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Revista Brasileira de História da Educação

versión impresa ISSN 1519-5902versión On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.22  Maringá  2022  Epub 09-Oct-2022

https://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e240 

Resenha

Os ‘nós’ dos arquivos

Carolina Cechella Philippi1 
http://orcid.org/0000-0001-6121-254X

1Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil.

Almeida, D. B.. 2021. Percursos de um Arq-Vivo, : entre arquivos e experiências na pesquisa em história da educação. 1a ed., Porto Alegre, RS:: Editora Letra1,


Foi na suspensão temporal imposta pelas rotinas do isolamento social em meio à pandemia do novo coronavírus que a professora Dóris Bittencourt Almeida1 se dedicou à sistematização de temas que a têm acompanhado como professora e pesquisadora. Como resultado, organizou na escrita as experiências de constituição do Arquivo Histórico da Faculdade de Educação como setor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e de desenvolvimento do Projeto de Pesquisa ‘Memórias e Histórias da Faced/UFRGS’. Tamanha sistematização culminou na organização e escrita do livro Percursos de um Arq-Vivo: entre arquivos e experiências na pesquisa em história da educação2, no qual sua gestão e intervenção foram esmiuçadas e referenciadas à luz de referencial teórico e metodológico condizente.

O livro é aberto com o prefácio de Maria Teresa Santos Cunha (‘De arquivos pessoais e de encantamentos gerais: um desassombro sem medida’), ao qual se seguem sete capítulos organizados em duas partes, arrematados com um posfácio. Na primeira parte - ‘Raspas e restos me interessam’ -, inseriram-se os seguintes capítulos: ‘O arquivo como questão’, ‘Pelas tramas das memórias orais: arquivar para eternizar’ e ‘Entre cadernos, agendas, recortes, correspondências, bilhetes...: sensibilidades em arquivos pessoais’. Neles, Dóris Almeida circunscreveu teórica e metodologicamente sua ação e pesquisa no arquivo, atentando para a necessária articulação com a bibliografia de referência no campo. Já na segunda parte, de título ‘De memórias, fizeram-se histórias...’, a autora esmiuçou séries documentais integrantes do arquivo, operacionalizando análises diversas de sujeitos muitos. Nela, aglutinaram-se os capítulos de título: ‘Escrever, recortar, colar: ‘acervo de vivências’ nos cadernos da professora Luzia (1989-2010)’, ‘Papéis de uma professora polivalente: miradas para as aulas de história (Colégio de Aplicação/UFRGS, 1978- 1986)’, ‘‘Deixo inteira liberdade ...’: o arquivo pessoal do professor Balduino Andreolla’ e ‘Para não esquecer: apontamentos de uma professora, mãe, mulher e filha em agendas (1995- 2014)’. Por fim, o livro se encerra com as palavras de Maria Helena Câmara Bastos no posfácio ‘Tempos entrelaçados em arquivos’.

A contribuição da obra, destacada já pela prefacista, está na sistematização e apresentação de algumas importantes nuances do exercício de pesquisa e produção no campo disparada pela experiência no arquivo da FACED. Essa experiência operou como um catalizador da iniciativa e disparador dos capítulos, cuja organização problematizou materiais ordinários (Cunha, 2021) e proporcionou aproximações com a historiografia da educação e do tempo presente3. Essas mesmas questões foram esmiuçadas no capítulo ‘O Arquivo como questão’, que se preocupou em entender os arquivos como ponto de urdidura entre presente, passado e futuro, já que “[...] o [seu] presente [...] é tecido a partir da convocação dos passados que se quer conservar para o tempo além de nós mesmos, o tão incerto futuro” (Almeida, 2021, p. 20). Assim sendo, o arquivo - pensado como um Arq-Vivo - foi espaço formativo de produção das histórias da Universidade e de ebulição de práticas de higienização, catalogação, produção de entrevistas, recebimento de arquivos pessoais e elaboração de pesquisas (Almeida, 2021).

