via Portugal. Essa prática, denominada de sigilismo, é retomada pelo Compêndio em vários momentos12. No Apêndice, afirma-se que o ‘erro do Sigilismo’ é uma das “[...] doutrinas mundanas, carnais e horrorosas [...]” difundidas pelos jesuítas (Pombal, 2008, p. 460). Ainda reforça que

[...] por meio deste subsídio, têm governado há mais de dois séculos e pela grande destreza e fortuna com que o têm manejado, tendo sabido sempre encobrir e disfarçar o seu pernicioso veneno e tendo conseguido tirar dele as grandes utilidades que os mesmos Regulares se propuseram, sem terem até agora padecido os infelizes fins dos precedentes profanadores do mesmo Sigilo Sacramental. (Pombal, 2008, p. 461).

O Prelúdio IV associa a calúnia ao segundo estratagema, a ‘sedição’ como forma de estimular a revolta e os conflitos em meio à sociedade. Ele destaca o apoio dado aos jesuítas na distinção entre cristãos novos e cristãos velhos ao longo do século XVI. Os jesuítas teriam ‘maquinado’ para

[...] levantar entre nós um fanatismo e entusiasmo tais que obrigaram não só os cabidos de muitas catedrais e colegiadas a pedirem Breves de pureza de sangue para os seus Capitulares, mas até as Confrarias e Grémios de Artífices a estabelecerem a mesma qualidade de Cristãos Velhos pelos seus Compromissos, como requisito necessário para entrarem nelas os seus respectivos confrades [...] se vê logo, com a maior clareza, que os ditos Jesuítas nada menos fizeram do que deixarem os efeitos daquela geral preocupação, por eles propagada, útil, honorífica e pia a sediciosa distinção de nomes e a guerra civil por ela acendida, que causaram o motim do ano de 1506 [...] E acertaram somente e foram somente religiosos eles Jesuítas que, pelos oblíquos retorcido se ocultos atalhos das intrigas e das maquinações que acima se acabam de substanciar, foram excogitar entre os factos do mais feliz dos reinados precedentes aquela castigada e proibida distinção sediciosa, para dividirem e dilacerarem com ela as forças do Reino [...] conseguiram com os funestíssimos efeitos que ainda deploramos e hão-de deplorar os séculos futuros pelos muitos vestígios que tão grandes estragos não podem deixar de transmitir ainda aos vindouros (Pombal, 2008, p. 163-164).

Esse episódio, além de ressaltar a memória das guerras religiosas do século XVII, é recorrentemente citado pelos letrados que buscaram apontar a decadência do Reino. D. Luís da Cunha chegou a comentar que a perseguição aos cristãos novos interferia diretamente nos lucros e nas empresas que eles podiam atrair. Boto (1996, p. 5) também destaca que muitos letrados denunciavam as vantagens políticas do clero que impactariam negativamente a economia do Reino, fazendo com que as “[...] excessivas prerrogativas do clero [...]” tornassem os inacianos um “[...] estado à margem do Estado”. Esse elemento denunciado pela literatura decadentista é recorrente na retórica antijesuítica. Em um famoso texto acusatório chamado Monita secreta13, os jesuítas são acusados de desenvolverem instruções supostamente secretas e de orientarem os membros da Companhia a caluniarem outras ordens como forma de afirmação política.

Deve-se suportar com coragem esta casta de pessoas, e a propósito dar a conhecer aos príncipes e àqueles que têm algum poder, e, de algum modo, nos são afectos, que a Companhia encerra a perfeição de todas as Ordens [...]. Indaguem-se e anotem-se os defeitos dos outros religiosos, e depois de os terem descoberto e publicado com prudência, deplorando-os aos nossos féis amigos, se mostre que eles não desempenham com tanto sucesso as funções que em comum nós exercemos com eles (Monita secreta, n.d., p. 39-40).

