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Revista Brasileira de História da Educação

versión impresa ISSN 1519-5902versión On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.23  Maringá  2023  Epub 12-Jun-2023

https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e282 

Artigo Original

A influência, a circulação e a reinvenção do pensamento de Paulo Freire na Itália

The influence, circulation and reinvention of Paulo Freire’s thought in Italy

La influencia, la circulación y la reinvención del pensamiento de Paulo Freire en Italia

1Istituto Universitario don Giorgio Pratesi, Soverato, Itália.


Resumo:

O artigo aprofunda a circulação do pensamento de Paulo Freire na Itália, a partir de uma metodologia bibliográfica baseada na obra de Paulo Freire e de seus estudiosos italianos. Em particular, o objetivo é explorar as relações e os meios que tornaram possível a introdução da pedagogia freiriana na Itália; os contextos com os quais dialogou de maneira mais fecunda; as configurações principais que assumiu sua reinvenção; as práticas e as análises que continua promovendo; os autores que contribuiram, de maneira mais importante, para a sua difusão. Os resultados da pesquisa permitem identificar as continuidades e as mudanças fundamentais que caracterizaram os cinquenta anos transcorridos da primeira publicação da Pedagogia degli Oppressi na Itália em 1971, assim como as direções de estudo mais inovadoras e férteis que se registram na atualidade.

Palavras-chave: Paulo Freire; Itália; pedagogia popular; reinvenção

Abstract:

The paper deepens the circulation of Paulo Freire’s thought in Italy, from a bibliographic methodology based on the work of Paulo Freire and his Italian scholars. Particularly, it aims to explore the relationships and means that made possible the introduction of Freirian pedagogy in Italy; the contexts with which it dialogued more fruitfully; the main configurations that its reinvention assumed; the practices and analyzes it continues to promote; the authors who contributed the most to its dissemination. The research results allow identifying the continuities and fundamental changes that characterized the fifty years that elapsed since the first publication of the Pedagogia degli oppressi in Italy in 1971, as well as the most innovative and fertile directions of study registered today.

Keywords: Paulo Freire; Italy; popular pedagogy; reinvention

Resumen:

El artículo profundiza la circulación del pensamiento de Paulo Freire en Italia, a partir de una metodología bibliográfica basada en la obra de Paulo Freire y sus estudiosos italianos. En particular, el objetivo es explorar las relaciones y los medios que hicieron posible la introducción de la pedagogía freiriana en Italia; los contextos con los que dialogó más fructíferamente; las principales configuraciones que asumió su reinvención; las prácticas y las análisis que continúa promoviendo; los autores que más contribuyeron a su difusión. Los resultados de la investigación permiten identificar las continuidades y los cambios fundamentales que caracterizaron los cincuenta años transcurridos desde la primera publicación de Pedagogia degli Oppressi en Italia en 1971, así como las direcciones de estudio más innovadoras y fértiles que se registradan hoy.

Palabras clave: Paulo Freire; Italia; pedagogía popular; reinvención

Introdução

Este artigo visa aprofundar a influência do pensamento de Paulo Freire na Itália. Seria árduo mencionar todas as educadoras e todos os educadores que têm se inspirado no grande intelectual brasileiro. Com base em uma abordagem bibliográfica, focada no exame qualitativo das suas obras e da literatura secundária produzida por alguns estudiosos da sua pedagogia, me proponho um objetivo mais circunscrito: ou seja, traçar algumas linhas gerais com respeito às relações e aos meios que tornaram possível a introdução da educação popular de matriz freiriana na Itália; aos contextos com os quais dialogou de maneira mais fecunda; às configurações principais que assumiu sua reinvenção; às práticas e às pesquisas que continua promovendo. Procurarei também identificar as continuidades e as mudanças fundamentais que caracterizaram os cinquenta anos que transcorreram da primeira publicação da Pedagogia degli Oppressi na Itália.

O diálogo com a Educação Popular italiana

No contexto italiano o pensamento freiriano encontrou, desde os anos 70, alguns interlocutores naturais, como os educadores Danilo Dolci1, Dom Lorenzo Milani2, Aldo Capitini3 e, em certa medida, também Ada Gobetti4. Com suas experiências político-pedagógicas, eles constituem as principais referências da Educação Popular italiana, que floresceu na segunda metade do século passado. Paulo Freire encontrou pessoalmente Danilo Dolci, contudo esse acontecimento por si só não pode explicar as extraordinárias assonâncias que conectam o autor a este e aos outros educadores acima mencionados, as quais criaram um clima ideal para que a pedagogia freiriana não somente fosse acolhida sem perder sua radicalidade, mas também pudesse fortalecer correntes autóctones, proporcionando contribuições práticas e sobretudo teóricas de primária importância. Vou me deter brevemente sobre algumas dessas afinidades.

Como primeiro e fundamental elemento, é importante assinalar a ligação entre educação e política. De fato, embora foi evidenciada em vários momentos da história da educação por diferentes autores e a partir de perspectivas distintas, Paulo Freire a tematizou com especial profundidade ao afirmar que cada ato educativo é um ato político e cada ato político é um ato educativo; e, portanto, a neutralidade é impossível. Os fautores da Educação Popular italiana partilham essa consciência. Podemos considerar, por exemplo, as palavras do testamento espiritual de Ada Gobetti: “Eu odeio todas as formas de neutralidade. Penso que devemos ter uma idéia e lutar por ela, não impessoalmente, mas com toda a paixão mais viva”. Por outro lado, Lettera a una professoressa (Carta a uma professora), livro escrito coletivamente pela escola de Barbiana e publicado em 1967, critica duramente a suposta imparcialidade dos agentes da educação, que acaba por confirmar e reproduzir as desigualdades sociais no interior de uma instituição escolar seletiva, excludente e a serviço das classes dominantes. Portanto, a Educação Popular italiana assume de modo resoluto a perspectiva dos oprimidos e se compromete junto com eles na mudança da sociedade.

