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Revista Brasileira de História da Educação

versión impresa ISSN 1519-5902versión On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.23  Maringá  2023  Epub 24-Mar-2023

https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e262 

Artigo Original

A capoeiragem pela genialidade de Calixto: contribuições de um caricaturista fluminense para o jogo-luta da capoeira

Capoeiragem by the genius of Calixto: contributions of a Rio de Janeiro caricaturist to the fight game of capoeira

Capoeiragem por el genio de Calixto: contribuciones de un caricaturista de Río de Janeiro al juego de lucha de la capoeira

Ricardo Martins Porto Lussac1  * 
http://orcid.org/0000-0003-2406-2700

* Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


Resumo:

Tendo em vista que a educação é realizada dentro de um universo de atividades e interações sociais, pesquisadores do campo da História da Educação têm cada vez mais voltado seus olhares para práticas não escolares da educação, por meio das quais ocorrem diversas formas de desenvolvimento de saberes e cultura em diferentes grupos sociais, como no caso da capoeira. Nesse sentido, este artigo teve como objetivo investigar o artista visual Calixto Cordeiro, analisando sua produção acerca da capoeira, assim como suas respectivas possíveis contribuições para o campo pedagógico do jogo-luta sob a perspectiva histórica. Este estudo demonstrou que a arte de Calixto, com toda a riqueza de seus desenhos e legendas, pode ser ainda mais estudada, podendo, com isso, contribuir muito para novas reflexões e perspectivas pedagógicas que envolvem a história da capoeira.

Palavras-chave: artes visuais; cultura afro-brasileira; história da educação; imprensa

Abstract:

Considering that education is carried out within a universe of activities and social interactions, researchers in the field of History of Education have increasingly turned their gaze to non-school education practices, through which different forms of knowledge and culture development occur in different social groups, as in the case of capoeira. In this sense, this article aimed to investigate the visual artist Calixto Cordeiro, analyzing his production on capoeira, as well as their respective possible contributions to the pedagogical field of the game-fight from a historical perspective. This study demonstrated that Calixto's art, with all the richness of its drawings and legends, can be studied even more, and with this, it can contribute a lot to new reflections and pedagogical perspectives involving the history of capoeira.

Keywords: visual arts; afro-brazilian culture; history of education; press

Resumen:

Considerando que la educación se lleva a cabo dentro de un universo de actividades e interacciones sociales, los investigadores en el campo de la Historia de la Educación han vuelto cada vez más su mirada a las prácticas educativas no escolares, a través de las cuales se producen diversas formas de desarrollo del conocimiento y la cultura en diferentes grupos sociales, como en el caso de la capoeira. En ese sentido, este artículo tuvo como objetivo investigar al artista visual Calixto Cordeiro, analizando su producción sobre la capoeira, así como sus respectivas posibles contribuciones al campo pedagógico del juego-lucha desde una perspectiva histórica. Este estudio demostró que el arte de Calixto, con toda la riqueza de sus dibujos y leyendas, puede ser estudiado aún más, y con eso puede contribuir mucho para nuevas reflexiones y perspectivas pedagógicas que envuelven la historia de la capoeira.

Palabras clave: artes visuales; cultura afrobrasileña; historia de la educación; prensa

Introdução

O campo da História da Educação tem cada vez mais voltado seus olhares para práticas não escolares da educação, por meio das quais existe, reconhecidamente, diversificadas e importantes formas de desenvolvimento de saberes e cultura em diferentes grupos sociais. Por se compreender que a educação é realizada dentro de um universo de atividades e interações sociais e que ainda são necessárias maiores investigações acerca de tais fenômenos, torna-se natural e imprescindível que parte da comunidade acadêmica se preocupe em investigar as questões pertinentes à história dos processos pedagógicos envolvidos nesses grupos, assim como no caso das práticas educativas e de transmissão de saberes concernentes ao jogo-luta da capoeira.

No caso desta, por ser um patrimônio brasileiro e da humanidade, bem como de alguns estados brasileiros, ainda se faz necessário compreender melhor como esse saber foi transmitido ao longo da história, contribuindo, dessa maneira, para o desenvolvimento de planos de preservação eficazes, uma vez que um dos aspectos essenciais em planos de salvaguarda de patrimônios culturais imateriais é a transmissão (Unesco, 2003).

Desse modo, justifica-se a busca pela melhor compreensão de como e o quê dessa cultura é e foi transmitido no decorrer da história, pois, de acordo com Vassalo (2008, p. 1), “[...] a noção de patrimônio parece estar intimamente relacionada à de propriedade, seja ela de um indivíduo ou grupo social, e também à de herança, o que implica na sua transmissão e continuidade ao longo do tempo”.

No decorrer dos anos, a capoeiragem possibilitou a seus praticantes resistirem às adversidades de seu cotidiano preparando-os por meio de um composto próprio de saberes e fazeres pelos quais eram e ainda são transmitidos os seus conhecimentos. Destarte, entender os significados, as utilidades e as influências dos diferentes aspectos envoltos na transmissão de qualquer prática cultural é aspecto fundamental e decisivo para se conhecer os processos educativos envolvidos em fenômenos socioculturais em que haja uma relação de ensino-aprendizado.

Dessa forma, proporcionando novos olhares sobre a prática da capoeira do Rio de Janeiro no início do século XX, é possível contribuir para reflexões sobre os processos de transmissão da capoeira nos dias atuais, na medida em que tais processos não se desvinculam do seu passado, mas sim se fundamentam em sua memória e história. Do mesmo modo, é importante ressaltar que pesquisas dessa natureza colaboram para o fomento e para a atualização de conteúdos escolares previstos pela Lei nº 11.645 (2008).

Sendo assim, este artigo tem como objetivo investigar o artista visual Calixto Cordeiro, analisando sua produção acerca da capoeira, assim como suas respectivas possíveis contribuições para o campo pedagógico do jogo-luta sob a perspectiva histórica. A maior parte deste trabalho se deteve na análise do artigo ‘A capoeira’, publicado na revista Kosmos, em 1906, o qual possui seis1 ricas ilustrações desenhadas e legendadas pelo referido gênio da caricatura brasileira. “Imagens, assim como textos e testemunhos orais, constituem-se numa forma importante de evidência histórica” (Burke, 2004, p. 17). Nesse sentido, é necessário compreender que fontes iconográficas, como as ilustrações contidas no periódico em questão, são elementos documentais importantes e que contribuem para produzir outra perspectiva e leitura em pesquisas sobre a história da capoeira, principalmente quando somadas a outros documentos durante a investigação.

A partir do artigo ‘A capoeira’, escrito por L. C., buscou-se, portanto, compreender as funções dos autores na obra - L. C. e Calixto - e como estes dialogam com ela e entre si, entendendo o sentido das narrativas, do texto e das imagens legendadas como forma de expressão. Da mesma forma, procurou-se, por meio de um tratamento interpretativo e qualitativo, estabelecer um diálogo entre esta fonte primária principal - o artigo ‘A capoeira’ - e os autores que compuseram a fundamentação teórica. A perspectiva formadora da informação veiculada, tanto do texto como das ilustrações da fonte primária em questão, foi analisada de forma a entender o contexto destas e a própria fonte, compreendendo a perspectiva de Burke (2004, p. 237, grifo do autor) de que:

O testemunho das imagens necessita ser colocado no ‘contexto’, ou melhor, em uma série de contextos no plural (cultural, político, material e assim por diante), incluindo as convenções artísticas para representar [...] um determinado lugar e tempo, bem como os interesses do artista e do patrocinador original ou cliente, e a pretendida função da imagem.

Foram investigados os sentidos da cultura material presente na fonte primária, pensando os processos múltiplos educativos da capoeira também pelas coisas. Dessa forma, foi adotada uma estratégia de abordagem pelas diferenças das nuances da cultura material da capoeira pela qual optou-se por enquadrá-la em quatro aspectos em geral, conforme pressuposto por Lussac (2014): armas e objetos, lugares, indumentárias e música. Sob esse entendimento, por mais investigada e analisada, de modo separado, a cultura material da capoeira, essas análises não podem ser estanques, e sim enredadas para uma maior compreensão do fenômeno, pois tais partes compõem todo um arcabouço com o qual se pode começar a interpretar e entender o mosaico da dinâmica do sistema de ensino-aprendizagem do jogo-luta.

Capoeira e caricaturistas no início do século XX

Fonte: O Malho (1909).

Figura 1 ‘O concurso dos caricaturistas’ 

Ao longo da história, diversos artistas, amadores ou profissionais, dedicaram suas habilidades artísticas visuais para representar os capoeiras e sua respectiva prática e costumes de alguma forma. Entretanto, ao selecionar os que mais se destacam no início do século XX, é impossível deixar de apontar os nomes de dois dos maiores caricaturistas de todos os tempos, os artistas Calixto Cordeiro, conhecido também por Kalixto, e Raul Pederneiras (Figura 1). Contudo, esse destaque não se deve apenas por suas respectivas qualidades como artistas, mas, sobretudo, pela visão e quantidade de obras sobre a capoeira que ambos realizaram.

Os artistas visuais irmãos gêmeos3, Raul, nascido em 1874, e Calixto, nascido em 1877, assistiram ao apogeu da capoeiragem e seu respectivo declínio após sua criminalização e repressão com o advento da República. Ambos estrearam seus trabalhos profissionais no O Mercúrio, em julho de 1898. Calixto, dez dias após Raul, no dia 30 do referido mês. Esses dois artistas propiciaram, por meio de suas artes e suas escritas, ricos elementos e valiosas informações sobre a capoeiragem do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX.

