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Revista Brasileira de História da Educação

versión impresa ISSN 1519-5902versión On-line ISSN 2238-0094

Rev. Bras. Hist. Educ vol.23  Maringá  2023  Epub 12-Jun-2023

https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e283 

Resenha

Subalternidade e opressão sociorracial: questões para a historiografia da educação latino-americana

Jonatas Roque Ribeiro1  * 
http://orcid.org/0000-0001-5074-4401

1Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

Veiga, C. G.. 2022. Subalternidade e opressão sociorracial: questões para a historiografia da educação latino-americana. Paulo, SP: Editora da UNESP,


A obra em questão explora as questões de subalternidade e opressão sociorracial dentro do contexto da historiografia da educação latino-americana. No livro, o conceito de subalternidade se refere à condição de subordinação social, política e cultural vivenciada por grupos marginalizados, como indígenas, negros, mestiços, camponeses e outros setores da população que historicamente foram excluídos e tiveram seus direitos limitados. Esses grupos foram frequentemente privados de acesso à educação de qualidade, sendo relegados a posições sociais e políticas de desvantagem e marginalização.

Em relação à ideia de opressão racial, a obra discute que esse fenômeno tem se manifestado de várias maneiras na educação latino-americana. Desde o período colonial, quando os povos indígenas foram subjugados pelos colonizadores europeus, a educação foi utilizada como uma ferramenta de dominação e assimilação cultural. A imposição de línguas estrangeiras e a supressão das línguas nativas, juntamente com a exigência da adoção de valores culturais e religiosos foram estratégias utilizadas para controlar e marginalizar as populações indígenas e outros grupos considerados subalternos.

Da mesma maneira, a escravidão e o sistema colonial estabeleceram formas de hierarquia racial na América Latina, na qual indígenas, negros e mestiços foram submetidos a condições de trabalho forçado e marginalização social. Na presente obra, nota-se que, mesmo após a abolição do trabalho escravo e da independência política dos países latino-americanos, as suas estruturas sociais e educacionais continuaram a reproduzir desigualdades raciais. A segregação e a discriminação racial persistiram nas escolas, com acesso desigual à educação de qualidade e oportunidades educacionais limitadas para as gentes indígenas, negras e mestiças.

Fruto de uma extensa e cuidadosa pesquisa realizada em documentos (livros, periódicos, revistas, fotografias, etc. da América Latina) do acervo do Ibero-Amerikanisches Institut, localizado em Berlim/Alemanha, o novo livro de Veiga, que é professora titular de História da Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, discute que o estudo da subalternidade e da opressão sociorracial na historiografia da educação latino-americana pode contribuir para uma compreensão mais complexa das dinâmicas históricas e sociais que influenciaram a formação do sistema educacional na região, assim como tem potencial para fornecer considerações políticas sobre a importância de lutar por uma educação mais igualitária e emancipatória no tempo presente.

Por meio do diálogo com as proposições teórico-conceituais dos sociólogos Norbert Elias e Aníbal Quijano, a autora constrói refinado debate historiográfico. Nessa perspectiva, as tensões entre os conceitos de colonialidade/decolonialidade estão presentes em toda a organização epistemológica do livro e dos seus capítulos, não apenas como operação conceitual de definição das semânticas, mas como problemas históricos e historiográficos que circunscrevem os sentidos atribuídos aos conceitos de subalternização e de opressão sociorracial enquanto arcabouços da organização política e social das sociedades latino-americanas nos últimos três séculos.

A obra está dividida em seis capítulos. O primeiro discute os dispositivos adotados pelos países latino-americanos, ao longo do século XIX, de invenção e de disseminação do que Veiga (2022, p. 109) chamou de “processo de subalternização das pessoas negras e indígenas como quesito demarcador da hierarquia social”. A partir do conceito de subalternidade, a autora estuda a expansão da escola, assim como a formação das nações, das cidadanias e das identidades nacionais e as justificativas de homogeneização cultural e sociorracial envolvidas nesses processos.