No que diz respeito especificamente à produção e conservação de entrevistas com professores e técnicos da FACED e do Colégio de Aplicação da UFRGS, a seção ‘Pelas tramas das memórias orais: arquivar para eternizar’ considerou o esforço de captação desses depoimentos como forma de registro, pelas lentes da memória, das trajetórias e reminiscências dos sujeitos que povoaram esses espaços ativamente. Para tanto, operou-se metodologicamente com uma “[...] entrevista compreensiva” (Kauffmann, 2013 apud Almeida, 2021, p. 34) que permitiu uma interpelação sensível dos entrevistados ao mesmo tempo que arregimentou esforços de circunscrição teórica por parte dos pesquisadores. Dessa forma, a autora destacou os esforços diversos empreendidos para a arregimentação dos depoimentos, bem como as considerações de que eles, majoritariamente, traziam uma retomada positiva da trajetória do depoente. Coube, então, a ela lembrar que não somente as memórias partilhadas se referem a extratos de tempo da vida dos sujeitos recrutados, mas também que o que é narrado se articula a um espaço de experiências e a um horizonte de expectativas (Koselleck, 2006 apud Almeida, 2021). Ademais, também os documentos orais trazem a potência criar no arquivo um espaço de compartilhamento e resguardo de memórias dos sujeitos, tornando os arquivos, conforme a definição de Arlette Farge, ainda mais “[...] saborosos” (Farge, 2009 apud Almeida, 2021, p. 39).

Mais do que as entrevistas, os documentos pessoais de professores4 trouxeram aos pesquisadores o confronto com o inesperado. Nesse sentido, no capítulo ‘Entre cadernos, agendas, recortes, correspondências, bilhetes...: sensibilidades em arquivos pessoais’, mapearam-se as discussões epistemológicas que sustentam sua análise no entroncamento entre História, Antropologia e Arquivística. Também nele, destacaram-se as idiossincrasias entre esses conjuntos documentais em sua diversidade de arranjos e nos acessos que eles concedem à intimidade, assim como as estratégias necessárias para estabelecimento de vínculos que podem, porventura, desencadear em futuras doações (Almeida, 2021).

Na segunda seção do livro - ‘De memórias, fizeram-se histórias...’ -, esboçaram-se análises dos arquivos dos professores Luzia Garcia de Mello, Isabel Loss, Balduino Antônio Andreola e Beatriz Daudt Fischer. A primeira, acumuladora de um amplo ‘acervo de vivências’5, dedicou-se à escrita dos cadernos analisados nesse artigo após a sua aposentadoria, entre 1989 e 2010. Nessa investida, Dóris Almeida reconheceu neles não somente indícios autobiográficos, mas também testemunhos de sua trajetória como professora universitária em uma determinada temporalidade e configuração social. Em que pese a dificuldade em rastrear as subjetividades no material, a pesquisadora chamou atenção para a seção que Luzia nomeou como ‘Re-lembranças’ (Almeida, 2021). Foi, pois, nela que se evocaram memórias da infância e juventude mais enfaticamente, dando os contornos da curva própria vivida pela colecionadora em meio a um ethos geracional ainda em muito ocupado por estereotipias do feminino (Almeida, 2021). Nesse sentido, Almeida (2021, p. 83) destacou que “[...] nada nos cadernos faz pensar nas escritas tipicamente feminilizadas, marcadas por uma determinada estereotipia do gênero [...]”, já que muitos dos escritos dizem respeito à ocupação de espaços públicos e universitários.

Também esses espaços foram perscrutados pela professora Isabel Loss, professora polivalente do Colégio de Aplicação da UFRGS cujos cadernos de planejamento foram tomados como fonte para escrita do capítulo ‘Papéis de uma professora polivalente: miradas para as aulas de história’ (Colégio de Aplicação/UFRGS, 1978-1986). Tais cadernos foram tomados por Dóris Almeida como testemunhos de uma cultura escolar (Viñao Frago, 1995 apud Almeida, 2021) pelas vias das escritas ordinárias, por meio das quais problematizou-se e operacionalizou-se metodologicamente a análise dos artefatos, “[...] sobretudo no que se refere às práticas das aulas de História, como componente curricular (Almeida, 2021, p. 91). Dessa forma, a autora tomou-os como mote para refletir sobre os potenciais teóricos dos arquivos pessoais no campo da historiografia da educação, para situar a instituição educativa no interior da qual eles foram produzidos e para analisar “[...] o que esses suportes de escrita, guardados por tantos anos, evidenciam sobre as aulas de História, inseridas nos ‘Estudos Sociais’” (Almeida, 2021, p. 99, grifo do autor). Para além disso, sua análise permitiu inferir a intenção de promoção dos ideais escolanovistas nas práticas educativas do Colégio, sobretudo nos princípios das classes experimentais6 (Almeida, 2021), bem como mapear algumas “[...] frestas entreabertas” (Almeida, 2021, p. 96) que permitissem sinalizar resquícios de subjetividade da docente.

