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Revista Brasileira de História da Educação

versión impresa ISSN 1519-5902versión On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.23  Maringá  2023  Epub 09-Jun-2023

https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e281 

Artigo Original

Joseph Jacotot no Brasil: ecos pedagógicos de um ressoar político

Joseph Jacotot in Brazil: pedagogical echoes of a political resound

Joseph Jacotot en Brasil: ecos pedagógicos de un ressoar político

Suzana Lopes de Albuquerque1  * 
http://orcid.org/0000-0002-2001-5942

Walter Omar Kohan2 
http://orcid.org/0000-0002-2263-9732

1Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás, Goiânia, GO, Brasil.

2Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


Resumo:

O artigo propõe uma leitura do projeto político e educacional da Filosofia Panecástica desenvolvida por Joseph Jacotot (1770-1840), fundamentado na máxima ‘tudo está em tudo’, para tratar da emancipação intelectual, em contraposição à onipresença do poder e do olhar vigilante do mestre sobre o aluno do Panoptismo. A partir da análise de fontes históricas do Império brasileiro, como a imprensa periódica oitocentista, o texto visa apresentar as rupturas do pensamento pedagógico de Jacotot perante a lógica institucionalizada da desigualdade das inteligências nos ritos da instrução escolarizada. Para isso, tem como foco a introdução da Filosofia Panecástica no Império brasileiro, trazendo visibilidade aos ecos que ressoam como fundo, por exemplo, na pedagogia da dialogicidade de Paulo Freire.

Palavras-chave: Panecástica; Joseph Jacotot; Paulo Freire

Abstract:

This article proposes a reading of the political and educational project of the Panecastic Philosophy developed by Joseph Jacotot (1770-1840), based on the maxim ‘everything is in everything’, to address the intellectual emancipation, in opposition to the omnipresence of power and the watchful eye of the master over the student of Panoptism. Based on the analysis of historical sources of the Brazilian Empire, such as the 19th century periodical press, the text aims at presenting the ruptures of Jacotot's pedagogical thought before the institutionalized logic of the inequality of intelligences in the rites of school instruction. To do so, it focuses on the introduction of the Panecastic Philosophy in the Brazilian Empire, bringing visibility to the echoes that resonate as background, for example, in Paulo Freire's pedagogy of dialogicity.

Keywords: Panecastic; Joseph Jacotot; Paulo Freire

Resumen:

El artículo propone una lectura del proyecto político y educativo de la Filosofía Panecástica desarrollada por Joseph Jacotot (1770-1840), basada en la máxima ‘todo está en todo’, para abordar la emancipación intelectual, en contraste con la omnipresencia del poder y la mirada vigilante del maestro sobre el alumno del panoptismo. A partir del análisis de fuentes históricas del Imperio brasileño, como la prensa periódica del siglo XIX, el texto pretende presentar las rupturas del pensamiento pedagógico de Jacotot ante la lógica institucionalizada de la desigualdad de las inteligencias en los ritos de instrucción escolar. Para ello, se centra en la introducción de la Filosofía Panecástica en el Imperio Brasileño, dando visibilidad a los ecos que resuenan como fondo, por ejemplo, en la pedagogía de la dialogicidad de Paulo Freire.

Palabras clave: Panecastica; Joseph Jacotot; Paulo Freire

Introdução

As rupturas provocadas pelo encontro com a aventura intelectual de Joseph Jacotot afetam diversos pensamentos filosóficos, educacionais, políticos e históricos. Essa aventura, na leitura de Jacques Rancière, aprofunda os caminhos de um pensamento que não deixa as coisas do mesmo jeito que as encontrou. O presente artigo analisará fontes históricas referentes à circulação das ideias pedagógicas de Jacotot no território brasileiro em diálogo com escritos do filósofo francês Rancière, que tem oferecido uma leitura potente de Jocotot, constituindo, assim, um jogo de autorias que, a semelhança da dupla Sócrates-Platão, concebem um novo autor, um par, uma dupla, personagem conceitual singular resultante da junção desses nomes (Rancière-Jacotot).

Jacotot nasceu em Dijon na França (1770-1840), sendo “[...] considerado um revolucionário questionador dos resultados da Revolução Francesa e instituições de sua época como movimentos que não trouxeram meios para atingir a liberdade e a emancipação do homem, inclusive no campo intelectual” (Albuquerque, 2019, p. 167).

Pensar com Jacotot, partícipe e ao mesmo tempo questionador do movimento das Luzes, permite problematizar a forma como estas inventaram um certo conceito de infância e, com ela, um discurso sobre a liberdade, a igualdade e a cidadania; possibilita, também, colocar em questão o movimento que cria um futuro como promessa e o vincula a uma identidade escolarizada e disciplinada em seus espaços, racionalizados em cerca, quadriculamento, localização funcional e fila.

Assim, o presente escrito visa apresentar as rupturas presentes no pensamento pedagógico de Jacotot com a lógica institucionalizada da desigualdade das inteligências nos ritos da instrução escolarizada, a partir da atuação de alguns ‘homens do progresso’1 que entenderam e adotaram uma proposta de escola segregadora e excludente. Com esse objetivo, a imprensa periódica oitocentista será uma fonte privilegiada para analisar a circulação das ideias de Jacotot no Império brasileiro.

Na mesma direção da crítica de Jacotot à instituição pedagógica, comentada por Rancière, encontram-se as críticas tecidas por Foucault ao poder disciplinar (1987). Nesse sentido, o modelo da escola mútua, com a presença de um professor ordenando as decúrias no século XIX, esboça a forma como a disciplina escolar, em sua técnica de poder e objeto do saber, “[...] constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das forças, organiza táticas” (Foucault, 1987, p. 150). A formação e o disciplinamento da infância que ocorria em outros meios e metodologias, os quais eram individuais e realizados em diferentes tempos, racionalizaram-se pela escola moderna a partir de uma ordenação simultânea, graduada, regulada e fiscalizada pelo jogo de ininterruptos olhares calculados.

