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Revista Brasileira de História da Educação

versão impressa ISSN 1519-5902versão On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.23  Maringá  2023  Epub 03-Fev-2023

https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e256 

Resenha

A democratização da Educação Física na França

Marcelo Moraes e Silva1  * 
http://orcid.org/0000-0001-6640-7952

Daniele Cristina Carqueijeiro de Medeiros2 
http://orcid.org/0000-0001-5493-1618

Evelise Amgarten Quitzau3 
http://orcid.org/0000-0001-9789-6488

1Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil

2Universidad de la República, Paysandú, Urugua

3Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, MG, Brasil

Attali, M.,; Saint-Martin, J.. 2021. “L’education physique de 1945 à nous jours: les étapes d’une démocratisation”. Paris: Armand Colin,


A obra em questão, publicada pelos professores Michaël Attali (Universidade de Rennes 2) e Jean Saint-Martin (Universidade de Strasbourg), foi primeiro publicada no ano de 2004, com reedições em 2009 e 2015. A edição ora analisada é de 2021, atualizada em relação às últimas alterações ocorridas no âmbito da escola francesa. O livro foi editado pela editora Armand Colin, como parte da coleção “Dynamique” organizada por Jean-Pierre Famose, André Rauch e Alfred Wahl.

A obra objetiva evidenciar as transformações institucionais, políticas e culturais que explicam o complexo e paradoxal processo de democratização da Educação Física (EF) no contexto francês. Para fins de análise, o movimento é dividido pelos autores em quatro etapas. Uma primeira, de 1945 a 1958, uma segunda que compreende o período de 1959 a 1967, a terceira delimitada entre 1967 e 1981 e a última fase que vai de 1981 e perdura até a atualidade. Cada uma das etapas é analisada em uma das quatro partes da obra, as quais foram divididas internamente em três capítulos e uma conclusão. Além disso, o livro apresenta uma introdução e uma conclusão geral.

Nesse sentido, dada a importância dos autores e a relevância da obra para a História da Educação Física na França, resenhar um livro desse porte pode ser de grande valia, visto que o manuscrito não possui uma versão em português e/ou espanhol e suas reflexões contribuem para o debate da História da Educação Física em países sul-americanos como o Brasil. Afinal, conforme apontam Soares (2001) e Moraes e Silva, Medeiros, Quitzau e Levoratti (2020), a influência francesa na Educação Física brasileira trata-se de algo iniciado no século XIX e que apresenta suas continuidades até a atualidade. É visível a importância que autores que pensaram a Educação Física francesa - e que foram tratados no livro ao longo das discussões - assumem no contexto histórico da educação física brasileira, como Auguste Listello, Jean Le Boulch, Pierre Parlebas, Jean-Marie Brohm. Uma obra dessa envergadura permite compreender o contexto de elaboração das obras desses autores e, dessa forma, leva a uma reflexão mais sistemática sobre as continuidades e rupturas relacionadas à recepção desses autores no Brasil.

Na primeira parte do livro, “1945-1958 Une démocratisation de l”EPS: entre ardeur et réalités”, os autores apresentam o processo de democratização da EF durante a Quarta República francesa. Com o término da Segunda Guerra Mundial e do governo de Vichy (1940-1944), liderado pelo Marechal Philippe Pétain, a reorganização da escola em moldes democráticos torna-se uma prioridade nacional.

A EF tinha papel de destaque no projeto educativo do governo Vichy, pois se encaixava com o princípio defendido de restaurar a antiga ordem, educar a juventude para o trabalho e produzir uma França saudável, disciplinada e sintonizada com o lema “Trabalho, Família e Pátria”. Dentro desse espírito, a disciplina teve um papel determinante no processo de formação dos jovens franceses, pois uma educação esportiva se mostrava em sintonia com o slogan: “ser forte para melhor servir”. Os autores lembram que a escola do período Vichy, amparada na filosofia de Henri Bergson, apregoava que viver consistia em agir, o que fazia com que a disciplina ganhasse protagonismo, visto que ela seria umas das responsáveis por contribuir para a regeneração física e moral dos jovens. Ao traçar o fio da democratização da EF, Attali e Saint-Martin apontam que, através das práticas esportivas, a disciplina se revelava altamente segregativa, principalmente pela valorização da meritocracia tão desejada por Pétain.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e do governo Vichy, era necessário reconstruir a nação. Nesse contexto, uma ampla união nacional composta por diferentes correntes políticas emergiu. Na esfera educacional, esse conjunto de forças acabou por estabelecer o plano Langevin-Wallon, capitaneado pelo físico Paul Langevin e pelo psicólogo Henri Wallon. Tal proposta se organizava em torno dos princípios da igualdade e da diversidade aliada a um projeto de educação para todos, que preconizava uma ampla reforma da escola francesa; afinal, a universalização da cultura era um direito social, e a escola deveria assegurar uma sociedade mais aberta.