Em segundo lugar, vale frisar a exigência de uma conexão profunda entre teoria e prática, que é traçada por toda a obra de Paulo Freire e acomuna o pensador brasileiro aos educadores populares italianos. Dom Lorenzo Milani tinha receio de sistematizar métodos, programas e instrumentos didáticos (Gesualdi, 2016), assim como se identificava totalmente com a práxis educativa na escola popular que tinha fundado em Barbiana em 1954, a qual chegou a definir como “a pupila direita do meu olho direito”. Na Sicilia Ocidental Danilo Dolci foi fomentador de muitas iniciativas político-educativas inspiradas na não violência, a ponto de partilhar, junto com Aldo Capitini, o título de “Gandhi italiano”. Dentre outras, como exemplo, podemos citar a greve ao revés de 1956, baseada no pressuposto de que, se os trabalhadores devem fazer greve para ter condições mais decentes, os desempregados, ao contrário, devem trabalhar.

Em terceiro lugar, é essencial a espiritualidade voltada à libertação, que marcou a trajetória de Paulo Freire e que foi própria, por exemplo, de Aldo Capitini - autor que buscou, em sua prática e em seus escritos, uma religião não institucional, fundada no ideal da infinita abertura ao tu-todos (Capitini, 2011). Até Dom Lorenzo Milani, que, oriundo de uma família de intelectuais leigos, se converteu ao cristianismo e escolheu o sacerdócio, manifestou sempre - também publicamente - uma obediência crítica para com a Igreja. A respeito desse assunto, pode-se considerar o conjunto de textos L’obbedienza non è più una virtù [A obediência não é mais uma virtude], que impulsionou a definição legislativa do direito à objeção de consciência ao serviço militar.

Um quarto aspeto diz respeito à palavra, que ocupa um espaço fundamental na pedagogia de Paulo Freire a ponto de coincidir com a própria existência humana plena e digna. Assim, a cultura do silêncio revela a negação ontológica perpetrada pela opressão, antes de tudo a opressão colonial, e indica uma situação em que as melhores energias dos homens e das mulheres são reprimidas e sacrificadas (Freire, 1967). Aprender a ler e a escrever, portanto, significa compreender o mundo e participar da sua transformação. Da mesma maneira, para Dom Lorenzo Milani, a escola popular é o lugar onde os pobres se apropriam da palavra - uma palavra autêntica porque se enraíza na sua realidade social e altruísta porque promove interesses coletivos. Nessa ótica, “falar” é um exercício de cidadania e soberania (Scuola Di Barbiana, 1967). A palavra é central também para Danilo Dolci, seja do ponto de vista metodológico, seja teórico. Resgatando a célebre metáfora socrática, ele ideou as oficinas de maiêutica recíproca5, que praticava com várias categorias de pessoas - especialmente com adultos camponeses semianalfabetos -, nas quais cada participante com suas contribuições passa a ser coautor da aprendizagem do grupo todo. Assim, a comunicação expressa a dinâmica da educação e da própria vida, que é um processo dialógico e pluridirecional (Dolci, 2011).

Finalmente, Paulo Freire considerava a coerência uma das virtudes do educador e encarnou, com a sua vida, os valores que professava. Similarmente aconteceu com os educadores populares italianos. A experiência do antifascismo teve uma influência importante na formação dessa atitude: Ada Gobetti aderiu à luta de libertação (Gobetti, 2014), foi vice-prefeita do primeiro conselho municipal democrático de Torino e em seguida continuou a defender sempre a necessidade de uma escola enraizada nos ideais da Resistência. Aldo Capitini recusou se inscrever no partido fascista; por causa da sua fé política, perdeu seu emprego e foi encarcerado em duas ocasiões. Também Danilo Dolci foi detido por não ter se arrolado na República de Saló6. Enquanto Dom Lorenzo Milani, por sua origem hebreia, correu o risco de ser perseguido pelo fascismo, que repudiou ao longo da vida toda, tanto que na entrada da escola de Barbiana colocou um cartaz com a escrita inglês “I care”, que considerava o contrário do lema fascista “Me ne frego” (não me importa, não estou nem aí). Em seguida também assumiram coerentemente as consequências de suas opções. Alguns escritos de Aldo Capitini e Dom Lorenzo Milani foram banidos pela Igreja, em particular, respectivamente, Discuto la religione di Pio XII [Discuto a religião de Pio XII] de 1957 e Esperienze pastorali [Experiências pastorais] de 1958. Dom Lorenzo Milani e Danilo Dolci foram processados e condenados, sendo que seu compromisso pacifista e antimáfia entrava em choque com a realidade do tempo7.

Nessas resumidas contextualizações vale também salientar o movimento de 68, que questionou e alterou profundamente a educação e a sociedade italianas; e o movimento anti-institucional liderado por Franco Basaglia8 que se orientou especialmente contra os manicômios, marcando uma mudança significativa na representação social e no atendimento das pessoas com sofrimento psíquico. A difusão das primeiras obras de Paulo Freire na Itália, desse modo, se realizou em um contexto que estava sendo profundamente marcado por reflexões, experiências e movimentos problematizadores e transformativos. Ao interagir com eles, graças à sua fundamentação teórica e à exemplaridade de seu autor, o pensamento freiriano contribuiu para gerar uma tradição pedagógica alternativa, que se situa fora da academia ou, de forma geral, adota uma postura crítica diante das instituições. A revista Educazione Aperta, até 2015 chamada Educazione Democratica, fundada por Antonio Vigilante e atualmente dirigida por Mariateresa Muraca e Paolo Vittoria, identifica-se com essa tradição. Aliás, constitui um dos principais espaços que assumiram a tarefa de alimentá-la, reinventá-la e mostrar sua relevância mesmo em uma época caracterizada por uma menor incidência de forças político-educativas que propõem uma mudança radical na sociedade.