Haverá em todas as salas de aula lugares determinados para todos os escolares de todas as classes, de maneira que todos os da mesma classe sejam colocados num mesmo lugar e sempre fixo. Os escolares das lições mais adiantadas serão colocados nos bancos mais próximos da parede e em seguida os outros segundo a ordem das lições avançando para o meio da sala... Cada um dos alunos terá seu lugar marcado e nenhum o deixará nem trocará sem a ordem e o consentimento do inspetor das escolas (Foucault, 1987, p. 135).

Dessa forma, a infância que nasce dessas luzes encontra seu destino traçado nos instrumentos próprios do exercício do poder disciplinar: a vigilância hierarquizada, a sanção normalizadora e o exame, em uma espécie de passagem de conhecimento que, através da imposição da lógica da razão explicadora, liga o aluno ao mestre transmissor, em um processo ‘embrutecedor’ (Rancière, 2015). Tal processo de embrutecimento aniquila o princípio da igualdade das inteligências e reproduz a lógica da desigualdade, sujeitando a inteligência do discípulo à do mestre.

Ela se torna embrutecedora quando liga uma inteligência a uma outra inteligência. No ato de ensinar e de aprender, há duas vontades e duas inteligências. Chamar-se-á embrutecimento à sua coincidência. Na situação experimental criada por Jacotot, o aluno estava ligado a uma vontade, a de Jacotot, e a uma inteligência, a do livro, inteiramente distintas. Chamar-se-á emancipação à diferença conhecida e mantida entre as duas relações, o ato de uma inteligência que não obedece senão a ela mesma, ainda que a vontade obedeça a uma outra vontade (Rancière, 2015, p. 32-33).

Dessa forma, Rancière-Jacotot permitem problematizar o campo da educação institucionalizada e desnudar a face embrutecedora da escola moderna em suas funções disciplinadora, modeladora, normatizadora e “[...] reguladora da cultura letrada” (Boto, 2012, p. 50); em outras palavras, quando Jacotot-Rancière afirmam que a escola moderna é ‘embrutecedora’, estão complementando a descrição de Foucault, segundo a qual o espetáculo do suplício dos condenados na Idade Clássica cedeu espaço a uma disciplinarização e fabricação de corpos dóceis em uma anátomo-política que perpassa a instituição escola e está fundamentada na necessidade de transmissão de saberes e, sobretudo, no exercício de um poder subjetivante, isto é, que produz determinado tipo de sujeitos.

A leitura foucaultiana dessa escola moderna racionalizadora está inspirada no Panoptismo e sua máxima da onipresença do poder: ele está em todas as partes e vem de todas as partes. O poder se exerce sempre a partir de inúmeros pontos e, em uma simultaneidade de ensino e fazeres pedagógicos, “[...] a sala de aula forma um grande quadro único; com entradas múltiplas, sob o olhar cuidadosamente 'classificador' do professor” (Foucault, 1987, p. 135).

Como contraponto da onipresença do olhar vigilante do mestre sobre o aluno proposto pelo Panoptismo, pode-se situar o Ensino Universal de Jacotot que, fundamentado em sua Filosofia Panecástica com a máxima ‘Tudo está em tudo’, evoca o princípio da emancipação intelectual do discípulo: a filosofia de Jacotot afirma que aqueles dispositivos subjetivantes da escola moderna são incompatíveis com a emancipação intelectual.

Do panóptico à Panecástica: a emancipação intelectual no Ensino Universal de Jacotot

No modelo do Panóptico estudado por Foucault (1987), comparece o princípio da hierarquia e da superioridade de um mestre que está, em todo o tempo, racionalmente arquitetando, direcionando e conduzindo o aluno de forma passiva no processo, reinando a vigilância e o controle, com todos os corpos simultaneamente sendo adestrados. Ao contrário, o Ensino Universal de Jacotot (1832) evoca um mestre ignorante que subverte o mito da pedagogia e da “[...] parábola de um mundo dividido em espíritos sábios e espíritos ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e bobos” (Rancière, 2015, p. 20) e que potencializa a máxima de ensinar o que se ignora, “[...] onde o saber do ignorante e a ignorância do mestre, agindo, fazem a demonstração dos poderes da igualdade intelectual” (Rancière, 2015, p. 43).

Na contramão de uma superioridade, afirma a igualdade das inteligências como princípio de um processo que potencializa o aluno e o mestre; o mestre ignorante de Rancière-Jacotot é ignorante porque ignora (desconhece) o que o aluno aprende e porque ignora (desobedece) os dispositivos embrutecedores (disciplinadores) da razão explicadora na instituição escolar. Para isso, é necessário romper o círculo do embrutecimento, vencer-se ao que estão fazendo de nós mesmos, improvisar e falar, começar e terminar por si próprio.

Tratava-se de exercício essencial do Ensino Universal: aprender a falar sobre todos os assuntos, à queima-roupa, com um começo, um desenvolvimento e um fim. Aprender a improvisar era, antes de qualquer outra coisa, aprender a vencer a si próprio, a vencer esse orgulho que se disfarça de humildade para declarar sua incapacidade de falar diante de outrem - isso é, a recusa de submeter-se a seu julgamento. Era, em seguida, aprender a começar e a terminar, a fazer por si mesmo um todo, a aprisionar a língua em um círculo (Rancière, 2015, p. 68).

A máxima ‘tudo está em tudo’ contida no Ensino Universal refere-se ao ato de aprender algo e relacionar a esse saber todo o resto, partindo do princípio da igualdade das inteligências.

Se você cair na mão de um aluno da escola de direito de Paris, e se este aluno da escola de direito de Paris pede para você dar o nosso método, aplicado ao estudo da lei, comece com estes termos: Jovem! É necessário aprender algo e relacionar todo o resto, deste princípio: todos os homens têm uma inteligência igual (Jacotot, 1852, p. 8).

