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Revista Educação e Cultura Contemporânea

versão impressa ISSN 1807-2194versão On-line ISSN 2238-1279

Rev. Educ. e Cult. Contemp. vol.15 no.40 Rio de Janeiro jul./set 2018  Epub 22-Abr-2017

https://doi.org/10.5935/2238-1279.20180049 

Artigos

Uma problematização sobre o papel do professor em ambiente hospitalar: divergências e convergências entre as instituições hospital e escola.

A problematization about the teacher’s role in hospital environment: divergence and convergence between hospital and school institutions.

Fernando Lionel QuirogaI 

Amália Neide CovicII 

IUEG, Universidade Estadual de Goiás, Brasil; fernando.quiroga@ueg.br

IIUNIFESP, Universidade Federal de São Paulo, Brasil;amalia.covic@gmail.com


Resumo

O propósito deste ensaio consistiu em discutir o papel do professor no processo de escolarização hospitalar. Concentramos os esforços no debate entre as relações da atuação deste profissional num espaço institucional diverso (o hospital) daquele implicado no seu processo de formação (a escola). A análise partiu dos principais pontos de convergência debatidos na literatura específica, sobretudo no que diz respeito às questões fundamentais preconizadas no exercício deste profissional. A intencionalidade reside nas relações dos pontos de convergência às demandas do professor atuante no ambiente hospitalar. A composição teórica de nossa argumentação partiu do conceito de ação, de Hannah Arendt. Finalmente, discutimos a ideia de interface entre as duas instituições envolvidas no processo de escolarização hospitalar, isto é, o hospital e a escola. Tal argumentação é o que nos permitiu refletir sobre a formação de professores, não mais como uma quimera escola-hospital, mas como um espaço inacabado que vai se construindo ao passo da própria história profissional.

Palavras-Chave: Formação de professores; Hospital; Escola; Instituição

Abstract

The purpose of this essay was to discuss the teachers role in hospital process of schooling. Our effort focused on the debate about the relationship of this professional work space in a different institution (the hospital) than the one responsible for his formation process (the school). Our analysis was based on the main points of convergence discussed in the relevant literature, especially regarding the key issues outlined in this professional's exercise. Our intention was to relate these points of convergence to the demands of teachers working in the hospital. The theoretical composition of our argument was based on the concept of action, created by Hannah Arendt (2007). Finally, we discuss the idea of interface between the two institutions involved in schooling at hospitals, that is, the hospital and the school. That argument is what allowed us to reflect on the teachers' exercise, not as a chimera-school hospital, but as an unfinished space that is constructed while the history itself.

Key words: Teacher's formation; Hospital; School; Institution

Introdução

É sabido que a educação formal, haja vista sua obrigatoriedade assegurada na Constituição Brasileira de 1988, não mais restringe o espaço da escola como instituição exclusiva do acesso à escolarização. O direito inalienável à educação formal, ao contrário, faz com que a instituição escolar seja apenas o seu ponto de origem, tendo então que expandir-se para onde o direito a reivindica. Exemplos disso são as experiências escolares em comunidades onde há dificuldade de acesso à escola, como em algumas regiões rurais ou comunidades indígenas, ou em situações de crianças gravemente enfermas que são privadas do acesso à escola convencional - escopo de nossa discussão. Esta realidade, na medida em que se expande em todo o território, inscreve-se na agenda do pensamento pedagógico, sobretudo no que diz respeito à formação do professor que irá atuar nestes setores - estranhos à escola convencional. Pensar no papel do professor nos diversos ambientes além da escola, torna-se, então, uma necessidade que implica na organização dos cursos de licenciatura e na prática dos profissionais atuantes nesses espaços. (CECCIM, 1999; ORTIZ, 2002; FONSECA, 2003; MATOS E MUGIATTI, 2007; QUIROGA et. al. 2013).

Mas pensar na formação docente restringindo-a aos aspectos meramente teóricos, por mais alinhados que estejam à dada realidade, não é o suficiente se não se levar em conta as demandas que só se manifestam na cotidianidade, nas questões que emergem da própria experiência diária. Aspectos relativos ao savoir faire docente, quando confrontados com a história do ensino moderno, sua carga simbólica e sua representação social, quando solicitados em outro ambiente, sugerem uma ressignificação dos seus sentidos. Isso decorre da forma institucional escolar e sua implicação na realidade social. Discutir o papel do professor em outros ambientes além do consagrado modelo escolar, torna-se, então, uma questão premente.