A autora observa que a invenção de um discurso científico-social sobre a noção de civilização em voga no século XIX foi parte fundante da campanha para “civilizar” e “europeizar” os povos e as culturas. Esse discurso adotado pelas classes dirigentes e intelectuais dos países latino-americanos. A saída assumida nesse contexto foi o apelo ao “branqueamento”, fosse em termos de cultura, higiene, comportamento e, eventualmente, na cor da pele. Uma forma interessante que essas elites encontraram para colocar esses projetos políticos em ação foi transformar formas de subalternização e de inferiorização étnico-racial em fundamentos nos processos de organização social dos novos países independentes.

Assim, ao proclamar a escola como difusora da civilização, além do estabelecimento de uma divisão racial da educação, criou-se a expectativa de que “a educação viesse a elevar as raças inferiores ao patamar da civilização e, desse modo, educar as cores pela escola” (Veiga, 2022, p. 87). Ou seja, formas de desigualdade escolar passaram a ser interpretadas (e utilizadas) como mecanismos poderosos de subalternização racial.

No segundo capítulo, Veiga (2022, p. 124) constrói o debate teórico e historiográfico a partir daquilo que ela denomina de “estética da falta”, isto é, a “reflexão sobre os corpos percebidos como incompletos, insuficientes, privados de qualidades, usados como fontes de discriminação e dominação e ratificadores de uma inferioridade insuperável”. De forma sucinta, a ideia de “estética da falta” pode ser interpretada como “dinâmicas sociais que produzem a invisibilização da humanidade das pessoas” (Veiga, 2022, p. 124). Ao longo da narrativa, a autora mostra como a falta da cor branca, bem como a imposição de uma identidade branca, de seus significados e de seus privilégios, tornou-se o fundamento de dominação do processo civilizador/colonizador na América.

Tal cenário se complexificou ao longo do século XIX, contexto no qual, segundo Veiga (2022, p. 125), “o racismo científico estabeleceu a hierarquia racial e fundamentou as campanhas de branqueamento”. O tema principal do capítulo girou em torno da problematização de formas de racismo (opressão, inferiorização e estigmatização racial, por exemplo) e da sua centralidade nos ideários nacionalistas dos países latino-americanos, pautados na consolidação e na ampliação das desigualdades sociorraciais. Nas palavras de Veiga (2022, p. 184),

Na história latino-americana, esse processo se vincula à divisão racial do trabalho e ao modo como os diferentes grupamentos étnicos foram absorvidos nas novas dinâmicas do mercado capitalista desde o século XIX, associado ao nível de intensidade da prática do extermínio físico e aos processos de mestiçagem.

Por isso, na interpretação da autora, tanto as ideologias da mestiçagem, como do branqueamento tornaram-se projetos de organização social e política arduamente perseguidos pelas elites na América Latina. Como estratégia de consolidação desses projetos, as classes dirigentes se esforçaram para criar discursos, imagens, códigos e símbolos de subalternização e de opressão de sujeitos e grupos sociais considerados social e racialmente inferiores, aquilo que Veiga (2022, p. 189) chamou de “estetização do preconceito”:

Nesse processo, a discriminação por cor e por traços fenotípicos se expandiu para difamação e depreciação das danças, músicas, falas, vestimentas, alimentação, enfim, das diversas manifestações culturais. Para isso, contribuiu a principal tecnologia disponível no período, o impresso: por meio de jornais e revistas circularam piadas e ilustrações estigmatizadas referentes às populações afrodescendentes e aos povos originários.

Veiga (2022), nesse sentido, brinda o/a leitor/a com um conjunto variado e diverso de fotografias, as quais são usadas como ferramentas valiosas para documentar e fornecer um registro visual único da “estética da falta”, permitindo a observação e o exame de detalhes específicos do (e sobre o) contexto histórico da invenção e da institucionalização das subalternidades e opressões raciais na América Latina nos séculos XIX e XX.