O arquivo pessoal de Balduíno Andreolla, professor emérito da UFRGS, trouxe à Dóris Almeida o desafio de compreender o arranjo dado ao arquivamento, considerando as diversas modalidades textuais como as tantas dimensões de uma vida docente e os lugares ocupados na universidade. Em “‘Deixo inteira liberdade’ ...: o arquivo pessoal do professor Balduino Andreolla [...]”, a autora acercou-se do arquivo e de seu titular como um repositório de um “[...] tempo que se refaz o que desfez”7 (Almeida, 2021, p. 111, grifo do autor). Coube a ela, então, o desafio de pensar categorias de análise e construir núcleos narrativos entre esses documentos, permeados por afetos e sensibilidades de uma trajetória intelectual cercada por laços intelectuais, políticos e epistemológicos potentes. Por fim, esse conjunto documental, aqui tomado como espaço de investigação histórica,

[...] conserva uma memória autobiográfica, em meio às memórias Universidade e dos movimentos sociais. Talvez o maior fascínio esteja no fato do arquivo em questão transcender a existência de seu titular, pelos múltiplos cruzamentos incorporados em suas práticas de arquivamento pessoal. As memórias da Universidade urdem-se à sua vida, a presença de papéis oficiais em meio a papéis ordinários, as grandes amizades, o carinho com a Faculdade, a perseverança nas ações que envolviam Paulo Freire, o engajamento com os movimentos sociais compõem um arquivo que representa a potência de uma vida. (Almeida, 2021, p. 135).

Por fim, o livro se encerra com a análise dos registros da professora Beatriz Daudt Fischer, organizados em 19 agendas datadas entre 1995 e 2014. O capítulo ‘Para não esquecer: apontamentos de uma professora, mãe, mulher e filha em agendas (1995- 2014)’, epigrafado pela música Cotidiano, de Chico Buarque, se demora sobre uma investida de pesquisa implicada por atravessamentos subjetivos, mas sem perder a robustez teórica e metodológica. Nesse sentido, Almeida considerou as agendas “[...] arquivos íntimos” (Cunha, 2000 apud Almeida, 2021, p. 142) e “[...] atestados de itinerários” (Castillo Gomes, 2001 apud Almeida, 2021, p. 142) por possuírem um tom confessional e por objetivarem a administração da vida pela escrita. No caso específico da agenda da professora Beatriz, trata-se de um escrito com poucas transgressões no qual a docente se ocupou de documentar o exercício da docência e da pesquisa, além das maternidades e dos afetos que a atravessaram. Por fim, em meio aos documentos, avolumaram-se os papéis avulsos deixados entre as páginas, nos quais foi possível rastrear algumas de suas afinidades intelectuais e políticas.

Dentre o que Maria Helena Câmara Bastos pontuou como intenção explícita de Percursos de um Arq-Vivo: entre arquivos e experiências na pesquisa em história da educação, destaca-se o objetivo de evidenciar as potências (in)formativas dos arquivos, sobretudo daqueles vinculados às instituições educacionais (Bastos, 2021). Isso porque o livro traz não somente um relato de um processo de sua organização e institucionalização, mas também referenciais teóricos e preceitos metodológicos centrais para pensar essa prática. Nesse sentido, o que Dóris Almeida propõe se desdobra em tempos e espaços. Em tempos, por convocar a pensar o arquivo como um encontro de períodos e gerações ao enodar passado, presente e futuro; e em espaços, por trazer os locais vivenciados pelos sujeitos cujos arquivos doados são agora revisitados. Por fim, a autora aterra o marco interpretativo sem sufocar as afetividades que permearam - e seguem permeando - os trâmites de entrevista, doação e elaboração de documentos próximos, mas cada vez mais institucionalizados em um arquivo que segue se pretendendo vivo.

