SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.15 issue40The environmental perception of students in the Municipal Schools of Manaus: a case studyHigher Education and Student Aid Policy: Rethinking University Education author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Revista Educação e Cultura Contemporânea

Print version ISSN 1807-2194On-line version ISSN 2238-1279

Rev. Educ. e Cult. Contemp. vol.15 no.40 Rio de Janeiro July/Sept 2018  Epub July 22, 2018

https://doi.org/10.5935/2238-1279.20180054 

Artigos

Apontamentos sobre educação, cultura e etnoconhecimentos Paiter suruí

Appointments on education, culture and ethnociences Paiter suruí

Laide Maria Ruiz FerreiraI 

Dr. Carlos Alexandre Barros TrubilianoII 

IEscolas Indígenas do município de Cacoal, Brasil; laidegameb@yahoo.com.br

IIUniversidade Federal de Rondônia, Brasil; trubiliano@hotmail.com


Resumo

O artigo apresenta os resultados de observações realizadas na Escola Indígena Estadual de Ensino Fundamental e Médio “Sertanista José do Carmo Santana”, localizada na aldeia Gãpgir, linha 14, Terra Indígena Sete de Setembro, município de Cacoal, Rondônia. Tivemos como objetivo identificar quais são e como são trabalhados os etnoconhecimentos da cultura Paiter Suruí e até a que ponto a legislação vigente, que rege a educação específica e diferenciada para os povos indígenas, vem sendo cumprida na aldeia. Como procedimento de coleta de dados foram feitas entrevistas e análises documentais de materiais didáticos-pedagógicos. Os resultados apresentados apontam avanços no cumprimento da legislação, mas ainda muito longe do ideal, ou seja, acesso pleno a cidadania.

Palavras-Chave: Educação escolar indígena; Currículo específico; Etnoconhecimento

Abstract

The article presents the results of observations made at the State Indigenous School of Basic and Secondary Education "Sertanista José do Carmo Santana", situated in the village Gãpgir, line 14, Indigenous Sete de Setembro, municipality of Cacoal, Rondônia. Our objective was to identify what and how they worked the culture of ethnoknowledge Surui and to what extent the current legislation governing the specific and differentiated education for indigenous people, has been fulfilled in the village. As a data collection procedure, interviews and documentary analyzes of didactic-pedagogical materials were done. The results presented indicate advances in compliance with legislation, but still far from ideal, that is, full access to citizenship.

Key words: Indigenous school education; Specific curriculum; Ethnoknowledge

Considerações iniciais

A ideia central deste ensaio é debater sobre a importância dos etnoconhecimentos na educação Paiter Suruí. A coleta de dados ocorreu entre os meses de maio a outubro de 2014, junto a Terra Indígena Sete de Setembro (TISS – autodeterminada Paiterey Garah TIPG), localizada entre os estados de Rondônia e Mato Grosso. Através da análise de material didático e de entrevistas semiestruturadas feitas com professores e lideranças indígenas, buscou-se compreender os esforços do povo Paiter Suruí na manutenção geracional de valores tradicionais ante a “avalanche” liquidificante da modernidade, que se iniciou a partir dos primeiros contatos com os não índios.

Em Rondônia, o contato com as populações indígenas é algo relativamente recente. Para que se tenha uma ideia, as primeiras terras indígenas (TIs) no Estado só foram institucionalizadas a, aproximadamente, quatro décadas. A também de se informar que os territórios e suas populações ainda sofrem inúmeras pressões oriundas dos avanços da fronteira econômica. Mesmo nas terras demarcadas é recorrente conflitos envolvendo fazendeiros, madeireiros, seringueiros, garimpeiros e, mais recentemente, os impactos diretos e indiretos causados pelas construções das Usinas de pequeno e grande porte.