No terceiro capítulo, Veiga (2022) demonstra como a difusão da escolarização universal e obrigatória, com base em um padrão eurocêntrico, teve impacto significativo na inferiorização e subalternização das populações indígenas, negras e mestiças em muitos contextos sociais em diferentes países da América Latina. Embora a educação tenha sido frequentemente considerada como uma ferramenta de “progresso” e de “civilização”, a sua implementação não foi inclusiva e respeitosa com a diversidade cultural e étnica.

No período colonial, e após as independências políticas no século XIX, as populações indígenas, negras e mestiças foram sistematicamente marginalizadas e desvalorizadas. As formas de escolarização impostas a esses grupos seguiram uma abordagem eurocêntrica, que promovia a supremacia cultural e intelectual da Europa, ao mesmo tempo em que desvalorizaram e suprimiram os seus conhecimentos, idiomas e tradições. As concepções pedagógicas e padrões de educação criados pelas elites geralmente refletiam uma perspectiva etnocêntrica, concentrando-se na história, na cultura e nas contribuições europeias, enquanto negligenciavam ou distorciam as narrativas e experiências das populações indígenas, negras e mestiças.

Esse processo de apagamento cultural e de imposição de uma visão única de conhecimento perpetuou estereótipos, preconceitos e desigualdades sociais. A esse respeito, Veiga salienta que as políticas educacionais criadas nesse contexto excluíram as populações indígenas, negras e mestiças, dificultando o seu acesso à educação formal. Além disso, formas de escolarização formal foram usadas como ferramentas de assimilação cultural, buscando a supressão de identidades culturais e a promoção da homogeneização das populações indígenas, negras e mestiças na cultura dominante. Isso resultou na perda de línguas, tradições e conhecimentos tradicionais, bem como na internalização de uma visão negativa de si mesmos, fundamentada em padrões europeus de beleza, inteligência e cultura.

Ainda nesse capítulo, Veiga (2022) destaca que a inferiorização e subalternização adotadas pelas elites latino-americanas não foram apenas resultado da invenção de padrões desiguais de educação, mas de um sistema mais amplo de opressão e de discriminação fundado em hierarquias raciais e étnicas. No entanto, a escolarização universal e obrigatória, implementada de forma eurocêntrica e excludente, acabou reforçando essas desigualdades estruturais e perpetuando a marginalização das populações indígenas, negras e mestiças.

Apesar dos muitos êxitos, identifico um problema do livro que diz respeito à ausência do diálogo com as ideias e os projetos de nação e, obviamente, de concepções de escola e educação, pensadas por educadores/as e intelectuais indígenas e negros/as da/na América Latina. Isso, porque diversos estudos recentes têm apresentado evidências da ampla participação de professores/as, intelectuais e educadores/as-militantes negros/as na discussão dos papéis e dos sentidos da educação em intervenções que se propuseram a pensar processos históricos do aprender e transmitir conhecimentos, nos mais diferenciados espaços sociais e tempos históricos. Para não estender o debate, cito apenas três obras (Zapata, 2007; Castillo, 2013; Universidade Federal Fluminense, 2020) que estudaram - a partir de diferentes perspectivas teóricas, conceituais e historiográficas - o papel intelectual de educadores/as indígenas e negros/as na proposição e na defesa de uma noção de educação progressista, que valoriza a diversidade cultural e étnica e que seja acessível a todos os segmentos da sociedade incluindo principalmente sujeitos e grupos marginalizados.

Esses educadores lutaram contra a segregação étnico-racial nas escolas e defenderam a inclusão desde uma perspectiva de igualdade racial para a constituição de sistemas de ensino e das próprias instituições escolares na América Latina ao longo dos séculos XIX e XX. Trata-se de uma intelectualidade alternativa que se dedicou a uma produção intelectual diversa, escrevendo livros e artigos e textos na imprensa que abordam questões sociais, raciais e educacionais numa perspectiva de luta e de participação política. Eles denunciaram o racismo e a discriminação enfrentados pelas gentes indígenas e negras nas sociedades latino-americanas, incitaram a promoção da autoestima e do orgulho racial e destacaram a importância da valorização de heranças indígenas e africanas.