Outras convergências: a luta pelas 150 horas

O próprio Paulo Freire em seus escritos faz referência à vitalidade que caracterizava o clima social e cultural italiano dos anos 70. Particularmente em Pedagogia da Esperança, nos informa (Freire, 1997) das modalidades por meio das quais entrou em contato com esse contexto e que iluminam outras dimensões da sua influência na Itália. Conta que na sua casa de Genebra recebeu, para além de estudantes, vários grupos de operários9, sobretudo italianos, que queriam esclarecer alguns pontos da Pedagogia do oprimido10 em uma ótica política, e afirma:

Me lembro, por exemplo, agora, da coincidência de posições que havia entre algumas das teses fundamentais do livro e a visão geral que tinham as lideranças sindicais italianas que comandavam, então, a luta pelo que chamavam as “150 horas”. Movimento afinal vitorioso em favor do direito a ser reconhecido aos trabalhadores de estudar no tempo de trabalho (Freire, 1997, p. 62).

De fato, participando de conferências e debates, Freire apoiou e inspirou essa luta, pela qual, a partir do ano de 1973, os trabalhadores e as trabalhadoras conquistaram o direito de fruir de uma certa quantidade de horas retribuídas (no máximo 150) para frequentar percursos formativos. Na perspectiva das “150 horas”, o direito à instrução estava ligado ao exercício da cidadania, uma vez que as atividades previstas não eram necessariamente finalizadas à aquisição de competências profissionais, mas podiam ser desfrutadas de acordo com os interesses e as necessidades dos sujeitos diretamente envolvidos (Catarci, 2016).

Em um primeiro momento, os sindicatos priorizaram a retomada dos anos de ensino obrigatório para a aquisição de um título de estudo. Obtiveram a possibilidade de usar as estruturas das escolas públicas, mas mantiveram o controle do processo formativo, escolhendo objetivos, metodologias e experiências de aprendizagem. Ao lado dos sindicatos, participaram nessa luta os militantes do movimento estudantil e os docentes comprometidos com a reapropriação crítica e a reinvenção da cultura por parte das classes subalternas.

Os cursos das “150 horas” adotavam metodologias dialógicas e reflexivas, que questionavam os papéis estabelecidos e promoviam a troca de saberes oriundos de bases culturais diferentes para estabelecer uma nova visão de mundo. Desse modo, contribuíram para a emersão de subjetividades até então negadas. A luta pelas “150 horas”, de fato, foi também um dos eventos fundacionais do movimento feminista italiano que, a partir daí, criou uma miríade de iniciativas autônomas de mulheres: centros culturais, bibliotecas, livrarias e universidades independentes (Piussi, 2017).

Da tradução da Pedagogia do Oprimido até hoje: marcas da recepção italiana da obra de Paulo Freire

Nas páginas anteriores descrevi o contexto cultural e social em que se realizou a recepção italiana dos primeiros escritos de Paulo Freire, mas não expliquei ainda por meio de quais relações eles foram introduzidos. Naquele momento, de fato, algumas figuras italianas, com uma forte ligação com o Brasil e a América Latina, desenvolveram um papel muito importante, em particular Linda Bimbi, que traduziu a Pedagogia do Oprimido e escreveu o prefácio da edição italiana. É importante considerar sua trajetória, porque é emblemática das relações que, também nos anos seguintes, alimentaram o interesse por Freire na Itália e que até hoje influenciam a leitura de sua obra.

Nascida em Lucca em 1925, Linda Bimbi, desde 1952, foi missionária no Brasil, onde morou em várias cidades. Notabilizou-se em Belo Horizonte, onde fundou uma escola que chegou a acolher 2.000 alunas e na qual experimentou métodos próximos à abordagem de Paulo Freire, então comprometido nas campanhas de alfabetização. Linda Bimbi abraçou a “opção pelos pobres”, propiciada pelo Concílio Vaticano II e plenamente assumida pela Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano de Medellín em 1968, e no mesmo ano deixou os votos para se consagrar mais integralmente ao Evangelho. No ano seguinte foi forçada pelo governo constituído pela ditadura militar a deixar o Brasil. Na Itália traduziu a Pedagogia do Oprimido, Educação como Prática da Liberdade e outros escritos de Paulo Freire. Coordenou a secretaria da Fundação Lelio Basso e, a partir de 1972, trabalhou ao lado do senador Lelio Basso11 na criação do Tribunal Russel II, coletando centenas de histórias de pessoas torturadas e perseguidas pelos regimes militares da América Latina. Foram realizadas três sessões do Tribunal Russell II, em Roma em 1974, em Bruxelles em 1975 e novamente em Roma em 1976, que constituíram a primeira denúncia internacional dos crimes contra a humanidade perpetrados no continente. Nessa época Linda Bimbi conheceu, dentre outros defensores dos direitos humanos, Marianella García Villa, advogada salvadorenha e colaboradora do arcebispo Oscar Arnulfo Romero.

No prefácio da Pedagogia degli Oppressi, Linda Bimbi (1971) retrata a realidade político-social em que a obra foi gestada; partilha as dificuldades que encontrou na tradução, principalmente devido à criatividade linguística do autor; apresenta a pedagogia freiriana como uma pedagogia da revolução, voltada à humanização e à transformação da sociedade. Em particular, são significativas as palavras com que ela introduz Paulo Freire para o público italiano:

A leitura dos escritos de Paulo Freire pressupõe simpatia pelo autor. Seu estilo é ele mesmo, ou seja, dialógico e oral; dialético [...]. Paulo Freire não é classificável. A inclassificabilidade vem da absoluta incompatibilidade com os esquemas, que é a expressão de seu vínculo visceral com a terra e com o homem. Nesse sentido, ele pode muito bem representar o autêntico intelectual do novo mundo dos povos que hoje emergem na história. [...] É inconfundível o apaixonado amor pelo homem, encarnado na teoria e na vida (práxis). Esse tema deve ser enfatizado porque o leitor o encontra em todas as páginas do livro, e é necessário enquadrá-lo exatamente para não esvaziá-lo na inflação verbal. O amor em Paulo Freire tem uma conotação evangélica inequívoca; ele afirma, tipicamente, que é cristão “por natureza” e que não sabe se pensar de outra forma; para ele, evidentemente, o marxismo, como instrumento sociológico de análise da realidade, não é um dato em contradição com sua fé visceral. Ele é também o homem da esperança, que prega a utopia (Bimbi, 1971, p. 11-12).

