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Revista Brasileira de História da Educação

versão impressa ISSN 1519-5902versão On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.22  Maringá  2022  Epub 01-Jul-2022

https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e209 

Dossiê

‘Minas Gerais é muitas’: negros e brancos nas escolas do Sul de Minas, no século XIX

‘Minas Gerais é muitas’: blacks and whites in schools in the south of Minas, in the 19th century

‘Minas Gerais é muitas’: negros y blancos en las escuelas del sur de Minas, en el siglo XIX

Marcus Vinícius Fonseca1  * 
http://orcid.org/0000-0003-0127-5009

Vanessa Souza Batista2 
http://orcid.org/0000-0002-7073-2173

1Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Petro, MG, Brasil.

2Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.


Resumo:

Neste artigo elaboramos um perfil do público das escolas de instrução elementar da região tradicionalmente conhecida como Sul de Minas. Utilizamos como material de análise uma documentação censitária relativa à província de Minas Gerais, dos anos de 1830. Esse material permitiu estabelecer características como o perfil racial e socioeconômico dos alunos e aspectos relativos a seus grupos familiares. Elaboramos também uma comparação do público das escolas da região sul com o da região central de Minas. Isso tornou evidente a singularidade da população que acessava as escolas da região e a importância de se levar em consideração a diversidade regional nas análises sobre a história da educação em Minas Gerais, no século XIX.

Palavras-chave: Sul de Minas; século XIX; relações raciais

Abstract:

In this article we elaborated a profile of the public of elementary schools in the region traditionally known as Sul de Minas. We used as a material of analysis a census documentation related to the province of Minas Gerais, from the 1830s. This material allowed us to establish characteristics such as the racial and socioeconomic profile of the students and aspects related to their family groups. We also elaborated a comparison of the public of schools in the southern region with that of the central region of Minas Gerais, which made evident the uniqueness of the population that accessed the school in the region and also the importance of taking into account regional diversity in the analysis of history education in Minas Gerais in the 19th century.

Keywords: Sul de Minas; 19th century; race relations

Resumen:

En este artículo elaboramos un perfil del público de las escuelas primarias de la región tradicionalmente conocida como Sul de Minas. Utilizamos como material de análisis una documentación del censo relativa a la provincia de Minas Gerais, desde la década de 1830. Este material permitió establecer características como el perfil racial y socioeconómico de los estudiantes y aspectos relacionados con sus grupos familiares. También realizamos una comparación del público de escuelas de la región sur con el de la región central de Minas. Esto puso de manifiesto la singularidad de la población que accedía a las escuelas de la región y también la importancia de tener en cuenta la diversidad regional en el análisis de la historia de la educación en Minas Gerais, en el siglo XIX.

Palabras clave: Sul de Minas; siglo XIX; relaciones raciales

Introdução

A expressão ‘Minas Gerais é Muitas’ (Rosa, 2009) pertence ao escritor mineiro Guimarães Rosa e é uma representação viva da realidade que perpassa as Minas Gerais: um espaço eminentemente singular que existe a partir de uma diversidade que se traduz em muitas Minas.

O paradoxo contido nessa expressão está ligado à extensão geográfica do território mineiro, bem como ao seu desenvolvimento e povoamento que foram marcados por diferentes processos. Esses processos imprimiram características distintas às sub-regiões que compõem o território de Minas, no qual encontramos diferenciações que atingem os mais variados campos da vida social. Um desses campos é a educação, tema deste artigo que tem como objetivo situar algumas das dimensões das ‘muitas Minas’ celebradas pelo famoso escritor mineiro.

Segundo Andrade (2008), o processo de desenvolvimento de Minas Gerais ocorreu de uma forma muito particular, sobretudo no que se refere à ocupação do seu território. Esse movimento está situado entre os séculos XVIII e XIX e foi marcado por mudanças políticas e sociais. Dentre elas, destaca-se o desenvolvimento da região que se encontrava ao sul da capitania, a qual se configurou como um espaço com características específicas que passou a ser reconhecido imprecisamente como ‘Sul de Minas’.

Este artigo tem como objetivo apresentar algumas características do estabelecimento da configuração regional representada pelo Sul de Minas, destacando o público que se encontrava nas escolas de instrução elementar, na primeira metade do século XIX.

Para caracterizar o perfil do público que se encontrava nas escolas do Sul de Minas, elaboramos uma análise que teve como referência um censo que foi realizado na província de Minas Gerais, nos anos de 1830. Na consulta a esse material, selecionamos os distritos para os quais encontramos registros relativos às crianças que estavam nas escolas de instrução elementar. Procuramos destacar as características desses indivíduos através de elementos como o pertencimento étnico/racial, perfil do grupo familiar e alguns aspectos relativos à sua condição socioeconômica.

O foco da análise está situado na descrição do perfil dos indivíduos em processo de escolarização no Sul de Minas, contudo, para ressaltar as características desse grupo, elaboramos uma comparação com a região central da província. Assim, operamos a partir de uma confrontação permanente entre as regiões sul e central de Minas, buscando utilizar a comparação como recurso de análise capaz de oferecer contornos mais nítidos às características dos indivíduos que frequentavam as escolas de instrução elementar na região sul. Nesse sentido, a comparação é um instrumento importante para ressaltar e reafirmar a diversidade como traço marcante de Minas, no século XIX.

A Comarca do Rio das Mortes e o surgimento do Sul de Minas como região1

A ocupação do território de Minas Gerais se deu a partir do final do século XVII por meio de um fluxo migratório que foi impulsionado pela exploração de metais preciosos. A materialização desse processo produziu um ordenamento espacial que dividiu a capitania em quatro unidades administrativas: Comarca de Vila Rica, Comarca de Sabará, Comarca do Serro e Comarca do Rio das Mortes, esta última situada mais ao sul da capitania, como é possível observar na Figura 1 que apresentamos a seguir.

Fonte: Araújo (2008, p. 101)

Figura 1 Mapa da Capitania de Minas Gerais no Século XVIII 

Uma das formas de entendimento do processo de desenvolvimento das comarcas pode ser elaborada mediante uma caracterização de sua ligação com a atividade mineradora. Isso permite detectar um padrão de diferenciação entre elas, em especial aquelas que compunham as regiões que se encontravam no centro e ao Sul das Minas Gerais.