Especificamente o povo Paiter Suruí o contato oficial ocorreu com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em setembro de 1969. Entretanto, os Paiter Suruí, já estavam em conflito com os colonos desde o início da década de 1960. Segundo as pesquisas de Chicoepab Suruí (2013), nos primeiros anos do contato, a população que ultrapassava 5.000 pessoas foi reduzida para aproximadamente 250 indígenas. A mortalidade ocorreu, principalmente, devido a doenças infectocontagiosas como sarampo, gripe e pneumonia. Diante desse cenário de extermínio étnico, os valores tradicionais, simbólicos e culturais dos Paiter Suruí encontravam-se ameaçados.

Reflexões sobre o índio no discurso da identidade brasileira

Intelectuais como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e Roberto da Matta buscaram compreender a cultura brasileira em suas múltiplas dimensões. Independentemente de suas posições político-ideológicas, formação e temporalidade, todos concordam que a característica mais marcante de nossa cultura é a diversidade, não sendo um equívoco tratarmos de “culturas brasileiras”, dada a pluralidade étnica existente no Brasil.

No entanto, o discurso da identidade brasileira – especialmente no período republicano – foi alicerçado sobre a mística da homogeneidade, da “harmônica” miscigenação e da “democracia racial” de que o brasileiro seria fruto. Essa narrativa, que anula as múltiplas identidades com vistas ao apaziguamento social, buscou definir uma identidade etno-orgânica – o “ser brasileiro” – que equacionasse as diferenças em nome da unidade nacional. Logo, esse discurso, notoriamente mobilizador, passou necessariamente pela negação do outro – transformando, por exemplo, índio em “cabloco” ou no “caipira”, portanto, perfeitamente integrado à nação. Deste modo, nas palavras do médico sanitarista Arthur Ramos, “não temos, no Brasil, nem minorias de raça nem quaisquer outras espécies de minorias” (RAMOS, 1943, p. 142). A exemplo de Arthur Ramos (1943), outros intelectuais como Roger Bastide (1944) e Charles Wagley (1952) ocuparam-se em comprovar “cientificamente” que o Brasil era uma “democracia racial”.

Nessa perspectiva, Darcy Ribeiro (1995), ao estudar o povo brasileiro, concluiu que, ao longo dos séculos XIX e XX, a consolidação do projeto autoritário e elitista de “identidade nacional” foi responsável pela cristalização da arbitrária noção de que o brasileiro é produto de três etnias – que foram, gradativamente, se afastando das suas raízes e se fundindo. Logo, o indígena teria se desindianizado; o negro, se desafricanizado; e o branco, se deseuropeizado.

O fato é que, no Brasil, assim como em toda a América Latina, as desigualdades entre negros, índios e brancos são dilemas periodicamente reiterados, seja na história e/ou no imaginário. Imerso em contextos de racismo e exclusão social, o mito da “democracia racial” não impediu que as desigualdades e os antagonismos manifestassem-se por dentro e por fora das diversidades, das multiplicidades que parecem coloridas. Consequentemente, os povos indígenas continuam a lutar pela preservação de suas terras, cultura e seu modo de vida, entretanto em condições cada vez mais adversas (IANNI, 1988).

Apesar da incontestável formação histórico-social pluriétnica e de notável heterogeneidade cultural, a escola brasileira ainda não aprendeu a conviver com a diversidade. Nesse sentido, basta uma rápida leitura dos currículos, programas de ensino e livros didáticos para constatarmos a preponderância etnocêntrica nos conteúdos de História. Mesmo com a ampliação dos cursos de graduação e pós-graduação em História e das renovações teórico-metodológicas propostas pelas novas tendências historiográficas, a concepção positivista ainda pauta a formação de nossos educandos. O relato dos grandes fatos e feitos dos chamados “heróis nacionais”, geralmente brancos, escamoteiam a participação de outros segmentos étnico-sociais no processo de formação histórica do país.