Nosso argumento vincula a noção de papel ao conceito de ação de Arendt (2007) na medida em que é por meio da intencionalidade que o homem legitima a sua humanidade. A defesa desta associação reside, ademais, no fato da ação deste profissional realizar-se em espaço alheio ao de sua formação convencional e, portanto, requerer dele uma ruptura da prática incorporada daquilo que Tardif (2002) chamou de saberes experienciais, incorporados na forma de habitus (Cf. Bourdieu, 2008) e que são, portanto, inconscientes. No ambiente hospitalar, considerando as características inerentes desta instituição, tais saberes legitimados socialmente, deverão manifestar-se ao longo do tempo. Tal construção, todavia, não se dá exclusivamente no local de trabalho, mas é impulsionada pelos cursos de formação, difundida pelo conhecimento científico e políticas públicas, e legitimada na forma de representações sociais. Nesse sentido, observa-se uma ruptura entre a experiência incorporada e este novo papel que se impõe, dadas as singularidades do espaço onde este professor irá atuar. A questão central deste ensaio consiste em saber até que ponto a ação, em sentido arendtiano, empresta ao entendimento de papel uma relevância filosófica que requer deste profissional características peculiares de atuação: sensibilidade, flexibilidade, inteligência, estratégias; noções que diferem das do professor atuante na escola convencional.

Este aspecto, aliás, possui certa semelhança com o entendimento de contemporâneo de Giorgio Agamben (2010). Isso porque, tanto em nosso argumento quanto na reflexão do filósofo italiano, a ideia encontra-se num ponto intermediário entre duas noções de maior plasticidade. Em nosso caso, por tratarmos do papel do professor localizado entre o campo de força das duas instituições (a escola e o hospital); no caso de Agamben (2010), ao situar o contemporâneo como o ponto intermediário entre passado e futuro. Nos dois casos há uma ideia de tensão, de suspensão, de escuridão. O filósofo italiano recorre à metáfora de uma fratura segundo a qual a cesura entre as duas hastes partidas equivaleria ao contemporâneo. De modo análogo, em nosso entendimento, o papel do professor manifesta-se através da mesma fórmula na medida em que decorre de um processo temporal, não reificado, portanto não previsível. Tal processo aponta para a ação, conforme buscaremos argumentar a seguir.

Este objeto defronta-nos de imediato com uma polarização da literatura: uma vasta e crescente produção acadêmica acerca do papel do professor em ambiente escolar proporcionalmente oposta à escassa produção dos desdobramentos sociais do papel deste profissional em outros espaços. Verifica-se uma representação social indissociável entre a figura do professor e a instituição escolar. Essa representação não somente parece conduzir o planejamento das políticas públicas sobre o trabalho deste profissional, como parece influenciar, de modo significativo, a produção científica acerca do seu trabalho. Há uma representação comum, com efeito, de que o papel do professor é desempenhado exclusivamente na escola. Deste modo, esta reflexão permite que se façam as seguintes indagações: que tipos de relações se verificam entre o papel do professor e o seu local de trabalho? Um professor alfabetizador que se desloca até uma comunidade indígena difere em quê daquele que exerce a sua profissão numa escola do Estado, localizada no centro de São Paulo? Que tipos de relações existem, finalmente, entre o ambiente e o papel que ali será desempenhado? Em todas elas há uma questão preliminar que as perpassa: a formação de professores. Em que medida os cursos de formação, ao se planejarem, consideram a questão do papel profissional em sua potencial diversidade de ambientes, diferentes ao da escola em seu sentido tradicional?