Como antecipei, o compromisso de Linda Bimbi imprimiu algumas direções essenciais que marcaram até hoje a influência da pedagogia freiriana na Itália. Em primeiro lugar, ela se disseminou não primeiramente através da academia, mas graças a militantes e intelectuais engajados, profundamente identificados com a América Latina. Além disso, o interesse pela pedagogia freiriana caminhou junto ao interesse pela Teologia da Libertação até o ponto de coincidirem na sensibilidade de muitos seguidores italianos. Nesse sentido, cabe mencionar personalidades como Giulio Girardi (1926-2012), Gérard Lutte (n. 1929), Arturo Paoli (1912-2015) e muitos outros talvez menos conhecidos que contribuíram para a elaboração, ampliação e propagação dessas perspectivas, através de escritos e iniciativas socioeducativas tanto na própria Itália quanto em ligação com ela. Finalmente, no conhecimento da obra freiriana, foi de grande importância o labor de mediação desenvolvido por pessoas que, por diferentes razões, vivenciaram experiências migratórias entre o Brasil e a Itália e que portanto se reconheceram, em alguma medida, pertencentes cultural e politicamente aos dois países. Esse aspecto se reflete na trajetória seja do Instituto Paulo Freire Itália, seja da Rede Nacional Freire-Boal, que constituem atualmente os dois maiores sujeitos coletivos comprometidos na prática freiriana e sobre os quais me debruçarei mais adiante.

Estudos freirianos na Itália

O fato de ter insistido até agora na ascendência de Paulo Freire sobre a cultura educativa alternativa na Itália não deve veicular a impressão de que ele não goze de prestígio no interior da academia. Muito pelo contrário. Um sinal emblemático nesse sentido foi o recebimento do título de doutor honoris causa pela Universidade de Bolonha em 23 de janeiro de 1989. No mesmo dia o título foi entregue também para Margherita Zoebeli (1912-1996) e Mario Lodi (1992-2014), com a seguinte motivação: “à atividade prática, além do compromisso social e do alto nível de sua contribuição científica”.

É de salientar que a afinidade de Paulo Freire com esses educadores e em particular com Mario Lodi foi alimentada no tempo: o Movimento de Cooperação Educativa por ele fundado, a partir dos anos 90, através do projeto Aquilone [Pipa], estabeleceu uma relação profunda de intercâmbio intercultural com o Brasil e principalmente com os centros socioeducativos criados pelo padre Vilson Groh na cidade de Florianópolis e baseados na abordagem da educação popular e da Teologia da Libertação. O professor Reinaldo Fleuri da Universidade Federal de Florianópolis e a professora Paola Falteri da Universidade de Perugia favoreceram e alimentaram de forma importante essa parceria (Spadaro, 2004). Por outro lado, a Rede de Cooperação Educativa C’è speranza se accade [Se isso acontecer, tem esperança], que se inspira em Lodi, em 2021, promoveu um dos maiores eventos na Itália de celebração do centenário do nascimento de Paulo Freire: o congresso Paulo Freire. Educare alla partecipazione, praticare la libertà [Paulo Freire. Educar para a participação, praticar a liberdade].

Vale frisar também a realização, no ano 2000, na Universidade de Bolonha, do II International Forum Paulo Freire, introduzido pelo professor Bartolomeno Bellanova, cofundador do Instituto Paulo Freire Itália. O congresso deu origem à publicação da coletânea Il metodo Paulo Freire. Nuove tecnologie e sviluppo sostenibile [O método Paulo Freire. Novas tecnologias e desenvolvimento sustentável], organizada pelo professor Fausto Telleri (2002) e que explora a fecundidade da proposta freiriana à luz dos desafios do novo milênio. Bartolomeo Bellanova e Fausto Telleri tiveram certa relevância na difusão da obra freiriana na Itália: dentre outras iniciativas, organizaram juntos a edição italiana de Pedagogia, diálogo e conflito (Gadotti et al., 2005), e Bellanova prefaciou Pedagogia della speranza. Un nuovo approccio alla Pedagogia degli oppressi (Freire, 2008), publicado em 2008 pela editora do Gruppo Abele.

Com certeza, no âmbito acadêmico, a atenção para Paulo Freire foi mutável: depois das primeiras significativas convergências, por certo período - após o refluxo dos movimentos de protesto e a afirmação da ideologia neoliberal nas universidades - vigorou a convicção de que ele seria um autor vinculado a um contexto histórico e social específico e, portanto, não mais atual. Nos últimos anos, todavia, registra-se um renovado interesse por Paulo Freire, tanto em estudos que se dedicam especificamente à sua obra, aos quais voltarei daqui a pouco, quanto nas mais variadas áreas do conhecimento pedagógico, nas quais ele é reconhecido como uma referência fundamental, porque é capaz de conferir uma dimensão crítica e problematizadora à reflexão teórica e à prática educativa.

A propósito disso, sem nenhuma pretensão de exaustividade, é possível considerar, por exemplo, a inspiração freiriana nos trabalhos de Luigina Mortari, professora titular da Universidade de Verona, sobre o educador-pesquisador e o papel da reflexividade na formulação do saber da experiência; Pier Cesare Rivoltella, professor titular na Universidade Católica de Milão, sobre a mídia-educação; Massimiliano Tarozzi, professor titular na Universidade de Bolonha, sobre a justiça social e cidadania global; e Massimiliano Fiorucci, professor titular na Universidade de Roma Tre, sobre pedagogia intercultural.

Vou entrar no mérito agora da produção voltada de modo mais pontual à obra de Paulo Freire. Por razões de espaço, considerarei somente as monografias publicadas nos últimos dez anos (ou seja, a partir de 2012), mas com o intuito de delinear um quadro geral das questões teóricas e práticas em que se situam.