Ainda que dialogue com Manoel Bomfim, Alberto Torres e Alberta Peick Moreira (esposa do famoso psiquiatra negro Juliano Moreira), que, em diversas obras, condenaram as teses eurocêntricas da subalternidade das gentes não-brancas, e também reconheça que setores das populações indígenas, negras e mestiças latino-americanas jamais sucumbiram às adversidades da vida e, para se distinguirem, fundaram os seus próprios clubes, jornais, partidos políticos e associações culturais e cívicas em vários países, Veiga não trouxe para a discussão as interpretações e as perspectivas do pensamento social afro-indígena-latino-americano.

O estabelecimento desse diálogo, seguramente, teria proporcionado à sua obra uma análise atenta à importância das epistemologias indígenas, negras, mestiças e de outras comunidades historicamente marginalizadas, que criaram e defenderam as suas próprias formas de conhecer, interpretar e interagir com o mundo. Obviamente, não seria justo cobrar a inserção dessa outra dimensão de análise em um livro que já faz tanto; mas espero que essa obra inspire outros/as pesquisadores/as a empenhar esforços em estudos comparativos sobre a história da educação na América Latina.

Em suma, o novo livro de Veiga (2022) se mostra uma importante contribuição para a compreensão da historicidade de concepções pedagógicas e de padrões de educação e convida à reflexão sobre as desigualdades históricas e os seus impactos no tempo presente. Opino que trata-se de uma investigação sofisticada, que coloca em perspectiva global as histórias das estruturas sociais e políticas que influenciaram a educação latino-americana, bem como o papel desempenhado por questões de raça e de etnia nesse processo na América Latina, ao mesmo tempo que dedica refinada atenção às variações e às particularidades dessas experiências e levanta várias questões para novas agendas de pesquisa em história da educação.

Referências

Castillo, E. D. (2013). Aportes del pueblo afrodescendiente: la historia oculta de America Latina. Bloomington, IN: iUniverse. [ Links ]

Universidade Federal Fluminense. (2020). Coleção Personagens do pós-abolição: trajetórias e sentidos de liberdade no Brasil. Niterói, RJ: EDUFF. [ Links ]

Veiga, C. G. (2022). Subalternidade e opressão sociorracial: questões para a historiografia da educação latino-americana. São Paulo, SP: Editora da UNESP. [ Links ]

Zapata, C. (2007). Intelectuales indígenas piensan America Latina. Quito, EC: UASB, Abya-Yala y CECLUCH. [ Links ]

3Como citar esta resenha: Ribeiro, J. R. (2023). Subalternidade e opressão sociorracial: questões para a historiografia da educação latino-americana. Revista Brasileira de História da Educação, 23. DOI: http://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e283

4Financiamento: A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e do Programa Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

5Licenciamento: Esta resenha é publicada na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Recebido: 06 de Junho de 2023; Aceito: 07 de Junho de 2023; Publicado: 12 de Junho de 2023

*E-mail: jonatasroque4@gmail.com.

Jonatas Roque Ribeiro é mestre e doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas. Integrante da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros. Estuda temas relacionados à história de experiências negras, destacadamente o associativismo negro, nas emancipações e no pós-abolição no Brasil. No primeiro semestre de 2023, atuou como pesquisador colaborador e realizou estágio de pós-doutoramento no LABHOI-UFJF. Atualmente, realiza estágio de pós-doutoramento na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. E-mail: jonatasroque4@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-5074-4401

Editor-associado responsável: José Gonçalves Gondra (UERJ) E-mail: gondra.uerj@gmail.com.br https://orcid.org/0000-0002-0669-1661

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