No século XVIII, ocorreu um desenvolvimento mais acentuado da região mineradora que se encontrava no centro da capitania. Esta região, na verdade, é aquela que deu impulso ao processo de ocupação do território representado por Minas Gerais. De outro lado, o território que se encontrava ao sul se desenvolveu a partir de uma relativa especialização na produção de produtos necessários ao abastecimento das áreas de mineração e de outras capitanias, sobretudo São Paulo e Rio de Janeiro.

Esse processo de diferenciação entre a região sul e central poder ser percebido a partir de uma interpretação dos censos que foram elaborados entre os séculos XVIII e XIX. O primeiro deles foi realizado em 1776, como mostra o Gráfico 1, e registrou uma população de 319.769 habitantes que se distribuíam da seguinte forma dentro das diferentes comarcas:

Fonte: Adaptado de Araújo (2008)

Gráfico 1 População da capitania de Minas Gerais - 1776. 

Em 1776, encontramos um relativo equilíbrio da população da capitania de Minas. Isso é indicado pelos índices populacionais que eram próximos na Comarca de Sabará e na do Rio das Mortes, respectivamente 25% e 26%, e um pouco abaixo no Serro, 18%. Em meio a esse equilíbrio, encontramos um destaque populacional na Comarca de Vila Rica, 31%, região que foi o principal polo econômico e político de Minas Gerais, no século XVIII.

A situação da capitania se alterou na passagem do século XVIII para o XIX, ocasião em que houve um refluxo da atividade mineradora. Nesse período, é possível detectar um movimento de redistribuição da população impulsionado pelo desenvolvimento da região sul, onde se encontrava a Comarca do Rio das Mortes. É o que revela o censo que foi realizado em 1821 (Gráfico 2), o qual registrou uma população de 492.436 indivíduos, os quais, em sua grande maioria, habitavam a Comarca do Rio das Mortes.

Fonte: Adaptado de Araújo (2008)

Gráfico 2 População da capitania de Minas Gerais - 1821 

Na passagem do século XVIII para o século XIX, houve uma diminuição da população em três comarcas da capitania de Minas: Vila Rica passou de 31% para 24%, Sabará passou de 25% para 15% e o Serro passou de 18% para 17%. Em contrapartida a esse movimento, encontramos um expressivo crescimento da população na Comarca do Rio das Mortes, a qual chegou a números próximos à metade da população de toda capitania, 44%.

Segundo Paiva (1996), o movimento que ocorreu entre os séculos XVIII e XIX é parte de um processo de mudança na estrutura produtiva da capitania. Durante boa parte do século XVIII, a exploração de metais preciosos impulsionou o desenvolvimento das áreas mineradoras, mas, quando essa atividade econômica entrou em crise, o eixo de desenvolvimento migrou para regiões que possuíam uma diversificação maior de sua matriz produtiva.

Andrade (2008) apresenta que foi em torno desse processo de diversificação da matriz produtiva que ganhou destaque a Comarca do Rio das Mortes. Seu desenvolvimento se deu a partir da conjugação de diferentes atividades econômicas, destacadamente a agricultura e a pecuária, que fizeram dessa região elemento importante no processo de abastecimento da capitania de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro.

O movimento de afirmação e desenvolvimento da Comarca do Rio das Mortes é uma representação do processo de reestruturação do eixo de poder político e econômico dentro da capitania de Minas. Esse movimento teve como característica a transformação da região sul em um dos seus principais polos de desenvolvimento, representando, sobretudo, uma transformação da economia, ou seja, a passagem de uma atividade estruturada na monocultura - centrada na mineração - para uma economia que conjugava várias atividades produtivas (Bergard, 2004).

A partir dessa nova configuração, é possível compreender que a região situada ao sul da capitania percorreu uma trajetória diferenciada das demais localidades, transformando-se em um importante centro comercial e agropecuário, tornando-se também o principal núcleo populacional de Minas.

De acordo com Cunha (2009), a configuração espacial do território de Minas Gerais seguiu uma trajetória de desenvolvimento na qual encontramos uma inversão da tradicional relação entre o rural e o urbano. Inicialmente a mineração deu origem a um conjunto de características urbanas que marcou o processo de ocupação do território ao longo do século XVIII. No período posterior Minas passou a ser marcada por um padrão de organização influenciado pelo desenvolvimento mais acentuado de atividades rurais. Para Cunha (2009, p. 58), essa trajetória se diferencia do padrão usual de composição do espaço, pois “[...] na formação espacial de Minas Gerais o urbano antecede o rural [...] pode-se afirmar que em Minas é o espaço urbano em si que vai produzir - mais do que simplesmente anteceder - o espaço rural, e não o contrário, como via de regra se pensa o caminho da formação das cidades e dos espaços urbanos na história”.

Nesse contexto, a caracterização do urbano está relacionada com a presença de uma série de elementos capaz de produzir um ambiente específico no interior dos núcleos de povoamento. Dentre eles, podemos destacar a densidade demográfica, a variedade de serviços, a difusão e a circulação de ideias. Em conjunto, esses elementos produzem uma configuração espacial que possibilita a circulação de sujeitos que, por sua vez, dinamizam a vida dos povoados.

Em Minas Gerais a inversão entre o rural e o urbano está relacionada com o tipo de sociedade produzida a partir da preponderância da atividade mineradora, durante os períodos iniciais de ocupação do território. Foi pela mineração que surgiram conglomerados populacionais e atividades socioculturais tipicamente urbanas que caracterizaram cidades como Ouro Preto, Mariana, Sabará e São João Del Rey. Por outro lado, foram as necessidades desses núcleos urbanos que deram origem ao espaço ruralizado que se formou ao sul, o qual se especializou na produção de alimentos e utensílios para o abastecimento das cidades da região mineradora.

Além dessas particularidades relativas ao desenvolvimento cultural, econômico e demográfico que marcam a região sul, nela também é possível identificar uma especificidade política, principalmente através da formação de uma classe de proprietários que atuou diretamente na política imperial.