O conteúdo programático da chamada “História do Brasil” administrado para o ensino fundamental e médio inicia-se a partir da chegada dos colonizadores portugueses, e ignora a presença indígena anterior ao processo de conquista; quando muito, e em alguns livros didáticos, apresenta-se uma nota sobre o etnocídio de aproximadamente cinco milhões de indígenas à época do chamado “descobrimento”. No que se relaciona aos africanos, que aportaram em terras brasileiras na condição de escravos, a concepção de mercadoria não é rompida.

Não raramente, as culturas indígenas e negras são abordadas de forma folclorizada e pitoresca, entendidas pelo prisma de um multiculturalismo conservador, defensor do projeto de que o brasileiro é constituído por uma cultura comum, reduzindo essas etnias à condição de “acréscimos” em relação à cultura europeia, “superior e civilizada”.

Contudo, no final dos anos 1970, novos atores sociais destacam-se na cena política nacional: os movimentos populares reclamavam uma maior participação e o reconhecimento de suas identidades e direitos de cidadania. Os discursos reivindicatórios protagonizados pelos movimentos indigenista e de consciência negra proclamavam por um convívio tolerante e pela valorização de aspectos étnico-culturais. É nesse contexto que os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) de História passaram a ser revisados.

Os currículos apresentam-se como um “terreno de enfrentamento”. A revisão da disciplina escolar de História, tradicionalmente voltada para a formação da identidade nacional, do patriotismo e do nacionalismo, tinha (e ainda tem) como desafio contribuir para desfazer preconceitos e estereótipos ligados aos segmentos afro-brasileiro e indígena. A alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, nº 9.394, 1996) pelas Leis nº 10.639, de 2003, e nº 11.645, de 2008 (em que se estabelece, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática História e Cultura AfroBrasileira e Indígena), representa um avanço na construção de uma educação multicultural e cidadã.

No entanto, se, para muitos, as novas regulamentações representam uma “alforria curricular”, é possível afirmarmos que não houve profundas transformações. Por exemplo em relação ao ensino da História, a própria organização do conteúdo programático ainda é pautada por uma noção eurocêntrica, de cronologia linear e de valorização dos grandes acontecimentos nacionais. Deste modo, surgem desafios à prática docente: como romper com a noção de passado glorioso, realizado por grandes personagens? Com ensinar que “as histórias individuais são partes integrantes de histórias coletivas”? (BRASIL, 2008).

Se ainda não foi possível uma revisão radical em relação ao currículo escolar, é certo que os PCNs, bem como as políticas públicas afirmativas na Nova República, vêm preconizando – ainda que vagarosamente – mudanças significativas e assumindo compromissos com a cidadania. Consideramos que existe um longo caminho a ser percorrido para que o ensino de História e a própria instituição escolar sejam instrumentos de afirmação, valorização e difusão da identidade pluricultural de nossa formação étnica. Diante dessa conjuntura, faremos algumas considerações a respeito da Escola “Sertanista José do Carmo Santana”, que atende a população Paiter Suruí do município de Cacoal, estado de Rondônia.

Dados gerais do povo Paiter Suruí

O povo Paiter Suruí vive na Terra Indígena Sete de Setembro, localizada na fronteira entre os estados de Mato Grosso (no município de Rondolândia) e de Rondônia (nos municípios de Cacoal, Espigão d’Oeste e Ministro Andreazza), em uma área que totaliza, aproximadamente, 247 mil hectares. Atualmente, os Paiter Suruí vivem distribuídos em 24 aldeias com acesso por estradas de chão; seja a partir dos municípios de Cacoal (RO), Boa Vista do Pacarana (RO) ou Rondolândia (MT), os trajetos distam, aproximadamente, 70 quilômetros. Estima-se que a atual população seja de mil e trezentas pessoas, com expectativa de crescimento, fruto da redução dos índices de mortalidade. Eles organizam-se por grupos isogâmicos patrilineares; são eles: Kaban, G̃apg̃ir, G̃amep e Makor, listados a partir do maior ao menor clã. São falantes da língua Paiter Suruí do tronco Tupi e família Mondé. Em sua organização familiar, são poligâmicos e mantêm o casamento avuncular, ou seja, a regra é que o homem se case com a filha de sua irmã. São agricultores, e nas aldeias é possível encontrar roças de arroz, batata, inhame, amendoim, feijão, mandioca e cará.