O livro La pedagogia della librazione di Paulo Freire. Educazione, intercultura e cambiamento sociale [A Pedagogia da Libertação de Paulo Freire. Educação, intercultura e mudança social] de Marco Catarci (2016), publicado em 2016 pela editora Francoangeli, expõe a trajetória teórica de Paulo Freire prestando uma especial atenção em sua dimensão intercultural e, portanto, em sua relevância com relação a desafios essenciais da atualidade associados aos fluxos migratórios e às sociedades multiculturais.

Pela mesma editora foi publicado em 2017 Reinventare Freire. Lavorare nel sociale con i temi generatori [Reinventar Freire. Trabalhar no social com os temas geradores] de Piergiorgio Reggio (2017), integrante do Instituto Paulo Freire Itália. Depois de uma contextualização do pensamento de Paulo Freire e de seus elementos mais originais, o livro propõe uma aplicação da abordagem dos temas geradores, experimentada pelo próprio autor com diferentes grupos na sua atividade formativa.

No mesmo ano de 2017, Paolo Vittoria e Peter Mayo (2017) publicaram com a editora Società Editrice Fiorentina Saggi di pedagogia critica oltre il neoliberismo. Analizzando educatori, lotte e movimenti sociali [Ensaios de pedagogia crítica além do neoliberalismo. Analisando educadores, lutas e movimentos sociais], que destina vários capítulos à pedagogia de Paulo Freire, à sua interlocução com outros educadores, militantes e líderes, e às suas reinvenções por parte dos movimentos sociais contemporâneos, em primeiro lugar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Nos anos anteriores, Paolo Vittoria tinha já escrito alguns livros significativos focados no pensamento de Paulo Freire: em particular, pela editora Edizioni del Rosone, Pedagogie della Liberazione. Freire, Boal,Capitini, Dolci [Pedagogias da Libertação. Freire, Boal, Capitini, Dolci] de 2011, no qual discute e compara, junto com o coautor, Antonio Vigilante, o percurso teórico e político desses pensadores (Vittoria & Vigilante, 2011); e, pela editora Delfino, Narrando Paulo Freire. Per una pedagogia del dialogo [Narrando Paulo Freire. Por uma pedagogia do diálogo] (Vittoria, 2008), de 2008, que foi publicado também no Brasil em 2011 pela editora da Universidade Federal de Rio de Janeiro, e foi traduzido também em espanhol, inglês e turco (Vittoria, 2011). Por outro lado, Peter Mayo (2009), mesmo não sendo italiano, tem muita incidência nos estudos italianos sobre Paulo Freire, pensemos especialmente no seu Gramsci, Freire e l’educazione degli adulti [Gramsci, Freire e a Educação dos Adultos] publicado na Itália em 2009 pela editora Delfino, mas também em outros países.

Educazione e movimenti sociali. Un’etnografia collaborativa con il Movimento di Donne Contadine a Santa Catarina - Brasile [Educação e movimentos sociais. Uma etnografia colaborativa com o Movimento de Mulheres Camponesas em Santa Catarina - Brasil] de Mariateresa Muraca (2019), editado pela Mimesis em 2019, foi elaborado a partir de uma pesquisa realizada no Brasil, explorando o legado freiriano nas práticas político-pedagógicas dos movimentos sociais e especialmente do Movimento de Mulheres Camponesas, argumentando suas implicações em chave feminista e decolonial.

Em 2020 foi publicado pela editora Anicia Paulo Freire. La libertà in pedagogia [Paulo Freire. A liberdade em pedagogia] de Marco Ferrari (2020), que adota uma perspectiva histórico-educativa, contextualizando a obra freiriana na cultura pedagógica brasileira e dedicando um espaço importante aos movimentos de alfabetização de adultos surgidos no Brasil na década de 60.

Embora não seja em língua italiana, cabe mencionar nessa panorâmica também a coletânea Antologia del pensamiento social italiano sobre América Latina [Antologia do pensamento social italiano sobre América Latina], publicada pela CLACSO em 2017 e organizada por Stefano Tedeschi e Alessio Surian (2017), que mostra a influência freiriana não somente sobre a pedagogia, mas também sobre vários outros campos de estudo na Itália.

À luz dessa exposição, é possível concluir que os estudos italianos sobre Paulo Freire são caracterizados pela tentativa, por um lado, de situar sua obra nos contextos de sua produção, valorizando também os escritos que não foram traduzidos em italiano; por outro, de pensar os impactos mais relevantes de sua proposta com relação às especificidades da realidade italiana sem perder sua radicalidade e, portanto, em favor dos grupos sociais oprimidos. Nas próximas páginas me debruçarei sobre os limites nos desafios e nas direções emergentes da leitura italiana de Paulo Freire, mas antes é necessário apresentar os dois sujeitos coletivos atualmente mais comprometidos na difusão e na reinvenção da pedagogia freiriana: o Instituto Paulo Freire Itália e a Rede Nacional Freire-Boal.

O Instituto Paulo Freire Itália e a Rede Nacional Freire-Boal

O Instituto Paulo Freire Itália é uma associação ligada ao Instituto Paulo Freire do Brasil e aos outros institutos freirianos difundidos no mundo. Foi criado em 2005 por Dante Bellamio, Bartolomeo Bellanova, Giovanni Bianchi, Massimo Campedelli, Anna Casella, Vincenzo Castelli, Valter Coti, Claudio Figini, Franco Floris, Silvia Maria Manfredi, Carlo Nanni, Gino Piccio, Silvio Premoli, Piergiorgio Reggio, Elena Righetti, Ennio Ripamonti, Andrea Sammali, Cesare Scurati, Mario Valzania. Atualmente é presidido por Silvia Maria Manfredi que, por ter nascido na Itália e vivido por muitos anos no Brasil, amadureceu uma dupla pertença a esses países; e por Piergiorgio Reggio, que foi já citado nesse texto.

