Introdução
O texto que aqui apresentamos faz parte de uma pesquisa (Freitas, 2021) na qual analisamos a relação entre Trabalho e Educação na produção de Anton Semiónovich Makaranko (1888-1939). A pesquisa mais ampla buscou analisar como a concepção de educação integral do autor levou ao desenvolvimento de uma dimensão pedagógica da economia, pautada em um novo entendimento da relação entre trabalho e educação.
A época e a obra do autor são marcadas pela Nova Política Econômica - NEP (1921-1928) -, que buscou construir o socialismo em um país que estava em um estágio semifeudal. Para além dos esforços de produção, a NEP adotou estratégias formativas e educacionais, difundindo tanto a “nova” lógica do trabalho industrial quanto a formação dos princípios coletivistas que a Revolução de 1917 sustentava.
Nosso intuito neste artigo é evidenciar como os conceitos de perspectiva e de dimensão pedagógica da economia apresentaram-se como uma estratégia educacional diferenciada de Makarenko, em um cenário no qual a relação entre trabalho e educação suscitava amplos debates. O pedagogo ucraniano enfrentou a discussão sobre a profissionalização dos jovens em idade escolar e o desenvolvimento de uma abordagem de educação integral, na década de 1920, momento histórico no qual o desenvolvimento industrial e a necessidade de formação de profissionais se colocavam como imperativos. A análise da obra de Makarenko nos ajuda a compreender como o autor enfrentou a necessária relação entre desenvolvimento tecnológico e a formação do trabalhador, dilema presente na Rússia pós-Revolução e já apontado por Karl Marx (1818-1883), ainda no século XIX, como uma formação integral, composta por três elementos fundamentais: educação intelectual interpretada como os elementos de cultura geral; educação corporal, entendida como as atividades vinculadas ao corpo e à saúde; educação tecnológica, ou os princípios técnicos e científicos envolvidos na produção (Marx & Engels, 1978).
Os objetivos do texto e as exigências deste espaço impedem que todas as determinações e contradições daquele momento histórico sejam exploradas aqui. Entendemos, porém, que a produção do autor estudado traz as marcas de seu tempo histórico e não pode ser compreendida sem ele. Makaranko é um pedagogo ucraniano internacionalmente estudado. Sua produção teórica é resultado das realizações como Diretor da Colônia Gorki (1920 a 1928) e educador da Comuna Dzirjinski (1927 a 1935), durante o regime socialista na União Soviética, e ainda hoje apresenta elementos a serem explorados. Em um contexto de transformações políticas e sociais, intensa guerra civil e privações de recursos de toda ordem, o pedagogo obteve notáveis resultados formativos com jovens em sua maioria órfãos ou “menores abandonados”.
Aqui cabe uma observação: os soviéticos utilizavam o termo besprizorniki (Беспризорники). Embora frequentemente este termo seja traduzido no Brasil como “delinquentes” ou “infratores”, Edwards (1991) destaca que a palavra criada para a realidade russa não tinha esse significado depreciativo; expressava, sim, um espírito de compaixão. Na língua inglesa, a autora afirma que os termos mais usados eram unsupervised (sem supervisão), uncared for (carente), not looked after (sem ninguém para cuidá-lo), neglected (negligenciado), homeless ones (sem lar), abandoned (abandonado), waif (pária) e stray (desgarrado). Fricke (1979) afirma que foi durante a década de 1930 que os besprizorniki foram assumindo o sentido ocidental de “delinquentes”. Parece-nos que em português o termo “menor abandonado” seria o que mais se aproximaria da ideia de compaixão dada pelos russos, ao mesmo tempo que expressa os riscos envolvidos àqueles que estão à margem da sociedade, ou seja, marginalizados. De acordo com Fitzpatrick (1979), frequentemente envolvidos em pequenos delitos, “assombrando” cidades e ferrovias, a vida dos besprizorniki era vista pela juventude dos anos 1920 como glamourosa e anárquica, com sua própria cultura marginal e antiautoritária. Makarenko lutou, também, contra essa visão da juventude romantizada ou como “herói de Byron” (Makarenko, 1979a).
Diante desse complexo contexto, Makarenko desenvolveu diferentes estratégias para o trabalho pedagógico, no qual se destaca o desenvolvimento de uma educação pelo e para o coletivo. A aproximação ou não dessa pedagogia com os ideais que motivaram a Revolução Socialista de 1917 na Rússia também colocaram o autor como alvo de debates. Rose Edwards (1991) informa que, após a morte de Makarenko, no contexto do stalinismo1, tem início um processo de torná-lo um “herói” e fundador da educação soviética, comprometendo a “confiança” das publicações do autor, que passam a ser editadas pelo Estado Soviético em diferentes idiomas. Isso exige do pesquisador um olhar atento para as obras, buscando sempre o diálogo com as contradições do período e produzindo uma análise que supere o romantismo do objeto de estudo como um “herói” ou “vilão”.
Para dar conta desta análise, a metodologia de pesquisa consiste em um estudo bibliográfico de algumas obras do autor, principalmente aquelas que expressam o trabalho desenvolvido na década de 1920, na Colônia Gorki. Apesar de entendermos que na Comuna Dzerjinski há elementos de continuidade na pedagogia makarenkiana, as especificidades da instituição e do contexto produziram elementos de diferenciação que precisam ser analisadas em outro trabalho.