Se o panóptico de Bentham2 supõe uma hierarquia e desigualdade radical (um sobre todos e todos debaixo de um), o Ensino Universal supõe a horizontalidade de um mestre que cuida da aplicação da vontade de todos, mas que deixa livre a inteligência de cada um para que ela determine seu próprio caminho.

A partir da máxima proposta pelo Ensino Universal de Jacotot, Rancière (2015) critica as discussões limitadas à forma de ensinar que, sob o nome de discussões metodológicas, evitam as discussões em torno das condições políticas e os sentidos do ato de educar; dessa forma, não problematizam a lógica da desigualdade na educação, mesmo aqueles discursos considerados progressistas que dizem almejar a igualdade através das práticas educacionais, mas acabam legitimando a desigualdade da qual partem, levando, assim, os seres humanos ao seu embrutecimento. Há, em Jacotot e Rancière, uma denúncia do predomínio e da extensão a todo o corpo social de uma ‘anatomia política’ que, baseada no poder disciplinar, estende-se das instituições de reclusão, de forma difusa, múltipla e polivalente, atravessando a sociedade sem lacunas nem interrupção.

O ato de confrontar o poder disciplinar passa pela afirmação da emancipação intelectual. Ao defender que o emancipador “[...] não é alguém que vai ao encontro das pessoas para emancipá-las [...]”, pressupondo um processo de vontade individual, em que “[...] alguém quer passar” (Rancière, 2003 apud Vermeren, Cornu, & Benvenuto, 2003, p. 196), Rancière defende a emancipação proposta por Jacotot perpassando uma relação individual, uma vez que “[...] o argumento de Jacotot é que sempre é possível se emancipar sozinho; que, de fato, só nos emancipamos sozinhos”.

A relação do ignorante com o mestre emancipador é o que chamo de uma relação ‘individual’. Por certo, ela é ainda uma relação social, mas é uma relação que interrompe uma certa forma lógica social, uma certa forma de aplicação do funcionamento das inteligências [...]. Há um tipo de relações, que denomino individuais, que concernem a todos os indivíduos e que instauram uma relação igualitária (Rancière, 2003 apud Vermeren, Cornu, & Benvenuto, 2003, p. 197, grifo do autor).

Assim, afastado de um método para a conscientização social, Jacotot se dirige a indivíduos e afirma que a confiança ou fé na igualdade não é uma verdade epistemológica, mas um princípio político: trata-se de uma decisão puramente individual, impossível de ser institucionalizada. Raisky (2012) apresenta o contexto político que conduziu Jacotot ao exílio em Louvain: um revolucionário que, com o retorno ao poder do Império dos Bourbons na França, precisa deixar o país e encontra acolhida numa universidade estrangeira; é um momento em que os intelectuais de um modo geral desacreditam da eficácia do engajamento político, voltando-se para a “[...] base da sociedade: a família” (Raisky, 2012, p. 116).

Esse contexto do exílio o conduziu a um problema no ensino da língua e da literatura, uma vez que desconhecia a língua flamenga. Nessa aventura intelectual, o “[...] método do acaso” (Rancière, 2015, p. 25), praticado com sucesso pelos estudantes flamengos, revelava a potência do Ensino Universal de aprender algo e relacionar a esse saber todo o resto, partindo do princípio da igualdade das inteligências.

Raisky (2012) apresenta um paradoxo em relação à finalidade da pedagogia também presente na proposta de Jacotot: ao mesmo tempo que deve estar a serviço da emancipação intelectual, urge preparar os alunos para desempenhar um papel social e, também, para ocupar um espaço dentro da ordem econômica e política, condição existencial do ser humano que habita uma comunidade.

Esse paradoxo suscita várias questões: qual o impacto da emancipação intelectual de Jacotot no campo social? Como essa perspectiva comparece nos periódicos oitocentistas brasileiros? Ela ajudaria a pensar nos dilemas da educação brasileira contemporânea? De que forma? É possível estabelecer um diálogo entre as ideias de Rancière Jacotot e as de Paulo Freire?

Uma primeira resposta à questão inicial vem do próprio Rancière-Jacotot. Certo que “[...] se a emancipação intelectual não tem visada social, a emancipação social sempre funcionou, quanto a ela, a partir da emancipação intelectual”. Isso significa que “[...] a emancipação intelectual é vista como vetor de movimentos de emancipação política que rompe com uma lógica social, uma lógica de instituição” (Rancière, 2003, p. 199). Porém essa dimensão social não impede Rancière de estabelecer, nessa mesma entrevista (Rancière, 2003), claras diferenças entre Jacotot e os que, como Paulo Freire, defendem o caráter social e político da emancipação. Para Rancière, diferentemente da busca em Freire por “[...] organizar os pobres em coletividade [...]”, o pensamento de Jacotot não é um pensamento de ‘conscientização’ e se dirige a indivíduos (Vermeren, Cornu, & Benvenuto, 2003, p. 198), visando a um processo de emancipação estritamente intelectual, mesmo que, indiretamente, essa emancipação individual reflita ou ecoe nos movimentos sociais emancipatórios.

A emancipação intelectual de Jacotot no Brasil do século XIX

Quando e como foi a introdução das ideias de Jacotot no Brasil? Para responder a essa pergunta, na escrita da presente seção, a imprensa periódica oitocentista tornou-se uma fonte principal para analisar a circulação das ideias de Jacotot no Império brasileiro. O Ensino Universal de Jacotot, fundamentado em sua Filosofia Panecástica, foi introduzido no Brasil pela via da imprensa de periódicos com viés progressivista3, como A Sciência4. A ruptura que esse periódico propunha no campo da instrução, medicina e, consequentemente, na arena social, apresentava uma possibilidade de emancipação intelectual “[...] como vetor de movimentos de emancipação política que rompe com uma lógica social, uma lógica de instituição” (Rancière, 2003, p. 199).