Os Paiter Suruí foram oficialmente contatados pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio) no ano de 1969, por meio dos sertanistas Francisco (Chico) Meirelles e Apoena Meirelles (pai e filho, respectivamente). Desde o contato com os não índios, o povo Paiter Suruí vem passando por profundas transformações sociais.

Apesar de toda pressão sócio-cultural a que estão submetidos, todos são falantes da língua indígena Paiter como primeira língua. Com muitas dificuldades, os mais jovens, professores, agentes de saúde e as lideranças falam o português. Contudo, onde há mais de um Suruí, a voz corrente é em língua materna.

Outro ponto a ser destacado é a perda de seu território tradicional para os agentes do capital (pecuaristas e empresas ligadas à extração de minérios e de madeira), fruto do aprofundamento das relações capitalistas na região.

Outro ponto a ser destacado é a perda de seu território tradicional para os agentes do capital (pecuaristas e empresas ligadas à extração de minérios e de madeira), fruto do aprofundamento das relações capitalistas na região.

Retrato da Escola "Sertanista José do Carmo Santana"

A Escola Indígena Estadual de Ensino Fundamental e Médio “Sertanista José do Carmo Santana” situa-se na aldeia G̃apg̃ir, linha 14, Terra Indígena Sete de Setembro, município de Cacoal (RO). Em seu quadro de professores, apenas sete são indígenas, dos quais três são formados pelo programa de formação Açaí II (Magistério Indígena) ofertado pela SEDUC (Secretaria de Educação do Estado de Rondônia), e os outros quatro são cursistas da graduação em Licenciatura Intercultural em Educação Básica, na UNIR (Universidade Federal de Rondônia, Câmpus de Ji-Paraná). Todos são contratados em regime emergencial por tempo determinado, com carga horária de 40 horas semanais. No estado de Rondônia, ainda não houve concurso específico para a educação escolar indígena.

Os professores não indígenas atuam nas áreas específicas do currículo de 6º ao 9º ano do ensino fundamental e no 1º ano do ensino médio. As turmas possuem, em média, 11 alunos. Do 1º ao 5º ano do ensino fundamental, os alunos estão dentro da faixa etária; já do 6º ao 9º ano e no 1º ano do ensino médio, registra-se a presença de adultos.

Sobre a fundação da Escola “Sertanista José do Carmo Santana”, o professor Joaton Suruí, em entrevista, fornece dados: “a escola foi introduzida pela FUNAI, na década de 1980. As primeiras professoras eram as funcionárias da FUNAI: Ângela, Maria Pereira Neta e depois Ana Nery e Lígia Neiva; com isso buscavam incentivar os indígenas a estudar” (ENTREVISTA COM JOATON SURUI, Cacoal, 2014). Ainda sobre os primórdios da Escola, o cacique Joaquim complementa que os estudantes

não compreendiam o que significava estudar e para que servia. Foi construída uma escolinha de primeira à quarta série e uma pessoa da cidade veio para dar aula nessa escola na aldeia, só após isso percebi a diferença do trabalho. E nem todos se interessavam em estudar, assim continuaram a vir outros professores não indígenas contratados pela FUNAI, para alfabetizar os indígenas deste local. Hoje eu vejo a importância da educação na formação da pessoa e da construção da escola na comunidade e implantação do ensino formal, formação continuada para os alunos e professores da comunidade (ENTREVISTA COM CACIQUE JOAQUIM, Cacoal, 2014).

Ainda hoje, quando ingressam na escola, os educandos só se comunicam na língua indígena Paiter. Em geral, somente após cursarem até o 5º ano do ensino fundamental é que passam a falar o português; contudo, nem todos o dominam com fluência.