Buscamos fazer uma revisão da literatura que ajude na construção de novas interpretações sobre o objeto de pesquisa (Alvez-Mazzotti & Gewandsznajder, 2002). Compartilhamos o entendimento de Ragazzini (2001) de que as fontes apresentam-se ao pesquisador com “camadas sobrepostas”, compostas por vários níveis de relações históricas, em que se destacam: a) as relações nas quais o documento é produzido; b) as relações que colocam aquele documento como importante para o estudo. Ainda segundo o mesmo autor, as fontes não falam por si, mas respondem as perguntas feitas pelo pesquisador. É preciso, portanto, entender que as fontes de pesquisas não são neutras, mas apresentam uma intencionalidade. Além da temporalidade das fontes, existe a temporalidade do pesquisador que, segundo Evangelista (2009), vivendo em um dado momento, relaciona-se com o tempo das fontes e o tempo das análises que sobre elas se produziram. É nessa nessa tríplice temporalidade que, segundo a autora, o conhecimento é produzido, e é também nela que se fundamenta a orientação deste texto.
Com esse horizonte metodológico, analisamos, por exemplo, a obra mais importante de Makarenko, o Poema pedagógico, que eternizou a experiência educacional na Colônia Gorki. Esse livro, produzido em três volumes no decorrer de 10 anos, entre 1925 e 1935, é uma narrativa da experiência educacional de Makarenko e o processo de construção da sua pedagogia, bem como os erros, os acertos e as justificativas. Poema pedagógico “[...] é uma obra que não admite indiferentes” (Vigdorava, 1975, p. 166). Uma obra que expressa as dificuldades econômicas e sociais do início dos anos 1920 e o esforço na tentativa de construção de uma nova sociedade, enfrentando a escassez de recursos, passando fome e frio, mas com uma esperança infinita no futuro.
Essas características do Poema pedagógico aproximam o autor do movimento artístico-literário conhecido como Realismo Socialista2. De acordo com Andrade (2010), Máximo Gorki (1868-1936) é considerado o representante mais significativo e, ao mesmo tempo, a inspiração que deu origem a esse movimento, atuando como uma de suas lideranças. A aproximação de Gorki com Makarenko já é bastante conhecida (Capriles, 1989; Luedemann, 2002), seja como amigo e referência, seja como consultor literário deste, além de patrocinador da publicação do Poema pedagógico. Essa obra, portanto, precisa ser compreendida não somente como expressão da experiência educacional do seu autor, mas também como produto das disputas políticas e das lutas ideológicas internas e externas à União Soviética.
A luta contra o fetichismo ético do trabalho
Antes de analisar a experiência da Colônia Gorki, é preciso discutir a especificidade da estratégia educativa através de colônias. A ideia de Colônia expressa claramente uma concepção da relação entre trabalho e educação e é entendida como uma instituição que tem intenções de recuperar ou integrar jovens e crianças que estão à margem da sociedade, por meio do trabalho e do estudo. Uma análise histórica interessante desse processo foi feita por Mariano Enguita (1989). Ao discutir o desenvolvimento da educação em massa no capitalismo, o autor aborda a questão de como a sociedade enfrentou o problema dos órfãos, “vagabundos” e desamparados, juntamente à necessidade de disseminar a educação dos novos valores do trabalho que a “nova” sociedade industrial demandava:
[…] foi o desenvolvimento das manufaturas que converteu definitivamente as crianças na guloseima mais cobiçada pelos industriais: diretamente, como mão de obra barata, e indiretamente, como futura mão de obra necessitada de disciplina. O momento culminante dos orfanatos e, em geral, do internamento e disciplinamento das crianças em casas de trabalho e outros estabelecimentos similares foi o século XVIII. Na Inglaterra, as workhouses3 converteram-se em Schools of Industry ou Colleges of Labour. O essencial não era já pôr os vagabundos e seus filhos a fazer um trabalho útil com vistas à sua manutenção, mas educá-los na disciplina e nos hábitos necessários para trabalhar posteriormente […] Muitos autores expressaram seu desejo de ver universalmente internadas as crianças pobres e “escolarizadas”, o que fundamentalmente significava submetidas a muitas horas de trabalho e alguma instrução (Enguita, 1989, p. 109, grifo do autor).
Como podemos perceber, a ideia de Colônia educativa não foi uma invenção dos socialistas, embora a sua utilização assuma outras características após a Revolução de Outubro. No início do Poema pedagógico, ao chegar no local onde funcionaria a Colônia Gorki, Makarenko mostra indícios de como funcionavam essas instituições:
Antes da Revolução existia aqui uma colônia de menores. Em 1917 ela se dispersou, deixando atrás de si bem poucos vestígios pedagógicos. A julgar por esses vestígios, preservados em surrados diários, os diretores pedagógicos da colônia eram velhos militares […] cujas obrigações consistiam em vigiar todos os passos de cada um dos seus educandos, tanto no trabalho como nas horas de recreio, e à noite dormir no aposento adjacente. Pelos relatos dos camponeses vizinhos podia-se deduzir que a pedagogia desses “tios” não tinha nenhuma complicação especial. Externamente expressava-se com um instrumento tão simples como um porrete (Makarenko, 1979b, p. 12, grifo do autor).