Calixto é considerado um dos maiores caricaturistas brasileiros de toda história. Junto com Raul Pederneiras e J. Carlos, formou a tríade dos mais importantes caricaturistas fluminenses da Primeira República. Entretanto, a possibilidade de Calixto possuir o saber corporal da capoeiragem (Lima, 1963), proporcionando uma singular expressão por meio de seus desenhos e legendas, o diferenciava dos demais.

Calixto Cordeiro, o Kalixto

Calixto Cordeiro nasceu em 14 de outubro de 1877, em Niterói, e faleceu em 11 de fevereiro de 1957, em sua residência no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, onde morou por mais de trinta anos. Antes, havia morado também no Largo da Carioca, no Centro do Rio de Janeiro (Lima, 1963). Além do trabalho na imprensa, durante vinte e um anos, Calixto foi professor da Escola Visconde de Mauá, localizada no bairro de Marechal Hermes, onde começou a lecionar em 1924. Segundo Gondin da Fonseca, Calixto Cordeiro atuou nos seguintes impressos:

‘O Jacobino’, de Deocleciano Mártir. ‘O Mercúrio’. ‘A Semana Illustrada de 1898. ‘Cidade do Rio’. ‘Rio Nú’. ‘O Malho’. ‘O Tagarela’. ‘O Diabo’. ‘O Avança’. ‘A Comédia’. ‘O Teatro’. ‘Teatro e Esporte’. ‘Kosmos’. ‘Fon-Fon’. ‘Careta’. ‘O Degas’. ‘Ilustração Brasileira’. ‘D. Quixote’. ‘A Maçã’. ‘Gazeta de Notícias’. ‘Ultima Hora’. ‘7 Horas’. ‘A Pátria’, de João do Rio. ‘A Folha’. ‘O Século’, etc. 1898-1930. Calixto desenhou na capa do 1.º numero da ‘Lanterna’. 15-4-26, uma charge onde se veem os principais caricaturistas da época (Fonseca, 1941, p. 409 e 410, grifo do autor).

Conforme afirma Herman Lima (1963, p. 1041-1042), a “[...] relação de jornais e revistas onde K.Lixto colaborou é imensa [...]”, incluindo a Revista Contemporânea, de Luiz Edmundo , e O Turbilhão, de Coelho Netto (Lima, 1963), assim como para A Pátria, de João do Rio (Fonseca, 1941). Todos estes escritores - Luiz Edmundo (Edmundo, 1940), Coelho Netto (Netto, 1928) e João do Rio (Barreto, 1908) - dedicaram, de um modo ou de outro, linhas de suas escritas à capoeira, colaborando para uma possível rede de relações constituídas entre pessoas que produziram algo sobre a capoeira em impressos. Mas essa rede não era composta só por escritores: Calixto foi colega dos irmãos Timotheo da Costa na Escola de Belas Artes (Lima, 1963), sendo que Arthur Timotheo da Costa é o autor de Retrato de Lucio, uma obra inspirada em Lucio, um antigo capoeira da importante malta dos Guayamúns. A obra, inclusive, foi realizada no mesmo ano de publicação do artigo ‘A capoeira’, pela revista Kosmos, 1906.

O Retrato de Lucio foi publicado originalmente na seção ‘Rapias de hontem Artistas de Hoje’, da revista Illustração Brazileira, anno 3, nº 7, março, 1921. Em uma edição anterior da Illustração Brazileira, a mesma seção forneceu as seguintes informações:

Arthur Timotheo quebrando a monotonia dos envios usuaes [...] Enviou tambem uma cabeça de negro, para a qual servira de modelo o velho Lucio, antigo ‘guayamú’, de andar ondulante, trazendo sempre no canto da bocca grossa uma ‘barata’ prestes a queimar-lhe a beiçola (Illustração Brazileira, 1921, grifo do autor).

As reportagens da revista apontam para um modelo real. Lucio, o antigo Guayamú, realmente teria existido e estaria vivo na primeira década do século XX, possibilitando a transmissão do saber corporal da capoeiragem para as futuras gerações após os duros golpes da repressão republicana. O andar ondulado revela uma das características comuns dos capoeiras, herdada pela figura tipificada como malandro. O retrato de Lucio (Figura 2) é uma das maiores contribuições da Arte para a capoeira, pois retrata a face verdadeira de um integrante de uma das mais importantes maltas de capoeira da história.

Fonte: Araújo (2013).

Figura 2 ‘Retrato de Lúcio’, 1906, óleo sobre a tela do artista pré-modernista Arthur Timótheo da Costa. 

É possível especular que a relação entre os artistas negros Calixto e os irmãos Timotheo da Costa possa ter contribuído para que o antigo capoeira Lucio, também negro, fosse alçado como modelo para uma obra artística, havendo aqui a possibilidade de existir uma rede constituída de resistência, apoio e solidariedade artística e popular entre negros e pardos na Primeira República. Seria Lucio, talvez, um antigo colega de capoeiragem de Calixto?

Como é possível constatar, Calixto, em relação à capoeira, parece não ter ficado só na teoria. De acordo com Herman Lima, Calixto era um exímio capoeira. Utilizava “[...] uma réstia de sêda a envolver-lhe o colarinho alto” (Lima, 1963, p. 1048), como os antigos, a fim de proteger o pescoço de investidas com navalha:

Fritz acentua ainda a agilidade física de Calixto, que foi sempre um verdadeiro serelepe. Pequenino, muito leve, era uma pluma, donde seu sucesso nos clubes carnavalescos, onde se especializara no maxixe, no que não tinha competidor. Capoeira consumado, depois dum curso completo com os nagôs e guaiamuns da Saúde, entrou certa vez num tremendo ‘rolo’ da Colombo, donde saiu para a rua a fazer figurações da melhor marca. De qualquer modo queriam pegá-lo, porém o caricaturista, torcendo o corpo e distribuindo rasteiras e rabanadas, arrastou um bocado de policiais até a esquina do Ouvidor sem que pudessem pôr-lhe a mão em cima (Lima, 1963, p. 1035-1036, grifo do autor).

Fonte: Lima (1963, p. 1015)

Figura 3 ‘K.Lixto / Foto de Campanela Neto’ 

Pelo relato acima, Calixto (Figura 3) seria conhecedor dos saberes corporais da capoeira, não sendo um qualquer amador que sabia meia dúzia de golpes. Único ponto que parece ser contraditório é o fato de ele ter aprendido a capoeira com as duas maltas inimigas. Mas isso pode ser explicado ou pela falta de maiores informações de quem relatou isso, no caso, Anisio Oscar Mota, mais conhecido no meio artístico como Fritz, ou por Calixto ter entrada nos dois partidos, de modo que conhecia capoeiras dos dois lados e, assim, aprendeu com agentes de ambas as maltas, sem necessariamente fazer parte de uma delas. De todo modo, essas informações corroboram o fato de o artista não somente traduzir com perfeição os golpes e movimentos, mas também fornecer gírias e outros elementos constitutivos do mundo da capoeiragem na legenda que acompanha seus desenhos no artigo ‘A capoeira’. Conforme Herman Lima (1963), a predileção de Calixto eram as práticas da ‘sociedade vadia’, dentre elas, a capoeira, conforme o autor narra a seguir, com base em seus desenhos e respectivas legendas publicadas no artigo ‘A capoeira’, da revista Kosmos:

Terreiros do morro, com figurações de capoeira, numa série de croquis de grande realismo, colorido e movimento, com pulos e negaças, o rabejar dos pés, o corpo que se projeta no ar ou se estira rente ao chão, na astúcia do ‘calço’ ou da ‘rasteira’, a cabeçada que marra o estômago do adversário, enquanto a navalha chispa no passe da ‘lamparina’, todo o gingar da ‘cocada’ ou da ‘peneiração’ em ritmo homicida (Lima, 1963, p. 1020, grifo do autor).

Esses desenhos, aliados ao seu conhecimento da capoeiragem, são aperfeiçoados pela extrema técnica e habilidade do artista. “Ninguém, realmente, soube entre nós tirar o melhor efeito do claro-escuro, fosse no modelado das figuras ou na expressão do volume de nossa paisagem, do que esse mestre dos jogos de sombra e luz” (Lima, 1963, p. 1024). Para Herman Lima, um traço que ressaltou como característica marcante do artista foi o movimento, a característica da expressão cinesiológica e dinâmica do corpo humano:

[...] dinamismo com que as suas figuras lhe saltavam do lápis a traduzirem no máximo de objetivismo impressionista, o bamboleio da mulata sestrosa ou o passo gingado do capadócio da Saúde, o solene rapapé do elegante dos salões como a pirueta malandra dum garoto de rua (Lima, 1963, p. 1028).

Na Figura 4 a seguir, por exemplo, Calixto apresenta um brasileiro aplicando um golpe desequilibrante de capoeira em um alemão. A caricatura denominada ‘A ‘defeza nacional’’ possui cunho nacionalista e militar, de defesa da pátria perante os interesses e as ingerências estrangeiras. Para isso, o artista se aproveitou da luta nacional, da capoeira, prática popular de luta brasileira.