Em meio a essa atuação destaca-se o movimento que tentou transformar o Sul de Minas em uma província. Segundo Castro (2012), esse processo iniciou em 1854 quando foi submetida à Câmara dos Deputados uma solicitação para a criação de uma província ao Sul de Minas Gerais. Na ocasião, a solicitação não obteve êxito, mas reapareceu no Congresso por mais três vezes: nos anos de 1862, 1868 e em 1884, reafirmando a intenção de criação da província ‘Minas do Sul’. A insistência na criação de uma nova província no Sul de Minas era fruto da ação de grupos políticos que entendiam que a região possuía limites geográficos específicos e particularidades históricas, políticas e culturais que justificavam sua emancipação.

A criação da província não foi aprovada durante o período imperial, mas é uma manifestação clara da maneira como os habitantes do Sul de Minas se relacionavam com a região, ou seja, a viam como portadora de uma identidade territorial que justificaria a produção de uma nova realidade político-administrativa dentro do processo de organização do governo do Império.

Portanto, entre os séculos XVIII e XIX, o território das Minas Gerais passou por mudanças profundas no processo de configuração de sua estrutura regional. Essas mudanças geraram transformações demográficas, econômicas e políticas que são cada vez mais sublinhadas pela historiografia.

A historiografia educacional não tem acompanhado de perto esse movimento de valorização das diferenciações regionais em relação a Minas Gerais. No geral, essas questões são pouco consideradas pelos historiadores da educação que tendem a tratar Minas Gerais sem levar em conta as diferenças regionais.

Neste artigo pretendemos demonstrar a importância das sub-regiões que compõem o território mineiro através da análise de um elemento básico em relação ao processo de escolarização: a especificidade do público que frequentava as escolas na região Sul de Minas Gerais.

O perfil do público das escolas elementares na região Sul de Minas

Para elaborar um perfil dos indivíduos que se encontravam envolvidos com os processos de escolarização no Sul de Minas, utilizamos como material de pesquisa uma documentação censitária que é proveniente da contagem da população, no início dos anos de 1830. Essa documentação é composta por listas nominativas de habitantes e registra dados de mais de 300 localidades pertencentes às diferentes regiões de Minas Gerais2.

As listas nominativas de habitantes foram construídas a partir dos domicílios, nos quais foram registradas diferentes informações sobre os indivíduos que se encontravam nessas unidades de moradia. Para oferecer uma clareza maior em relação aos dados desse censo, apresentamos abaixo, no Quadro 1, um domicílio da Vila de Campanha e as informações que eram registradas sobre ele.

Fonte: Arquivo Público Mineiro [APM] (1839)

Quadro 1 1º Quarteirão - Domicílio 4 - Campanha - 1831 

A primeira informação destacada pela lista é o nome de cada um dos membros do domicílio; em seguida, a ‘qualidade’ (branco, preto, pardo, crioulo, africano, índio), a ‘condição’ (livres ou escravos), a ‘idade’, o ‘estado civil’ e, por último, a ‘ocupação’. No campo que se refere à ocupação algumas listas registraram os indivíduos que se encontravam em processo de escolarização, como é o caso dos quatro meninos livres do domicílio acima.

Portanto, construímos um perfil do público das escolas por meio de uma seleção das listas pertencentes ao Sul de Minas que apresentavam dados sobre educação, mais especificamente as listas que registravam os indivíduos que se encontravam nas escolas de instrução elementar públicas e privadas3. A partir desse critério, foram selecionadas 07 localidades, as quais podem ser observadas no Quadro 2 a seguir.

Fonte: Arquivo Público Mineiro [APM] (1839)

Quadro 2 Listas nominativas com alunos na escola elementar do Sul de Minas - 1831 

As listas nominativas dos habitantes do Sul de Minas que selecionamos registraram um total de 309 indivíduos que se encontravam na escola elementar. Mais da metade deles estavam listados na Vila de Campanha, maior e mais influente povoado que existia na região4.

Em meio a esse grupo encontramos indivíduos de ambos os sexos que estavam na faixa etária entre 5 e 19 anos5. Apesar dessa diversidade de idades, a grande maioria dos indivíduos foi assinalada entre 8 e 14 anos.

No século XIX, o recorte etário de 8 a 14 anos revela-se como intervalo que foi culturalmente se estabelecendo como apropriado para escolarização no nível elementar. Isso é indicado pelo predomínio dessa faixa etária nas listas nominativas do Sul de Minas e pela afirmação desse intervalo dentro da legislação que se estabeleceu na época através da Lei nº 13 (1835), que determinou a “[...] obrigatoriedade da instrução elementar para os meninos, livres de 08 a 14 anos de idade [...]” de toda a província de Minas.

Portanto, a partir de uma apropriação da terminologia usada atualmente, podemos designar as crianças de 8 a 14 anos como um grupo representativo daquilo que poderíamos chamar de ‘população em idade escolar’ relativa à primeira metade do século XIX, em Minas Gerais.

Estabelecer um intervalo de idade que represente a ‘população em idade escolar’ é um recurso que possibilita empreender uma análise sobre o censo indicando o nível de cobertura da educação em relação a esse grupo. No entanto, é preciso destacar que, para compor o universo da ‘população em idade escolar’ dentro dos padrões educacionais e culturais do século XIX, é necessário levar em conta aspectos que se encontravam para além da faixa etária. O padrão de educabilidade que se estabeleceu no século XIX tinha restrições mais rigorosas do que as idades, ele definia a escola como espaço destinado apenas ‘aos meninos livres’, ou seja, excluía o sexo feminino e os escravizados.

Conforme Veiga (2013), a Lei nº 13 (1835), que estabeleceu a obrigatoriedade escolar em Minas Gerais, foi uma das primeiras iniciativas sobre esse tema no Brasil. Nela encontramos uma definição clara da exclusão das mulheres e dos escravizados dos espaços educacionais, consagrando a obrigatoriedade da escola apenas em relação aos meninos, livres de 08 a 14 anos.