Doutor Mure (1809-1858) foi um dos anunciadores da Filosofia Panecástica de Jacotot e um dos fundadores do periódico A Sciência, que encontrou seguidores no solo brasileiro. O Jornal do Commercio do Rio de Janeiro de 1840 registrou um convite para os interessados em conhecer essa filosofia proposta por Jacotot.

Quando morrem os homens ilustres que se conhece quanto valem. Assim aconteceu com Jacotot, que, depois de uma vida toda consagrada ao trabalho e à beneficência, acaba de morrer com admirável coragem e presença de espírito. ‘Sou o princípio da vontade na humanidade, disse-nos em seus últimos momentos; mas vós, que agora sois emancipados, podeis tudo o que eu podia, e deveis fazê-lo’. Animado por essas palavras, e achando-me encarregado pela Sociedade de Emancipação Intelectual de Paris de ajudar nesta corte os esforços dos amigos do ensino universal, rogo a todos aqueles que nele se interessam, e que até hoje não me são conhecidos, queiram vir entender-se comigo sobre os métodos que se deve lançar mão para conseguir-se a propagação dos princípios panecásticos, dirijam-se ao hotel da Europa (Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, 1840a, p. 4, grifo do autor).

Em matéria registrada no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, no ano de 1840, pode-se observar o paradoxo citado por Raisky (2012), no qual, em que pese a educação ter uma visada de emancipação intelectual, há também uma busca pela preparação de mão de obra para desempenhar um papel social, ocupar um espaço dentro da ordem econômica e política, adotando um viés tecnicista e restritivo de ensinar artes e ofícios técnicos em curto espaço de tempo, não para formar “[...] sábios, mas sim obreiros e executores” (Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, 1840b, p. 2). Dessa forma, há um reducionismo da proposta da emancipação intelectual afirmada por Jacotot a uma mera técnica a partir da introdução de conteúdos úteis ao desenvolvimento da organização industrial e das bases morais.

Assim, para o futuro cada uma das funções de nossa ordem social será preenchida por quem for capaz de desempenhá-la. Não teremos como hoje médicos que a natureza destinou para sapateiros, e pedreiros que poderiam ter sido Raphaeis. O benéfico método Jacotot, pelo qual qualquer ignorante pode sem custo ensinar aquele que não sabe, achará aqui sua mais bela aplicação (Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, 1840b, p. 2).

Outros periódicos oitocentistas demonstram que nem todas as propostas de emancipação intelectual de Jacotot circularam em periódicos brasileiros com uma possibilidade de desdobramento para a emancipação política e social. O desencantamento de Jacotot com a emancipação política e social descrita por Raisky (2012) que culminou em um projeto voltado para a família encontrou em empregadores progressivistas um saber acessível aos desiguais, “[...] confirmando, desta forma, a desigualdade presente, em nome da igualdade futura” (Rancière, 2015, p.13).

Ao estabelecer relações entre emancipação intelectual e social, o presente escrito visa trazer as rupturas presentes no pensamento pedagógico de Jacotot com a lógica institucionalizada da desigualdade das inteligências nos ritos da instrução escolarizada, a partir da atuação de alguns ‘homens do progresso’ que entenderam e adotaram sua proposta, sendo homens.

[...] que caminham, que não se preocupam com a classe social daquele que afirmou alguma coisa, mas vão conferir por si próprios se a coisa é verdadeira; viajantes que percorrem toda a Europa em busca de todos os procedimentos, métodos ou instituições, dignos de serem imitados; que, ao escutar falar de alguma experiência nova, aqui ou acolá, se deslocam, vão observar os fatos, buscam reproduzir as experiências; que não veem porque se passaria seis anos aprendendo algo, se está provado que se pode aprendê-lo em dois; que pensam, sobretudo, que saber não é nada em si e que fazer é tudo, que as ciências não são feitas para serem explicadas, mas para produzir descobertas novas e invenções úteis; que, portanto, ao escutar falar de invenções aproveitáveis, não se contentam em louvá-las ou em comentá-las, mas oferecem, se possível, sua fábrica ou sua terra, suas capitais ou sua devoção para ‘testá-la’ (Rancière, 2015, p. 152, grifo do autor).

A ótica dos ‘homens do progresso’

O periódico oitocentista brasileiro O Auxiliador da Indústria Nacional: ou Coleção de Memórias e Notícias Interessantes (RJ) circulou matérias sobre a emancipação intelectual de Jacotot. Dentre as matérias do ano de 1839, a contida no sétimo volume apresenta uma notícia sobre a história do químico e tintureiro Jean Antoine Beauvisage (1876-1836) na coluna de ‘homens úteis’. Rancière apresentou esse tintureiro ao lado dos ‘homens de progresso’.

Em Paris, um fabricante mais modesto, o tintureiro Beauvisage, ouviu falar do método. Operário, fez-se sozinho e quis estender seus negócios, fundando uma nova fábrica da região de Somme. Mas ele não queria se separar de seus irmãos de origem. Republicano e membro da Maçonaria, sonhou transformar seus operários em associados (Rancière, 2015, p. 154).

Segundo consta na matéria do periódico O Auxiliador da Indústria Nacional (1839), Beauvisage nasceu em Paris em 1876 e com a idade de 18 anos tornou-se oficial tintureiro, sabendo apenas ler, escrever e contar. A matéria descreve a forma como o jovem operário, ‘obreiro inteligente’, conseguiu em Reims “[...] embelezar alguns tecidos dessa célebre fábrica, sempre meditando melhoramentos ou aperfeiçoamentos” (O Auxiliador da Indústria Nacional, 1839, p. 461).

A partir de experimentos nas fábricas, o químico e tintureiro conseguiu ganhar prêmios, montou seu estabelecimento e, em 1823, na volta de uma viagem que fez à Inglaterra, aplicou aperfeiçoamentos “[...] que mais tinha adivinhado do que aprendido entre esses habilidosos vizinhos da França” (O Auxiliador da Indústria Nacional, 1839, p. 463).