Essa ideia presente ainda nas velhas instituições, de que o “trabalho enobrece o homem”, de certa forma, encontra vários defensores dentro do socialismo soviético. Makarenko nunca deixou de ressaltar a importância fundamental do trabalho, mas este não bastava para a formação que almejava. Falando a professores e pesquisadores em 1938, Makarenko defendia a presença do trabalho não somente em instituições do tipo Colônia, mas também em todas as escolas:
Eu sou um defensor não só da educação do trabalho, mas também da produção. Marx disse claramente, que as crianças devem participar da produção desde os nove anos […] sou defensor dos processos de produção na escola, incluídos os mais simples, baratos e entediantes. Porque somente no processo de produção se forma o verdadeiro caráter do homem, do membro da coletividade do trabalho; ali é onde o sujeito aprende a sentir sua responsabilidade por uma peça, quando tem que cumprir todo o plano financeiro de produção. Eu acredito que, com o tempo, teremos uma escola de produção (Makarenko, 1977, p. 268).
Makarenko vai enfrentar a questão do trabalho como valor em si, o qual, segundo ele, é expressão de um dos “[…] erros do chamado fetichismo ético” (Makarenko, 1986, p. 56). Segundo o autor, há uma consequência do caráter quase sagrado do trabalho entre os socialistas, que pode ser verificada a seguir.
A princípio o trabalho era percebido como um trabalho simples, como trabalho de “autosserviço”, depois como um processo laboral inútil, improdutivo, como exercício para consumir energia muscular. […] Mas acreditávamos tanto na força ética do próprio termo que também a lógica nos parecia sagrada. […] Em todo o caso, o trabalho sem um ensino que marche a par, sem uma educação política e social que o acompanhe, não produz efeito educativo algum e converte-se num processo neutral. Podeis obrigar a trabalhar uma pessoa quanto quereis, mas se ao mesmo tempo não a educais política e moralmente, se esta pessoa não participar na vida social e política, o trabalho será simplesmente um processo neutral que não dará resultado positivo algum. O trabalho que serve de meio educativo só é possível como parte de um sistema geral (Makarenko, 1986, pp. 56-57, grifo do autor).
Makarenko percebe esse fetichismo ético do trabalho a partir da sua experiência com os educandos e passa a combatê-lo, posteriormente. É significativa a análise de educandos como Prijodko, Karabanov ou Mitiaguin do Poema pedagógico. Afirmava Makarenko que Prijodko era um verdadeiro bandido, causando vários problemas na Colônia, porém “[...] para o trabalho não havia ninguém melhor que ele. Nas tarefas mais difíceis, seu humor nunca foi alterado, e ele usou com paixão o machado e o martelo, mesmo quando eles não caíam na cabeça do vizinho” (Makarenko, 1979b, p. 152).
Quanto a Mitiaguin, afirmava Makarenko que aquele sempre foi ladrão, antes e durante o tempo em que permaneceu na Colônia, até ser expulso. Karabanov também acompanhava Mitiaguin em muitos de seus erros, inclusive, quando aquele é expulso, resolve acompanhá-lo. A saída dos dois causa grande impacto no trabalho da colônia:
Tanto Karabánov como Mitiaguin eram excelentes trabalhadores. Karabánov sabia como se dedicar ao trabalho com ímpeto e paixão, sabia encontrar alegria no trabalho e transmiti-la aos outros. Faíscas de energia e inspiração irradiavam literalmente de suas mãos. Ele não fazia nada além de rosnar de vez em quando contra preguiçosos e menos esforçados, mas isso era o suficiente para envergonhar o vagabundo mais declarado. No trabalho, Mitiaguin foi um excelente complemento para Karabánov. Seus movimentos distinguiam-se por ser suaves e felinos - autênticos movimentos de ladrão - mas em tudo tinha sorte, tudo fazia bem, com muito bom humor (Makarenko, 1979b, p. 198).
Em 1935 no artigo “Baques pedagógicos”, Makarenko reafirma essa ideia de que o trabalho em si, não acompanhado de disposição social e coletiva, pouco contribuía para a formação de novas motivações de conduta. A única vantagem era ocupar o tempo e dar um “cansaço positivo” (Makarenko, 1977). Podemos perceber, de certa forma, outra dimensão do fetichismo ético do trabalho, muito parecido com a lógica do trabalho dos monastérios, popularizado como ora et labora4.
No mesmo artigo, afirma Makarenko que os educandos com maior capacidade de trabalho eram também menos sensíveis à influência moral, explicitada pelo desdém pelas pessoas, desvalorização pelo estudo e ausência de perspectivas para o futuro. Tinham a convicção de que o trabalho realizado os livrava de qualquer obrigação moral (Makarenko, 1977). Essa constatação da “neutralidade do processo de trabalho” na formação das “novas motivações sociais” causou espanto aos educadores da Colônia.
Segundo Makarenko, essa neutralidade se aplicava, em um primeiro momento, ao “trabalho não qualificado”, aquele voltado para a própria manutenção da colônia. Reconhece Makarenko que, devido à pobreza da colônia, era necessário continuar praticando, porém “[…] nossas perspectivas pedagógicas haviam deixado de basear suas esperanças nele” (Makarenko, 1977, p. 289). Esse tipo de trabalho se aproxima muito da ideia de autosserviço que passa a ser criticada por Shulgin (2013) somente na década de 1930, mas que já na década de 1920, quando se desenvolve as atividades da Colônia Gorki, Makarenko percebe seus limites.