No site do Instituto (https://paulofreire.it/), são explicitados seus objetivos: 1) atualizar, reinventar e promover a proposta pedagógica de Paulo Freire, à luz do contexto sociocultural italiano e junto com pessoas, grupos e organizações engajados na elaboração de perspectivas críticas para a mudança das estruturas sociais. 2) Participar do debate público e científico sobre os temas do trabalho educativo e social comunitário, superando as distâncias entre universidades, instituições, empresas, associações em uma perspectiva de diálogo e intercâmbio. 3) Cooperar para o desenvolvimento, na realidade italiana, da Educação dos Adultos, compreendida como um instrumento para a promoção de pessoas e comunidades na ótica do “ser mais”. 4) Sustentar o percurso formativo de jovens animadores, educadores e agentes comunitários. 5) Propor-se como espaço de discussão e crescimento humano e profissional para os que atuam em contextos problemáticos e de exclusão social. 6) Enriquecer as experimentações italianas por meio de trocas com especialistas, associações e instituições estrangeiras, em primeiro lugar europeias, sobre temas sociais e educacionais. 7) Fomentar os contatos e as colaborações com a rede internacional dos Institutos Paulo Freire e participar das iniciativas comuns. 8) Realizar intervenções inovadoras no campo socioeducativo e em particular na Educação dos Adultos.

Particularmente, ao longo dos dezesseis anos de sua existência, esses objetivos foram atingidos através de algumas atividades principais, tais como: a realização, uma vez por ano, durante o verão, de uma semana formativa, baseada nos conteúdos e nas metodologias freirianos; a publicação de artigos e a participação em eventos nacionais e internacionais; a colheita, a elaboração e a disponibilização de vídeos, documentos e outros materiais de aprofundamento; a promoção da tradução em italiano dos livros de Paulo Freire: em particular, no ano de 2004, foi reeditado La pedagogia degli oppressi (Freire, 2004a) e foi publicado Pedagogia dell’autonomia (Freire, 2004b); em 2008 foi publicado Pedagogia della speranza. Un nuovo approccio alla Pedagogia degli oppressi (Freire, 2008), os três pela editora do Gruppo Abele.

Por outro lado, a Rede Freire-Boal conecta pessoas e grupos do Sul ao Norte do país, as quais, em sua ação político-educativa, se inspiram em Paulo Freire. Como o próprio nome esclarece, ao lado de Paulo Freire, a rede assume como referência fundamental também Augusto Boal, a partir do pressuposto de que as interações entre suas abordagens proporcionam não somente uma orientação político-teórica clara, como também um repertório aberto e em constante construção de metodologias, técnicas e instrumentos para a leitura crítica e a transformação da sociedade.

A rede surgiu em 2010, graças ao desempenho de organizações que há muito tempo praticavam a Educação Popular Freiriana ou o Teatro do Oprimido ou ambos. Em particular: 1) o Círculo Freire de Impéria, comprometido com atividades educativas, culturais, artísticas e políticas de cunho freiriano, a partir também de uma ligação intensa com o Brasil e outros países da América Latina (sobretudo Haiti, membro da união latina), alimentada por meio de visitas, parcerias e trocas. 2) A cooperativa Jolly, nascida em 1992, que, ao longo de sua história, introduziu o trabalho de Augusto Boal na Itália, ocupou-se da publicação de alguns de seus escritos, divulgou seu pensamento através de livros e artigos, e formou centenas de ativistas do teatro do oprimido12. 3) O Centro de Documentação Paulo Freire de Padova, impulsionado em 2005 por Missionários Combonianos que retornaram do Brasil, o qual, além de ter criado um acervo de obras de Freire e autores e perspectivas afins, reuniu um grupo de educadores que, por um lado, refletem sobre sua prática à luz do pensamento e dos escritos de Freire, por outro lado, propõem atividades culturais e formativas a partir dessa perspectiva. 4) A associação Piccolo Mondo [Pequeno Mundo], que, criada nos anos 90 por um grupo de amigos, alguns dos quais tinham morado no Brasil, surgiu com uma dúplice finalidade: a Casa da Amizade acolhe crianças e adolescentes sem uma família ou com dificuldades familiares por um período que varia de acordo com a necessidade; o Centro de Estudos organiza atividades culturais e sociais com o intuito de promover a cultura do compromisso e a consciência planetária.

Essas organizações se deram conta de que no território italiano existiam várias realidades orientadas pelos princípios políticos, teóricos e metodológicos freirianos e boalianos e decidiram se engajar para pô-las em contato. A Rede nunca se deu uma definição jurídica, preferindo manter um caráter aberto e não institucional. Cada ano, no verão, organiza um encontro em que um tema relevante é trabalhado de acordo com as perspectivas da Educação Popular freiriana e do Teatro do Oprimido. Trata-se de uma oportunidade de discussão, estudo e intercâmbio, que visa sobretudo alimentar visões e sonhos comuns. Todas as decisões importantes para a vida da Rede são tomadas nesse momento, coletivamente e com base na prática do consenso. Em 2022 foi realizado o XIII encontro da Rede. Em 2017, 2018 e 2019, foram organizadas, também, três oficinas invernais de aprofundamento de assuntos políticos. Durante o ano a Rede divulgou as propostas dos vários grupos que a compõem. Somente em uma ocasião, a própria Rede promoveu uma iniciativa: foi em consequência dos inúmeros ataques dirigidos pelo governo Bolsonaro à figura e ao legado de Paulo Freire. Em resposta a isso, a Rede lançou a campanha Chi ha paura di Paulo Freire (Quem tem medo de Paulo Freire), que aconteceu em diversas cidades com o objetivo não apenas de valorizar as contribuições de Paulo Freire, mas também de denunciar a situação atual vivenciada pelo Brasil durante o governo Bolsonaro.