Fonte: D. Quixote (1917)

Figura 4 ‘A ‘Defeza Nacional’’4, de Calixto Cordeiro 

Calixto e L. C.: o artigo ‘A capoeira’ da revista Kosmos

Na sequência, será analisado o artigo ‘A capoeira’, escrito por L. C., publicado na revista Kosmos, em 1906, o qual possui seis ricas ilustrações desenhadas por Calixto Cordeiro. Ao analisar essa fonte, procurou-se contribuir para a melhor compreensão do referido artigo como fonte escrita e iconográfica, possibilitando otimizar os olhares e as respectivas análises sobre esse documento.

Imagens e recortes do artigo ‘A capoeira’, da revista Kosmos (1906), já foram utilizados em outros trabalhos e livros sobre capoeira, muitas vezes, apropriando-se das figuras somente com caráter ilustrativo. Entretanto, o referido artigo ainda carece de maiores reflexões, tendo em vista que nunca foi analisado de forma completa, com sua escrita associada às imagens e respectivas legendas contidas nele. Apesar de ser uma fonte relativamente pequena, com somente quatro páginas, ela possui uma imensa riqueza de detalhes, pois, além de um texto elaborado por um determinado autor - L. C. -, o artigo conta com seis ilustrações legendadas e criadas por Calixto que vêm complementar o primeiro autor, cuja publicação ganha importância exponencial em seus elementos. Essa importância ocorre por não se conhecer, até o momento, registros de imagens tão específicas e detalhadas da capoeira do referido período - excetuando as fotografias de Cyriaco (Figura 5) e os desenhos da obra de ODC (1907)5 -, acompanhadas das respectivas legendas possuidoras de mais outros ricos aspectos, e ainda do próprio texto do artigo, também de considerável relevância.

Fonte: Revista da Semana (1909)

Figura 5 ‘A Victoria do jogo brasileiro - capoeira ‘versus’ jiu-jitsu’ 

Destarte, a perspectiva formadora da informação veiculada tanto do texto como das ilustrações analisadas foi levada em consideração, de forma que fosse possível compreender o contexto e o sentido da publicação na revista Kosmos, já que esta encerra uma pedagogia nela própria.

A capoeira na revista Kosmos

Em março de 1906, a revista Kosmos, periódico que circulou entre 1904 e 1909, e que, de acordo com Dealtry (2010), era a mais cara e graficamente sofisticada revista brasileira da época, edita, em mais um número mensal, o artigo intitulado ‘A capoeira’ entre as matérias que geralmente traziam textos e fotografias que traduziam o projeto, nos moldes franceses da belle époque, de modernizar o Brasil.

Certamente, o leitor burguês7 que comumente abria a revista deve ter achado estranho, ou no mínimo exótico, tal artigo, principalmente as ilustrações legendadas que o acompanhavam, uma vez que tal prática - ilustrações estampadas acompanhadas de textos - era mais comum em periódicos menos sofisticados, como a revista O Malho, do qual o artista Calixto, junto com seu colega Raul Pederneiras, foi diretor artístico por certo período (Araújo & Jaqueira, 2008; Dealtry, 2010; Lima, 1963).

Em pleno final de mandato do Prefeito Pereira Passos (1903-1906), logo após a Revolta da Vacina, em 19048, uma prática popular que parecia não combinar com as novas propostas de modernização era levada, por meio da revista, para dentro das casas da alta sociedade carioca e de suas respectivas redes sociais. E, ao se abrir as páginas da Kosmos, a existência dos capoeiras e de sua presença no espaço social da cidade capital era lembrada. Ela não mais fazia parte do passado período imperial, seja temporal ou ambientalmente, ela estava presente, desde o submundo das ruas, dos morros e dos terreiros, até nas páginas de um periódico da burguesia carioca da belle époque. Ao exibir sua existência, mesmo nas páginas de uma revista, essa prática de jogo-luta popular reivindicava seu espaço na história daquela sociedade planejada pelas elites, na qual os planos para os capoeiras eram o desterro e a prisão.

A história está, pois, em jogo nessas fronteiras que articulam uma sociedade com o seu passado e o ato de distinguir-se dele; nessas linhas que traçam a imagem de uma atualidade, demarcando-a de seu ‘outro’, mas que atenua ou modifica, continuamente, o retorno do ‘passado’ (Certeau, 1982, p. 48, grifo do autor).

O artigo ‘A capoeira’ foi assinado por L. C. Na época, era comum o uso de pseudônimos, sobretudo quando se trata de publicações cuja matéria abordava temas polêmicos. O autor das ilustrações que acompanham o texto, Calixto Cordeiro, também se utilizava desse recurso. Além de ‘K.Lixto’, como ele assinou as ilustrações, o desenhista que atuava em outras áreas, como a literatura, utilizou, no decorrer de sua vida, “LUP e SIB, Romano e Guevara, Ot Xilak” (Araújo & Jaqueira, 2008, p. 62). O artista também é conhecido por Kalixto.

L. C. foi identificado inicialmente por Jair Moura (1997) como Lima Campos, como era mais conhecido o escritor simbolista César Câmara de Lima Campos, notado por suas publicações na categoria da prosa. Araújo e Jaqueira (2008) e Dealtry (2010), pesquisadora da área da literatura, ratificam a referida identificação. Mas todos esses autores não fornecem as referências que os levaram a essa conclusão.

Na Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais9, existe a informação de que Calixto, a partir de 1906, realiza ilustrações para as crônicas de João do Rio10, Olavo Bilac e Gonzaga Duque11, mas não menciona Lima Campos, o que enfraquece a possibilidade de L. C. ser o referido autor.

É possível que, ao afirmarem que L. C. seria o escritor Lima Campos, tais autores tenham se baseado no sumário existente no início da revista para chegarem a essa conclusão12. Nesse sumário (Figura 6), estão presentes nomes conhecidos atualmente, como: o escritor Olavo Bilac e o então Diretor do Serviço de Identificação, Felix Pacheco. Outros menos, como: Gonzaga Duque e João Luso, e outros não tão conhecidos atualmente, como: General Dionísio Cerqueira, Dr. Mario Behring, Oscar Lopes e o Professor do Museu Nacional, Dr. Domingos Sergio de Carvalho. No entanto, chama atenção a presença do Dr. Adolfo Morales de Los Rios, pai de Adolfo Morales de Los Rios Filho (1946), e de Coelho Netto (1928), demonstrando a possibilidade de uma rede de contribuições, relação e conhecimento entre autores que publicaram sobre a capoeira na primeira metade do século XX.

Fonte: Kosmos (1906)

Figura 6 ‘Summario’ da revista Kosmos 

No sumário, há, ainda, a presença de Lima Campos, autor do conto ‘O sonho do coronel’, e ainda dois títulos cujos autores são identificados apenas pelas iniciais: D. e L. C., este último autor da matéria ‘A capoeira’. O artigo sobre o jogo-luta é o último do periódico. Talvez, ele tenha sido colocado propositalmente nessa parte para não assustar os leitores, para não atrapalhar as vendas da revista, para garantir a plena leitura contínua dos demais artigos, prática comum na época; ou, ainda, para tornar mais aceitável a presença desse tema em tal publicação. Também por ser o último artigo desse número do periódico, não é possível descartar que tenha sido aproveitada uma brecha de espaço por falta de matérias para encaixar um artigo com tema tão diferenciado da linha da revista.

No texto de Olavo Bilac, o primeiro desse número da Kosmos, o referido autor, ao final do artigo, assina-o com suas iniciais: O. B. Isso pode ter induzido alguns pesquisadores a afirmarem que L. C. seriam as iniciais de Lima Campos. Todavia, esse indício não comprova a autenticidade da autoria do artigo ‘A capoeira’, sendo necessárias, no mínimo, reservas para ratificar a posição dos pesquisadores que chegaram a tal conclusão. É possível pensar que seria muito mais lógico afirmar que Coelho Netto, ou mesmo Raul Pederneiras, poderia ser o autor do texto do artigo ‘A capoeira’. Sendo assim, analisando a característica da escrita de Lima Campos, não são identificadas similaridades entre esta e o texto assinado por L. C., do mesmo modo que, até o momento, Lima Campos não foi identificado como parte de uma rede de autores que, de alguma forma, publicaram ou discutiram a capoeira. Por outro lado, é muito mais provável, não só pelo envolvimento e conhecimento sobre o assunto, mas também pela forma da escrita, que a autoria do texto assinado por L. C. fosse realmente de Coelho Netto, apesar de não constar L. C. entre os pseudônimos utilizados por ele. Há de se levar em consideração, também, a possibilidade de um erro por parte da edição gráfica da revista ao ter colocado L. C. como autor do artigo ‘A capoeira’.

Talvez seja necessário, conforme Foucault (2001) propõe, debruçar um olhar mais minucioso com a intenção de se perceber detalhes ou vestígios que possam permitir identificar traços de personalidade, a fim de que se possa conferir uma autenticidade da referida autoria da obra.

A confirmação da autoria do texto assinado como L. C. é um fato que pode ampliar a perspectiva de análise de sua escrita. Tal ratificação, esclarecida com maiores detalhes, certamente proporcionará a realização de outros estudos a respeito dessa fonte.

O artigo ‘A capoeira’ ocupou quatro páginas inteiras da revista. O texto foi acompanhado gradualmente em suas páginas por seis ilustrações legendadas. Os desenhos caricaturais e as legendas abaixo de cada ilustração foram desenvolvidos por Calixto Cordeiro, famoso caricaturista da época. Essas imagens formulam uma narrativa paralela ao texto de L. C., apresentando a capoeira, de certa forma, com uma perspectiva diferente da do texto, tanto em conteúdo como pela linguagem e pela forma da narrativa.