Em relação à infraestrutura, a escola está inadequada às necessidades dos educandos e educadores, uma vez que faltam refeitório, biblioteca, sala de recurso, sala dos professores e laboratório de informática. Também há carência de funcionários como zelador, merendeiro, diretor (permanente na escola), coordenador pedagógico (permanente na escola), psicólogo, orientador e o sabedor indígena, conforme rege a Lei estadual nº 578/2010.

Retratando os saberes: a língua, a música e os mitos Paiter

A língua Paiter começou a ser grafada no início da década de 1970 pelos missionários do Summer Institut of Linguistic (SIL), não falantes da língua indígena. Somente em 2007 os falantes da língua nativa começaram a normatizar a escrita, criando um alfabeto e as primeiras experiências de grafia dos fonemas, em um processo marcado pela conscientização dos Paiter sobre a importância de tomar a dianteira nesta tarefa.

Em um mundo cada vez mais globalizado, as crianças, desde seus primeiros anos, estão permanentemente em contato com a língua escrita – seja em casa, por meio de revistas, livros, jornais e até da televisão, ou na rua, por intermédio de placas, letreiros, cartazes, logotipos, outdoors, etc. Desde muito cedo, existem estímulos para que elas comecem a se interessar pela leitura e pela escrita. Quando se trata de sociedades como as indígenas – que, muitas vezes, não possuem a tradição da escrita, ou em que a prática da escrita é algo recente –, perceber “por quê” e o “para quê” da leitura e da escrita é um “exercício” que acontece vagarosamente. Notoriamente, esse “estímulo” acontecerá se a habilidade de escrever e ler forem em língua materna, ao passo em que também ocorre a conscientização das funções sociais da leitura e da escrita.

Como os indivíduos nunca lêem ou escrevem sem um motivo aparente para tanto, observou-se no cotidiano escolar indígena dos Paiter Suruí que os educandos facilmente perceberam a utilidade da escrita, na medida em que as atividades desenvolvidas giravam em torno da leitura e escrita de textos que fazem parte da sua história e, principalmente, que foram escritos pelos seus parentes.

Cada vez mais conscientes da necessidade de preservar sua língua nativa, os Paiter Suruí vêm criando condições para a normatização de sua grafia, de forma que esta tenha, também, a função de servir como meio fortalecedor de socialização do saber Paiter. A normatização da escrita, bem como o estímulo à produção de registros culturais, tem resultado, de certa forma, num fazer político-linguístico, que fortalece o orgulho dos Paiter. Explica-se: a grafia – por consequência, o registro da cultura Paiter – configura-se como um dos elementos capazes de “manter viva” a língua nativa, ao mesmo tempo em que representa um reforço identitário.

Dessa forma, e pensando na perpetuação dos saberes tradicionais do povo Paiter, surgiram, em 1999, a Associação Gãbgir e, em 2003, a Associação Fórum Paiter Suruí (extinta em 2008), que passaram a se dedicar ao processo de normatização da escrita. Como parte dos trabalhos, foram feitas inúmeras oficinas. A primeira delas, realizada em 2007 pela Associação Fórum Paiter Suruí, teve a participação de todos os professores indígenas e de 26 mestres (homens e mulheres mais velhos) da língua e cultura Paiter, denominados korup ey. A oficina contou com a colaboração da antropóloga Betty Mindlin, referência no estudo dos saberes tradicionais Paiter; da etnomusicóloga Magda Dourado Pucci, que vem se dedicando ao estudo da tradição musical dos Paiter; da antropóloga Carmen Junqueira; da linguista Ana Suelly de Arruda Câmara Cabral, pesquisadora do Laboratório de Línguas Indígenas da Universidade de Brasília (LALI- UnB); e da pedagoga Laíde Maria Ruiz Ferreira, assessora do Fórum Paiter e da Associação Gãbgir.