Portanto, para analisar o censo dentro dos padrões de educabilidade do século XIX, é preciso considerar que a ‘população em idade escolar’ era composta pelos ‘meninos livres de 08 a 14 anos’. Assim, contabilizamos, no Gráfico 3, todos os meninos livres dentro dessa faixa etária e calculamos o nível de atendimento à população em idade escolar a partir daquilo que foi definido pela lei que estabeleceu a obrigatoriedade escolar em Minas, no ano 1835.

Fonte: Arquivo Público Mineiro [APM] (1839)

Gráfico 3 Atendimento à população em idade escolar no Sul de Minas (%) - 1831 

Os dados indicam uma forte discrepância entre o nível de cobertura nas diferentes localidades, mas merece destaque o contraponto entre o povoado de São Vicente (5,0%) e a Vila de Campanha (32,4%); contudo, quando consideramos a média entre as sete localidades, obtivemos o índice de 13,6%.

O padrão médio de atendimento à ‘população em idade escolar’ do Sul de Minas pode ser considerado baixo. Isso fica evidente quando o contrapomos a outras regiões, destacadamente a região central de Minas, ou seja, aquela que se desenvolveu a partir da comarca de Vila Rica e que se encontrava em torno de Ouro Preto, que, na ocasião, era capital da província.

A escola era uma instituição com um nível de presença maior nessa região. Nela encontramos o registro de várias localidades com indivíduos em processo de escolarização. Para realizar o contraponto com as listas do Sul de Minas, selecionamos as 10 listas nominativas com maior registro de dados relativos aos indivíduos que se encontravam nas escolas de instrução elementar. Essas listas registram um total de 538 indivíduos nas escolas, apresentando os seguintes níveis de atendimento à ‘população em idade escolar’, dentro do que foi estabelecido pela Lei n. 13/1835, como é possível observar no Gráfico4.

Fonte: Arquivo Público Mineiro [APM] (1839)

Gráfico 4  Atendimento à população em idade escolar no centro de Minas (%) - 1831 

Segundo Cunha (2009), a região central foi o núcleo a partir do qual se deu o processo de ocupação do território das Minas Gerais, a qual foi fortemente impulsionada pela atividade mineradora, durante todo o século XVIII. Essa condição favoreceu o seu processo de desenvolvimento político, social e econômico imprimindo na região um nível mais elevado de urbanização, sobretudo quando comparado às demais regiões de Minas.

Esse padrão de urbanização tinha desdobramentos no nível de escolaridade da região, como pode ser visto nos dados relativos ao atendimento à ‘população em idade escolar’. Os dados são muito superiores àqueles que encontramos em relação ao Sul de Minas. No que diz respeito aos menores índices encontrados na região central, é possível observar Matozinhos com 19,4% de atendimento à população em idade escolar; em seguida, temos Santa Luzia, com 31,3%. Portanto, Santa Luzia, que representa um dos índices mais baixos de atendimento à população em idade escolar para a região central, praticamente se iguala ao maior índice de cobertura que encontramos para a região sul, em Campanha, com 32,4%.

A distância entre as duas regiões fica mais evidente quando contrapomos a média de atendimento em cada uma delas, ou seja, a região central tem um nível médio de atendimento de 41%, portanto, muito acima dos 13,6% que encontramos em relação ao Sul de Minas.

A especificidade do público que se encontrava em processo de escolarização no Sul de Minas pode ser indicada com base em elementos como o pertencimento étnico/racial daqueles que estavam nas escolas de instrução elementar.

No campo qualidade, encontramos a indicação do pertencimento étnico/racial atribuído aos indivíduos registrados pelas listas nominativas. Nas listas nominativas que compõe nossa amostra detectamos oito termos que foram utilizados como forma de classificação dos diferentes grupos que compunham a população da região: branco, pardo, preto, africano, crioulo, cabra, mulato e caboclo.6

Nem todos esses termos aparecem na classificação daqueles que foram registrados nas escolas de instrução elementar. A escola elementar se caracterizava por uma presença ampla daquele que eram designados como branco e por alguns grupos que caracterizavam os diferentes segmentos que representavam a população negra, como exposto no Gráfico 5.

Fonte: Arquivo Público Mineiro [APM] (1839).

Gráfico 5 Perfil dos alunos da instrução elementar no Sul de Minas, por raça (%) - 1831 

Nesse levantamento foram consideradas as crianças entre 8 a 14 anos, do sexo feminino e masculino, ficando evidente que os brancos compunham a maioria esmagadora daqueles que estavam nas escolas sul-mineiras. Em Varadouro e São Vicente eles chegavam mesmo a representar a totalidade dos alunos. Os negros7 aparecem com alguma representatividade em Campanha, São José das Dores e Goapera, localidades nas quais estavam entre 20% e 30%. Mas o que desponta com força em meio aos dados destacados pelo gráfico 5 é a superioridade incontestável dos brancos em meio ao público que foi registrado como aluno das escolas de instrução elementar, estes alcançaram a média de 86,6%.

Nas escolas da região central encontramos uma realidade distinta, como é possível conferir no Gráfico 6. Na verdade, o perfil se modifica radicalmente, revelando uma perspectiva absolutamente inversa daquela que constatamos em relação ao Sul de Minas, ou seja, as escolas de instrução elementar eram majoritariamente frequentadas por negros.

Fonte: Arquivo Público Mineiro [APM] (1839)

Gráfico 6 Perfil dos alunos da instrução elementar no centro de Minas, por raça (%) - 1831 

Os termos utilizados para caracterizar os indivíduos são os mesmos que encontramos para o Sul de Minas, mas, na região central, as escolas tinham um público mais diversificado em relação aos padrões de classificação racial do século XIX. Dentro dessa diversificação, merece destaque a presença de crioulos e o amplo número daqueles que foram designados como pardos. Contudo, o que efetivamente se destacada em meio a esses dados é a superioridade daqueles que tradicionalmente agregamos para compor o segmento representado pela população negra, cuja média representava a expressiva quantia de 70% do alunado.

O Sul de Minas Gerais era a região da província que possuía o maior número de brancos na sua população total8. De fato, quando se exclui a população escravizada e analisa apenas a população livre, os brancos eram maioria em Campanha, São José e Dores, São Vicente, São Sebastião e Varadouro. Portanto, nessa sociedade com características mais rurais, os indivíduos negros estavam mais próximos da escravidão, com menores possibilidades de circulação social, o que pode ter refletido no perfil do alunado. Como contraponto, temos a região central, a qual apresentava um padrão mais elevado de urbanização, o que possibilitava uma presença maior dos negros em meio à população livre e uma circulação social maior desses indivíduos, inclusive, frequentando as escolas de instrução elementar9.