Embora no imaginário social prevaleça a relação indissociável entre a figura do professor e a escola, devem-se considerar as outras demandas que a educação, no contexto da massificação do ensino, solicitam do sistema educacional. Nesse cenário, destacam-se as escolas "improvisadas" em espaços cujo acesso às instituições apresenta dificuldades sumárias aos alunos. Tais escolas, ou geralmente encontram-se nas zonas rurais das cidades, ou nas aldeias onde ocorre a educação formal. Mas há outras situações que os alunos não podem deslocar-se para a instituição escolar, como por exemplo, nos casos em que a doença interrompeu o curso normal da vida, deixando o aluno na condição de interno. Em todos estes casos é o professor que se desloca até o aluno. O papel do professor, embora possua as marcas da identidade institucional, não se restringe a este espaço. Ele atuará como um agente da instituição escolar e, com efeito, levará consigo as marcas de sua formação. (BARROS, 2007; OLIVEIRA, 2010; COVIC; OLIVEIRA, 2011; QUIROGA et. al. 2013).

Porém, a ação do professor, quando de seu exercício em locais diferentes à instituição escolar, será perpassada pelas características do novo ambiente. Há, como sabemos, uma lógica própria na composição dos grupos sociais que se materializa na relação de convívio junto à comunidade. A questão do pertencimento e do não pertencimento, do acesso e restrição dos espaços, das representações sociais produzidas pelo grupo, são exemplos que, embora produzam semelhanças universais entre eles, manifestam-se de modos muito particulares. Tal reflexão encontra amparo nos estudos da sociologia de Elias (2000), particularmente no estudo Os Estabelecidos e os Outsiders, em que o autor busca o ponto central da diferença entre moradores de uma comunidade de trabalhadores indistintos quanto as questões econômicas, étnicas ou ideológicas. Segundo o autor, o que distinguia os antigos moradores (os estabelecidos) dos recém-chegados (os outsiders), devia-se à noção de tempo de convívio que os mais antigos levavam em detrimento dos recém-chegados. O maior proveito que se pode tirar deste estudo não é a variável identificada pelo autor, mas a diversidade infinita de variáveis que se pode identificar no cerne de determinada configuração social, na formação dos grupos.

A figura do professor em ambiente estranho, tomando de inspiração o estudo de Elias (2000), sugere uma leitura sensível quando de sua atuação nestes diversos espaços além do seu espaço de origem. Pois embora a razão do professor em deslocar-se para tais ambientes seja uma consequência da massificação do ensino, é certo que, no calor do dia-a-dia, na configuração e formação dos grupos, esse processo pode ser gerador de outras fontes de interpretações antropológicas e sociais. O professor contemporâneo, cuja representação social encontra-se desgastada - vítima de um sistema educacional localizado num contexto histórico e social de crise da modernidade (cf. CANÁRIO, 2006; BARROS, 2007; BAUMAN, 2007; ARENDT, 2014) -, quando em contato com uma realidade institucional diversa (como no caso de um hospital), estará vivenciando uma situação de confronto institucional, isto é, a cadeia de representações simbólicas acerca das instituições "escola" e "hospital", manifestar-se- ão em sua prática profissional. As tensões dessa relação é o que configuram o objeto deste ensaio. Aliás, o papel do professor assumirá uma dupla face cultural entrecortada pelas duas instituições mencionadas. É nesse processo de intersecção que o professor desempenhará o seu papel.

Nesse processo de intercambio de espaços ou instituições, materializado através dessa espécie de "improviso da escola", há, sem dúvida, valores culturais próprios da localidade onde o professor irá atuar. A rigor, a instituição escolar, longe de sua fortaleza arquitetônica, será personificada e humanizada pela presença do professor. É por meio da atuação deste profissional que as marcas da instituição deverão se manifestar, não através da rigidez formal que só fazem sentido dentro das instituições, mas principalmente a partir de sua própria intervenção pessoal, isto é, a partir de sua ação, conforme buscaremos demonstrar ao longo deste argumento. Em outras palavras, uma vez que o professor móvel humaniza a instituição que representa, ele passa a representá-la a partir de sua própria produção de sentidos.

O intercâmbio entre espaços diversos, no que se refere ao papel do professor, possuirá maiores ou menores pontos de tensão quanto à fusão que será gerada entre as instituições. Um professor atuante numa casa de detenção possuirá desafios, certamente éticos, que serão o tempo todo requisitados em sua prática.