O texto de L. C.

Em uma primeira análise, o texto de L. C., ao longo de sua narrativa, principalmente na parte sobre a história da capoeira, generaliza o vocábulo capoeira. Isso já era esperado ao se analisar uma fonte desse período, assim como a de outros escritores que dedicaram algumas linhas e páginas à capoeira e a seus praticantes, na primeira metade do século XX, no Rio de Janeiro.

O texto de L. C. pode ser dividido em quatro partes para análise. No início, a capoeira é promovida comparando-a com outras cinco lutas estrangeiras, de diferentes origens e características. Mas essa perspectiva não foi original, pois parece claramente ter sido baseada na obra de Alexandre Mello Moraes Filho (1901), publicada cinco anos antes, quando foi realizada a mesma comparação. L. C. deixa clara a supremacia da arte nacional em comparação com as demais e, não descartando o caráter ofensivo da luta, ao contrário do que afirmou Dealtry (2010), enfoca seu potencial de defesa, parecendo querer vender a ideia da capoeira como uma opção de defesa pessoal.

É importante lembrar que o épico combate entre o capoeirista Cyriaco e o lutador japonês de jiu-jitsu, Sada Myaco, só ocorreria em 1909, três anos após a publicação do artigo ‘A capoeira’. Portanto, esse fato só iria influenciar os escritores e artistas ilustradores que sucederam a referida publicação da Kosmos.

L. C. finaliza essa primeira parte de seu texto afirmando que qualquer comissão oficial do governo que fosse nomeada para tratar dos assuntos mais complexos seria capaz de concluir positivamente sobre as potencialidades da capoeira como luta, como um eficiente método de defesa e ataque. Isso é uma clara sugestão para o aproveitamento do jogo-luta como uma prática corporal sob a perspectiva do sport, visto o Rio de Janeiro estar passando, naquele período, por diversas transformações sociais, inclusive com o advento de algumas práticas corporais esportivas estrangeiras. Nesse sentido, nada melhor que um impresso como a Kosmos, cujo público-alvo era composto por cidadãos da elite da sociedade, principalmente a carioca, para expor a ideia de aproveitar e transformar a capoeiragem em um esporte. Seria o segundo incentivo por meio de um impresso, após a publicação da obra de Mello Moraes Filho (1901), na tentativa de formar opinião e criar um movimento de esportivização da capoeira. Do mesmo modo, é possível que as ideias do artigo ‘A capoeira’ na revista Kosmos tenham motivado a publicação do Guia do capoeira ou gymnastica brazileira, de ODC, em 1907.

Em um segundo momento, L. C. (1906, grifo do autor) continua sua narrativa tentando responder ao leitor “Porque, quando, onde e como nasceu a ‘capoeira? ’”. Apesar de a revista Kosmos, como afirma em sua terceira página, tratar-se de uma ‘Revista Artistica, Scientifica e Litteraria’, inclusive possuindo em suas páginas artigos científicos dotados de recursos de imagens e com fundamentação documental em rodapés, L. C., sem apoio documental algum, discorre sobre a origem e a história da capoeira, caracterizando sua escrita de uma forma mais próxima do jornalismo do que de uma matéria científica, o que também pode ser constatado no texto de outros escritores que empenharam sua escrita acerca da capoeira naquele período.

L. C. apropria-se de um ideal nacionalista e elabora uma origem provável no período da transição do reinado português para o Primeiro Império, quando, segundo as suas palavras, o recém-independente, mais fraco, tinha que se defender do agressor estrangeiro, ‘ex-possessor’, mais forte e robusto, durante os atritos das nacionalidades em tabernas13. Tal origem teria sido em dois pontos no território brasileiro: um em Pernambuco e o outro “[...] nos primeiros ‘capoeiras’ ditos [...]” (L. C., 1906, grifo do autor), no Rio de Janeiro. Nesse ponto, o autor acertou quando afirmou que “[...] a ‘capoeira’, a legítima é por excelência carioca [...]” (L. C., 1906, grifo do autor), ratificando sua origem e identificação inicial na história no Rio de Janeiro, como já comprovado em pesquisas (Lussac, 2009).

Entretanto, quando L. C. aponta para esse discurso de confronto entre nacionalidades, esvazia a essência da história do desenvolvimento da capoeira como a maior forma de expressão do inconformismo escravo no Brasil, como verificado por Soares (1999, 2002). Também nega ou dilui as origens escravas da capoeira, conforme afirmou Assunção (2008), ainda inventando uma ancestralidade indígena para o jogo-luta.

A invenção de uma ancestralidade indígena, conforme o modelo romântico do século XIX, oferecia a vantagem de conferir um caráter mais nobre (como o bom selvagem da ilustração setecentista) e mais autenticamente brasileiro à capoeira. Além do mais a inclusão de algum elemento indígena nas origens da arte se enquadra melhor com a ideia fixa de que tudo o que é autenticamente brasileiro provém da mestiçagem entre as ‘três raças’ formadoras (Assunção, 2008, p. 28, grifo do autor).

Nessa narrativa nacionalista de L. C., na qual ele mistura as ‘três raças’ no desenvolvimento da capoeira, o autor afirma que a navalha, uma das armas-símbolo da capoeiragem e, mais tarde, da malandragem, teria sido uma contribuição do “[...] fadista da ‘mouraria’ lisboeta”. Sobre essa assertiva, os autores Araújo e Jaqueira (2008, p. 110, grifo do autor) afirmam que a “[...] tradição oral e documental atribui aos portugueses, o costume do uso da navalha na sociedade brasileira e, consequentemente sua apropriação pelos indivíduos identificados pela alcunha de ‘capoeiras’”.

Quanto à história da capoeira, a narrativa de L. C. segue pelo Segundo Império, quando o autor afirma ter a capoeira chegado ao auge de seu domínio e desenvolvimento. Nesse período, segundo o autor, é que teriam sido criados os termos técnicos e as gírias. O texto prossegue narrando sobre as maltas e sua relação com a política, até o início da repressão por Sampaio Ferraz em 1890, quando esta desarticulou as maltas, dando a entender que tal relação com a política não existia mais. Mas não é isso que podia ser constatado naquela época, como pode ser verificado em fartas fontes documentais daquele período, a presença dos capoeiras nas eleições prosseguiu na capital ao longo do início do século XX.

Calixto, o autor das ilustrações do artigo ‘A capoeira’ na revista Kosmos (1906), também não deixou de caricaturar a relação dos capoeiras com a política. Em 1903, na revista O Malho, ele apresentou uma conversa fictícia entre dois capoeiras na caricatura ‘Povo sacudido’, na qual é possível constatar semelhanças com as caricaturas e respectivas legendas publicadas na Kosmos.

Na caricatura ‘Povo sacudido’ (Figura 7), percebe-se a indumentária característica dos capoeiras, inclusive, na forma distinta de vestir suas peças. A cor do cinto do sujeito da esquerda e a aba do chapéu do da direita denunciam que ambos pertencem à malta dos Guayamúns. O sujeito da direita parece estar demonstrando um ato de defesa ou esquiva com o braço direito.

Fonte: O Malho (1903)

Figura 7 Caricatura ‘Povo sacudido’14, de Calixto Cordeiro 

Ao oferecer a ideia de que a relação entre a capoeira e a política era uma coisa do passado, L. C. deixava de denunciar tal envolvimento ainda existente na época da publicação do artigo, diferentemente da revista O Malho, veículo impresso que atacava de forma contínua as fraudes nas eleições e o respectivo envolvimento dos capoeiras, chamados ‘cafagestes’. É possível que tal omissão do autor nesse sentido tenha sido proposital, no intuito de não evidenciar a correlação da capoeira com tais práticas ou, ainda, de preservar uma ideia de ambiente civilizado e moderno que se pretendia para o então Distrito Federal do recente Brasil republicano, imagem com a qual a revista compactuava.

Essa exclusão, intencional ou não, do autor remete às reflexões de Michel Foucault (1996), nas quais ele afirma existirem três grandes sistemas de exclusão presentes na sociedade, os quais exercem uma pressão, um poder de coerção, que interfere na expressão humana. Dentre tais sistemas, está a forma escrita, da qual se destacam: a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade da verdade. Certamente, esses sistemas de exclusão interferiram, de um modo ou de outro, no texto de L. C., exercendo procedimentos de controle e de delimitação, de ordem externa ou interna. Desse modo, contextualizar o cenário de sua escrita - o assunto, o público-alvo, a sua intenção - é um ponto que deve ser pensado para começar a entender as dimensões e limitações do texto do autor. Como afirmou Foucault, “Ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo” (1996, p. 37). Nesse sentido, Prost (2014) também afirma que um enredo histórico deve ser apresentado conforme o público-alvo e configurado sob um conjunto de elementos necessários para isso. Portanto, satisfazer a exigência do leitor, do mercado, da Kosmos, e ter as qualificações para atender a essa exigência, com seus respectivos ajustes sociais necessários, são qualidades que L. C., certamente, deveria possuir e saber utilizar ao escrever o artigo. L. C. continua seu texto, afirmando algumas mudanças sofridas pela capoeira até o seu tempo:

Os ‘capoeiras’ modernos não levam já a esses extremos ‘o amor a arte’; são mais, a bem dizer, mashorqueiros, navalhistas, faquistas, emfim, ‘estriladeiros’ avulsos, que própria, exclusiva, profissional e arregimentamente ‘capoeiras’. Sabem, uns mais, outros menos, o jogo, mas, não fazem dele verdadeiramente uma ‘arte’, uma profissão, uma ‘instituição’ (L. C., 1906, grifo do autor).