A partir da análise desses trechos, emerge outra representação recorrente atribuída aos jesuítas, em especial ao Geral da Companhia, que é habitual na literatura antijesuítica: a ideia de que, por meio de ações e estratégias políticas, os jesuítas buscavam construir um Império, sublevando-se contra as monarquias e, inclusive, contra o papado. Essa prática, identificada por Franco e Vogel (2003, p. 125) ao analisarem a Monita secreta, orientava a conduta religiosa e moral dos membros da Companhia. Esse modo de agir se assentaria no pilar fundamental que era o aforismo maquiavélico “[...] os fins justificam os meios [...]”, representado aqui a partir da ideia de ilicitude moral. Franco e Vogel (2003, p. 126) destacam que a Monita secreta “[...] incutia de forma mais persuasiva a crença de que os jesuítas tinham verdadeiramente um plano para dominar universalmente os espíritos e as sociedades em nome do qual desenvolviam as mais diversas conspirações malevolentes”.

O terceiro estratagema do Prelúdio IV reforça essa representação ao afirmar que essa divisão levou à ruptura do Estado, estabelecendo um estado em que “[...] tudo é desordem, tudo é confusão, tudo é espírito de facções e tudo é um caos de discórdias e guerras intestinas” (Pombal, 2008, p. 164). Nessa descrição o Compêndio histórico traz uma importante ligação ao destacar que os jesuítas, não se contentando com a ‘malícia’ e a ‘ferocidade’ causada pela tentativa de divisão dos cristãos, passaram a “[...] semear outras cizânias da sedição e da discórdia intestina [...]” no corpo acadêmico, no caso, referindo-se à Universidade de Coimbra.

Destacamos o campo da educação devido ao próprio propósito do Compêndio em realizar um balanço da ação jesuítica na Universidade de Coimbra. Entretanto, em sua primeira parte, traz elementos centrais para compreendermos a narrativa decadentista. No Prelúdio I, quando resgata o histórico da ação jesuítica no Reino, afirma que os jesuítas teriam iniciado sua presença no Colégio Real de Artes e Letras Humanas em 1555 sob orientação de Simão Rodrigues e de outros dez membros da Companhia de Jesus, iniciando, assim, o “[...] infausto e crudelíssimo golpe com que, truncando em flor todas as esperanças da sua futura instrução, abriram ao mesmo passo o caminho ao esquecimento dos progressos anteriores daquele sumptuoso e magnífico Colégio” (Pombal, 2008, p. 108-109). Burke (1976) lembra que a visão decadentista perpassa a noção de transição de uma era de simplicidade e virtude para uma era de luxo e corrupção. Dentre os diversos motivos para a decadência moral, temos a corrupção do poder aliado ao declínio cultural por meio da crise nas artes e nas ciências.

Depois de reduzir a educação da nobreza ao ‘idiotíssimo’, Simão Rodrigues foi nomeado superior da Universidade de Coimbra. Nela consegue, por meio de provisão dada por D. João III, em 1557, e estendida por D. Sebastião, em 1564, desvincular os estudos menores dos maiores e do Reitor da Universidade. Assim:

Tantos e tais foram, pois, os estragos que a hipocrisia e o fanatismo fizeram na Autoridade Régia, no decoro da principal nobreza, na tranquilidade pública e na literatura de todos os Três Estados deste Reino até ao falecimento do Senhor Rei D. João III [...] desde que Simão Rodrigues se achou árbitro despótico do espírito do Senhor Rei D. João III, empregou todas as forças próprias e dos seus companheiros para a destruição do colégio da nobreza deste Reino e dos Estudos maiores da Universidade de Coimbra e para estabelecer o seu absoluto domínio sobre a fraqueza da nossa ignorância (Pombal, 2008, p. 110).

A ação dos jesuítas nos permite compreender dois pontos. Em primeiro lugar, os colégios enquanto espaço de disputa no campo educacional. Segundo Hilsdorf (2006, p. 75), muitos afirmavam que os colégios jesuíticos funcionavam como ‘Igreja paralela’, e o colégio dava “[...] visibilidade ao domínio que a igreja exercia sobre a cidade ou região onde estava instalado, operando como arma de luta político-religiosa”. Nas disputas entre colégios católicos e protestantes, essas instituições representavam verdadeiras ‘frentes de batalha’. Em segundo lugar, a ação jesuítica, compreendida como motivo de ruína da educação, resultou em uma crise moral a qual teria condenado o Reino a uma situação de decadência.