Makarenko conclui que “[…] o fraco complexo de motivações do trabalho simples determina, antes de tudo, sua neutralidade moral” (Makarenko, 1977, p. 289), e passa, então, a montar oficinas na Colônia buscando um trabalho mais complexo e com mais possibilidades de elementos formativos. O foco recai no trabalho das oficinas presentes na colônia: ferraria, sapataria, marcenaria, carroceria e cestaria. No Poema pedagógico, descreve Makarenko que “[…] cada colonista estava consignado a uma ou outra oficina, e ninguém queria deixar de trabalhar nelas” (Makarenko, 1979b, p. 222).
Essas oficinas atendiam também à população local, cobrando por esses serviços. Para isso passam a contar com profissionais que desempenhavam a função de instrutores. As personalidades de alguns desse instrutores, descritas no Poema Pedagógico, são bem peculiares e merecem ser pontuadas aqui. A ferraria é assumida inicialmente por Sofrón Golován, descrito por Makarenko como “[…] sempre ‘alto’, mas nunca bêbado […] deixava sempre as pessoas abismadas com a sua ignorância. Golóvan era uma amálgama monstruosa de ferreiro com kulak5 […] suas mãos pareciam mais sagazes do que a sua cabeça” (Makarenko, 1979b, p. 59, grifo do autor).
Na oficina de carroceria, os trabalhos são assumidos por Kósir, recém-saído de um manicômio, onde teria sido internado erroneamente por sua esposa, da qual ele tinha pavor. Kósir representa na colônia uma caricatura da religiosidade dos aldeões: “Sua religiosidade era encarada como um tipo especial de insanidade, muito grave para o doente, mas nem um pouco perigosa para os circundantes. […] despertou nos educandos um sentimento de aversão à religião” (Makarenko, 1979b, p. 62).
A descrição desses profissionais feita por Makarenko expressa, de certa forma, os elementos da antiga sociedade que ainda se faziam presentes e exemplificam a preocupação de Vladimir Ilyich Ulianov, Lênin (1870-1924), durante a NEP, de que era necessário aprender com os antigos profissionais e comerciantes6. Esse ranço também vai se manifestar na educação desenvolvida através do trabalho dessas oficinas. Era um trabalho artesanal, acompanhado de uma responsabilidade mais notável, com condições para o surgimento de motivações relacionadas ao futuro do educando. Esse tipo de serviço substitui certos costumes antissociais, porém Makarenko percebe que, quanto mais se qualificavam, mais se distanciavam de suas ideias de formação.
O desenvolvimento do educando se dirigia a um ponto que todos conhecíamos perfeitamente: a um tipo muito pouco atraente de artesanato. Seus atributos eram: grande autossuficiência nos raciocínios junto a uma completa ignorância; uma linguagem muito pobre e ruim, com pensamentos curto, ideais pequeno-burguês de oficina artesanal, mísera inveja e hostilidade com o colega […] atitude grosseira e obtusa com as crianças e as mulheres e, por último, como culminação, uma atitude puramente religiosa diante o ritual da bebida […] Pobre por seu conteúdo moral, o trabalho artesanal parecia aos nossos olhos, como uma via negativa para a educação comunista (Makarenko, 1977, pp. 290-291).
O trabalho artesanal aparece como herança do passado e portador de valores da antiga sociedade, que precisavam ser aprimorados. Essa preocupação também exemplifica como os objetivos educacionais de Makarenko estão articulados às necessidades de desenvolvimento e modernização da produção, presentes na sociedade soviética.
Essas considerações, contraditoriamente, acabam fazendo com que Makarenko desenvolva uma atitude crítica em relação à profissionalização dos seus gorkianos, em um momento em que a profissionalização da escola média estava em expansão na União Soviética. Makarenko percebeu que os colonistas, principalmente no início, “[…] encaravam a agricultura como meio de subsistência e melhoria de vida, mas a oficina era considerada uma profissionalização” (Makarenko, 1979b, p. 222). No entanto, a forma como se desenvolveram alguns conflitos revelou que esse tipo de qualificação seria uma busca por interesses individuais contrários aos interesses da coletividade. Questiona Makarenko: “[…] que qualificação? De carpinteiro, sapateiro, moleiro. Não, eu creio firmemente que, para um moço de dezesseis anos da nossa vida soviética, a qualificação mais preciosa é a qualificação de lutador e de homem” (Makarenko, 1979c, p. 166). Nesse momento, em Gorki, portanto, Makarenko se posiciona contrário à qualificação antes dos 17 anos de idade. A organização da colônia, no entanto, mediante o apoio financeiro aos ex-educandos, passou a oferecer uma formação profissional nas rabfaks7 e no ensino superior.