Os participantes da oficina iniciaram a elaboração de um dicionário e a escrita de relatos míticos e de músicas, constituindo o acervo Paiter. Ainda durante a oficina, discutiram-se os problemas resultantes do uso de diferentes grafias para o Paiter e foram criadas normas que facilitassem a unificação da escrita entre eles. Para tanto, foram de fundamental importância a participação de professores das diferentes escolas Paiter e, sobretudo, a pertinente assessoria dos korup ey presentes. Como resultado dessa primeira oficina, foi criado o alfabeto Paiter Suruí: a, ah, ã, ãh, b, d, e, eh, ēh, g, ğ, i, ĩ, ih, ĩh, j, k, l, m, n, o, oh, õ, õh, p, r, s, t, tx, u, uh û, ũh, w, y.

Diante do sucesso da primeira, a Associação Gãbgir realizou outras oficinas, a partir de 2008 até a presente data – que resultaram na gravação de mais canções e narrativas do clã G̃apg̃ir, complementando o material existente, e, ao mesmo tempo, estimulando a gravação de novos conteúdos.

Atualmente, a quantidade de material escrito na língua Paiter ainda é insuficiente para o trabalho dos professores em sala de aula. Vivendo em um momento de perdas culturais profundas, a grande reflexão dos Paiter é revigorar sua língua e promover sua autodeterminação cultural. Os Paiter entendem que vivem em um universo que não lhes permite voltar a viver como eram antes do contato tão recente e devastador com os não índios; querem viver dignamente no atual contexto social, mas sem perder o conhecimento milenar que receberam de herança dos seus ancestrais.

Para trabalhar a língua materna, os Paiter já publicaram um livro, uma cartilha que narra o tempo da floresta (calendário) e um glossário do corpo humano, todos bilíngues – escritos em língua Paiter e língua portuguesa. O linguista Rodrigo Bastos Cunha (2008, p.147) nos explica que, no Brasil, “o bilinguismo do falante é considerado não um atributo, mas um ‘problema’”, uma vez que um dos objetivos das instituições de ensino é fazer com que o educando abdique de sua língua materna e torne-se “monolíngue” da língua dominante – ou seja, no nosso caso, da língua portuguesa. Ainda segundo Cunha, “essa é a perspectiva do Modelo Assimilacionista de Submersão” (CUNHA, 2008, p.147), adotado “por algumas missões religiosas e órgãos do governo brasileiro junto aos povos indígenas durantes anos a fio” (MAHER, 1996, p. 3), sendo, portanto, uma política de controle do Estado nacional – uma vez que “os direitos linguísticos são subordinados à estrutura de poder e dominação” (TOLLEFSON, 1991, p.170; Apud: CUNHA (2008).

Nas últimas décadas, registrou-se uma alteração nesse cenário. Os indígenas passaram a se organizar politicamente, por meio da criação de movimentos indigenistas. Entre suas bandeiras de luta, estão as reivindicações por políticas de ações afirmativas que atuem como reparação aos sofrimentos causados durante a colonização; a visibilidade de sua presença na sociedade contemporânea; a promoção social e a eliminação (ou, ao menos, a redução) do racismo através da educação e da criminalização da prática racista. Diante da pressão política, o currículo escolar vem passando por revisões, e a escola, por uma ressignificação, vista, agora, não apenas como meio de dominação, mas como um espaço para a valorização da identidade étnica desses povos.

Especificamente no caso dos Paiter, os educadores indígenas estão se formando para atuar nas diferentes aéreas de conhecimento/ensino regular, além do reforço que as oficinas de escrita da língua materna oferecem à promoção da cultura Paiter. Em relação à ação política, a Associação Gãbgir está pressionando o governo do estado de Rondônia para que a Lei estadual nº 578/2010 seja cumprida e haja a realização de concursos públicos para professores indígenas, a contratação dos sabedores da cultura Paiter Suruí (indígenas mais velhos) para atuarem nas escolas e a efetivação do Território Etnoeducacional Tupi Mondé.