Considerações finais: problematicidades, desafios e perspectivas emergentes na leitura italiana da obra freiriana

A partir dessas considerações, é possível identificar um elemento de continuidade nos cinquenta anos da publicação de La pedagogia degli oppressi: ou seja, tanto nos momentos históricos em que suas preocupações fundamentais eram partilhadas por uma grande parte da sociedade italiana quanto nos momentos históricos - como os dias de hoje - em que elas são minoritárias, a pedagogia freiriana floresceu sobretudo nos espaços da práxis político-pedagógica, espaços intersticiais, fronteiriços e, muitas vezes, marginais, caracterizados pela resistência, bem como pela criatividade e experimentação de novas possibilidades.

Sem ceder a perigosas oposições, que o próprio Paulo Freire recusou ao longo da sua vida inteira, é possível afirmar que seu legado continua nos inquietando profundamente, pois nos motiva a questionar a nós mesmos juntamente ao mundo em que estamos inseridos e nos provoca a manter abertas as tensões entre estudo e contexto social, academia e movimentos, reflexão e ação, em uma busca sempre inconclusa de coerência.

Para concluir, gostaria de salientar duas problematicidades na circulação italiana da obra freiriana que também apontam para direções emergentes de pesquisa e ação. Apesar da publicação recente da Pedagogia della autonomia e da Pedagogia della speranza (Freire, 2008), o conhecimento de Paulo Freire continua sendo vinculado à primeira fase de sua elaboração até o ponto de coincidir com o método de alfabetização, sem uma maior compreensão da amplitude e da complexidade da Filosofia da Educação Freiriana.

Um exemplo é significativo nesse sentido: em resposta ao aumento de fluxos migratórios desde contextos caracterizados por guerras, crises humanitárias e climáticas, foi criado, nos primeiros anos de 2000, o Sistema de Proteção para Requerentes de Asilo e Refugiados (SPRAR), desmantelado em 2018 pelo então ministro Matteo Salvini e nunca mais completamente reconstruído. O SPRAR previa vários serviços, dentre os quais os cursos de língua italiana. Nesse contexto, registrou-se uma volta do interesse para Paulo Freire, justamente em função de seu método de alfabetização-conscientização. Trata-se obviamente de um acontecimento muito positivo, que todavia não expressou todas as suas potencialidades.

Muitas dessas iniciativas, de fato, abordavam a proposta freiriana como uma sequência de ações a serem aplicadas em vez de aprofundar seus princípios político-pedagógicos essenciais e reinventá-los à luz das necessidades atuais. Essa problematicidade é reveladora também de uma insuficiência no estudo de Paulo Freire. De fato, a leitura de livros como Cartas à Guiné-Bissau. Registros de uma experiência em processo (Freire, 1977), Por uma pedagogia da pergunta (Freire & Faundez, 1995) ou A África ensinando a gente (Freire & Guimarães, 2003) é extremamente iluminante para compreender obstáculos e oportunidades que caracterizam também o trabalho social e educativo com requerentes de asilo e refugiados: dentre os quais, as assimetrias de poder em que acontece o encontro com eles; a não neutralidade ideológica da língua italiana; a complexidade de ensinar a ler e escrever em uma língua alheia à prática cotidiana; à pluralidade das pertenças linguísticas e culturais que caracterizam requerentes de asilo e refugiados etc.

De toda forma, esses limites não são específicos da recepção italiana da obra freiriana, sendo que o próprio Freire os lamentava em seus escritos. Aliás, eles nos ajudam a apontar alguns desafios importantes para o presente e o próximo futuro: isto é, a publicação de um número maior de textos freirianos para o italiano; mas sobretudo a análise séria e aprofundada de sua obra, que permita por um lado investigar dimensões ainda pouco exploradas, mas também continuar a elaborá-la, reinventá-la e ampliá-la à luz dos temas geradores políticos, sociais e educativos da nossa época.

Nesse sentido, quero sinalizar três direções emergentes nos estudos italianos: primeiramente, afirma-se sempre mais a necessidade de aprofundar o legado freiriano nas práticas político-pedagógicas dos movimentos sociais13, para favorecer a recriação da democracia em bases autenticamente participativas e transformativas. Uma segunda importante orientação visa à valorização e ao fortalecimento de alianças entre a perspectiva freiriana e o feminismo14, de modo a questionar, desde os fundamentos, os processos de formação de nossas subjetividades e as estruturas injustas criadas no decorrer da história da humanidade, abrindo caminhos radicalmente outros para todas e todos. Finalmente é essencial enfatizar e desenvolver as dimensões interculturais e decoloniais do pensamento freiriano15 para potencializar as possibilidades de sobrevivência e convivência não só entre os seres humanos, mas também entre todas as componentes desse nosso planeta Terra.

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1 Nascido em 1923 em Sesana, então pertencente ao território italiano e atualmente parte da Eslovênia, Danilo Dolci é conhecido principalmente pelas experiências de animação político-cultural conduzidas na Sicília Ocidental, onde morreu em 1997. Entre seus livros de cunho pedagógico, lembramos Chissà se i pesci piangono. Documentazione di un’esperienza educativa [Quem sabe se os peixes choram. Documentação de uma experiência educativa] de 1973, Palpitare di nessi. Ricerca di educare creativo a un mondo nonviolento [Palpitar de nexos. Busca por um educar criativo para um mundo não violento] de 1985 e Dal trasmettere al comunicare [Do transmitir ao comunicar] de 1988.

2Sacerdote nascido em Florença em 1923 e morto na mesma cidade em 1967, seu nome é ligado sobretudo à escola popular que fundou no vilarejo de Barbiana e que se tornou uma referência fundamental para o Movimento de 68. Entre seus livros, Esperienze pastorali [Experiências pastorais] de 1958, L’obbedienza non è più una virtù [A obediência não é mais uma virtude] de 1965 e o livro coletivo Lettera a una professoressa [Carta a uma professora] de 1967.