Perfil dos domicílios com indivíduos em processo de escolarização

A caracterização do público que se encontrava nas escolas do século XIX é um elemento importante para a compreensão daqueles que acessavam os espaços formais de educação. Na caracterização desse grupo merece atenção a possibilidade de estabelecer uma aproximação com os núcleos familiares do qual se originavam os alunos da escola de instrução elementar. Para avançar em direção a uma caracterização desses núcleos, elaboramos uma análise do perfil dos domicílios que registravam a presença de alunos nas escolas de instrução elementar. Para a realização dessa tarefa, devemos considerar que as listas nominativas não nos permitem estabelecer uma caracterização plena das famílias registradas nos domicílios. Isso ocorre porque, na maioria das vezes, os diferentes integrantes do domicílio eram listados sem que fosse assinalada uma relação de parentesco entre eles.

A única situação em que há o registro formal do parentesco encontra-se nos domicílios em que havia indivíduos que eram reconhecidos em situação de matrimônio. Nesses casos, o domicílio apresentava, primeiramente, o homem; em seguida, a mulher, e, no campo estado civil, ambos eram registrados como casados. Quando o casal possuía filhos, a lista os apresentava na sequência, geralmente a partir de um ordenamento por idade.

Quando ocorre essa situação, é possível perceber que se tratava de um casal acompanhado por seus filhos, portanto, o que poderíamos chamar de ‘família simples’, ou seja, aquela que tradicionalmente corresponde ao arranjo familiar mais comum dentro do padrão de desenvolvimento da sociedade brasileira. Quando não encontramos um casal no interior do domicílio, é sempre difícil definir se havia um parentesco entre os membros do grupo. A fim de evitar qualquer tipo de classificação arbitrária sobre esses domicílios, não os classificamos a partir de qualquer modelo familiar, mas sim optamos por classificá-los a partir da chefia do domicílio.

O primeiro indivíduo que é listado no domicílio é sempre o(a) chefe, assim, utilizamos a condição de chefia para classificar o grupo, levando em conta o gênero desses indivíduos, ou seja, organizamos os dados através dois arranjos específicos: ‘domicílios chefiados por homens e domicílios chefiados por mulheres’.

Assim sendo, para classificar os domicílios que registravam crianças nas escolas de instrução elementar, utilizamos três categorias específicas: ‘domicílio de grupo familiar simples, domicílio chefiado por homens e domicílio chefiado por mulheres’. A partir dessas três categorias que conjugam situação familiar e a condição de chefia do domicílio, encontramos a seguinte realidade para o Sul de Minas, observada no Gráfico 7 a seguir:

Fonte: Arquivo Público Mineiro [APM] (1839)

Gráfico 7 Domicílios com crianças nas escolas no Sul de Minas Gerais (%) - 1831 

Os dados revelam a prevalência do modelo familiar simples, o qual se destaca em todas as localidades, chegando mesmo à totalidade no distrito de Varadouro, em média o grupo familiar simples atingiu a marca de 83%. A chefia masculina aparece em proporções pouco expressivas, foi identificada em Campanha, São José e Dores e Santa Ana da Goapera.

No que diz respeito à chefia feminina, esse tipo de organização apareceu em cinco localidades: Campanha, São Gonçalo, São José e Dores, São Sebastião e São Vicente, porém com um nível sempre baixo, resultando em uma média de 13,6% dos domicílios que possuíam indivíduos em processo de escolarização.

A situação se altera radicalmente quando consideramos a região central. Nela encontramos uma associação mais intensa entre chefia feminina do domicílio e o envio de crianças às escolas, como pode ser visto no Gráfico 8:

Fonte: Arquivo Público Mineiro [APM] (1839)

Gráfico 8 Domicílios com crianças nas escolas no centro Minas (%) - 1831 

Aqui também temos um predomínio absoluto do grupo familiar simples, o qual atingiu a média de 54,1%. Os domicílios chefiados por homens atingiram o índice de 11,6%, enquanto aqueles que eram chefiados por mulheres alcançaram 34,3%10. O número de mulheres na chefia do domicílio é bastante elevado, indicando algum nível de conexão entre esse perfil de domicílio e os processos de escolarização, no século XIX. No entanto, a conclusão mais ampla que podemos apontar acerca desses dados é o fato de que a região central era marcada por um nível de urbanidade mais acentuado, o que fazia dela um espaço mais permeável do ponto de vista social. É isso que justificava que mulheres chefes de domicílio encontrassem possibilidades mais amplas para escolarizar os seus filhos, ou mesmo o predomínio dos negros nas escolas, como tivemos a oportunidade de apresentar anteriormente.

Perfil socioeconômico dos indivíduos nas escolas do Sul de Minas

Outro dado importante no que diz respeito ao perfil dos domicílios que registraram indivíduos em processo de escolarização é aquele que se refere às características socioeconômicas. Do ponto de vista da história da educação, esse é sempre um dado difícil de ser avaliado em relação aos indivíduos que frequentavam as escolas, sobretudo no século XIX. Entretanto, podemos obter alguns dados que possibilitam a avaliação dessa situação através do campo ‘ocupação’, no qual encontramos o registro das atividades produtivas vinculadas aos membros dos domicílios.

Para utilização dessas informações, também adotamos como referência a chefia do domicílio. No universo representado pelo patriarcado brasileiro, a chefia de domicílio era um elemento importante dentro da estrutura social. É isso que justificava o fato de que os homens eram sempre apresentados como chefe do domicílio quando se tratava de um casal.

Essa mentalidade patriarcal também determinava o fato de que as listas nominativas priorizavam o registro da ocupação a partir da figura do(a) chefe do domicílio, sinalizando que os demais membros tinham sua ocupação associada à função desempenhada pela chefia. Inclusive, muitas listas nominativas registraram apenas a ocupação do(a) chefe, deixando em branco o campo para os demais membros, ou seja, bastava caracterizar a atuação do(a) chefe para definir a atividade produtiva do grupo, já que todos os demais membros se encontravam em situação de dependência em relação àquele que ocupava a chefia.