Ainda restava na Colônia o trabalho principal, o agrícola. Todavia, no início das atividades em Gorki, a agricultura estava muito próxima da ideia de autosserviço, como um meio de subsistência da colônia. Ass dificuldade desse começo, com restrições de toda a ordem, em que a fome e a escassez de recursos acompanhavam a todos diariamente, não impediram que Makarenko tivesse esperanças no desenvolvimento de uma economia baseada na agricultura. O começo em Poltava com a falta de animais, os conhecimentos técnicos insuficientes e o terreno arenoso eram obstáculos para a realização do “sonho agrário” que precisavam ser superados:
No início estávamos inclinados a ver a agricultura como base de nossa economia e acreditávamos cegamente no velho preceito de que a natureza enobrece. A natureza que devia enobrecer, olhava o colono de Gorki com olhos de terra inculta, descuidada […] de esterco que devia ser recolhido, levado ao campo e ser distribuído; da carroça a ser consertada, da pata do cavalo que devia ser tratada. Bonito enobrecimento! (Makarenko, 1977, p. 291).
Essas dificuldades começaram a ser superadas somente em 1923. Para isso, duas mudanças foram significativas: a contratação de um agrônomo para superar a falta de conhecimentos e a conquista de uma nova propriedade, Trepke, descrita por Makarenko como um “cadáver rico” (Makarenko, 1979b), com várias edificações e infraestrutura, embora em péssimo estado de conservação. Essa propriedade havia sido descoberta por Makarenko ainda em 1921, mas o processo de reforma levou dois anos e a mudança para a nova propriedade ocorreu somente em outubro de 1923.
A presença do agrônomo Nikolái Ednardovtch Feré, que no Poema pedagógico recebe o nome de Eduard Nikolayevich Shere, contribuiu para a consolidação da economia agrária da colônia. O entrosamento desse profissional nas atividades descritas no capítulo “Sementes de qualidade” do Poema pedagógico revela também elementos da relação entre trabalho e educação que passa a ser desenvolvida por Makarenko e que vai marcar a sua pedagogia. Feré traz uma organização matemática para as atividades agrícolas, racionaliza os processos instituindo medidas de peso, de quantidade e de tempo para as diferentes atividades. Sabia “[…] lidar com letras de câmbio, conseguir crédito em geral, e por isso na colônia começaram a aparecer novas semeadeiras, podadeiras, separadeiras, porcos machos e até vacas” (Makarenko, 1979b, p. 227). Embora descrita como uma “lógica patronal”, a ações de Feré substituíram a miséria dos anos anteriores por uma “riqueza emergente” (Makarenko, 1979b, p. 207), trazendo de volta a alegria na colônia, mas, principalmente, a valorização da atividade agrícola, agora mais especializada. No auge das atividades, torna-se significativamente produtiva e lucrativa, atingindo níveis impensáveis para o início dos anos de 1920:
Consegui durante dois anos, e somente graças aos grandes conhecimentos e a prática do agrônomo N. Fere, ter uma fazenda rentável, porém não cerealista, e sim pecuarista. Esta fazenda, equipada segundo a última palavra da técnica […] nos deu bons benefícios e nos permitiu viver com alguma folga. Não só podemos comer e nos vestir bem, mas também rapidamente completar nossos recursos para materiais escolares, expandir nossa biblioteca, construir e equipar um bom palco. Com este dinheiro adquirimos instrumentos para a banda de música, um projetor de cinema […]. Além disso, ajudávamos àqueles que tinham estudado na colônia, que cada vez eram mais, aos que estudavam em instituições de ensino superior, aos educandos necessitados e a muitos que casavam. […] (Makarenko, 1977, pp. 249-250).
Nikolái Feré escreveu um artigo sobre a experiência com Makarenko no qual afirmava as exigências feitas a ele por Makarenko, como cobrar-lhe que fosse não apenas um agrônomo, mas também um “educador com sensibilidade”: “[…] era preciso saber abordá-los [os educandos], tornar o trabalho interessante, fomentar neles o sentimento de orgulho pelos êxitos econômicos da colônia” (Feré, 1975, p. 107).
O papel desempenhado pelo agrônomo na colônia, embora com destaque maior, segue a mesma lógica presente na descrição do ferreiro e do carroceiro que apresentamos anteriormente, da necessidade de aprender com os profissionais da antiga sociedade, inserindo-os em novos objetivos. Ao explicar a aceitação das exigências e da autoridade do agrônomo pelos educandos, Makarenko expressa também o seu posicionamento em relação à Pedagogia:
Eu já sabia que a rapaziada não aprovava a convicção intelectualista de que as crianças só podem amar e apreciar quem as ama, quem as trata com carinho […] O que nós chamamos de alta qualificação, conhecimentos nítidos e seguros, capacidade, arte, mãos de ouro, poucas palavras e total ausência de pose, disposição constante para o trabalho - eis o que mais fortemente atrai as crianças. […] tanto faz quem sejamos: marceneiro, agrônomo, ferreiro, professor, maquinista (Makarenko, 1979b, p. 208-209).
Makarenko percebeu que o crescimento da coletividade e o desenvolvimento da colônia fez surgir e fortalecer novas motivações socioprodutivas, formando aos poucos a nova personalidade dos educandos. Junto às conquistas no âmbito da economia agrícola, é possível perceber, no Poema pedagógico, o desenvolvimento de outras estratégias pedagógicas de Makarenko. Nesse período, meados de 1923, podemos identificar que Makarenko desenvolve também: os destacamentos, a incorporação da organização militar, o conceito de perspectiva e o papel da competição na educação.