A esse respeito, optamos por uma leitura sobre o que tem se produzido - em aspectos gerais - sobre a formação e o exercício deste profissional. (TARDIF, 2002). A literatura tem alertado para a formação de um professor cada vez mais plural e autônomo, que tenha capacidade de compreensão e leitura de mundo e que saiba articular os múltiplos saberes herdados historicamente. Num recorte mais específico, entretanto, quando este professor atua numa classe hospitalar, a ideia tem adquirido algumas contradições, como se pode constatar no trabalho de alguns pesquisadores. Segundo Oliveira (2009), uma delas refere-se ao posicionamento de um número significativo de pesquisadores defenderem que a escolarização hospitalar possa ser preterida. Aqui, porém, caberia uma discussão mais cuidadosa, sobretudo no sentido de evitar generalizações sobre o aluno doente. Em outras palavras, não se trata, na maior parte das vezes, da escolarização ser ou não preterível. O que não se pode deixar de observar são as demandas e as limitações inerentes ao aluno hospitalizado: este, para o qual a escolarização encerra o seu sentido com o mundo.

Muito se tem discutido sobre o papel dos cursos de formação docente frente aos desafios do mundo moderno e suas principais vicissitudes: a heterogeneidade do público, a necessidade de estabelecer relações entre os saberes históricos e as urgências da contemporaneidade, o sentido utilitário da educação e o sentido para a vida, etc. Pesquisadores como Tardif (2002) tem alertado sobre a complexidade da formação de professores, sobretudo no que diz respeito à atuação profissional diante dos novos desafios que vão surgindo neste campo.

Diante deste cenário, vista a importância que a educação cumpre em nossa sociedade, um dos principais desafios é rever o papel do professor e a sua formação. Justamente porque, se tomarmos como base as mutações sociohistóricas ocorridas a partir das duas principais guerras do século XX, o surgimento e a decadência dos Estados-Nação, o nascimento das democracias, o avanço acelerado da globalização e os principais problemas associados ao neoliberalismo, somos obrigados a concordar que não somente os sistemas escolares coadunaram-se a tal contexto, como a própria formação de professores, as crises das licenciaturas e a prática destes profissionais. Nesse sentido, tal processo, segundo Tardif (2002), situaria o professor numa estrutura fundamentalmente social. Quanto à situação do papel deste profissional, o autor escreve que, "O que o "professor deve saber ensinar" não constitui, acima de tudo, um problema cognitivo e epistemológico, mas sim uma questão social, tal como mostra a história da profissão docente" (TARDIF, 2002, p. 56).

Com efeito, pode-se entender o papel do professor como algo que vai se constituindo e se modelando numa relação temporal entre a formação e o exercício, dentro de um contexto sociocultural. Nesta ideia está embutida a noção de continuidade. A formação de professores deve expandir-se para além da formação inicial, isto é, a formação deve se estender por toda a carreira dos professores (TARDIF, 2002).

É notável, em grande parte da literatura, a vindicação de um professor que dê conta de atender, de forma unitária e articulada, toda a fragmentação resultante do momento histórico em que vivemos. Exige-se um professor de saberes multifacetados e que saiba se renovar, exige-se um professor que atenda o multiculturalismo decorrente do processo de globalização e que entenda, como orienta Gómez (1998), a escola como espaço de "cruzamento de culturas". Entretanto, essa discussão parece ainda muito mais pautada no plano das ideias do que na sua realização propriamente dita.

Assim, o pressuposto de que o professor deve contemplar uma multiplicidade de saberes móveis que se perpetuam não pelo seu caráter fixo e sólido, mas, sobretudo por sua efemeridade de mutações constantes, deve compreender que em seu processo de formação jamais se ignore esta mobilidade histórica.

Barros (2007), reflete sobre o papel do professor atuante em classes hospitalares:

Deve-se haver um cuidado para evitar impregnar o trabalho do professor de classe hospitalar com aquilo que mais tipicamente identifica o empreendimento educativo: a prescrição de normas, proibições, a "docilização dos corpos" das crianças e outras medidas tidas como necessárias ao processo ensino aprendizagem. (BARROS, 2007, p. 8).