Essa perspectiva nostálgica romantizada de amor à arte, que L. C. compartilha com Mello Moraes Filho (1901) e, de certo modo, também com Abreu (1886)15, não confere com a realidade do passado da capoeiragem, quando as atividades dos capoeiras também eram compostas de atividades ilícitas, contraventoras e caracterizadas como maus costumes e sem moral. Isso pode ser facilmente constatado em jornais da época e na documentação oficial jurídica e de segurança pública. O que realmente havia mudado, e que L. C. nesse ponto apresenta, foi a forma de aglomeração social e ação coletiva dos capoeiras. A ação dos organismos de repressão com o advento da república foi um golpe na espinha dorsal da capoeiragem e, por esse motivo, L. C. pode ter apurado uma decadência técnica e uma significativa mudança de valores e comportamento dos capoeiras, a ponto de expressar em seu texto uma mudança do passado do auge das maltas até aquele período.

Na terceira e penúltima parte, L. C. retratou a ‘alma’ da capoeira: olhar, golpes, comportamento e vocabulário foram evocados para traçar o perfil do capoeira. O interessante é que, se a proposta de L. C. era mostrar uma capoeira possível de ser aproveitada como defesa pessoal, sob a perspectiva do esporte, ao apresentar o comportamento padrão dos capoeiras, que não conheciam a moral esperada socialmente pela elite carioca, os bons costumes e valores positivos, a cordialidade do fair play inglês, bem como não cultuavam as virtuosidades do bushido, presente nos códigos das artes marciais orientais, ele estaria apresentando um tipo com seus próprios códigos. Códigos estes mais próximos da realidade das ruas, da necessidade real de uma defesa pessoal no cotidiano popular do ambiente urbano carioca. Uma defesa pessoal que vai além dos golpes corporais, pois perpassa pelas atitudes, pelas posturas e pela história do indivíduo e de seu grupo, que necessita se impor de determinado modo para ser respeitado e obter a devida proteção e status social em seus respectivos ambientes pelos quais transitam, conhecimentos que seriam difíceis de serem codificados em uma linguagem esportiva, institucionalizada, embranquecida e elitizada, fora de um contexto de contracultura e de resistência diante da repressão do Estado e de parte da sociedade.

Na quarta e última parte, L. C. (1906) conclui brevemente o seu texto oferecendo melhores detalhes por meio das “[...] figuras caricaturaes [...] com as legendas [...]”, de autoria de Calixto Cordeiro, que “[...] dão idéa do calão tecnhico”. Nesse momento, apesar de as ilustrações estarem presentes ao longo do texto de L. C., o autor parece mostrar que as ilustrações legendadas de Calixto são uma continuidade de seu texto, uma complementação da escrita. Mas essa complementação tem uma forma particular de linguagem, ela ganha vida própria. Tal possível continuidade, se existe, alcança outros contornos, inclusive com um jogo entre ficção e história criado por Calixto.

Nesse sentido, parafraseando Burke (2004, p. 44, grifo do autor) quando este diz que, “[...] para os iconografistas, pinturas não são feitas simplesmente para serem observadas, mas também para serem ‘lidas’.”, as imagens de Calixto não devem ser entendidas como meras ilustrações do texto, mas sim interpretadas conjuntamente com suas respectivas legendas e com o texto de L. C., pois tanto no “[...] caso de imagens, como no caso de textos, o historiador necessita ler nas entrelinhas, observando os detalhes pequenos mas significativos” (Burke, 2004, p. 238), sendo que, talvez, para os pesquisadores, a confrontação “[...] com o problema de distinguir entre representações do típico e imagens do excêntrico” (Burke, 2004, p. 237) seja um dos maiores desafios na análise e interpretação dessas fontes.

Esse recurso iconográfico, mesmo sendo uma obra de ficção, é pautado em uma realidade. É necessário compreender que as “[...] imagens dão acesso não ao mundo social diretamente, mas sim a visões contemporâneas daquele mundo” (Burke, 2004, p. 237). Por esse princípio, para interpretar possíveis mensagens contidas em imagens, é necessário que o pesquisador esteja minimamente familiarizado com os códigos culturais que envolvem as imagens. Ao retratar os capoeiras em ação, com todas as suas características peculiares, Calixto trouxe algo de real para o leitor, fazendo-o constituir imageticamente uma realidade por meio de suas ilustrações. Desse modo, tal recurso satisfaz a necessidade de conhecimento de uma realidade desconhecida e de fatos que ocorrem ou ocorreram no cotidiano. O fato - o acontecimento - tem seu valor para o leitor:

O prestígio do aconteceu tem uma importância e uma amplitude verdadeiramente históricas. Há um gosto de toda a nossa civilização pelo efeito de real, atestado pelo desenvolvimento de gêneros específicos como o romance realista, o diário íntimo, a literatura de documento, o museu histórico, a exposição de objetos antigos, e principalmente o desenvolvimento maciço da fotografia, cujo único traço pertinente (comparada ao desenho) é precisamente significar que o evento representado realmente se deu (Barthes, 2004, p. 178-179).

As ilustrações legendadas de Calixto Cordeiro, o K.Lixto

Mais que ajudar os leitores a adentrar o mundo da capoeira junto ao texto de L. C., as ilustrações legendadas de Calixto fornecem uma narrativa paralela e com aspectos diferentes dos que podem ser encontrados no próprio texto do artigo.

Essa narrativa paralela possui uma característica lúdica, que não só informava, mas também podia entreter o leitor da Kosmos, provocando seu imaginário e sua curiosidade. Já para os leitores do presente, essa expressão iconográfica torna-se uma forma de expressão da história, possibilitando um olhar dos praticantes da capoeira e dos historiadores para um mundo do passado em imagens, mundo este que Calixto, com sua singular habilidade de artista aliada ao seu conhecimento sobre a capoeira, soube bem traduzir. Nessa perspectiva, é possível compreender uma outra possibilidade de forma de expressão na História, por meio de uma narrativa iconográfica, que se utiliza de outros recursos e outras linguagem, os quais podem ser manipulados junto a outras formas de expressão pelos historiadores, como a escrita.

Fonte: Kosmos (1906)

Figura 8 “TYPOS E UNIFORMES DOS ANTIGOS NAGOAS E GUAYAMÚS”, por Calixto Cordeiro 

A imagem ‘TYPOS E UNIFORMES DOS ANTIGOS NAGOAS E GUAYAMÚS’ (Figura 8), a primeira das seis ilustrações de Calixto, na matéria publicada na edição de março de 1906 da revista Kosmos, difere das demais. Ela apresenta ao leitor os ‘typos’ de capoeiras com seus respectivos ‘uniformes’ na época de intensa atividade das maltas de capoeira no Rio de Janeiro ao final no século XIX. Com essa caricatura, o artista ilustra, na página da revista, o trecho do texto da matéria que aborda uma parte da história da capoeira, a das duas grandes maltas. A seguir, a legenda que acompanha a imagem e que inicia uma narrativa fictícia que decorre ao longo das ilustrações, junto às imagens:

‘TYPOS E UNIFORMES DOS ANTIGOS NAGOAS E GUAYAMÚS’ SENDO OS PRINCIPAES DISTINCTIVOS DOS PRIMEIROS CINTA COM CORES BRANCA SOBRE A ENCARNADA E CHAPÉO DE ABA BATIDA PARA A FRENTE E DOS SEGUNDOS COM CORES ENCARNADAS SOBRE A BRANCA E CHAPÉO DE ABA ELEVADA NA FRENTE.

Não te conto nada seu compadre! o samba esteve cuerê-réca. No fim que houve uma choramella de escacha. O Cara Queimada estava de sorte com a Quinota quando o marchante chegou. Ih! seu camarada! Foi um estrompicio!

O Marchante era sarado, foi logo encaroçando a joça. Eu tive que entrar com o meu jogo, sim, tu sabes, que não vou nisso, e ali eu estava separado, não havia cara que me levasse vantagem. Quando a coisa estava preta eu fui ver como era p'ra contar como foi (Cordeiro, 1906, grifo do autor).

Em que pese não ser um período muito distante da memória de alguns leitores, por volta de vinte anos antes da publicação dessa matéria, muitos destes, possivelmente, nem haviam nascido ou eram crianças quando a repressão implacável do chefe de polícia Sampaio Ferraz encarou o desafio de tentar acabar com as maltas de capoeira logo no início da República brasileira. O próprio Calixto (1877-1957) tinha somente treze anos nessa época, o que demonstra que o artista pode ter conhecido bem o antes e o após da forte repressão aos capoeiras e às suas maltas. Segundo Araújo e Jaqueira (2008) e de acordo com Herman Lima (1963), com essa idade, Calixto começou a desenhar e já trabalhava como aprendiz da Casa da Moeda, ratificando a sua presença na vida social urbana da cidade já no início de sua adolescência, o que até possibilitaria a ele conhecer e praticar a capoeiragem.