Por ora, é importante destacar o entendimento do tipo de trabalho que tem a sua dimensão educativa otimizada: o trabalho produtivo; embora o autor vá consolidar esse posicionamento após a contribuição da experiência da Comuna Dzerjinski. Afirmava Makarenko em 1939 que “[…] o trabalho que não tem como finalidade a criação de valores materiais não é um elemento educativo positivo; portanto, inclusive o trabalho que consideramos educativo deve relacionar-se também com os valores que tal trabalho pode criar” (Makarenko, 1977, p. 249). Dessa forma, Makarenko supera o trabalho do tipo autosserviço e, também, o “artesanal” desenvolvido nas oficinas. Denunciava Makarenko em 1922: “O fundamento da escola russa não deve ser a ocupação-trabalho, mas o trabalho-preocupação. Somente a organização da escola como uma economia lhe fará socialista” (Makarenko, 1922 apud Kumarin, 1975, p. 22).
O que podemos perceber ao analisar a experiência da Colônia Gorki é que a contribuição do trabalho produtivo não é a sua dimensão da qualificação ou dos conhecimentos técnicos adquiridos, embora esteja articulado com a dimensão da formação. A dimensão educativa do trabalho produtivo mostra-se justamente no âmbito econômico. Afirmava Makarenko em 1924: “Somente o trabalho em uma economia coletiva é valioso para nós, mas valioso apenas porque tem preocupação econômica a cada momento, não apenas um esforço de trabalho” (Makarenko, 1977, p. 276).
Tendo esse horizonte mais amplo, da dimensão pedagógica da economia, Makarenko desenvolve também diferentes estratégias específicas, como a mobilização dos educandos a partir do conceito de perspectiva. Passamos a analisá-lo a seguir.
Trabalho, desenvolvimento econômico e educação através da perspectiva
Entendemos que o conceito de perspectiva não recebe tanto destaque nas análises de Makarenko, embora seja central na sua pedagogia. Outros conceitos como coletividade e autogestão acabam ocupando um espaço maior nos estudos8. A noção de perspectiva, no entanto, é um dos fundamentos da coletividade e de seu funcionamento com base na autogestão.
O conceito de perspectiva vai aparecer elaborado teoricamente na obra Metodologia para a organização do processo educativo (Makarenko, 1986), publicada pela primeira vez em 1936, mas percebemos a sua construção e as suas implicações na relação entre trabalho e educação já no Poema pedagógico. Esse conceito expressa de alguma forma a ideia de que a “riqueza emergente”, produzida e apropriada coletivamente, vai ajudar no fortalecimento dos laços da coletividade. As experiências na colônia foram determinantes para chegar à seguinte afirmação:
Um verdadeiro estímulo da vida humana é a alegria do amanhã. Na técnica pedagógica esta alegria do amanhã é um dos objetos mais importantes do trabalho. […] é necessário ir transformando insistentemente os tipos mais simples de alegria em tipos mais complexos e humanamente significativos. […] da satisfação mais simples até o mais profundo sentido do dever. […] Quanto mais ampla é a coletividade cujas perspectivas se identificam com as perspectivas pessoais do indivíduo tanto mais nobre e belo é este último. Educar um ser humano significa formar nele capacidades para que possa escolher vias com perspectivas. […] Pode-se começar com um bom almoço e com uma ida ao circo, mas é preciso sempre animar toda a coletividade pela vida e gradualmente alargar as suas perspectivas, enaltecê-las até o nível dos objetivos de todo o país (Makarenko, 1986, pp. 180-181).
Vinculando à discussão sobre o trabalho produtivo e a sua dimensão educativa, podemos perceber que o aperfeiçoamento das atividades agrícolas na Colônia Gorki ocorre à medida que se forma nos colonistas uma grande perspectiva de futuro, de crescimento econômico. O desenvolvimento do trabalho, da disciplina, está condicionado ao estabelecimento de uma perspectiva clara, que para isso precisava ser dividida em três etapas: perspectiva próxima; perspectiva a médio prazo; perspectiva a longo prazo. O objetivo precisa ser mais do que a transição de satisfações imediatas para as mais longínquas, o foco deve ser as aspirações coletivas com predomínio sobre as pessoais, mas sem serem contraditórias.
O grande diferencial aqui é que os educandos buscariam alcançar essas perspectivas através do trabalho desenvolvido na produção. A perspectiva deixa de ser simplesmente a satisfação de desejos ou “[…] uma alegria de simples divertimento e satisfação no dado momento, imediata, [e passa a ser] uma alegria provocada pelas tensões e êxitos de trabalho do dia de amanhã” (Makarenko, 1986, p. 186). Os planos de produção e as suas dificuldades, segundo o pedagogo ucraniano, devem ser do conhecimento de todos, para isso é necessário a emulação socialista, na qual “[…] a coletividade deve estar mobilizada para a luta por uma produção melhor […] quais máquinas ferramentas fazem falta e onde se podem comprar” (Makarenko, 1986, p. 184). Nota-se aqui a incorporação na pedagogia de Makarenko da ideia de Planificação da Economia, adotada pela URSS desde 1920 (Mikhailova, 2014). Essa estratégia vai ser mais desenvolvida na Comuna Dzerjinski. Mas é a partir da experiência na Colônia Gorki que Makarenko vai perceber a sua necessidade.