Desta forma, espera-se da atuação docente em ambiente hospitalar uma característica multiepistêmica capaz de coadunar os conhecimentos básicos das ciências médicas e da instituição hospitalar com os pedagógicos e da instituição escolar.

Na intersecção resultante entre as duas instituições hospital/escola, o papel do professor é o que irá dissolver esta aparente rigidez institucional. E isso só será possível a partir de sua intervenção profissional propriamente dita. (ARENDT, 2007; BARROS, 2007; COVIC E OLIVEIRA, 2001; QUIROGA et. al. 2013).

2.0 O professor e a ação

Para efeito de análise, recorremos ao conceito de ação de Hannah Arendt em sua obra A Condição Humana (2007). Para a autora, a vida activa é a vida situada em determinada constelação histórica e perpassada de tradição cujos condicionantes a modificam em sua temporalidade. A autora reflete sobre esta questão desenvolvendo três conceitos elucidativos, a saber: o labor, o trabalho e a ação (Arendt, 2007). Utilizaremos a própria designação dos termos cunhados por Arendt com a finalidade de tornar a leitura mais econômica e fluída. Assim, labor refere-se ao processo biológico do corpo humano, cujo crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio tem a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor nos processos de vida. A autora colabora referindo que o labor é o que assegura a própria espécie, é a vida em si mesma. Trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade não é compensada por esta última. O trabalho produz um mundo artificial de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condição humana do trabalho é a mundanidade. Para Arendt (2007), o trabalho enquanto produto ou artefato produzido pelo homem, emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e o caráter efêmero do tempo humano. Ação refere-se a única atividade que se exerce diretamente entre homens e tem mediação das coisas ou da matéria, corresponde a condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o homem vivem na terra e habitam o mundo. Segundo a autora, a ação, na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança, ou seja, para a história.

A ação, a nosso ver, cumpriria um papel fundamental no tocante a questão da formação de professores, tanto no processo de escolarização normal quanto no hospitalar. Por quê?

Em que medida a ação, na perspectiva arendtiana poderia criar certa coesão entre os pontos convergentes da literatura acerca da formação docente? Em que medida as reflexões de Arendt respondem sobre as principais lacunas deixadas em aberto na literatura que trata deste assunto? A ação, segundo Arendt (2007), seria um:

(...) luxo desnecessário, uma caprichosa interferência com as leis gerais do comportamento, se os homens não passassem de repetições interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, todas dotadas da mesma natureza e essência, tão previsível quanto a natureza de qualquer outra coisa. (ARENDT, 2007, p.16).

Mas é justamente através da ação que ocorre a condição humana no sentido de fazer-se humano. Poderíamos dizer que, para Arendt (2007), a criação do humano se dá através da ação, isto é, através daquilo que cria potencialmente a condição para a lembrança e a história. Com efeito, a ação estaria mais vinculada à natalidade do que o labor ou o trabalho, já que é através desta que o pensamento atravessa o tempo e história.

Todo este entendimento, no tocante a formação docente para atendimento escolar hospitalar pode ser de grande valia no que diz respeito especificamente à pluralidade enquanto fator emergencial dos cursos formadores. Em outras palavras, a ação enquanto condição humana responsável pelo fazer histórico e pela herança dos saberes, responderia como aspecto fundamental no tocante a própria condição do professor em seu âmbito de trabalho. (Arendt, 2007). Mas, o que isso significa?

3.0 O contraponto institucional

Voltemos ao início de nossa reflexão sobre o trabalho docente hospitalar. No que difere a prática docente deste lugar em contraste ao espaço escolar convencional? Vejamos: no hospital existe um público discente diagnosticado e em tratamento, uma equipe de profissionais especializados em diversas áreas: médicos, pedagogos, enfermeiros, estagiários, voluntários, familiares, etc. Além disso, a própria instituição hospitalar difere da escolar por uma série de outros fatores como o cheiro do éter, a carga emocional presente, a expressão das pessoas ali circundantes, o ritmo do dia-a- dia, os protocolos, a angústia dos parentes, o silêncio, e todo o complexo de signos que contribuem para que se forme a imagem global da instituição. Assim, por outro lado, também podem se verificar as peculiaridades presentes na instituição escolar convencional. Peculiaridades que abrangem desde a equipe gestora, os discentes, a organização curricular, o ruído dos recreios, a rotina, e assim por diante. Estes dois trechos de Dostoievski (2015), o primeiro sobre o hospital e o segundo sobre a escola servem-nos aqui como retratos ilustrativos deste argumento. Vejamos o primeiro, retirado de Memórias da Casa dos Mortos:

Essa prevenção... (inicial, contra os médicos, enfermeiros e todos os tratamentos ditos oficiais) ...tem uma causa extremamente grave e totalmente alheia à medicina: provém da desconfiança geral do nosso povo para com tudo o que traz a estampilha oficial...têm prevenção contra o hospital, graças a uma infinidade de narrativas pavorosas que ouve, frequentemente estúpidas e destituídas de qualquer fundamento... (DOSTOIEVSKI, 2015, p. 112).

E, em Notas de Subsolo:

Naquela noite tive sonhos monstruosos. Não era de admirar: até conseguir pegar no sono, as lembranças dos anos de prisioneiro na minha vida escolar me oprimiram e não consegui me livrar delas. Eu tinha sido colocado naquela escola por uns parentes distantes, dos quais eu dependia e de quem nunca mais soube nada. Deixaram-me lá, órfão. Já então me retraía, devido às censuras deles. Era pensativo, calado e olhava desconfiado para tudo. Os colegas me receberam com zombarias impiedosas e malévolas pelo fato de eu não me parecer com nenhum deles (DOSTOIEVKI, 2011, p. 75).

A questão sobre o papel do professor no âmbito hospitalar, a partir dessa distinção, motiva uma nova hipótese. Uma questão de cunho epistemológico que poderá nos permitir uma aproximação melhor com o nosso objeto de análise. Um contraponto. Nossa hipótese é a de que a instituição hospitalar, desde a sua origem i, é uma instituição de resistência contra a morte. Isto é, um ambiente equipado de materiais especificamente elaborados para o atendimento do doente, as técnicas produzidas, o conhecimento, os profissionais - em suma, toda a junção do trabalho e da ação, sob a perspectiva de Arendt(2007), em função de resistir à morte, isto é, de evitá-la a todo custo através do esforço humano. Com efeito, a instituição hospitalar é um ambiente estritamente formal e concentrado, um local de enfrentamento constante, de tensão perpétua contra o fim da vida. Por isso o monitoramento vigilante aos pacientes, o atendimento protocolar, o silêncio e a higiene: não se sabe por quais vias a morte poderá penetrar, o ambiente estará sempre em suspensão.

Por outro lado, a escola traz embutida em seu sentido axiológico a ideia de poder e de controle, isto é, pode-se inferir que a escola é a instituição por excelência responsável pela promulgação do comportamento socialmente aceito, da transmissão dos saberes herdados historicamente e, de certa forma, do primeiro ensinamento sobre as formas de socialização do homem, isto é, fora do ambiente familiar. Podemos aceitar isso na medida em que compreendemos que a nossa vida é condicionada por nossa própria herança cultural e pela nossa própria elaboração temporal e efêmera. Por exemplo, não se pergunta a um aluno se ele quer ou não aprender matemática; é simplesmente um dever a ele atribuído. Um condicionamento vetorial que ele terá de carregar como um fardo, aceitando-o ou não. Esse, o enfrentamento contra a vida. A vida propriamente dita, categorizada pela pensadora como labor.

A partir desse contraponto, então, cabe a seguinte pergunta: que papel cumpre o professor neste processo de escolarização hospitalar? Em outras palavras, como se dá esse enfrentamento institucional, pressupondo que a formação do professor ? pelo menos no âmbito teórico - preocupe-se no preparo do profissional que irá formar a vida do indivíduo, ao passo que a instituição hospitalar concentra esforços para impedir a morte deste indivíduo?