Calixto era um exímio capoeirista, “[...] formado nas rodas da Cidade Nova” (Dealtry, 2010, p. 66-67). O artista, pela característica de seu trabalho jornalístico, conhecia a cultura popular carioca e suas gírias, por frequentar as ruas, a vida boêmia, as festas populares como os cordões e a Festa da Penha, o que realmente propiciou ao desenhista uma proximidade com o mundo da capoeiragem. Não obstante e nem por acaso, a narrativa que o caricaturista desenvolveu para a revista Kosmos por meio de suas ilustrações legendadas teve como cenário um samba, cenário que, por sua vez, fazia parte do contexto cultural dos capoeiras cariocas daquela época, mas que era distante do cotidiano dos leitores do referido periódico.

Fonte: Kosmos (1906)

Figura 9 ‘A Peneiração’16 , por Calixto Cordeiro 

Portanto, abordar a capoeira e apresentar imagens que pudessem estimular a imaginação representativa dos leitores eram ações que não só ilustravam a matéria, mas também traziam uma prática exótica ao leitor da Kosmos. Do mesmo modo que na época do Império, o jogo-luta já não marcava mais sua presença no dia a dia da sociedade carioca. Ao destoar do restante das matérias que geralmente estampavam as páginas do periódico, o artigo ‘A capoeira’ se tornava atrativo justamente por esse motivo. De acordo com Roland Barthes (2009, p. 131, grifo do autor), “[...] o ‘prazer da leitura’ provém evidentemente de certas ‘rupturas’ (ou de certas ‘colisões’) [...]”, rupturas cujo impacto também pode provocar colisões, como afirma o autor, gerando o que ele chama de fenda. Segundo Barthes, essa fenda é que seduz o leitor. Uma fenda que separa duas margens antagônicas, com as quais o sujeito leitor certamente irá se identificar e ficar seduzido por uma delas ou pela própria fenda.

Como diz a teoria do texto: a língua é redistribuída. Ora ‘essa redistribuição faz-se pelo corte’. São traçadas ‘duas margens’: uma margem obediente [...] e ‘uma outra margem’, móvel, vazia (apta a tomar quaisquer contornos) [...] A ‘margem subversiva’ pode parecer privilegiada porque é a margem da violência; mas não é a violência que impressiona o prazer; a destruição não lhe interessa; o que ele quer é o lugar de uma perda, é ‘a fenda’, o corte, a deflagração, o fading que se apodera do sujeito no auge da fruição (Barthes, 2009, p. 132, grifo do autor).

Fonte: Kosmos (1906).

Figura 10 ‘A Cocada’17, por Calixto Cordeiro 

As imagens que neste trabalho foram colocadas de acordo com sua ordem original de publicação e que ilustram a matéria da revista Kosmos não são coloridas. Caso fossem, poderiam identificar com clareza as cores branca e encarnada que pertenciam às maltas. Entretanto, fica claro que Calixto, ao retratar o tipo social conhecido como capoeira, desenhou os sujeitos das imagens com traços que os evidenciam como afro-brasileiros: negros, pardos, ou mesmo mestiços de outra ordem. Os sujeitos desenhados por Calixto nas ilustrações do artigo ‘A capoeira’ não parecem ter traços caucasianos.

Rabiscados detalhadamente pelo artista, e ao contrário do que afirmaram Araújo e Jaqueira (2008, p. 109), ao perceberem representações “[...] muito distintas daquelas que historicamente foram atribuídas a estes personagens [...]”, é possível entender que Calixto retratou de forma muito similar os capoeiras como tipos sociais presentes no período final do Império, como os representantes dos dois grandes grupos de maltas da referida época, os Nagoas, que dominavam a periferia, e os Guayamús, que comandavam o centro da cidade capital. As indumentárias típicas e o modo de sua disposição no corpo, as armas, a postura, dentre outros aspectos dos capoeiras do final do Período Imperial, estão presentes nos desenhos de Calixto.

Fonte: Kosmos (1906)

Figura 11 ‘O Calço ou a Rasteira’, por Calixto Cordeiro19

A imagem ‘TYPOS E UNIFORMES DOS ANTIGOS NAGOAS E GUAYAMÚS’ (Figura 8), a primeira ilustração do artigo da Kosmos, é diferente das demais, pois justamente apresenta o sujeito que narra as legendas e, junto a ele, um outro que somente escuta a narrativa de seus feitos. Ambos portam suas armas, a bengala, que, ao contrário do cacete (Figura 9) ou do petrópolis, era permitida e complementava um dos possíveis vestuários de um capoeira, assim como o chapéu (Figura 10) e o paletó com a calça e o lenço de seda (Figuras 11, 12 e 13) - adereço utilizado para proteger a região do pescoço contra navalhadas (Figura 12) -, acompanhados, ainda, de outros itens, como a botina de bico, a gravata de manta e o anel corrediço, conforme afirmaram Araújo e Jaqueira (2008), apresentando, junto com a legenda da ilustração, os tipos sociais das duas grandes maltas de capoeira do final do século XIX, com suas indumentárias características. As diferenças são sutis, porém simbolicamente importantes por diferenciarem os representantes das referidas maltas, principalmente, no que tange ao uso do chapéu, como esclarece a legenda da primeira ilustração do artigo da Kosmos. Como se pode ver, a aba da frente do chapéu do sujeito da esquerda está para cima, identificando este como pertencente à malta Guayamús. Já o sujeito da direita pode ser classificado como pertencente à malta Nagoas, pela aba da frente de seu chapéu estar abaixada. O sujeito da malta Nagoas20 é o que narra os feitos nas legendas que acompanham as demais ilustrações e, consequentemente, pode ser identificado, de acordo com a narrativa, como um dos sujeitos representados nos desenhos, o qual, teoricamente, teria saído vitorioso da briga ao final da narrativa (Figura 13).

Fonte: Kosmos (1906)

Figura 12  ‘A Lamparina’21, por Calixto Cordeiro. 

As cinco imagens seguintes que ilustram a matéria da revista são diferentes da primeira. Possuem títulos que nomeiam os golpes ou ações dos sujeitos ilustrados. Nelas, os sujeitos se apresentam ambos com um paletó branco, a chamada ‘domingueira’, que parece ser uma veste comum de alguns homens frequentadores do samba, local em que, segundo o narrador, ocorre a contenda. Todavia, apesar das semelhanças entre os dois capoeiras dessas demais ilustrações, ambos se diferenciam justamente pelas distintas cores de seus cintos: enquanto um usa o cinto branco, identificando-o como pertencente à malta Nagoas, o outro utiliza um cinto preto, denotando aí, pela tonalidade da cor, que seria a cor encarnada referente à malta Guayamús. Esses desenhos de Calixto não só ilustram gradualmente, junto com suas respectivas legendas, a narrativa fictícia de uma briga entre capoeiras criada pelo artista, mas também, e sobretudo, fornecem detalhes preciosos quanto aos golpes, ao vestuário, aos comportamentos, às gírias e às ações desse tipo social conhecido como capoeira.

Fonte: Kosmos (1906)

Figura 13  ‘Metter o Andante’22, por Calixto Cordeiro 

Um exemplo da utilização de termos específicos por Calixto é a ilustração ‘Metter o Andante’ (Figura 13). O título da imagem não confere propriamente com a nominação de um golpe, sendo uma expressão em forma de gíria para a execução de um golpe, que pode receber outras nomenclaturas conforme as fontes, as características regionais e a linhagem pedagógica de quem ensina o movimento em diferentes escolas de capoeiragem. Entretanto, essa expressão fornece mais um elemento da cultura material, o ‘andante’, que pode se referir ao calçado ou mesmo ao próprio pé nu. Nesse sentido, as gírias e expressões podem fornecer uma outra perspectiva de abordagem da cultura material presente na capoeira, assim como sobre seus processos pedagógicos. Termos como: calço, cocada, lamparina, peneiração, figuração, rasteira, grampear, coçar, barbeira, caveira; e expressões como: ‘materiaes rodantes’, ‘cahi no bahiano’, ‘caixa de comida’, ‘machinismo mastigante do poeta’, ‘engolir a língua’, ‘chamar na chinxa’, ‘dansar de velho’, ‘o turuna enfeitou-se’, ‘amarrotar a tampa do juízo’, ‘o marreco voôu na alegria do tombo’, ‘mirones grelados no mecco’, ‘rente a poeira’, ‘rabo de gallo’, ‘chamou na canella’, ‘gargantear’, dentre tantas outras, permeiam um rico universo no qual o comportamento, a gestualidade e o corpo fazem parte de uma cultura corporal carregada de códigos próprios e bem específicos, os quais pertencem a um conjunto de saberes e fazeres de um grupo social específico que operou em determinado espaço-tempo no Rio de Janeiro.

Da mesma forma, sob uma perspectiva epistemológica da Psicomotricidade, a nominação de partes do corpo por termos e gírias específicas perfazem uma pedagogia popular e própria de desenvolvimento do esquema corporal e respectiva representação, consciência e imagem corporal dos capoeiristas, dentro de um determinado período e ambiente, fazendo parte de sua estrutura e orientação espaço-temporal.