Legislação e educação escolar indígena

No final do século XIX, teorias como o evolucionismo social, o positivismo, o naturalismo e o darwinismo social exerciam forte influência nos homens da ciência e do Estado. Para Lília M. Schwarcz (1993), a "sciencia" que chega ao Brasil no final do século XIX não era de caráter experimental, mas sim um modelo evolucionista e social- darwinista, originalmente popularizado enquanto justificativa para a ação imperialista de dominação.

Para ilustrar o alcance dessas ideias, o diretor do Museu Paulista, Hermann Friedrich Albrecht von Ihering, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo em 1911, defendeu o extermínio dos índios Kaingang em nome da construção da ferrovia Noroeste do Brasil. Sua argumentação era embasada no modelo evolucionista e determinista: para o cientista alemão, era "natural" que os "grupos indígenas inferiores" fossem extintos uma vez que os mesmos desapareceriam pela "mera ação da natureza" (SCHWARCZ,1993, p.130). A ordem era integrar os indígenas à vida da sociedade envolvente, mesmo que isso representasse genocídio étnico e cultural.

Essa mentalidade social de que os índios são um entrave para o progresso da nação ainda se faz presente.

Mesmo diante das adversidades, em especial no que se relaciona às mentalidades, o movimento indigenista foi ganhando força e conseguiu o reconhecimento da cidadania indígena-brasileira. Na Constituição de 1988, em seus artigos 231 e 232, respectivamente, são reconhecidos aos índios "sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam", bem como o fato de que "suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses" (BRASIL, 1988).

Quanto à educação escolar indígena, o Decreto nº 26/1991 define o Ministério da Educação (MEC) como responsável pela proposição da política de educação escolar indígena - cuja execução, sob orientação do MEC, está a cargo dos estados e municípios. Antes disso, a educação escolar indígena era de responsabilidade da FUNAI. O Conselho Nacional de Educação, interpretando dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e da Constituição Federal, em 1999, por meio do Parecer 14 e da Resolução 03, instituiu a criação da categoria escola indígena nos sistemas de ensino do país. Dessa forma, foi garantido às escolas indígenas o direito de serem específicas, diferenciadas, interculturais e bilíngues/multilíngues.

As escolas indígenas têm direito a um currículo específico garantido pela legislação, cabendo a cada etnia decidir quais são os conhecimentos da sua cultura que farão parte do currículo escolar. Deste modo, suscitam-nos as seguintes questões: quais são e como são trabalhados os conhecimentos da cultura Paiter na Escola Indígena “Sertanista José do Carmo Santana”? Esses conhecimentos são contemplados no Projeto Político Pedagógico da escola?

Durante as reuniões realizadas pelos Paiter para discutirem a relação cultura e educação na proposição de um currículo escolar diferenciado para a comunidade, foi possível observar que havia dúvidas em relação ao que seria, efetivamente, a educação escolar específica e diferenciada. Uma das questões levantadas pelos indígenas foi se a escola trabalharia os conhecimentos da cultura Paiter em detrimento do currículo escolar regular. Para eles, seria um risco deixar de lado os conteúdos da escola formal, uma vez que a instituição escolar facilita a compreensão do mundo ocidental – e, consequentemente, a convivência com os não indígenas e o acesso aos seus direitos.

Conforme os relatos dos Paiter mais velhos, quando a escola foi criada na aldeia eles não sabiam qual seria sua finalidade. Porém, com o passar do tempo, perceberam que poderiam trabalhar a educação escolar a favor deles. Desta maneira, passaram a incentivar os mais jovens a frequentar a escola, para que aprendessem como o não indígena pensava e trabalhava.