A perspectiva próxima começa com metas com impacto pessoal, mas que também contribuem para o coletivo, como salas equipadas, quartos aquecidos, alimentação aceitável, proteção, entre outras que contribuem para um “[...] trabalho educativo correto” (Makarenko, 1986, p. 182). A perspectiva próxima desenvolveria também um trabalho cultural (clubes temáticos, sessões de leitura, teatro amador) que ajudaria na substituição de velhos hábitos como jogos de cartas, roubos e bebidas alcoólicas. São ações importantes na medida em que criam uma aspiração para o dia de amanhã “[...] repleto de esforço e êxito coletivos” (Makarenko, 1986, p. 185).
Em relação à perspectiva a médio prazo, afirma Makarenko que esta “[…] consiste em projetar um acontecimento coletivo relativamente distanciado no tempo” (Makarenko, 1986, p. 187). O autor cita como exemplo uma viagem de férias, a participação em desfiles, festas comemorativas, entre outras. A importância vai além da realização, passa pelo envolvimento do coletivo em sua preparação. O trabalho produtivo desenvolvido é uma das bases desse período de preparação. Em relação às férias, por exemplo, declara Makarenko que
[…] devem corresponder aos méritos da coletividade e ao desenvolvimento da produção. Quanto maiores forem as realizações da coletividade no trabalho, quanto mais ela tiver avançado em organização e disciplina tanto mais valiosa devem ser as férias a ela concedida (Makarenko, 1986, p. 189).
O cuidado com os educandos mesmo após deixarem a colônia, manter contato, recebê-los, fazer com que eles também se preocupem com a instituição, são exemplos de perspectiva a longo prazo. Essa estratégia consolida o sentimento de um vínculo familiar, que certamente foi determinante para a formação de muitos órfãos da colônia. “A coletividade da instituição é um grande agregado familiar e para cada membro da coletividade o destino da instituição nunca pode ser indiferente” (Makarenko, 1986, p. 190). O Poema pedagógico traz vários exemplos de ex-colonistas que ajudavam no trabalho, principalmente em período de férias daqueles que estavam em instituições de ensino superior. Porém, destacam-se como exemplo dessa perspectiva as ações da colônia para manter os ex-colonistas estudando em rabfaks e instituições e ensino superior.
Para além disso, há uma preocupação pessoal de Makarenko com seus ex-educandos, com os quais mantinha correspondência. O autor montou uma espécie de arquivo, anotando o destino de muitos de seus educandos e suas personalidades: “Quase em todas as referências, como uma das características mais importantes e essenciais do caráter, se diz: ‘coletivista’, ‘excelente camarada’, ‘direito’, ‘sem nenhum sinal de egoísmo’” (Vigdorava, 1975, p. 167, grifo do autor). Seria a comprovação de que teria alcançado a formação que almejava.
A estratégia de manter sempre uma perspectiva à frente foi determinante para o avanço da educação coletiva desenvolvida na colônia, mais do que unir a todos em busca de objetivos, colocavam-nos como camaradas, sujeitos que se relacionavam entre si como dependentes dos esforços uns dos outros. Certamente essa foi a ideia mais próxima de família que muitos colonistas conheciam.
Depois de grandes avanços produtivos e consolidação da coletividade, a colônia ainda instalada em Trepke passa por um período de crise em meados de 1925. Dois conflitos especificamente revelam a infiltração de certa lógica pequeno-burguesa: primeiramente, um colonista - Oprichko - solicita à colônia um dote para casar-se. A forma como faz a exigência levam à sua negação por parte do Conselho. Isso acaba gerando outros conflitos que culminam com a sua expulsão da colônia. O segundo acontecimento marcante é o suicídio de Tchobot, porque outra educanda - Natacha - não queria ir viver com ele e sua família. São acontecimentos narrados no capítulo “Não Ganir” e “Gente difícil”, em que Makarenko percebe “[…] uma crise perigosa, ameaçando fazer voar para o abismo valores para [ele] inegáveis, valores vivos, vitais, criados como por milagre pelos cinco anos de trabalho do coletivo” (Makarenko, 1979c, p. 165).
Essa crise é compreendida por Makarenko como consequência de certa estagnação na vida do coletivo. Esse é momento crucial para a elaboração do conceito de perspectiva, como afirma o autor no Poema pedagógico:
Imaginei a força do coletivo dos colonistas e de repente compreendi do que se tratava: mas claro, como é que demorei tanto tempo para entender! Tudo se resume na estagnação. Não se poderia admitir nenhuma parada na vida da coletividade. […] Um coletivo trabalhador livre não é capaz de ficar parado no mesmo lugar. A lei universal do desenvolvimento geral só agora começa a mostrar suas verdadeiras forças. A forma de existência de uma coletividade humana livre é o movimento para frente, e a forma de sua morte é a estagnação. Sim, há quase dois anos que nós estamos parados no mesmo lugar: os mesmos campos, os mesmos canteiros de flores, as mesmas oficinas e o mesmo circuito anual. Apressei-me a chegar na colônia, a fim de olhar nos olhos dos colonistas e comprovar minha grande descoberta (Makarenko, 1979c, p. 166).