Nessa perspectiva, pensando nas propriedades pedagógicas das gírias e expressões, é possível constatar não só a possibilidade de um maior conhecimento sobre os processos pedagógicos presentes na capoeiragem carioca no período do final do século XIX e início do século XX, mas também a oportunidade da utilização dessas gírias e expressões no ensino da capoeira nos tempos atuais a fim de compreender melhor as origens de parte do conjunto de saberes e fazeres do jogo-luta e, sobretudo, potencializar as formas de transmissão dessa cultura. Do mesmo modo, conhecer as antigas gírias e expressões proporciona identificar as modificações, transformações, ausências, semelhanças e até as igualdades na utilização destas nos processos pedagógicos da capoeira nos dias de hoje.

As gírias e expressões comportam códigos de um grupo, de um ambiente e de uma época. Traduzem uma linguagem típica e permeada de personalidade e subjetividades. As gírias e expressões presentes nas legendas das imagens do artigo ‘A capoeira’ apontam para o submundo da malandragem carioca, demonstrando a malícia e as características dos capoeiras de então. Estudá-las, interpretá-las e traduzi-las é uma investigação à parte e muito profícua, que complementa outras análises. As gírias e expressões são códigos falados que, quando transcritos, proporcionam um ambiente singular para se explorar. Por meio das análises das gírias e expressões, é possível compreender comportamentos, fatos e outros aspectos sobre os capoeiras, os quais não são possíveis por meio de outros documentos e fontes. Entender as gírias e expressões dos capoeiristas, sem anacronismos ou confusões geossociais, é compreender o modo como se comunicam entre si, com outros membros da sociedade e com o mundo.

Por outro lado, a cultura material é composta pelo conjunto de instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que são associados às práticas, às representações, às expressões, aos conhecimentos e às técnicas pertencentes a um determinado grupo que possui um saber específico de um modo de fazer e de uma forma de expressar uma cultura imaterial, que é transmitida aos seus pares por uma pedagogia própria.

Entender as utilidades, os significados e as influências dos aspectos materiais envolvidos na transmissão de qualquer prática cultural é um fator fundamental e determinante para se conhecer os processos educativos envolvidos em qualquer fenômeno sociocultural em que habite uma relação de ensino-aprendizagem.

O chapéu, por exemplo, era uma parte do vestuário comum dos capoeiras, sendo, inclusive, como já visto, peça identitária dos indivíduos capoeiras que compunham as maltas do Rio de Janeiro. Mas o acessório era utilizado não só para fins estéticos, identitários, comportamentais e gestuais, mas também para fins práticos. No momento de uma luta, ao ser manipulado com uma das mãos, o chapéu servia como escudo contra armas de corte e, ainda, para atrapalhar a visão de um adversário durante a peneiração e a figuração ou outra movimentação; ou, ainda, quando jogado em direção à visão do oponente. Também podia ser utilizado para esconder, ou ocultar da visão, objetos ou pequenas armas em seu interior, tanto na cabeça quanto quando manipulado pelas mãos. Colocado na cabeça do adversário, ou se este já utilizasse um chapéu, o acessório podia ser puxado pela aba a fim de atrapalhar sua visão e/ou deslocar a cabeça do oponente para um desequilíbrio, para a efetuação de um golpe, ou mesmo para, com este ato, sua ridicularização. Nesse sentido, o chapéu, peça comum do vestuário de parte da população, do mesmo modo que outras peças, como a bengala, por exemplo, foi reconfigurado dentro do universo da capoeira carioca do período das maltas ao final do século XIX, ganhando contornos práticos de acordo com os conhecimentos e hábitos característicos desse grupo social.

Portanto, é necessário entender os sentidos da cultura material presentes na capoeira, pensando os processos múltiplos educativos do jogo-luta também pelas coisas, pelo material, bem como compreender a utilidade - dimensão prática - e os signos - dimensão simbólica - dessa cultura material, de suas representações, de suas simbologias e dos indícios das ações e utilizações dessas coisas.

Dessa forma, o artigo ‘A capoeira’ da revista Kosmos (1906) também oferece uma rica oportunidade de análise dos aspectos materiais e da cultura material presentes na capoeira. O texto, as legendas e principalmente as imagens são carregadas de elementos que podem contribuir para um maior conhecimento sobre essa perspectiva do conhecimento sobre o jogo-luta.

Análises da cultura material da capoeira podem colaborar para uma maior compreensão do fenômeno, pois tais partes compõem todo um arcabouço com o qual se pôde começar a interpretar e entender o mosaico da dinâmica do sistema de ensino-aprendizagem da capoeira ao longo da história. Com isso, Calixto presenteia os pesquisadores do presente, convidando-os para novas perspectivas de análise.

Os próprios desenhos, assim como as legendas de Calixto, convidam não só os pesquisadores, como também os capoeiristas, a conhecê-los mais profundamente por estes registrarem e trazerem, para o presente, informações imagéticas sobre a capoeiragem do passado. Algumas análises acerca dessas ilustrações, inclusive, podem provocar discussões acerca dos dados cinesiológicos que estas contêm, como é o caso da ilustração ‘O calço ou a rasteira’, na qual existe uma contradição entre o título da ilustração, o desenho e sua respectiva narrativa por meio da legenda, existindo possibilidades de interpretações cinesiológicas diferentes dependendo da partida da análise: o título ou a legenda da ilustração

Sendo assim, por mais que se possa sugerir que Calixto tenha cometido pequenos erros em detalhes entre os desenhos, seus respectivos títulos e as legendas que os acompanham, é preferível pensar não só nas possíveis possibilidades de variações de interpretações que o caricaturista oferece com sua obra, mas também, e principalmente, na genialidade do artista que, ao inverter e misturar a narração com os desenhos, mostra o caráter duvidoso do capoeira quando conta seus feitos. Será que quem não saiu garganteando “Meu Deus que noite sonorosa” não foi o outro contendor? Os golpes narrados foram realmente os que se deram na briga, nas imagens? Foram executados pelo narrador ou por seu oponente? O sujeito narrador, quando ratificou “[...] o typo era bom!”, logo na legenda da segunda ilustração, já não queria valorizar a sua vitória (ou a sua história)? Ou, quando disse “[...] ali eu estava separado, não havia cara que me levasse vantagem. Quando a coisa estava preta eu fui ver como era p'ra contar como foi [...]”, não queria evidenciar suas habilidades e coragem? Talvez seja por isso que, na primeira ilustração, Calixto tenha colocado o sujeito da esquerda, que ouve a proeza, com um semblante desconfiado.

Considerações finais

As ilustrações de autoria de Calixto presentes na matéria ‘A capoeira’, publicada na edição de março de 1906 da revista Kosmos, têm sido utilizadas, nos últimos tempos, na capa de muitos livros sobre a capoeira, estampando, por exemplo, as obras de: Araújo e Jaqueira (2008), Dias (2001) e Lopes (2002), e em pesquisas relativas ao assunto por fornecerem uma riqueza de detalhes e conteúdos que, até o momento, não foram totalmente investigados, inclusive, por tais ilustrações oferecerem representação iconográfica da capoeira de um período com pouca documentação de imagens do jogo-luta.

Calixto conseguiu, de modo muito apropriado, proporcionar mais detalhes da capoeira que L. C., por meio da sua escrita, apresentou aos leitores da Kosmos, evidenciando o potencial de imagens como fontes em pesquisas históricas, ainda mais quando acompanhadas de comentários ou legendas, como no caso analisado. Essas contribuições puderam ser constatadas não só pelas imagens de execução dos golpes, dos movimentos e dos tipos sociais, mas também pelas expressões, gírias e nomenclaturas de um rico universo ao qual o leitor comum do referido periódico, muito possivelmente, era alheio ou, no mínimo, em sua grande maior parte o era.

As razões dessa publicação na Kosmos ainda não estão explícitas. Entretanto, é fato que destoou do comumente veiculado pelo periódico. Por esse motivo, L. C. e Calixto, ao dialogarem em conjunto, podem ter tido tanto um comportamento inovador como transgressor, ou os dois.

Ao longo da análise dessa fonte, também foi possível constatar a possibilidade de existência de uma rede de relacionamento e conhecimento entre alguns artistas e escritores que publicaram sobre a capoeira nas primeiras décadas do século XX no Rio de Janeiro.

As caricaturas do artista revelam que muitos aspectos da cultura material da capoeira presentes no século XIX ainda não haviam desaparecido do ambiente urbano carioca, mesmo com a repressão da República e com os projetos de modernização do país que abarcavam a intenção de uma mudança de valores e comportamentos sociais não compartilhados ou dialogados com a grande massa da população.

Do mesmo modo, parte dessa cultura material também pode ser identificada por meio das gírias e expressões que comportavam os códigos da capoeiragem carioca no período do final do século XIX e início do século XX. O maior conhecimento acerca dessas gírias e expressões possibilita um melhor entendimento sobre os processos pedagógicos presentes na capoeira daquele período, assim como dos tempos atuais. Nesse sentido, as ilustrações legendadas de Calixto proporcionam um rico acervo para ser estudado.

Conforme o artigo da Kosmos demonstrou em 1906, mesmo que por meio de uma história fictícia, a capoeira estava presente no ambiente do samba, local de festividade musical popular, com suas indumentárias que ainda muito lembravam as de décadas atrás, com suas armas peculiares que afloraram nos registros policiais e processos jurídicos por todo o século XIX no Rio de Janeiro. A matéria também mostra modificações no comportamento social, e talvez técnico, dos capoeiras como forma de contrapoder, ou seja, como um modo de se adequarem às mudanças pelas quais vinham passando nos últimos tempos.