A EF, se quisesse fazer parte de tal projeto, deveria se adaptar a essa nova lógica educacional. Nesse contexto, os professores de EF tiveram um redimensionamento de seu papel social, pois era necessário fornecer à disciplina um discurso que mostrasse as grandezas educativas que suas práticas poderiam fornecer à sociedade. Foi nesse momento, estimulado pelas novas doutrinas pedagógicas de Auguste Listello e Maurice Baquet, que o esporte educacional bateu nas portas das escolas do hexágono. Colocava-se em curso a ambição de fazer emergir uma concepção educativa de esporte, a qual passaria a ser difundida em larga escala aos professores e que ganharia novos sentidos e significados com a implementação da Quinta República.

A segunda parte do livro, “1959-1967 Ordres et désordres em EPS”, abrange o período de 1959 a 1967 e explora a política educacional iniciada por Charles De Gaulle. Nesse momento, foi implementado um modelo escolar que objetiva produzir uma elite nacional por meio de uma ampla massificação da educação. A EF participou ativamente desse processo, visto que o forte controle exercido pela figura estatal oportunizou que a escola se tornasse um espaço de massificação das práticas esportivas. Contudo, Attali e Saint-Martin salientam que a massificação da escola, amparada num discurso de igualdade de chances e possibilitada pelo amplo acesso à educação, escondia mecanismos de dominação que acabavam por reforçar determinadas desigualdades, produzindo um fracasso escolar de grandes proporções. Se por um lado o ideal democrático parecia estar sendo alcançado, por outro a sua efetiva concretização se mostrava incompleta.

Foi nesse contexto que novos fundamentos relativos a uma ideologia esportiva emergiram no cenário francês. Attali e Saint-Martin afirmam que a corrente autoproclamada educativa se esforçou para não mais limitar o esporte às suas dimensões técnicas. Tal linhagem, inscrita dentro de uma perspectiva marxista, indicava que o esporte era um produto histórico da atividade humana, e seus defensores acreditavam que a iniciação esportiva deveria estar articulada a um projeto de transformação relacionada à categoria de classe social.

Outra vertente apresentada pelos autores foi a formulada por Jean Le Boulch. Suas proposições, com base principalmente nos ensinamentos de Henri Wallon e Jean Piaget, forneciam um modelo que almejava obter um status científico. Essa concepção psicomotora se endereçava a todas as crianças no intuito de fornecer um método integral que enfatizasse as dimensões físicas, intelectuais e afetivas. Seu objetivo era o de criar um controle corporal que desenvolvesse a motricidade individual. De forma inversa à corrente marxista, a concepção psicomotora se afastava de uma dimensão coletiva, centrando-se mais nos aspectos individuais. Os marxistas, por outro lado, afirmavam que a concepção de Le Boulch é que se distanciava da dimensão social, proporcionando um ensino formalista e descontextualizado da realidade social.

No entanto, a política que levava a uma democratização da EF acabou por dobrar-se aos ditames do esporte de rendimento. Foi nesse contexto que ocorreu uma ampla reforma nas instituições esportivas, uma vez que, por influência de órgãos como o Comité International de l’Education Physique et du Sport da Unesco, inúmeros documentos foram produzidos. Nessa nova ordem, a dimensão esportiva de um lazer para todos emergiu, sendo a escola a instituição principal na difusão desse ideário. O objetivo era massificar o esporte, possibilitando que, a partir de uma ampla base de praticantes, uma elite chegasse ao esporte de rendimento. A maioria dos professores de EF aderiu rapidamente ao projeto esportivo, e uma reformulação da formação dos docentes foi levada a cabo. Os principais intelectuais da área buscaram dar uma nova roupagem à formação; por outro lado, essa entrada no espaço universitário proporcionou uma crise de identidade na EF francesa.