Era preciso ampliar as perspectivas. Makarenko começa a buscar outros lugares para as atividades da colônia. Após várias tentativas frustradas, surge a possibilidade de ocupar outra colônia - Kuriaj. Tratava-se de um antigo mosteiro que atendia 400 crianças. A situação é descrita como deplorável: abandono, odor forte, lixo acumulado e piolhos em abundância. As crianças queimavam as portas e assoalhos para se aquecer. A estrutura tinha oficinas, equipamentos de carpintaria, estamparia e tornos, embora ninguém trabalhasse nesses lugares. Entre as alternativas, Kuriaj se apresentava mais como castigo do que um prêmio de consolação: “[…] será que os nossos anseios serão coroados por algum ridículo e imundo Kuriaj?” (Makarenko, 1979c, p. 193).
A decisão pela mudança para Kuriaj, entretanto, mostra que a ideia de perspectiva em Makarenko é mais do que uma busca por expansão das atividades econômicas, ainda que esta seja fundamental. Os colonistas são chamados a se responsabilizar com o estado de abandono que se encontra Kuriaj. Trata-se também da articulação do desenvolvimento material subordinado aos objetivos de uma coletividade, que, por sua vez, produz um forte compromisso com as necessidades da sociedade. Expressão do pressuposto de que “O futuro da União Soviética, o seu progresso constitui o grau mais elevado na formação das perspectivas” (Makarenko, 1986, p. 190).
Além de uma dimensão educativa e política, Makarenko aplica ao conceito de perspectiva uma dimensão econômica, expressão da necessidade de modernização e desenvolvimento colocados à época. O desenvolvimento econômico da colônia foi fundamental para o aprimoramento de sua função educativa. Makarenko apontava em 1924 que
[…] podemos nos orgulhar de que nossa economia está se desenvolvendo sem qualquer preocupação: por cinco anos a colônia nunca foi objeto de atenção exclusiva de ninguém. Talvez essa circunstância tenha sido uma das mais úteis educacionalmente. […] “a economia deve ser considerada por nós principalmente como um fator pedagógico”. Seu sucesso, é claro, é necessário, mas não mais do que qualquer outro fenômeno, útil no aspecto educacional. […] De fato, é necessário sentir cada detalhe econômico, qualquer processo de negócios privado como um fenômeno pedagógico. Isso requer muita atenção e cuidado. […] O trabalho, a disciplina, a vida, o trabalho educativo, o futuro do aluno e o educador devem estar todos localizados ao longo do progresso econômico da comuna, levando em conta o fator central - o progresso econômico de todo o país (Makarenko, 1977, p. 276-281, grifo nosso).
Ele segue a mesma lógica em uma das conferências destinada aos pais, em 1937. Ao dar orientações sobre a economia familiar, Makarenko afirma que a educação econômica ajuda a família e o Estado, pois torna os sujeitos administradores honestos e construtivos, desenvolvendo a honestidade, a previsão, o cuidado, o senso de responsabilidade, a capacidade de orientar-se e a capacidade operativa. O coletivismo, explica o autor, “[...] significa solidariedade do homem para com a sociedade. Sua antítese é o individualismo.” (Makarenko, 1981, p. 68).
Considerações finais
Enfim, o conceito de perspectiva e a dimensão pedagógica da economia mostram como o seu autor consegue romper com certo preconceito de que uma sociedade organizada em moldes socialistas tende à estagnação. Ao mesmo tempo, consegue lidar com princípios inicialmente tidos como capitalistas - produção de riqueza - colocando-os a serviço do coletivo e da sociedade. Nesse contexto, destaca-se o incentivo que consegue para que o trabalho se tornasse mais produtivo, dilema enfrentado por Lênin ainda nos primeiros anos da NEP.
O ideal de desenvolvimento de um sujeito orientado pelos ideais coletivistas materializa-se com a contribuição do avanço econômico da colônia, este próprio transformado em princípio pedagógico. Ao mesmo tempo, o pedagogo ucraniano buscou manter-se articulado ao projeto de construção social da Revolução de 1917. Junto às outras estratégias pedagógicas, como o destacamento e a autogestão, o diretor da Colônia Gorki buscou formar sujeitos ativos, produtivos mas não individualistas, engajados em um projeto social mais amplo.
Apesar de não ser o objetivo do autor, a sua produção mostra que uma perspectiva de educação emancipatória do sujeito somente pode ser construída na luta também por emancipação da sociedade. Porém, essa emancipação não dispensa a luta material; uma subsistência com qualidade não pode ficar para o futuro, quando a nova sociedade for alcançada, ela precisa ser construída cotidianamente, em perspectivas de curto, médio e longo prazo. Uma educação que vislumbre ser integral, vincula-se também a uma perspectiva de vida integral. O conhecimento é um dos meios de produção fundamentais, entretanto sua apropriação transcende a perspectiva academicista, devendo ser construído na luta por uma nova forma de organização social.
A dimensão educativa do trabalho estava no âmbito econômico, como atividade produtora da riqueza distribuída aos seus produtores, fortalecendo, portanto, os laços de coletividade. A ideia de uma educação apenas profissionalizante, desarticulada do conceito de perspectiva e da dimensão pedagógica da economia, dificultava a superação do individualismo. Conforme vimos neste trabalho, a formação profissional aparece como uma questão secundária na Colônia Gorki. Como essa questão está presente na Comuna Dzerjinski, é objeto de outra discussão, a ser apresentada oportunamente.