Tendo como referência o campo ‘ocupação’, apresentamos, no Quadro 3, uma tabela que registra o conjunto das atividades daqueles que ocupavam a chefia em relação aos domicílios nos quais havia indivíduos nas escolas.

Fonte: Arquivo Público Mineiro [APM] (1839)

Quadro 3 Ocupação dos(as) chefes dos domicílios com indivíduos nas escolas no Sul de Minas - 1831 

Os dados indicam que o conjunto de ofícios dos(as) chefes dos domicílios com crianças nas escolas estava dentro dos ofícios mais tradicionais do século XIX. Em meio a eles, destaca-se a preponderância dos agricultores, que representam pouco mais que um quinto dos dados gerais. O agricultor que emerge desses dados poderia ser a figura de um grande proprietário que estivesse à frente de uma fazenda, ou um pequeno proprietário que vivia do cultivo de uma roça. O dado é muito genérico para qualquer caracterização mais precisa sobre as condições socioeconômicas desses indivíduos, contudo sinaliza a importância que a atividade agrícola tinha na região e seu impacto no perfil do público escolarizado.

O segundo grupo mais representativo é ocupado pelos comerciantes (13%); em seguida, temos um conjunto variado de ofícios, do qual merecem destaque as costureiras (8%) e fiadeiras (6%). Estes dois grupos podem ser considerados como uma representação das mulheres na condição de chefia dos domicílios, pois esses eram ofícios femininos que podem ser contabilizados como parte das poucas possibilidades das mulheres se fazerem presentes no setor produtivo, em Minas no século XIX.

Quando consideramos os dados a partir dos ofícios tipicamente femininos, observamos que a situação tem contornos ainda mais fortes na região central, a qual, como vimos, destacava-se pela presença das mulheres na chefia dos domicílios. No Quadro 4 que apresentamos a seguir encontramos os elementos que indicam isso de forma evidente.

Fonte: Arquivo Público Mineiro [APM] (1839)

Quadro 4 Ocupação dos(as) chefes de domicílios com indivíduos nas escolas no centro de Minas - 1831 

Os dados da tabela indicam mais uma vez que a situação da região central modifica-se em relação ao Sul de Minas. Nesta localidade, o que se destacava era a presença dos agricultores que representavam mais de um quinto dos ofícios exercidos pelos chefes dos domicílios com indivíduos nas escolas.

Na região central o que temos é a prevalência das fiadeiras, com 18,3%, situação que acompanha a posição de chefia das mulheres, pois, como sinalizamos anteriormente, isso é reflexo do fato das mulheres terem a possiblidade de participar da vida produtiva através de poucos ofícios. Dentre eles, destaca-se a condição de fiadeiras, as quais aparecem à frente de outros ofícios tipicamente femininos, de modo que, se reunirmos todos os ofícios exclusivamente ocupado por mulheres (tecedeiras 5,2%, costureiras 3,2% e rendeiras,1,7%), chegamos a um total de 28,1% dos domicílios com crianças nas escolas.

Esses dados têm uma correspondência direta com aqueles que apresentamos em relação ao perfil dos chefes de domicílios, conferindo destaque a um caráter mais plural da região que se encontrava no centro de Minas Gerais. Tratava-se de uma região com traços urbanos, e essa era uma condição que possibilitava uma circulação mais ampla de diferentes sujeitos.

Por outro lado, isso indica que na região central o perfil do público das escolas de instrução elementar era marcado por um distanciamento de qualquer perspectiva elitista. Ao contrário, tratava-se de um grupo diverso que era caracterizado pela presença de diferentes estratos sociais. Situação diferente daquela que encontramos no Sul de Minas, onde havia uma sociedade com fortes características rurais que impactava o padrão das pessoas que acessavam os espaços escolares.

Essa condição do Sul de Minas pode ser verificada por meio de dados que mais diretamente nos aproximam do perfil socioeconômico dos domicílios que registraram a presença de indivíduos em processo de escolarização, ou seja, aquele que se refere a um aspecto básico de uma sociedade fundada no escravismo: número de escravizados nos domicílios com indivíduos nas escolas.

Em sua análise sobre o perfil da elite na cidade de Campanha, Andrade (2008, p. 71) registra a importância da escravidão, destacando que “[...] um homem rico naqueles tempos evidentemente detinha a posse de homens e terras”. Na sociedade escravista o braço cativo era um elemento fundamental para o funcionamento e para a manutenção do sistema econômico. Era em torno dele que gravitava o processo social de produção e reprodução de riqueza nas mais diferentes escalas, ou seja, quanto mais rico o indivíduo, maior a probabilidade de encontrar um grande plantel de indivíduos escravizados a seu serviço.

Os domicílios registrados pelas listas nominativas de habitantes se configuravam como unidades de trabalho e moradia. Neles encontramos indivíduos que mantinham diferentes níveis de relação - destacadamente as relações de parentesco que envolviam o núcleo familiar - e indivíduos vinculados ao domicílio por relações que eram determinadas pelos processos produtivos. É este último aspecto que determina o registro da presença dos escravizados no interior dos domicílios.

Portanto, uma possibilidade de ampliação da compreensão do perfil socioeconômico dos domicílios com indivíduos nas escolas pode ser produzida mediante a mensuração da presença de trabalhadores cativos nas unidades de moradia. O fato de ter cativos ou não é um importante indicativo das condições sociais dos domicílios com indivíduos nas escolas. A partir dessa perspectiva, encontramos a seguinte situação em relação à região Sul de Minas Gerais, apresentada no Gráfico 9:

Fonte: Arquivo Público Mineiro [APM] (1839)

Gráfico 9 Escravizados nos domicílios com indivíduos na escola no Sul de Minas (%) - 1831 

Os escravizados estavam presentes na maioria dos domicílios que registraram indivíduos nas escolas. Em São Sebastião, São Vicente e Varadouro todos os domicílios registram escravizados, já em São Gonçalo e Goapera encontramos números muito próximos à totalidade. Os menores índices acerca da presença de escravizados nos domicílios foram registrados para Campanha e São José e Dores, mas com índices elevados que eram superiores a cinquenta por cento.