Nesse ponto, o Compêndio reforça a ação sorrateira dos jesuítas. Chega a elencar trezes exemplos de como os jesuítas emitiram alvarás ganhando espaço político e institucional no Colégio Real e na Universidade de Coimbra. Por exemplo, no alvará de 2 de janeiro de 1560, os regulares do Colégio de Coimbra passaram a ter direito de colar grau na universidade gratuitamente e sem obrigação de juramento. “E daqui ficou a desgraçada universidade cheia de idiotas estranhos, e os filhos desanimados para os estudos, vendo que, para ser doutor, bastava que se vestisse uma roupeta da Companhia” (Pombal, 2008, p. 111).

O Prelúdio I reforma a representação da ‘lenda negra’ jesuítica associando-a a um período de trevas, assim como estabelece uma visão histórica ligada a um percurso de decadência. O que, antes, para Portugal, representava uma ‘nação iluminada’, agora, com a presença dos jesuítas, teria mergulhado no ‘despotismo e fanatismo’. Conclui da seguinte forma:

Os referidos exemplos, e outros muitos do mesmo género que omito por não fazer a relação deles intoleravelmente fastidiosa, foram pois os instrumentos com que se desmoronaram por partes e vieram a arruinar-se depois no todo pelos ditos denominados Jesuítas, aquele Real e magnífico Colégio de Nobres, berço da mais ilustre mocidade portuguesa e aquela célebre, rica e florente Universidade, mãe e ama fecunda da escolhida literatura que dela se derivava para as Metropolitanas, Dioceses, Gabinetes e Tribunais desta monarquia, e com que se procurou sepultá-la na crassa e densa ignorância que tinha feito o violento objecto dos mesmos Jesuítas (Pombal, 2008, p. 108).

Conforme destacamos, a ideia de maquinação é seguida das estratégias para a execução de um suposto plano de dominação, os estratagemas. Um ponto que permeia os Prelúdios e inclusive se apresenta ao longo de todo o Compêndio é a questão dos Estatutos propostos pelos jesuítas para a Universidade de Coimbra. Segundo Leite (1963), os Estatutos da Universidade de Coimbra são valiosas fontes históricas para compreender as relações políticas entre os monarcas e o espaço universitário, assim como demarcar as mudanças nas concepções educacionais da época. Os Estatutos são definidos pelas leis, privilégios e bens próprios da Universidade. Sua definição partiu ora da corte, ora dos conselhos universitários. A princípio, a expressão codificada ou orgânica dessas leis acadêmicas recebeu o nome de Constituição, e depois o de Estatutos (Leite, 1963).

O Prelúdio II destaca que os estatutos da Universidade existiam desde 1288; contudo, nesse período, a Universidade se situava em Lisboa, sendo fundada como Universidade de Coimbra somente em 129014. Segundo Nunes (2013), o primeiro estatuto da Universidade de Coimbra teria sido homologado oficialmente em 1309 com a Charta Magma Privilegionrum. Até o segundo estatuto, publicado em 1431 por D. João I; e o terceiro estatuto, publicado em 1503 por D. Manuel I, não temos a presença dos jesuítas na Universidade. Conforme o Compêndio (Pombal, 2008, p. 132), nesse período, “[...] cultivou-se a matemática, astronomia, geografia e os estudos éticos e morais [...]”, resultando em “[...] grandes homens e as grandes conquistas que o Senhor Rei D. Manuel adiantou depois tanto, como é manifesto”. No entanto, a partir da instalação dos jesuítas e com o quarto estatuto de 1559, foram “[...] sepultados no mais profundo esquecimento”.