Referências

Almeida, D. B. (2021). Percursos de um Arq-Vivo: entre arquivos e experiências na pesquisa em história da educação (1a ed.). Porto Alegre, RS: Editora Letra1. Recuperado de: https://www.editoraletra1.com.br/epub/9786587422077/files/9786587422077.pdfLinks ]

Bastos, M. H. C. (2021). Tempos entrelaçados em arquivos. In D. B. Almeida. Percursos de um Arq-Vivo: entre arquivos e experiências na pesquisa em história da educação (1a ed., p. 161-162). Porto Alegre, RS: Editora Letra1. Recuperado de: https://www.editoraletra1.com.br/epub/9786587422077/files/9786587422077.pdfLinks ]

Cunha, M. T. S. (2021). De arquivos pessoais e de encantamentos gerais: um assombro sem medida. In: Almeida, D. B. Percursos de um Arq-Vivo: entre arquivos e experiências na pesquisa em história da educação (1a ed., p. 5-7). Porto Alegre, RS: Editora Letra1. Recuperado de: https://www.editoraletra1.com.br/epub/9786587422077/files/9786587422077.pdfLinks ]

1 A autora é professora Associada de História da Educação da Faculdade de Educação, atuando junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e líder do Grupo de Pesquisa ‘Arquivos pessoais, patrimônio e educação’ (Conferir: https://www.arquivospessoais.com/).

2A autora destacou que o livro é também fruto de trocas estabelecidas no âmbito do grupo de pesquisa ‘Arquivos pessoais, patrimônio e educação/ CNPq’ e da experiência vivenciada em estágio pós-doutoral na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), em 2018, sob a supervisão da professora Dra. Maria Teresa Santos Cunha.

3Conforme Cunha (2021, p. 7), o que importa na espessura do Tempo presente é “[...] preservar e analisar, em múltiplas temporalidades, como e porque existiram estas memórias e, igualmente, entender os arquivos pessoais como formas de musealização que combatem o esquecimento”.

4Até o término da escrita do livro, foram angariados os arquivos pessoais dos seguintes professores da Faculdade de Educação e do Colégio de Aplicação: Luzia Garcia de Mello, Balduíno Andreolla, Isabel Loss, Tania Ramos Fortuna, Alceu Ferraro, Maria Helena Bastos, Beatriz Daudt Fischer e Nilton Bueno Fischer (Almeida, 2021, p. 43).

5Conforme Almeida (2021, p. 63), o termo era usado pela própria professora Luzia.

6Também para Almeida, os princípios escolanovistas das classes experimentais se fizeram ver também “[...] na preocupação em conhecer o aluno, em respeitar suas características etárias, por meio dos estudos de Psicologia, e, assim, mapear seu desenvolvimento” (Almeida, 2021, p. 95).

7Referência à música Todo o sentimento, de autoria de Chico Buarque, usada como epígrafe do capítulo.

10Como citar esta resenha: Philippi, C. C. (2022). Os ‘nós’ dos arquivos. Revista Brasileira de História da Educação, 22. DOI: http://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e240

Recebido: 02 de Abril de 2021; Aceito: 10 de Outubro de 2021; Publicado: 09 de Outubro de 2022

E-mail: carolinacechella@gmail.com

Carolina Cechella Philippi é Graduada em Pedagogia (UDESC) e História (UFSC), mestra e doutora em Educação (Unicamp). Pesquisadora colaboradora junto à linha de Pesquisa “Educação e História Cultural”, da Faculdade de Educação (Unicamp). E-mail: carolinacechella@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-6121-254X

Editor-associado responsável: Cláudia Engler Cury E-mail: claudiaenglercury73@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-2540-2949

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