Com o auxílio de seus três filhos e de seu irmão em todos os processos, criou, em 1834, a tinturaria na aldeia de Daours, seguindo carreira de “[...] obreiro e de chefe de indústria [...]”, sendo descrito como “[...] um pai para seus numerosos operários”, já que os tratavam “com semelhantes sentimentos com a bondade natural e o espírito de equidade que o caracterizavam” (O Auxiliador da Indústria Nacional, 1839, p. 464).

A partir de seu desejo de aperfeiçoamento e melhoramento, acamado da doença de cólera e conhecedor da classe dos operários, já que “[...] tinha visto de perto a ignorância, a devassidão, a intemperança de tantas criaturas humanas abandonadas sem guia aos impulsos desordenados; tinha visto a profunda miséria e as lágrimas das pobres mães e de seus filhinhos, abandonados durante os grosseiros regozijos de um pais desvairado” (O Auxiliador da Indústria Nacional, 1839, p. 464), fez uma promessa de alguma boa obra entre seus operários.

Recuperado, procurou auxílio de seu amigo Ratier para cumprir a promessa de “[...] elevar o espírito de seus operários por meio da instrução e distraí-los com auxílio da ciência” (O Auxiliador da Indústria Nacional, 1839, p. 464). A partir do Ensino Universal de Jacotot, instruíram aqueles operários nos cursos de leitura, de escrita, do cálculo, de francês, alemão, música vocal, equiparando vastas salas e organizando ginásios que eles recreavam.

M. Beauvisage multiplicava as rezas, as advertências, os sábios conselhos; animava economia com pequenos prêmios, explicava o sistema das caixas econômicas e resolvia frequentes vezes alguns ouvintes a entrarem para elas por meio de diminutos donativos feitos a propósito; conferia prêmios, que o magistrado de Paris M. Rambuteau vinha dar com sagaz solenidade (O Auxiliador da indústria nacional, 1839, p. 465).

Ao responder sobre o retorno que tal filantropia causava a Beauvisage, ele explicitou o uso da proposta de emancipação intelectual jacotista a serviço de um melhor rendimento dos operários que permaneciam trabalhando nas oficinas até na segunda-feira do feriado do entrudo5 em momentos de participação em agitações em praça pública.

Eis o que ganho: em lugar de operários negligentes, malgeitosos ou malévolos, consegui ter colaboradores zelosos, inteligentes e conscienciosos. Ganhei o ter sempre o pessoal das minhas oficinas no seu estado completo, a despeito das segundas feiras, do entrudo, e das agitações da praça pública (O Auxiliador da Indústria Nacional, 1839, p. 466).

Tem-se aqui um exemplo de apropriação claramente conservadora do Ensino Universal de Jacotot. Com efeito, a proposta de emancipação intelectual foi apresentada nessa matéria sob o prisma da produtividade da indústria, já que “[...] utilizando-os nos trabalhos da indústria, instrui-los-emos em seus métodos” (Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, 1840b, p. 2). A adequação da proposta de Jacotot para um quadriculamento e melhor rendimento do trabalhador em seus postos de trabalho foi uma apropriação politicamente elitista e conservadora de sua proposta emancipatória.

Jacotot foi incorporado pela ótica de Beauvisage a partir da prática de emulação, a serviço do aperfeiçoamento dos trabalhadores em um processo de formação para a racionalização e economia de recursos, já que os “[...] empregados com prudência e justiça, tornam insensivelmente todo o mundo laborioso, diligente, e rendem em fim mais do que custam” (O Auxiliador da Indústria Nacional, 1839, p. 466). A máxima dos homens de progresso era aperfeiçoar a instrução que era “[...] antes de tudo o aperfeiçoamento das coleiras, ou antes, o aperfeiçoamento da representação da utilidade das coleiras” (Rancière, 2015, p. 168).

O final dessa história é apresentado por Rancière:

Esse sonho chocou-se, infelizmente, com uma realidade menos inspiradora. Em sua fábrica, como em todas as outras, os operários se invejavam entre si e só se punham de acordo quando se tratava e ir contra o patrão. Ele queria lhes fornecer uma instrução que destruísse neles o velho homem e permitisse a realização de seu ideal. Para tanto, se dirigiu aos irmãos Ratier, discípulos fervorosos do método, que pregavam a emancipação todos os domingos, na feira de tecidos (Rancière, 2015, p. 154).

Se a emancipação intelectual proposta por Jacotot pode ser vista como vetor de movimentos de emancipação política que rompem com uma lógica social e uma lógica de instituição, as fontes periódicas oitocentistas brasileiras revelam que tal possibilidade não é uma via de mão única ou pelo menos não foi efetivada aqui no Brasil. O paradoxo das apropriações de Jacotot comparece em uma mesma matéria que apresenta as tentativas de emancipação limitadas à capacidade intelectual pela via progressivista da racionalização dos ofícios e dos saberes dos trabalhadores pelos homens do progresso; tudo isso na contramão de uma ruptura social anunciada pela tentativa de florescimento da primeira colônia societária no Brasil sob os moldes do falanstério, possibilitando, além da emancipação intelectual, uma emancipação social.

Na matéria assinada pelo Dr. Mure no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro (1840), observa-se uma busca pragmática pela preparação de mão de obra “[...] não para formar sábios, mas sim obreiros e executores” (Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, 1840b, p. 2), juntamente com a possibilidade de aprovar um falanstério no Brasil como forma de organização societária,

Ah! Possamos em breve ver erguer-se e florescer a primeira colônia societária! a fama da venturosa existência que aí vivermos exercitará todas as atenções, e o contágio de nosso exemplo chamará em breve em redor de nós inúmeros imitadores. As artes e a poesia, frutos da ventura social, brotarão em breve no meio de nós; a associação tornará fáceis todas as grandes empresas, extinguirá toda a discórdia e dirigirá para a produção as forças que hoje se destroem pelo choque dos interesses (Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, 1840b, p. 2).