A narrativa dos estatutos se constrói como assaltos subsequentes, garantindo a influência dos jesuítas nos estudos menores e na Universidade de Coimbra. Nesta última, o ‘ataque’ só teria se manifestado claro durante o reinado de D. João III quando nomearam Baltazar de Faria como visitador e reformador da Universidade de Coimbra. Nesse momento, descobre-se a “[...] intriga com que os malignos autores daquela capciosa e desnecessária Reforma pretendiam maquinar um novo corpo de Estatutos clandestinos com votos dados em particular para mais facilmente poderem corrompê-lo” (Pombal, 2008, p. 136). Esse movimento é repetido diversas vezes. O quarto estatuto teria sido instaurado durante a regência do infante cardeal D. Henrique, quando teve como ‘despóticos tiranos’ de seu espírito seus confessores jesuítas Miguel de Torres, Luís Gonçalves da Câmara e Leão Henriques. Nesse período, “[...] acumularam contra esta Monarquia os ditos Regulares todos quantos atentados a sua feroz soberba e a sua insaciável cobiça puderam inventar e sugerir ao seu incontrastável despotismo”; além disso, os jesuítas ‘tramaram’ um novo ‘assalto’ à Universidade de Coimbra por meio de um novo corpo de Estatutos (Pombal, 2008, p. 138).

A questão dos Estatutos traz um ponto de confluência entre a representação da influência jesuítica como um período de trevas e a visão decadentista, atribuindo a elas a ruína do Reino. O Compêndio finaliza a primeira parte com o Prelúdio IV, reforçando essa lógica. No primeiro estratagema, afirma que a maneira mais eficaz para ‘adiantarem as Artes e Ciências’ no Reino foi enviar os vassalos para outros Reinos e trazer professores estrangeiros. Os jesuítas, buscando impedir essa ação, teriam ‘pintado’ com “[...] cores negras e horrorosas, todos os estrangeiros, para assim nos dividirem e separarem deles. E para que, privando-nos da comunicação que com eles tínhamos, nos fechassem a entrada das luzes que de fora se comunicavam” (Pombal, 2008, p. 148). Foi o que fez Martim Gonçalves da Câmara, “[...] flagelo vibrado pelos jesuítas [...]”, ao denunciar os estrangeiros como ‘hereges’ na Universidade.

Aqui os jesuítas emergem em contraponto aos ideais cosmopolitas pregados pelas Luzes e, ao mesmo ponto em que são colocados como avessos a um grupo de letrados estrangeirados, marcaram as denúncias quanto à decadência econômica e cultural do Reino de Portugal em relação às demais nações. Os jesuítas são retratados como um obstáculo à República das Letras, quando transformaram a Universidade de Coimbra, que antes era uma ‘Universidade de Letras’, em uma

[...] oficina perniciosa, cujas máquinas ficaram sinistramente laborando, para delas sair a má obra de uma ignorância artificial que obstruísse todas as luzes naturais dos felizes engenhos portugueses. Segunda, que aqueles pestíferos venenos deitados na fonte das ciências, foram os que infectaram os corações e as cabeças de todos os réus das usurpações, das sedições, dos insultos e das atrocidades que desde que entraram a obrar os referidos Estatutos, se tem visto em Portugal tão espantosamente. Quando, pelo contrário, o que se via antes dos referidos Estatutos, eram os feitos ilustres e os heroicos progressos dos portugueses. No continente, forçando os Mouros a irem buscar refúgio além do Oceano e do Mediterrâneo. Na África, fazendo as Conquistas com que subjugou e fez tributários os mesmos infiéis. Na Ásia e América, descobrindo novas regiões antes desconhecidas e fundando nelas os dois vastos senhorios do Brasil e da Índia Portuguesa (Pombal, 2008, p. 170).

As metáforas decadentistas reforçam a ideia de isolamento no terceiro estratagema ao indicar que esse isolamento teria causado o ‘envelhecimento’ dos lentes15 e dos professores da Universidade submetidos ao controle dos ‘malvados Estatutos’ (Pombal, 2008). A corrupção, enquanto velhice de um império antes próspero, volta-se, segundo Burke (1976), a um movimento de decadência relacionado a muitos impérios. Essa ideia é retomada para concluir a construção narrativa do Compêndio no final do Prelúdio IV ao indicar:

E à vista do referido, ninguém duvidará de que os ditos Estatutos Jesuíticos fizeram na Universidade de Coimbra o mesmo que em Babilónia fez a confusão das línguas diferentes, fizeram tantas Seitas obstinadas, quantas foram as opiniões daqueles doutores que estabeleceram com juramento por únicos princípios e por únicas regras e fizeram, consequente e necessariamente, com que a Universidade e todo este Reino focassem por efeitos daqueles Magistérios e daqueles Estudos, ardendo em uma perpétua guerra de contradições e de sofismas, que era o objecto com que os ditos malignos regulares introduziram com tantas intrigas na mesma Universidade os ditos Estatutos (Pombal, 2008, p. 169).