Os trabalhadores cativos aparecem na maioria dos domicílios nos quais havia indivíduos na escola, uma média de 87,7%. Isso indica claramente o caráter elitista do público escolar que foi registrado nas listas nominativas do Sul de Minas, formado fundamentalmente por indivíduos que eram egressos de domicílios que exploravam o trabalho escravo.

Mais uma vez a região central de Minas é um contraponto a essa realidade, pois a maioria absoluta dos domicílios não registrava a presença de escravizados, como é possível observar no Gráfico 10 abaixo.

Fonte: Arquivo Público Mineiro [APM] (1839)

Gráfico 10  Escravizados nos domicílios com crianças na escola no centro de Minas (%) - 1831 

A presença dos escravizados nos domicílios com crianças nas escolas ocorre a partir de um padrão completamente diferente daquele que constatamos em relação ao Sul de Minas. A maior parte dos distritos selecionados apresenta um elevado número de domicílios sem escravos. Isso é reafirmado pela totalidade dos dados relativos a essas localidades as quais registram 55% de domicílios sem escravos, ou seja, a maioria. Portanto, diferentemente da região sul, os indivíduos em processo de escolarização não eram originários de uma elite, mas de diferentes estratos da sociedade.

O caráter elitista do público escolar no Sul de Minas se torna mais evidente quando dimensionamos a posse de escravizados no interior dos domicílios que registraram indivíduos nas escolas. Para avaliação do nível de presença dos escravizados nesses domicílios, utilizamos quatro intervalos específicos: o primeiro trata-se da posse de 1 a 3 escravizados; o segundo, de 4 a 9; o terceiro, de 10 a 19 e o último, aquele que indicava a posse de mais de 20 cativos. Os dois primeiros intervalos representam um indicativo de que se tratava de pequenos proprietários, o terceiro intervalo sinaliza o pertencimento ao universo composto pelos proprietários de médio porte e o último, ou seja, com mais de 20 cativos, compreende aquilo que foi designado por Andrade (2008) como a elite sul-mineira Quadro 5%11.

Fonte: Arquivo Público Mineiro [APM] (1839)

Quadro 5 Número de escravizados nos domicílios com criança na escola no Sul de Minas (%) - 1831 

Quando consideramos as médias em relação aos diferentes intervalos que utilizamos para classificação da posse de escravizados, constatamos que aqueles que representavam os proprietários de médio porte (29,5%) e a elite (26%) concentravam mais da metade dos dados, 55,5%. Em uma formulação mais categórica, podemos dizer que a maior parte das crianças que estavam nas escolas do Sul de Minas eram oriundas de domicílios com mais de 10 escravizados, ou com um número muito superior a 10 escravizados (Quadro 5).

Já tivemos a oportunidade de demonstrar que na região central a maioria dos domicílios com crianças nas escolas não possuía indivíduos escravizados, contudo, quando consideramos apenas os domicílios com a presença de cativos, seguimos dentro do mesmo padrão de diferenciação que o texto vem caracterizando em relação ao Sul de Minas, como é possível identificar no Quadro 6:

Fonte: Arquivo Público Mineiro [APM] (1839)

Quadro 6 Número de escravizados nos domicílios com crianças na escola no centro de Minas (%) - 1831 

Nos dados relativos ao sul a grande maioria dos domicílios com crianças nas escolas possuía indivíduos escravizados, e o que mais se destacava em relação a isso eram os números que se encontravam nas duas últimas fileiras da tabela, nas quais encontramos os proprietários de médio e grande porte, ou seja, uma elite. Na região central a presença de escravizados não foi registrada na maior parte dos domicílios e, quando se fazia presente, o que mais se destaca é o elevado número que encontramos na primeira coluna (61,1%), ou seja, aquela que registra os pequenos proprietários.

Os dados relativos à presença de escravizados nas duas regiões indicam perspectivas inversas no que se refere aos grupos que se encontravam nas escolas de instrução elementar. O público que estava participando do processo de escolarização na região central refletiu as características demográficas desse espaço. No Sul de Minas isso não aconteceu, pois predominaram nas escolas crianças advindas dos grupos mais ricos da sociedade, uma vez que, ao analisarmos os dados da população total, foi possível detectar que apenas 24% dos habitantes possuíam mais de 10 cativos, contudo, esse é o grupo que predominou nas escolas (55% do alunado), ou seja, os filhos dos grandes proprietários e escravistas sul-mineiros.

Considerações Finais

O processo desenvolvimento da região Sul de Minas foi produzido por meio de um refluxo da atividade mineradora que resultou no fortalecimento de sua economia e na sua estruturação como principal eixo demográfico de Minas Gerais. Um dos elementos que impulsionou esse processo foi sobretudo o desenvolvimento de atividades econômicas agropecuárias as quais fizeram da região um polo atrativo para absorção daqueles que, durante o século XIX, foram introduzidos no país através do tráfico de africanos escravizados.

O resultado desse processo foi que, no século XIX, encontramos no Sul de Minas uma sociedade mais ‘tradicional’ do que aquelas que haviam se estruturado por meio da atividade mineradora. Essa diferença pode ser traduzida mediante o perfil mais rural que encontramos no Sul e através das características mais urbanas que se faziam presentes na região central de Minas.

A educação pode ser entendida como parte constitutiva dessa urbanidade e como elemento que justificaria a diferença de perfil entre os grupos que acessavam a escola nas duas regiões. Na região com características mais urbanas a escola estava mais presente na sociedade, como tivemos a oportunidade de ver por meio do nível de cobertura daquilo que chamamos de ‘população em idade escolar’, que era muito mais elevado na região central de Minas.

A escola se fazia mais presente nesse espaço e era uma instituição mais permeável a diferentes grupos sociais, como foi indicado pelo nível de presença dos negros nos espaços escolares. No Sul de Minas Gerais, no início do século XIX, já havia o predomínio de brancos entre os livres. Todavia, a menor porcentagem de negros entre os livres não se refere à menor porcentagem de escravizados nesse espaço, ao contrário, representa a menor mobilidade desse grupo na sociedade. O que possivelmente refletiu no processo de escolarização.