Nesse sentido, Crislaine Cruz (2018) apresenta as tentativas do doutor Mure, um dos anunciadores da Filosofia Panecástica de Jacotot e um dos fundadores do periódico A Sciência, de criar um falanstério no Brasil da seguinte forma

Mure chegou ao Brasil carregado de muitos sonhos e planos. Primeiro tinha o intuito de criar um falanstério nos moldes do socialismo utópico proposto por Charles Fourier e, por isso conseguiu difundir no país, ideais de cunho social e igualitário, sendo citado em trabalhos que tratam sobre os primórdios do socialismo no Brasil (Gallo, 2013; Gutler, 1994). Segundo, Mure também propagou a homeopatia no Brasil, sendo considerado na historiografia como um de seus maiores precursores no país (Sollero, et al. 2004; Silveira, 1997). Esse mesmo Benoît Mure foi divulgador das ideias acasteladas por Jean-Joseph Jacotot em território brasileiro; teria aplicado, inclusive, o Método de Jacotot no ensino da homeopatia (Instituto Panecástico..., 2016, p. 1). Por isso, nossa atenção se volta para a figura cativante e entusiasta desse intelectual (Cruz, 2018, p. 17).

Embora comparecesse como possibilidade uma nova organização societária, observa-se, nessas fontes, uma apropriação de Jacotot por parte dos progressivistas, fundamentada em uma emancipação individual esvaída de qualquer repercussão política ou social; colocada, ao contrário, a serviço de uma razão técnica: aprimoramentos profissionais, lucros e melhor exercício do ofício a partir de maior envolvimento em número de horas trabalhadas, em uma total dependência do operário pelo homem do progresso.

O progressivismo é a forma moderna desse poder, purificada de toda mistura com as formas materiais de autoridade tradicional: os progressivistas não têm outro poder senão a ignorância, a incapacidade do povo, que embasa seu sacerdócio. Como, sem abrir o abismo sob seus pés, diriam aos homens do povo que não precisam recorrer a eles para serem homens livres e instruídos acerca de tudo que convém à sua dignidade? (Rancière, 2015, p. 178).

Assim, na melhor das hipóteses, a emancipação intelectual de Jacotot compareceu em alguns periódicos brasileiros no século XIX apresentando o paradoxo de uma proposta de emancipação intelectual sob ritos de uma instrução dirigida por homens do progresso.

O Ensino Universal que atravessa a República e chega até nós

A emancipação intelectual proposta por Jacotot adentrou os periódicos que circularam a República brasileira. Além do anúncio da obra Ensino universal para venda aos leitores da Gazeta da Tarde (1890, p. 3), vários jornais noticiaram essa obra de Jacotot.

A Revista Pedagógica do Rio de Janeiro, editada no ano de 1890, conceituou, na matéria intitulada ‘O ensino da leitura analítica’, o pressuposto da Panecástica de Jacotot de que ‘tudo está em tudo’ para justificar a perspectiva do ensino da leitura e escrita partindo da totalidade da sentença, e não de letras e sons isolados.

A forma paradoxal, que é a enunciação dos seus princípios, deu o ilustre Jacotot, não pode prejudicar a verdade, que encerram. Tout est dans tout tem uma interpretação moderna, que este livro justifica. A leitura, isto é, a compreensão e o uso da linguagem escrita, tem por ponto de partida, não a letra, não a palavra, com que a criança não fala, mas a sentença, veículo o seu e do alheio pensamento (Revista Pedagógica, 1890, p. 79).

A defesa pela máxima do ensino analítico em contraposição ao método sintético de ensino de leitura e de escrita foi veiculada em diversas fontes associando-a à máxima de Jacotot. Há uma preferência em algumas matérias pelos programas para a primeira infância sob a base do ensino analítico, “[...] como guia seguro para o professor ainda sem ideias definidas sobre o ensino”. “Nenhum país fez ainda programa assim? Pois façamo-los para os pequeninos, aplicando-lhes a eles o que Jacotot já há mais de cem anos aconselhara: que, em matéria de educação, tudo está em tudo” (O Dia, 1914, p. 1).

Segundo Aguayo (1959), Jacotot seria o criador do método analítico para o ensino da leitura através de seu Ensino Universal apresentado na obra Língua materna, publicada em 1822, já que partia do princípio da totalidade de um texto como pontapé inicial no processo de alfabetização, rumo à matriz de um método global. Para além de marchas metodológicas de matrizes sintéticas ou analíticas, a filosofia de Jacotot, porém, encontrava no princípio da igualdade das inteligências o seu axioma fundamental.

Ao criticar métodos que alteravam os ‘meios escolhidos para tornar sábio o ignorante: métodos duros ou suaves, tradicionais ou modernos, passivos ou ativos, mas cujo rendimento se pode comparar’ (Rancière, 2015, p. 32), sem partir da concepção de igualdade entre todos os homens, Jacotot denunciou uma concepção de uma criança passiva, civilizada e, em suas palavras, embrutecida (Albuquerque, 2019, p. 170, grifo do autor).

A filosofia Panecástica encontrou resistência em solo brasileiro. Nem todas as matérias apresentadas nos periódicos faziam a defesa da proposta de Jacotot. Assim como já tivera sido tratado nos periódicos oitocentistas como aforismo, sua máxima ‘tudo está em tudo’ apareceu desacreditada, bem como sua proposição de ensinar aquilo que se desconhece.

té então acreditava-se geralmente que para exercer as funções do magistério não se necessitava de nenhum preparo especial, indo mesmo alguns ao extremo de adotar o paradoxal aforismo de Jacotot - que todo homem pode ensinar, até mesmo aquilo que não sabe (Gazeta de Petrópolis, 1898, p. 2).