3Nascido em Perugia em 1899 e morto na mesma cidade em 1968, Aldo Capitini foi um intelectual antifascista e, juntamente com Danilo Dolci, o principal promotor da não violência na Itália. No Segundo Pós-Guerra, fundou os Centros de Orientação Social. Seu compromisso maior foi em prol de uma religião e de uma educação abertas. Entre as suas obras, Elementi di un’esperienza religiosa [Elementos de uma experiência religiosa] de 1937, Religione aperta [Religião aberta] de 1955 e Compresenza dei morti e dei viventi [Compresença dos mortos e dos viventes] de 1966.

4Nascida em Turim em 1902 e morta em 1968, Ada Prospero Gobetti Marchesini é conhecida como a “educadora partigiana”, porque tomou parte ativa no movimento de Resistência ao Nazifascismo e foi vice-prefeita no primeiro governo da sua cidade natal após a Libertação. No Pós-Guerra se dedicou à atividade jornalística, dirigindo revistas como Il giornale dei genitori [O jornal dos pais], e a publicações literárias, com livros para crianças como La storia del gallo Sebastiano ovverosia il tredicesimo uovo [A história do galo Sebastiano ou seja o décimo terceiro ovo] de 1963.

5A palavra “maiêutica” vem do grego “maieutiké (tékhne)”, que significa a arte da parteira e aparece no diálogo platônico “Teeteto”, no qual Sócrates compara seu método filosófico-pedagógico ao trabalho da mãe: de fato, assim como ela, que é obstetra, auxilia as mulheres a parir, ele ajuda as almas a levar à luz a verdade. Danilo Dolci retoma essa imagem, introduzindo uma importante inovação: isto é, ao adicionar o adjetivo “recíproca”, amplia a relação educativa da dupla educador-educando para o coletivo educativo no seu conjunto.

6Regime dirigido, até abril de 1945, por Benito Mussolini e apoiado por Adolf Hitler, com a finalidade de governar os territórios controlados pelos nazistas na parte setentrional do país, depois da assinatura da rendição por parte da Itália em setembro de 1943.

7Mais especificamente, Dom Lorenzo Milani foi condenado, após sua morte, em 1967, por ter apoiado publicamente alguns jovens que se recusavam a prestar o serviço militar, em um tempo em que ainda não existia na Itália a objeção de consciência, que seria legalizada só em 1972. Por outro lado, Danilo Dolci foi processado e punido com cinquenta dias de prisão por ter coordenado uma manifestação pacifista, voltada à reforma de uma estrada pública há muito tempo inservível. Sucessivamente, em 1973, Danilo Dolci e seu colaborador Franco Alasia (1927-2006) foram condenados por terem denunciado as relações entre a máfia e a política, apontando figuras de primeiro plano da vida institucional siciliana, em uma época em que a própria existência da máfia era sistematicamente negada. Danilo Dolci e Franco Alasia conseguiram evitar a pena graças a uma anistia.

8Nascido em Veneza em 1924 e morto na mesma cidade em 1980, Franco Basaglia é o principal inspirador da Lei nº 180 de 1978, que estabeleceu o fechamento dos manicômios na Itália e introduziu uma nova disciplina no tratamento das enfermidades psíquicas.

9No entanto Paulo Freire não indica seus nomes.

10Dentre os italianos que visitaram Paulo Freire no início dos anos 70, está também Dom Gino Piccio, que atuou na região do Piemonte e depois em Friuli e em Irpínia, regiões que, respetivamente, em 1976 e em 1980, foram afetadas por um terremoto. Usando os princípios freirianos, ele teve uma profunda influência sobre vários estudiosos italianos de Paulo Freire e participou da fundação do Instituto Paulo Freire Itália em 1995.

11Nascido em Varazze em 1903 e morto em Roma em 1978, Lelio Basso foi um intelectual antifascista, periodista e político.

12Uma atividade importante nesse sentido vem sendo realizada também pela associação Krila-TdO fundada por professores da Universidade de Bolonha.

13Aprofundada especialmente em dois textos já mencionados: Saggi di pedagogia critica oltre il neoliberismo de Peter Mayo e Paolo Vittoria (2017) e Educazione e movimenti sociali. Un’etnografia collaborativa con il Movimento di Donne Contadine a Santa Catarina (Brasile) de Mariateresa Muraca (2019).

14Com relação a isso, pode-se considerar a reflexão de Anna Maria Piussi (2017), Antonia De Vita (2009), Lucia Bertell (2018) e Mariateresa Muraca (2019).

15Uma contribuição relevante nesse sentido se encontra nos escritos de Davide Zoletto, que organizou também a edição italiana de um diálogo entre Freire e Macedo (2008), e de autores ja citados como Marco Catarci (2016) e Mariateresa Muraca (2019, 2022).

18Rodadas de avaliação: R1: três convites; três avaliações recebidas

19Como citar este artigo: Muraca, M. A influência, a circulação e a reinvenção do pensamento de Paulo Freire na Itália. Revista Brasileira de História da Educação, 23. DOI: https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e282

20Financiamento: A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e do Programa Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

21Licenciamento: Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4)

Recebido: 04 de Março de 2022; Aceito: 17 de Fevereiro de 2023; Publicado: 12 de Junho de 2023

*E-mail: mariateresa85muraca@gmail.com.

Mariateresa Muraca: Doutora Interdisciplinar em Ciências Humanas pela Università di Verona em cotutela com a Universidade Federal de Santa Catarina (2015). Pesquisadora de pós-doutorado na Universidade do Estado do Pará pelo programa CAPES Procad Amazônia. Professora permanente no Istituto Universitario don Giorgio Pratesi e professora convidada no Istituto Progetto Uomo. É autora da monografia Educazione e movimenti sociali (Mimesis, 2019), do manual didático I colori della pedagogia (Giunti-Treccani, 2020) e de cerca de sessenta artigos científicos e capítulos de livros. E-mail: mariateresa85muraca@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-3250-0988

Editor-associado responsável: José Gonçalves Gondra (UERJ) E-mail: gondra.uerj@gmail.com.br https://orcid.org/0000-0002-0669-1661

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