Na terceira parte, “1967-1981 Crises et identités des éducations physiques”, os autores mostram como uma diversidade de maneiras de se pensar a EF permearam a área nesse processo de democratização. Era necessário definir suas finalidades, mas a falta de unidade dissipava a EF em diferentes direções. Um fenômeno social que contribuiu para essa crise foi o do lazer. O apogeu dos anos gloriosos pós-Segunda Guerra possibilitou uma disseminação das atividades físicas no cotidiano dos franceses, fato que também afetou a instituição escolar, na qual os professores se viram obrigados a reagir diante das demandas oriundas da civilização do lazer. Essa movimentação forçou os docentes a extrapolarem os conteúdos tradicionais (atletismo, ginástica e esportes coletivos) em direção a temáticas mais relacionadas ao lazer, como os esportes californianos e as atividades ao ar livre, muito mais sintonizados com o ideário hedonista que havia ganhado a França desde o advento de maio de 1968.

Attali e Saint-Martin lembram que foi em meio a esse cenário que emergiram análises críticas sobre o esporte. Dentre os autores de maior destaque, estava Jean-Marie Brohm, que, em 1966, publicou o clássico “Sociologie Politique du Sport”, manuscrito no qual formulou sua célebre frase de que o esporte era o ópio do povo. Essa corrente crítica se inspirava no filosofo Herbert Marcuse e apontava que a lógica da produção capitalista penetrava em todos os domínios da vida humana, incluindo-se os fenômenos do esporte e do lazer que, por esse motivo, deveriam ser repensados nos projetos educacionais.

Na sequência de suas análises, Attali e Saint-Martin mencionam o crescente processo de liberalização que a EF francesa passou nos anos 1970. Tal lógica se instalava com ênfase no contexto francês, no qual o papel do Estado na realização das ações esportivas foi diminuído significativamente em prol de diversos entes privados, o que gerou, em contrapartida, uma redução significativa dos horários destinados à EF. Nesse contexto, o governo francês passou a fazer uma série de parcerias com instituições esportivas no intuito de massificar o esporte e, com isso, beneficiar a vertente de rendimento. O esporte se afastava cada vez mais da escola, ficando às margens do sistema escolar. Esse processo gerou uma ampla reação de setores sindicais dos professores de EF, que buscavam realizar uma defesa da presença da disciplina em todos os níveis de ensino, ainda que o governo tentasse transferir a responsabilidade da prática esportiva para a esfera privada. Os sindicalistas afirmavam que essa tendência de liberalização era uma regressão em relação à democratização do esporte, e que suprimir a disciplina poderia fazer a escola se afastar da sua missão de difusão cultural.

Na última parte do livro, “1981 à nous jours: Les enjeux identitaires d’un homomorphisme institutionnel”, os autores mostram as novas facetas da democratização da EF na França. O começo de tal década foi marcado por um processo de reintegração da disciplina na escola, dada a orientação política de esquerda do presidente François Mitterand, eleito em 1981. Nesse sentido, os anos 1980 marcaram uma tentativa da escola francesa de superar a desigualdade social, o que repercutiu em medidas postas em curso durante a década de 1990 e principalmente no primeiro decênio do século XXI.

Contudo, uma tendência liberal retornou ao poder no começo do século XXI. Após a eleição presidencial de 2007, com a vitória do conservador Nicolas Sarkozy, um anseio de diminuir a regulação do Estado se introduziu na França. Nesse momento, o sistema escolar se sentia impelido pelo discurso neoliberal a formar uma mão de obra especializada exigida pelo mercado. Lógicas empresariais adentraram os muros escolares, os alunos se tornaram consumidores e o sucesso escolar passou a ser resumido ao futuro profissional e aos resultados obtidos em rankings internacionais. Em tal contexto, espaços educacionais privados, comerciais e, muitas vezes, operados na modalidade a distância foram criados à margem de um sistema escolar que deveria ser reduzido.

A EF, dentro desse projeto neoliberal, não tinha um papel de destaque, pois sua utilização na escola não traria benefícios aparentes à formação exigida por uma economia de mercado. Nessa altura, seu lugar passou a ser questionado; sua posição se tornava ambivalente e suas práticas passaram por um processo de desescolarização. Nesse ínterim, os alunos do liceu poderiam ser dispensados das aulas de EF e adquirir esses saberes corporais em outros espaços, como academias de ginásticas. De uma obrigação estatal, tais atividades passavam a ser regidas por escolhas individuais e geralmente atreladas às lógicas de mercado.