O professor, nesta medida, atuará no ponto intermediário entre duas instituições antagonistas: uma cuja simbologia está voltada à coerção e aniquilamento da vida em prol da criação do humano (a escola); e outra onde se cria uma resistência à morte, um espaço onde o enfrentamento decorre do esforço coletivo em controlar o máximo possível de variáveis, não da forma como acontecem as relações escolares (o hospital). Na escola, somente para criar um paralelo, os esforços convergem numa lógica de causar situações de crises, de modo que o aluno seja capaz de superá-las no sentido de desenvolver-se nas múltiplas dimensões: trata-se de um movimento para frente, isto é, um movimento futuro. No hospital, de modo geral, a lógica consiste em controlar a situação de crise e estabilizar o quadro para, a partir daí, avaliar a intervenção: trata-se, a priori, de um movimento para trás, uma ação em busca do pretérito, da causa original. De modo esquemático, o ponto de intersecção entre a escola e o hospital sugere um campo de forças cuja tensão aponta para direções opostas. O ponto de intersecção ou de interface parece criar um terceiro setor onde operam em direções opostas, as duas correntes dessa tensão. (AGAMBEN, 2010; QUIROGA et. al. 2013).

Assim, a ação do professor inserido no hospital não poderá destituir a carga simbólica de uma das instituições em detrimento da outra. Isto é, este professor, situado temporalmente num agora demarcado entre dois polos de forças antagonistas, deverá, ainda assim, realizar a sua principal função, que é a de apresentar o mundo às gerações do presente, procurando fazê-las conscientes de que comparecem em um mundo que é compartilhado pelas múltiplas gerações humanas.

Nesse sentido, a formação dos professores que atuarão no ambiente hospitalar deve pressupor este choque institucional. Ora, este choque talvez seja o principal ponto de embate no que toca ao sentimento de caridade ou de vitimização do paciente pelos profissionais da educação que ali desempenham seus papéis. Uma ideia que provavelmente não seja tão recorrente aos profissionais diretamente relacionados às ciências médicas.

Esse é o motivo pelo qual muitos pesquisadores afirmam que o currículo da formação de professores deve contemplar e relacionar os conteúdos das ciências médicas aos conteúdos pedagógicos propriamente ditos.LINHEIRA, 2006).

Também em sentido teórico, podemos enquadrar o papel do professor num esquema de interface hospital/escola. Nesse sentido, não seria tão adequada a discussão a respeito de cada uma destas instituições por separado. Cada qual cumpre a sua função social e histórica. O que nos interessa é a figura do professor na sua condição humana de ação localizado nesta situação específica, derivada de um projeto constitucional que apregoa uma educação igual para todos.

Com efeito, quando se pensa na formação de professores para o atendimento escolar hospitalar, não se pode simplesmente pensar num programa que mescle estes dois grupos de conteúdos. Deve-se, antes de tudo, pensar nas relações produzidas no corpo fronteiriço dessa interface hospital/escola. É esse espaço presente e dinâmico onde poderão surgir as formas de entender o sentido da escolarização enquanto parte da vida humana, as formas de como os saberes serão trabalhados e de como se darão as relações ali dentro.

Não se trata de acoplar as urgências da formação de professores das escolas normais para a formação de professores hospitalares. Tampouco se trata de reduzir o currículo desses cursos de formação a estruturas meramente formais, mesclando de forma mais ou menos cômoda os conteúdos das duas classes.COVIC (2003).

A base do raciocínio que afirma que a formação de professores destinados a trabalhar em hospitais deve se pautar na prática e na reflexão da própria prática coincide exatamente neste espaço resultante da interface dual hospital/escola. É justamente no próprio local de trabalho, isto é, no hospital, que o processo de escolarização deverá ocorrer. A diferença do processo de escolarização hospitalar ao modelo convencional consistirá não na herança cultural e nas formas de ensinar e aprender, mas, sobretudo, recairá sobre a questão da diferença institucional; do seu novo espaço social.