Segundo Nunes (2013, p. 87-95), a representação detratora dos Estatutos jesuíticos teve profundo impacto na reforma instituída pelo ministério pombalino, inclusive na forma de se representar enquanto momento de ruptura. D. Francisco de Lemos16, ao fazer um balanço sobre o resultado das reformas em Coimbra, afirmou:

Não se deve encarar a universidade como um corpo isolado, preocupado apenas com seus próprios negócios, como sucede normalmente, mas como um corpo no coração do Estado que, mercê de seus intelectuais, cria e difunde a sabedoria do Iluminismo para todas as partes da Monarquia a fim de animar e revitalizar todos os ramos da administração pública e de promover a felicidade do Homem. Quanto mais se analisa essa ideia, maiores afinidades se descobrem entre a universidade e o Estado; quanto mais se vê a dependência mútua desses dois corpos, mais se percebe que a Ciência não pode florescer na universidade que ao mesmo tempo floresça o Estado, melhorando e aperfeiçoando a si mesmo. Essa compreensão chegou muito tarde a Portugal, mas enfim, chegou, e estabelecemos sem dúvida o exemplo mais perfeito e completo da Europa atual (Relação Geral do Estado da Universidade, 1777 apud Maxwell, 1996, p. 114).

Não desejamos simplesmente apontar a relação das reformas com os ideais ilustrados do século XVIII, mas evidenciar a sua representação como ingrediente responsável pela regeneração do Reino - o que teria permitido a quebra no hiato temporal causado pela permanência dos jesuítas em Portugal. É uma representação que recorre à tensão entre Antigos e Modernos, na qual as Luzes, impulsionadoras do progresso, são ancoradas na Modernidade enquanto ruptura com um período de trevas (Mateus, 2012). É representação temporal que se ancora no contraponto entre progresso e decadência, não só por ver este último como “[...] sequência de transformações em sentido inverso das que constituem o progresso” (Serrão, 1971, p. 784) mas também por consolidar-se em uma visão do passado que ambiciona um desejo de futuro, de ruptura. Na retórica pombalina, esse ponto de inflexão seria o sucesso das reformas pombalinas na Universidade, justificando as ações em relação a determinado grupo que, deslocado para uma temporalidade negativa, deveria ser suprimido em nome das Luzes regeneradoras. A educação, segundo os pressupostos modernos ilustrados, seria o campo decisivo em disputa pelos novos paradigmas. Aqui eles não retomaram a modernidade que pode ser identificada nas ações e concepções pedagógicas jesuíticas, mas àquela autorizada e reconhecida pelo ministério pombalino.

Considerações finais

Ao analisarmos a percepção de decadência nas obras dos letrados lusitanos, podemos movimentar diversos fatores para a compreensão do suposto cenário de crise do Reino. Todavia, sobrepõe-se no discurso oficial, mobilizado pelos órgãos de publicação do gabinete pombalino, a retórica antijesuítica como bode expiatório a ser combatido em nome da regeneração do Reino. Não podemos compreender esse discurso de forma abstrata. Ele se constitui em um jogo de tensões e disputas no contexto das reformas pombalinas no Reino e no Ultramar. Os jesuítas representavam um obstáculo para a efetivação dessas reformas nos domínios coloniais e no Reino, um empecilho à reforma no ensino menor e maior. Focarmos a análise da representação dos jesuítas no Compêndio nos permite não só traçar um histórico do olhar pombalino sobre os jesuítas mas também compreender a consolidação de uma memória sobre sua trajetória política e pedagógica.