Nas conclusões do livro, os autores retomam um importante paradoxo relativo ao processo de democratização da EF na França, apontando que, apesar da disciplina existir obrigatoriamente desde o fim do século XIX, em muitos momentos, ela não participou efetivamente do projeto escolar republicano. Menos do que uma amnésia generalizada, esse fenômeno parece revelar o tratamento particular da EF, a qual, no alvorecer do século XXI, apesar de ser reconhecida academicamente, ainda é considerada socialmente uma disciplina à parte das demais. Embora sua presença seja obrigatória na escola há mais de um século, ela ainda passa por processos de afirmação.

Attali e Saint-Martin finalizam a obra evidenciando ao leitor as múltiplas lógicas do processo de democratização. No caso da EF, os autores argumentam que, se existiu um sucesso na democratização do ponto de vista quantitativo, na questão qualitativa, há muito para avançar, visto que a democratização é um fenômeno irregular, lento, complexo, muitas vezes insidioso e que não pode se resumir a aspectos reformadores. Democratizar significa propor a todos e a cada um a possibilidade de acessar um saber maximizado, e não pode se resumir a slogans vazios, mas que são politicamente mobilizadores. Essa talvez seja a principal lição para o público brasileiro: se os caminhos da democratização são irregulares em países com uma história democrática como a França, tais questões se tornam ainda mais complexas em nações como o Brasil, que, em diversos momentos da história, flertam abertamente com o autoritarismo.

Referências

Moraes e Silva, M., Medeiros, D. C. C., Quitzau, E. A., Levoratti, A. (2020). Similitudes y diferencias en la historiografía del deporte en Brasil y Francia: un diálogo con “Histoire du sport” de Thierry Terret. Anuario de la Escuela de Historia, 33, 1-32. [ Links ]

Soares, C. L. (2001). Educação Física: raízes europeias. Campinas: Autores Associados. [ Links ]

5Como citar esta resenha: Moraes e Silva, M., Medeiros, D. C. C., & Quitzau, E. A. (2023). A democratização da Educação Física na França. Revista Brasileira de História da Educação, 23. DOI: http://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e256

6Esta resenha é publicada na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Recebido: 03 de Outubro de 2022; Aceito: 24 de Outubro de 2022; Publicado: 03 de Fevereiro de 2023

*E-mail: marcelomoraes@ufpr.br.

Marcelo Moraes e Silva é Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professor do Departamento de Educação Física, Programa de Pós-Graduação em Educação Física (Linha de Pesquisa Aspectos Socioculturais do Esporte e do Lazer) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (Linha de Pesquisa História e Historiografia da Educação) da Universidade Federal do Paraná. Contratado pelo governo francês para um posto pós-doutoral na Universidade de Rennes 2. Associado a Société Française D’Histoire du Sport (SFHS) e European Committee for the History of Sports (CESH). E-mail: marcelomoraes@ufpr.br https://orcid.org/0000-0001-6640-7952

Daniele Cristina Carqueijeiro de Medeiros é Graduada em Educação Física (2012), Mestre (2016) e Doutora (2021) em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professora do curso de Licenciatura em Educação Física do Instituto Superior de Educación Física (ISEF) da Universidad de la República, Uruguai, e pesquisadora Nivel 1 do Sistema Nacional de Investigadores da Agencia Nacional de Investigación e Innovación do Uruguai. E-mail: dmedeiros@cup.edu.uy https://orcid.org/0000-0001-5493-1618

Evelise Amgarten Quitzau é Graduada em Educação Física (2008), Mestre (2011) e Doutora (2016) em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Docente do curso de Educação Física da Universidade Federal de Viçosa. Foi docente do Instituto Superior de Educación Física, da Universidad de la República, Uruguai. Integra o Joe Arbena Latin-American Sport History Grant Committee, da North American Society for Sport History (NASSH) e o conselho da International Society for the History of Physical Education and Sport. E-mail: evelise.quitzau@ufv.br https://orcid.org/0000-0001-9789-6488

Editor-associado responsável: Eduardo Lautaro Galak (UNLP, Argentina) E-mail: eduardo.galak@unipe.edu.ar https://orcid.org/0000-0002-0684-121X

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