4.0 Considerações finais

Como aponta Oliveira (2009), o debate acerca da atuação docente em âmbito hospitalar não possui ainda uma unidade reflexiva propriamente dita. Os impasses são de natureza as mais distintas, e se manifestam tanto na prática como nos discursos dos pesquisadores que investigam esta problemática. Em uma vasta pesquisa de revisão de literatura de dissertações de mestrado escritas entre 1989 e 2008, Oliveira (2009) resgata as principais ideias difundidas no cenário da escolarização hospitalar. Dentre elas, a autora conclui que, para que a atuação docente em ambientes atípicos à escola normal se legitime, deve existir uma série de fatores atuando em sinergia para que se cumpra tal finalidade. Desta forma, para que se evitem distorções quanto ao papel do aluno doente e da intervenção educativa, Oliveira (2009) escreve:

(...) cabe aos cursos de formação inicial e continuada preparar o professor para que este seja capaz de superar o desafio de assumir seu papel e objetivos a cada nova experiência, seja na escola, hospital, penitenciaria, aldeia indígena, entre tantas outras possibilidades. (OLIVEIRA, 2009, p. 11).

Como podemos verificar, a ideia enfatiza uma prospecção aos cursos de formação. É como se por alguma razão, os problemas atuais sobre o papel docente tivessem relação de causalidade com os cursos de formação. Em outras palavras, os cursos de formação (talvez pela frequente ideia de mercantilização) tenham se tornado alvos de crítica frequente. E talvez o problema consista exatamente na noção formal que se cria no que diz respeito a tais cursos, isto é, na representação imediata da ideia de formação enquanto algo que dá forma definitiva a algo. Entretanto, quando a reflexão se volta para o papel do professor, não se está querendo exonerar a responsabilidade dos cursos, muito ao contrário, se está pressupondo que o papel do professor transcende o caráter meramente formal destes. Isto é, está se pressupondo que a questão da formação não pode se pautar na estrutura formal dos conteúdos, mas no sujeito integrador e transmissor da herança que deverá ser ensinada às novas gerações.

Consideramos importante reconhecer que o papel do professor em ambiente hospitalar deve ser visto como uma interface resultante de instituições epistemologicamente antagonistas. O professor, portanto, manifestar-se-á neste espaço intersticial através de sua ação, isto é, através da compreensão do que é, de fato, estar ali, frente ao seu aluno, e de como ele trabalhará com este aluno.

Além disso, as questões culturais inerentes a esse processo de intersecção deverão ser assimiladas por este profissional no seu dia-a-dia. A experiência profissional em espaços diversos ao escolar, pelo caráter humano e idiossincrático que adquire na representatividade docente da instituição escolar, torna-se algo não reproduzível, não previsível em termos formais, isto é, não correspondente ao discurso que aloca toda a problemática da educação nos cursos formadores, como se o funcionamento da realidade não tivesse a sua própria lógica, mas dependesse do planejamento estabelecido.

Isso nos permite pensar numa dupla direção. De um lado, diante dos problemas que a educação enfrenta (e frente aos desafios da contemporaneidade), a culpa destina-se aos cursos formadores como se com isso a responsabilidade estivesse sempre nas instâncias temporais inalcançáveis ao homem, isto é, o passado e o futuro. Ao passado, na medida em que a prática do presente, deve-se ao curso de formação que fracassou; e ao futuro, na medida em que se projeta a prática a partir de um ideal ainda não ocorrido. Nos dois casos, o homem exime-se da responsabilidade do aqui e agora que se faz presente no exercício da profissão, materializando-se em sua ação cotidiana.

Nosso intuito, nesta reflexão, consistiu numa discussão acerca do papel do professor em ambiente hospitalar. Observamos a tensão decorrente do poder simbólico entre as duas instituições e destacamos o papel do professor em sua construção temporal, isto é, na sua ação docente contemporânea - retomando a tese de Agamben -, conectada a uma lógica de mundo cujas transformações ocorrem e se processam de modo instantâneo numa rede de simultaneidade de situações, e cujas demandas da vida real solicitam cada vez mais a ação do homem em seus diversos papeis sociais.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009 [ Links ]

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ii A palavra hospital é de raiz latina (Hospitalis) e de origem relativamente recente. Vem de hospes – hóspedes, porque antigamente nessas casas de assistência eram recebidos peregrinos, pobres e enfermos. O termo hospital tem hoje a mesma acepção de nosocomium, de fonte grega, cuja significação é tratar os doentes.

Recebido: 28 de Maio de 2015; Aceito: 22 de Abril de 2017

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