O mesmo se verifica em relação ao perfil dos domicílios que possuíam crianças em processo de escolarização, nos quais encontramos um perfil bastante tradicional no Sul de Minas, onde praticamente se impunha um modelo de família: o grupo familiar simples. Na região central temos uma configuração mais diversa que contemplava também outros tipos de organização familiar, destacadamente os domicílios chefiados por mulheres.

Em sintonia com essa situação, temos uma configuração mais elitista dos domicílios com crianças nas escolas no Sul de Minas. Neles encontramos escravistas que, em sua grande maioria, utilizavam em larga escala a mão de obra escravizada. Em contrapartida, na região central encontramos a maioria de domicílios sem escravos e, mesmo quando estes se faziam presentes, foram registrados em pequena escala.

Na região sul a escola era majoritariamente frequentada por brancos que eram necessariamente parte de uma elite escravocrata. Na região central a escola era frequentada fundamentalmente por negros que eram originários de diferentes estratos da sociedade.

Essa oposição das duas regiões mediante o perfil do público que gravitava em torno do espaço escolar, no século XIX, demonstra a força da diversidade regional em Minas e a necessidade de levar em conta essa realidade nas análises que são construídas acerca do século XIX. Essas características são indispensáveis às análises que são produzidas pela História da Educação em relação a Minas Gerais, onde o espaço deve ser tomado como uma unidade territorial que é permeada por uma diversidade que se apresenta em diferentes níveis, pois, na verdade, ‘Minas é muitas!’

Referências

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1 Para Frémont (1980), o termo ‘região’ envolve a ideia de um ‘espaço-tempo vivido’, pois não é possível separar o espaço da experiência humana que perpassa o imaginário da população e o desenvolvimento de uma identidade com um determinado território. Logo, a ‘região’ compreende os aspectos da cultura dos seus moradores que constroem um sentimento de pertencimento, produzindo a formação de ‘imagens regionais’. Para Frémont (1980), é constante o processo de ‘enraizamento’, ou seja, a ligação estabelecida entre os seres humanos, seus valores e a terra com a qual se relacionam diretamente.

2Segundo Bergad (2004, p. 153), “[...] o primeiro censo que abrangeu toda a capitania foi realizado em 1776, seguido por contagens gerais da população em 1808, 1831, 1833-1835, 1854-1855 e pelo censo brasileiro de 1872, publicado e bastante conhecido”.

3As listas nominativas não fazem distinção quanto ao tipo de escola frequentada pelos alunos. Portanto, o conjunto de dados se refere indistintamente às escolas públicas e privadas.

4Na verdade, ‘Campanha da Princesa’ era uma vila que obteve essa condição no ano 1798, período que remonta ao processo de expansão da região ao sul dentro da capitania. Em 1833, houve uma subdivisão da Comarca do Rio das Mortes, ocasião em que foi criada a Comarca do Sapucaí, cuja sede passou a ser a Vila de Campanha. Em 1845, Campanha foi transformada em cidade. Ver: (Batista & Fonseca, 2019).

5Encontramos poucas mulheres registradas como alunas das escolas de instrução elementar, pois, no século XIX, os processos formais de educação eram mais diretamente dirigidos ao sexo masculino, como teremos oportunidade de ver mais adiante. Apenas em Campanha encontramos um número mais expressivo de mulheres nas escolas, dos 207 alunos 55 eram meninas (Batista & Fonseca, 2019).

6Uma análise específica sobre cada um dos termos de classificação racial presentes nas listas nominativas pode ser encontrada em Fonseca (2009).

7Negro não é um termo utilizado na documentação do período. No entanto, com o propósito de facilitar as análises e comparações, o termo negro foi utilizado para expressar a reunião dos dados relativos a pretos, pardos, crioulos e cabras.

8Segundo Bergard (2004), em 1821, 62% da população branca de Minas Gerais residia na região sul da província.

9Na região central de Minas havia um predomínio dos negros nas escolas de instrução elementar, mas o mesmo não se verifica nos níveis mais elevados do ensino, os quais eram monopolizados pelos brancos. Para uma análise mais detida desse fenômeno, ver: Fonseca (2009).

10A chefia feminina dos domicílios era algo muito comum nas Minas Gerais do século XIX, as mulheres chegavam a responder por algo em torno de 30% das chefias de domicílio (Queiroz, Andrade, Riani, & Correa, 2000).

11 Andrade (2008) considerou como grande proprietário aquele senhor que possuía 20 escravizados ou mais, pois a maioria das grandes unidades escravistas sul-mineiras oscilava em torno desse número, sagrando-se assim como uma elite do sistema escravista regional.

14Nota: Este artigo foi produzido a partir de financiamento do Programa Pesquisador Mineiro (PPM) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG)

Rodadas de avaliação: R1: dois convites; duas avaliações recebidas.

Como citar este artigo: Fonseca, M. V., & Batista, V. S. Minas Gerais é muitas’: negros e brancos nas escolas do Sul de Minas, no século XIX. (2022). Revista Brasileira de História da Educação, 22. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e209

20Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4)

Recebido: 17 de Setembro de 2021; Aceito: 10 de Janeiro de 2022; Publicado: 01 de Julho de 2022

*Autor para correspondência. E-mail: mvfonseca2@yahoo.com.br.

Marcus Vinícius Fonseca é Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Associado III do Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Pesquisador beneficiado pelo Programa Pesquisador Mineiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - PPM-FAPEMIG. E-mail: mvfonseca2@yahoo.com.br https://orcid.org/0000-0003-0127-5009

Vanessa Souza Batista é Graduada em História pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), Mestre em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Atualmente é professora da educação básica na Rede Estadual de Educação de Minas Gerais e doutoranda em educação na Universidade de São Paulo (USP). E-mail: vsouzabatista@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-7073-2173

Editores-associados responsáveis: Adlene Arantes E-mail: adlene.arantes@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-7007-0237

José Gonçalves Gondra E-mail: gondra.uerj@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-0669-1661

Surya Aaronovich Pombo de Barros E-mail: surya.pombo@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-7109-0264

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