Essa crítica está direcionada ao princípio de Jacotot de que ‘pode-se ensinar aquilo que se desconhece’, a partir do princípio de aprender uma coisa e a ela referir todo o resto.

Proclamou então o Sr. Jacotot esta máxima - ‘quem quer pode’ -, como meio de suceder em todo o trabalho intelectual, máxima esta posta em prática por todos aqueles que querem neste mundo efetuar coisas grandes; máxima que, quando faz as vezes de uma mola escondida, fez que, em todos os casos, inspira aos alunos uma justa confiança em si, e os anima para perseverar afim de colherem o fructo de seus trabalhos. Do sucesso que sempre tinha coroado as suas tentativas, concluiu o Sr. Jacotot - ‘que Deus criou a alma humana capaz de instruir-se a si mesma, e sem o concurso de mestres e explicadores’. Enunciou ainda o Sr. Jacotot outros princípios: ‘Aprender ou saber alguma coisa, e a ela referir todo o resto’. - ‘Tudo se acha em qualquer coisa’. - ‘Todas as Inteligências são iguais’. - ‘Pode-se ensinar aquilo que se ignora’.- Isto quer dizer simplesmente que quem quiser, seja quem for, pode tendo confiança em si e vontade, verificar se uma outra pessoa sabe o que tem aprendido (A Sciencia, 1848, grifo do autor).

Há uma permanência nas apropriações de Jacotot de um princípio que, há quase duzentos anos, extrapola os limites de imposição do saber em doses fragmentadas da parte de um mestre transmissor de conhecimentos, que já fora propagandeado no Império e que aparece em periódicos no início da República anunciado como há “[...] mais de cem anos aconselhara: que, em matéria de educação, tudo está em tudo” (O Dia, 1914, p. 1).

Considerações Finais

As ideias do Ensino Universal e da Filosofia Panecástica de Jacotot ressoam como fundo, por exemplo, na pedagogia da dialogicidade de Paulo Freire. A subversão da lógica transmissora de saberes de uma educação bancária e a abertura para a possibilidade de um ‘tudo está em tudo’ que permita explorar o caráter relacional de qualquer sujeito abrem as portas para a afirmação do princípio da igualdade das inteligências. O próprio Jacques Rancière coloca Paulo Freire em certo modo do mesmo lado de Jacotot, os quais são confrontados diante do lema positivista pedagógico de ‘Ordem e Progresso’, os dois na busca de interromper a pretensa harmonia entre a ordem do saber e a ordem social (Rancière, 2003). Contudo também manifesta as claras diferenças: nada mais afastado de Jacotot do que um método para a ‘conscientização’ social como o de Paulo Freire. Jacotot afirma que a igualdade é uma decisão puramente individual, impossível de ser institucionalizada.

Isso significa que, na sua perspectiva crítica da ordem política e social, Paulo Freire e Joseph Jacotot compartilhavam certos princípios e sentidos e, principalmente, eram muito rigorosos com o impacto político na constituição subjetiva dos processos educativos dominantes nas ordens sociais em seus respectivos contextos. Porém, quanto a suas perspectivas especificamente pedagógicas, distâncias muito grandes os separavam, notadamente, no alcance emancipatório da prática educacional e em ideias como a conscientização, pilar da perspectiva freireana, que confronta a ideia jacototiana de que o trabalho emancipador recai apenas sobre a vontade do outro e não sobre sua inteligência, e que ele apenas pode ser realizado de indivíduo a indivíduo (cf. Rancière, 2003; Kohan, 2019).

Eis, talvez, o ponto de inflexão e que tem possibilitado apropriações conservadoras do Ensino Universal de Jacotot no Brasil: ele não afirma nenhum tipo de conexão ou relação específica entre as práticas educacionais e a (des)ordem social; ao contrário, a emancipação não pode ser institucionalizada e, mais ainda, o ensino universal só pode ser transmitido em forma individual, quase que exigindo a suspensão de qualquer ordem social. Claro que, como o próprio Rancière afirma, embora a emancipação intelectual não se dê no campo social, uma emancipação social que se preze exige uma emancipação individual. Nesse sentido, mesmo com toda a distância que há entre eles, a emancipação proposta por Jacotot aproxima-se em certa medida do utopismo de Paulo Freire: “[...] no processo de emancipação intelectual como vetor de movimentos de emancipação política que rompem com uma lógica social, uma lógica de instituição” (Vermeren, Cornu, & Benvenuto, 2003, p. 199). Essa aproximação entre Freire e Jacotot diz também respeito a uma certa relação com o método: embora ambos afirmem um método, ele está subordinado aos sentidos, e o método acaba sendo o de cada quem na sua forma específica de apropriação metódica. Também comporta uma forma de afirmar as figuras do estrangeiro e do errante a partir das quais eles têm pensado e afirmado suas vidas pedagógicas (Kohan, 2019).

As apropriações da Filosofia Panecástica de Jacotot no Brasil compareceram em nossos estudos em inúmeras fontes históricas como jornais, revistas pedagógicas e teses médicas. Há de se considerar que as leituras conservadoras de J. Jacotot o instrumentalizam e, nesse sentido, o empobrecem: o criador do Ensino Universal não defende ipso facto a ignorância apenas como ausência de saber, mas, sobretudo, como princípio político que desconhece, desobedece, recusa - e em tal sentido ignora - a desigualdade em que se baseia toda instituição pedagógica. Assim, ao tomar pela letra a afirmação de que qualquer professor pode ensinar aquilo que não sabe, tira-se a força política da ignorância sustentada pela filosofia Panecástica. Uma apropriação liberal e conservadora poderia também ser feita pelos atuais defensores de propostas como ‘Escola sem Partido’ que odeiam a educação pública e visam ao seu desmonte.