É recorrente nessa trajetória a dicotomia entre os jesuítas associados ao ensino escolástico-aristotélico, que teria mergulhado o reino nas trevas, e as reformas pombalinas, que teriam consolidado a imagem de Pombal como o paladino da Ilustração, o ideal de funcionário público e representante em Portugal da afirmação dos novos paradigmas educacionais (Maxwell, 1996). Acrescentar o conceito de decadência para compreender essa estrutura narrativa nos possibilita compreender os movimentos retóricos na construção do mito da ‘lenda negra’ jesuítica, de onde resgatam suas supostas formas de agir e maquinar, seus planos e estratagemas, que acabam falando muito mais das angústias, dos medos e dos anseios de um período ou de uma nação. Restringi-los à ação jesuítica evidencia o teor político das reformas. Desconstruir essa retórica nos traz uma oportunidade de compreender as percepções nas mudanças de paradigmas educacionais do período.

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Wright, J. (2006). Os Jesuítas: missões, mitos e histórias. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará. [ Links ]

1 Este artigo contém dados oriundos de pesquisa de mestrado financiada pela CAPES.

2Texto disponível para leitura neste link.

3A segunda parte do Compêndio histórico especifica os ‘estragos’ causados em cada uma das quatro ciências maiores: Teologia, Jurisprudência, Medicina e Matemática. Somente às três primeiras são dedicados capítulos específicos. O Compêndio termina seu balanço resgatando um Apêndice do segundo capítulo que trata sobre os estragos causados na Jurisprudência. Tal apêndice levanta 22 ‘atrocidades’ cometidas pelos jesuítas nesse campo.

4Ainda no século XVII, identificamos as críticas feitas pelo atraso do Reino na pena de diversos grupos que se organizavam a partir de três polos: o ericeirense, o oratoriano e o diretamente patrocinado pelo rei (Falcon, 1982).

5Sobre a relação entre as práticas pedagógicas e as concepções filosóficas pregadas pelos jesuítas em relação à Modernidade, conferir o artigo ‘Ciência moderna em Portugal: a ‘aula de esfera’ no Colégio de Santo Antão’ (Oliveira, Costa, & Menezes, 2017); e o livro Presença dos jesuítas no mundo científico (Fernández Rdz & Di Vita, 2004).

6Lembremos que, mesmo durante o período espanhol, os jesuítas mantiveram um bom relacionamento com o monarca, o qual via com bons olhos a Companhia. Durante esse período, de 484 membros, em 1580, subiu para 570, em 1594, e para 665, em 1615. Em 1610, havia 17 casas. O Colégio de Lisboa gozava de grande popularidade e, em 1588, contava com 2.000 estudantes, os quais, sob a direção de professores competentes, especialmente em humanidade, se lançavam com entusiasmo à formação nos estudos clássicos (Bangert, 1985).

7O título completo é Relação abreviada da República que os religiosos jesuítas das províncias de Portugal e Espanha estabeleceram nos domínios ultramarinos das duas monarquias; e da guerra que neles tem movido e sustentado contra os exércitos espanhóis e portugueses, formada pelos registros das secretarias e dos dois respectivos principais comissários e plenipotenciários e por outros documentos autênticos. Acesse a obra neste link.

8 Ferreira Neto (2021) lembra que alguns motins ganharam contornos políticos na crítica ao controle metropolitano. Por exemplo, o levante conduzido por Manuel Beckman, em 1684, no Maranhão, que tinha como bandeira a disputa pelo uso da mão de obra indígena, também levantou a bandeira da liberdade de comércio na colônia. Para compreensão da retórica antijesuítica na colônia, indicamos o artigo Antijesuitismo na Amazônia portuguesa, de Roberta Lobão Carvalho (2019).

9Texto disponível para neste link.