Fato é que essa nova relação dos capoeiras com o poder repercute diretamente na mudança de seus comportamentos, hábitos e conjunto de saberes e fazeres, dentre eles, o uso de suas coisas, os diversos artefatos presentes em sua cultura e os múltiplos processos pedagógicos existentes nesse grupo social. Mas a presença desses elementos na matéria da Kosmos mostra a força dessa cultura e a resistência perante as mudanças dos novos tempos. A transmissão do conhecimento e da cultura da capoeira ainda permanecia no submundo das ruas, dentro dos terreiros, nos corpos de populares, não só de capangas e criminosos, mas também nos de muitos trabalhadores.

É possível que a publicação desse artigo em importante revista no ano de 1906 tenha influenciado de alguma forma o desenvolvimento da obra Guia do capoeira ou gymnastica brazileira, de ODC, em 1907. Em um curto espaço de tempo após essas duas publicações, acontece a vitória do capoeirista Cyriaco sobre o japonês Sada Myaco, lutador de jiu-jitsu, em combate travado em 1909. Destarte, é necessário analisar esses fatos não de forma estanque, mas sim enredados em um manto contextual comum nesse período na cidade do Rio de Janeiro.

Após as análises realizadas, é possível vislumbrar uma nova releitura de uma fonte já muito visitada por pesquisadores do campo de estudos da capoeira, principalmente, quanto à sua iconografia relacionada com suas legendas e com o próprio texto do artigo, proporcionando subsídios elementares para maiores utilizações desse documento, tanto como fonte quanto como objeto de estudo.

Desde a publicação do artigo ‘A capoeira’, é possível observar que, ao longo do tempo, na grande maioria das vezes, as imagens de Calixto foram dissociadas do texto e das legendas que as acompanhavam. Desse modo, as partes do artigo, quando divulgadas, seja entre os capoeiristas, seja para ilustrar obras de pesquisas e outras várias sobre a capoeira, não comportavam o potencial de mensagens e possibilidades de interpretação que a obra completa pode proporcionar. Assim, o artigo ‘A capoeira’, com o texto de L. C. e as imagens caricaturais de Calixto, influenciou pedagogicamente, e de forma diferenciada, aqueles que tiveram contato com a obra, seja em sua totalidade ou não, desde sua publicação. Contudo, deve ser ressaltado que a publicação deste estudo proporciona um meio, de forma crítica e democrática, de contato com a obra de Calixto Cordeiro voltada para a capoeira.

Por último, após as análises desenvolvidas, pode-se recomendar que os desenhos de Calixto, com suas respectivas legendas, não sejam utilizados, seja para fins de pesquisa, seja para fins pedagógicos, de forma descontextualizada e recortados do todo de sua publicação no artigo ‘A capoeira’.

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1Para Burke (2004, p. 237), “Uma série de imagens oferece testemunho mais confiável do que imagens individuais”.

2Legenda: “Os caricaturistas Raul, Amaro, Luiz e Calixto, desenhando, nesta ordem, sobre o grande quadro negro - trabalho que durou 15 minutos. Julgados os desenhos por um jury de creanças, ganharam o 1º premio, Raul; o 2º, Calixto; o 3º, Luiz; o 4º, Amaro. Foi uma das partes mais interessantes do grande festival [...]”; conforme a chamada no cabeçalho da página da foto: “Pela infancia desamparada / A festa infantil no jardim da Praça da Republica”.

3Segundo Herman Lima (1963), Raul e Kalixto, muito amigos, eram irmãos gêmeos, unidos pela caricatura.

4Legenda: “Uma disparada do nosso 42 (bico largo)”.

5O único exemplar existente da obra Guia do capoeira ou gymnastica brazileira, do anônimo autor possivelmente identificado somente por ODC (1907), infelizmente, foi extraviado da Biblioteca Nacional.

6Algumas das imagens registradas de Cyriaco, vencedor do combate público contra o desafiador e campeão de jiu-jitsu, o japonês Sada Myaco, em 1909, no Rio de Janeiro.

7Segundo Prost (2014), é necessário ter cautela com modelos globais, pois estes têm limites de generalização, sendo interessante observar as particularidades de referidos grupos. Nesse sentido, é possível que, entre a elite burguesa carioca, considerando-a grupo não homogêneo, algumas pessoas tivessem um pouco ou até um maior contato com a capoeira.

8Nesse período, Calixto produziu uma série de charges na revista O Tagarela, questionando a campanha de vacinação obrigatória contra a varíola, instituída por Oswaldo Cruz. Essa revista havia sido fundada em 1902 por Calixto junto com Raul Pederneiras. Recuperado de: http://www.itaucultural.org.br.

9Recuperado de: http://www.itaucultural.org.br.

10Nota-se, portanto, uma relação entre o artista e João do Rio (Barreto, 1908).

11Gonzaga Duque prefaciou um álbum de Raul Pederneiras (1924). O extenso prefácio, datado de abril de 1898, cita, inclusive, que Coelho Netto já conhecia o artista naquela ocasião.

12Não houve tempo durante esta pesquisa para analisar a autoria de outros artigos e sumários de publicações da revista Kosmos ou até em outros periódicos da época, nos quais possam constar L. C. como autor. Sugere-se, portanto, que futuras pesquisas invistam nessa linha de investigação.

13Essa perspectiva foi aproveitada por Adolfo Morales de Los Rios Filho (1946, p. 52).

14Legenda: “- Mal o cabra veiu feito p’ra cima de mim, eu tirei por fóra, dei dous passos de jaburú e mandei-lhe o alicerce na marmita dos pensamentos. / - Que pena não ter sido na camara!”

15É possível que a obra de Plácido de Abreu (1886) também tenha influenciado, de alguma maneira, o conteúdo da escrita de L. C.

16Legenda da segunda ilustração do artigo: “A PENEIRAÇÃO / Com pouco vi um cabra peneirando na minha frente, dansei de velho, o typo era bom! sambou e entrou no caterêté commigo [...]” (Cordeiro, 1906, grifo do autor).

17Legenda de: ‘A COCADA’: “ Fiz duas chamadas nos materiaes rodantes, de uma palma, sempre com os mirones grelados no mecco, o cabra não leu... fiz uma figuração por cima para o bruto fugir com o carão, e grampeei o individuo. Chamei o cabra na chinxa, levei a caveira de lado, e fui buscar o machinismo mastigante do poeta. O cabra engolio a lingua, damnou-se, não perdeu a scisma, ganhou tento e compareceu de novo [...] Não fiz questão do preço da banha [...]” (Cordeiro, 1906).

19Esse desenho é muito parecido com o da Figura 4.

20A identificação da narração dos fatos pelo sujeito capoeira da malta Nagôas não se confirma totalmente em todas as imagens. Há uma confusão, talvez intencional, na elaboração dos desenhos quando contrastados com as legendas. Na terceira ilustração, ‘A Cocada’, assim como na sexta e última, ‘Metter o andante’, quem desfere o golpe é o sujeito com o cinto escuro, encarnado ou preto, quando ele narra que desferiu o golpe.

21Legenda de ‘A LAMPARINA’: “Grimpei, perdi a estribeira, cocei-me, dei de mão na barbeira e [...] ia sapecar-lhe um rabo de gallo, quando o cabra cascou-me uma lamparina que eu vi vermelho!” (Cordeiro, 1906). O vermelho, nesse caso, pode ter o significado, tendo como parâmetro identitário a cor das maltas, que o nagoa, o atacado, foi atingido por uma ‘lamparina’ desferida pelo capoeira guayamú.

22Legenda da ilustração ‘METTER O ANDANTE’. “Ahi não conversei, grudei na parede, escorei o tronco, e meti-lhe o andante na caixa de comida. O dreco bispando que eu não era pecco, chamou na canella que si bem corre, está muito longem [...] Eu voltei p'ro samba garganteando: ‘Meu Deus que noite sonorosa’” (Cordeiro, 1906, grifo do autor).

25Rodadas de avaliação: R1: três convites; uma avaliação recebida. R2: três convites; uma avaliação recebida

26Como citar este artigo: Lussac, R. M. P. A capoeiragem pela genialidade de Calixto: contribuições de um caricaturista fluminense para o jogo-luta da capoeira. Revista Brasileira de História da Educação, 23. DOI: http://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e262

27Financiamento: A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e do Programa Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

28Licenciamento: Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

18Legenda de “O CALÇO OU A RASTEIRA”: “Cahi no bahiano rente a poeira, e lasquei-lhe um rabo de raia que o marreco voôu na alegria do tombo, indo amarrotar a tampa do juizo n'uma canastra, e ahi gritei: - Entra negrada! O turuna enfeitou-se outra vez [...] Oh! cabra cutuba!” (Cordeiro, 1906).

Recebido: 21 de Novembro de 2021; Aceito: 01 de Dezembro de 2022; Publicado: 24 de Março de 2023

*E-mail: ricardolussac@yahoo.com.br

Ricardo Martins Porto Lussac é doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/UERJ); Professor Adjunto da Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Líder/Coordenador do Laboratório de Pesquisas Educacionais e de História das práticas corporais, da Educação Física e dos esportes (LAPEHPEFE) e Mestre de Capoeira desde 1997. Atualmente também integra o BASis como avaliador institucional externo do Sinaes pelo Inep. E-mail: ricardolussac@eefd.ufrj.br https://orcid.org/0000-0003-2406-2700

Editor-associado responsável: Cláudia Engler Cury (UFPB) E-mail: claudiaenglercury73@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-2540-2949

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