Contudo, se alguns poderiam tirar proveito do Ensino Universal, são justamente os pobres, os que não apenas não podem pagar pela sua educação, como também têm ouvido, durante toda a sua vida, acerca de sua suposta incapacidade. A partir do Ensino Universal, eles se livrariam de duas problemáticas ao mesmo tempo: da privatização da sua educação e do preconceito sobre sua capacidade. Já E. J. Ackermann, outro dos introdutores de Jacotot no Brasil, destacava que o Ensino Universal não só podia reduzir o tempo de instrução, mas também tinha um notável valor político por ser o método dos pobres, “[...] o que há de gravar o nome de Jacotot no coração de todos os verdadeiros amigos da humanidade” (A Sciencia, 1848, p. 195).

Eis que chegamos ao cerne da questão e, sensíveis a uma pedagogia da pergunta (Freire & Faundez, 2011), preferimos terminar o presente trabalho com algumas perguntas que se desprendem das análises aqui realizadas sobre a apropriação das ideias de Jacotot no Brasil: quem são os verdadeiros amigos da humanidade? Ou, em outras palavras, qual humanidade almeja-se quando se afirma uma prática ou política educacional ou se defende ou ataca uma teoria educacional como o Ensino Universal? Ou de qual humanidade se quer ser amigo? De uma humanidade racista, colonizadora, machista, misógina, excludente, assassina, castradora, que cuida do capital mais que da vida como a que tem tomado conta do Brasil e hoje se mostra mais ameaçadora do que nunca no atual cenário político brasileiro? Ou de uma humanidade em que, para dizê-lo com palavras de Paulo Freire, seja menos difícil amar? Amigo de qual humanidade importa fazer amigo Joseph Jacotot e o seu Ensino Universal?

Referências

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1A expressão é de Rancière e destina-se aos homens que traduziram “[...] igualdade por progresso e emancipação dos pais de famílias pobres por instrução do povo” (Rancière, 2015, p. 161), os quais conduziram o processo ao embrutecimento. Recusamos as implicações sexistas da expressão.

2Nas notas de seu capítulo ‘Panoptismo’, Foucault referencia as pesquisas históricas realizadas em arquivos que possibilitaram conhecer o modelo criado por J. Bentham, como Panopticon versus New South Wales. Works, ed. Bowring. t. IV, p. 177. “Se Bentham deu destaque ao exemplo da penitenciária, é porque esta tem funções múltiplas para exercer (vigilância, controle automático, confinamento, solidão, trabalho forçado, instrução)” (Foucault, 1987, p. 257).

3Jacotot dirigiu críticas aos progressivistas, que estavam preocupados com os ‘meios’ para tornar o ensino alegre, rápido e aprazível sem, porém, tocar na estrutura de uma escola segregadora.

4O periódico A Sciencia circulou durante os anos de 1847 e 1848, com o intuito de divulgar a homeopatia à elite intelectual do Rio de Janeiro, capital do Império. A Sciencia tinha por objetivo apresentar e defender a homeopatia perante a elite brasileira, pois, de acordo com os autores, esta moderna forma de medicação resumia toda a inovação científica. Embasada na ciência, na razão e na religião, foi impressa em julho de 1847 a primeira edição do periódico, tornando-se claramente perceptível a compreensão idealizada e fabulosa que os médicos homeopatas brasileiros tinham de si, como pesquisadores desbravadores da ‘verdadeira’ ciência médica. Em sua primeira edição, impressa em julho de 1847, o título na capa do periódico era A Sciencia, seguido pelo subtítulo Revista Synthetica dos Conhecimentos Humanos, contudo, nas 24 edições impressas posteriormente, os autores utilizam como nome para a revista apenas Sciencia (Albuquerque, 2019, p. 161).

5O Entrudo, do latim introitu (introdução), é sinônimo de carnaval e, no Brasil, também designa uma antiga brincadeira carnavalesca, trazida pelos colonizadores portugueses, no século XVI. [...] O Entrudo acontecia nos três dias anteriores à Quarta-feira de Cinzas. Fonte: http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=262%3Aentrudo&catid=40%3Aletra-e&Itemid=1.

9Rodadas de avaliação: R1: três convites; duas avaliações recebidas

10Como citar este artigo: Albuquerque, S. L., & Kohan, W. O. Joseph Jacotot no Brasil: ecos pedagógicos de um ressoar político. Revista Brasileira de História da Educação, 23. DOI: https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e281

11Financiamento: A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e do Programa Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

12Licenciamento: Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Recebido: 23 de Junho de 2022; Aceito: 16 de Janeiro de 2023; Publicado: 09 de Junho de 2023

*Autora para correspondência. E-mail: suialopes@hotmail.com.

Suzana Lopes de Albuquerque: Graduada em Pedagogia pela UFG (2006), Mestre em Educação pela UFAL (2013), Doutora em Educação pela USP (2019) e Pós Doutora em Educação pela UERJ (2022). Professora da área de Educação no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás, no câmpus Goiânia Oeste e docente no Programa de Mestrado em Educação do IFG no câmpus Goiânia. É líder do Grupo de Estudos e Pesquisas Panecástica - Homem, Trabalho e Educação Profissional Tecnológica. E-mail: suialopes@hotmail.com https://orcid.org/0000-0002-2001-5942

Walter Omar Kohan: professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Pesquisador 1C do CNPq e Cientista de Nosso Estado (FAPERJ). Pós-doutor pelas Universidades de Paris 8 (Francia) e British Columbia (Canada). Seus trabalhos estão publicados em castelhano, italiano, inglês, português, francês, húngaro, russo e finlandês. Livros recentes em português: Uma viagem de sonhos impossíveis (Autêntica, 2023); Paulo Freire: um menino de 100 anos (NEFI, 2021), Paulo Freire, mais do que nunca (Vestígio, 2019). E-mail: wokohan@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-2263-9732

Editor-associado responsável: Raquel Discini de Campos (UFU) E-mail: raqueldiscini@uol.com.br https://orcid.org/0000-0001-5031-3054

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