10Como conselheiros, foram nomeados o Bispo de Beja, Presidente da Real Mesa Censória, também conselheiro real; os doutores José Ricalde Pereira de Castro e José de Seabra da Silva, Francisco António Marques Geraldes, desembargador do Paço e conselheiro real; o doutor Francisco de Lemos de Faria, reitor da Universidade de Coimbra; o doutor Manuel Pereira da Silva, desembargador dos Agravos da Casa de Suplicação; e o doutor João Pereira Ramos de Azevedo Coutinho, também desembargador da casa citada (Pombal, 2008, p. 96). Para compreensão da trajetória política e intelectual dos membros da Junta de Providência Literária, indicamos a dissertação de Jansen Gusmão Salles (2016), Da calúnia à supressão: discursos sobre educação e antijesuitismo no período pombalino.

11Lembremos que Rafael Bluteau (1639-1734) ajudou a fundar a Academia dos Generosos em 1717, núcleo intelectual de onde se constituiu a Academia Portuguesa (Falcon, 1982). Seu Dicionário foi composto por Bluteau em 1712 e, posteriormente, reformado por Antônio de Morais Silva. Originalmente o Dicionário continha 16 mil entradas de referências históricas ou onomásticas. Em 789, foram acrescidas 22 mil novas entradas, constituindo-se como uma das principais referências sobre a gramática moderna portuguesa. Ver este link.

12O sigilismo é um sistema ou uma prática da violação do sigilo da confissão, obrigando os criminosos penitentes a denunciar o nome e o endereço dos seus cúmplices, sob pena de lhes ser negada a absolvição. Tal prática tinha um fundo político, buscando mobilizar as informações adquiridas sob confissão em causa própria (Silva, 1964).

13A Monita secreta foi supostamente escrita por Jérôme Zahorowski, antigo jesuíta expulso da Companhia em 1613. Seu texto contém cerca de 90 páginas e foi publicado pela primeira vez na Polônia em 1614. A partir daí ganhou diversas edições e reedições em vários reinos: França, Alemanha, Inglaterra, Holanda e Portugal. Estima-se que, em 1786, o texto já teria alcançado mais de 40 edições (Franco & Vogel, 2003). Apesar da popularidade desse documento, sua fama e a curiosidade que despertava consistiam justamente no fato de afirmarem ser um documento secreto no qual constariam as ‘Instruções Secretas’, reservadas somente a um pequeno número de escolhidos entre os superiores da Companhia de Jesus. Teria como objetivo principal “[...] promover o aumento do poder temporal e das riquezas da Companhia de Jesus através de meios pouco católicos” (Franco & Vogel, 2003, p. 111).

14A Universidade de Coimbra, ainda em funcionamento na atualidade, foi fundada em 1290, em Lisboa. Em 1308, a instituição foi transferida para Coimbra; regressou a Lisboa em 1338 e a Coimbra em 1354; voltou a Lisboa em 1377 e instalou-se definitivamente em Coimbra em 1537 (Nunes, 2013).

15O termo refere-se aos professores universitários, em especial aos catedráticos.

16Francisco de Lemos Faria Pereira Coutinho (1735-1822) foi irmão de João Pereira Ramos de Azevedo Coutinho (1722-1799), brasileiro convidado para fazer parte da Junta de Providência Literária que orientou a reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra (Nunes, 2013).

20Rodadas de avaliação: R1: três convites; três avaliações recebidas

21Como citar este artigo: Cardoso, R. P., & Aguiar, T. B. Das maquinações aos estratagemas: a representação da ação jesuítica a partir da percepção da decadência portuguesa. (2022). Revista Brasileira de História da Educação, 22. DOI: http://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e237

Recebido: 14 de Agosto de 2021; Aceito: 31 de Outubro de 2021; Publicado: 07 de Outubro de 2022

*Autor para correspondência. E-mail: rfaer.cardoso@gmail.com.

Rafael de Paula Cardoso é Licenciado em história e doutor em educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Professor da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. E-mail: rfaer.cardoso@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-7357-7471

Thiago Borges de Aguiar é Pedagogo e doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisador pós-doutorando na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). E-mail: tbaguiar@outlook.com.br https://orcid.org/0000-0002-7294-1200

Editor-associado responsável: Evelyn de Almeida Orlando (PUC-PR) E-mail: evelynorlando@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-5795-943X

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