É notória a preocupação das lideranças Paiter com a adaptação aos novos tempos, “os tempos modernos”. Para o cacique Joaquim Gasalad Suruí, da aldeia Gãpgir, “não tem como voltarmos a viver como antigamente, época em que andávamos nus, comíamos o que a natureza nos oferecia, já que agora convivemos com a sociedade não índia e junto com essa convivência veio a necessidade de vestir, calçar, consumir os alimentos do não índio” (ENTREVISTA COM CACIQUE JOAQUIM GASALAD SURUÍ, Cacoal, 2014). A percepção de que os “tempos mudaram” é acompanhada, com pesar, pelas transformações nas tradições Paiter – como a perda de saberes médicos tradicionais. Em tom de lamento, o cacique constata: “(...) com o contato perdemos muito da nossa cultura, os pajés não existem mais, tomamos remédio do não indígena para curar nossas doenças” (ENTREVISTA COM CACIQUE JOAQUIM GASALAD SURUÍ, Cacoal, 2014).

Nesse contexto de “tempos modernos” e de “transformações culturais” as lideranças indígenas atentaram-se ao fato de que a escola pode se transformar, também, em instrumento de ensino e de consolidação da cultura Paiter. Nas palavras do cacique, “na escola também podemos ensinar nossa cultura. Algumas músicas, mitos, histórias dos nossos antepassados podem ser trabalhadas na escola” (ENTREVISTA COM CACIQUE JOAQUIM GASALAD SURUÍ, Cacoal, 2014). Ainda sobre o conteúdo escolar diferenciado, o sabedor Gakamam Suruí complementa:

A criança, o jovem deve aprender desde pequeno a respeitar o mais velho, a respeitar o outro, dentro da escola deve ser trabalhado isso, o respeito Paiter. Aprender em casa e na escola. A escrita da língua Paiter também deve ser trabalhada na escola, por meio da escrita da história, das músicas, dos mitos da cultura Paiter. (ENTREVISTA COM SABEDOR, GAKAMAM SURUÍ, Cacoal, 2014)

Pelas falas, é possível perceber a importância que a educação escolar indígena possui para a comunidade. Os Paiter querem que as crianças e jovens aprendam os conhecimentos da escola formal, mas também desejam que os etnoconhecimentos do seu povo sejam estudados e apropriados por eles. Além disso, demonstram apoio aos professores indígenas no processo de atuação numa escola intercultural.

Alguns estudiosos da etno-história atentam para a importância da memória oral como meio de preservar os saberes tradicionais (FREIRE, 1992). Portanto, torna-se impreterível o uso da memória e da oralidade para transmitir e preservar a cultura Paiter.

Entre os Paiter mais velhos, as lideranças sentem-se valorizadas ao terem suas memórias utilizadas como ferramenta de ensino. Na Escola “Sertanista José do Carmo Santana”, os relatos dos anciãos são marcados por musicalidade, encenações e a imitação de sons dos personagens e da floresta. Para os ouvintes, a recepção do conhecimento ocorre de maneira lúdica. Walter Benjamin escreveu sobre a capacidade mimética da narrativa: para o filósofo alemão, “(...) o adulto, ao narrar uma experiência, alivia o coração dos horrores, goza novamente de uma felicidade. A criança volta a criar para si o fato vivido” (BENJAMIN, 1984, p. 75). As crianças envolvidas na ação provavelmente criaram e recriaram as realidades, recontando-as, reconstruindo-as e, por que não dizer, reinventando as tradições

Como os professores indígenas sistematizam e trabalham os etnoconhecimentos na Escola “Sertanista José do Carmo Santana”

Ainda que de maneira lúdica, trabalhar os conhecimentos transmitidos pela memória oral dos Paiter não é tarefa fácil para os professores indígenas, que se sentem inseguros em relação à sistematização e utilização desse recurso em sala de aula. O interessante é que basta um “rápido passeio” pela aldeia e logo se percebe que a transmissão oral do conhecimento faz parte do cotidiano. A menina aprende a fazer panelas de barro com as mães e avós; os meninos, a fazer arco com os avôs e pais. Mas, então, por que os professores, que também são indígenas – e, portanto, possuem em suas vivências a transmissão do saber oral – sentem dificuldades em utilizar a memória como ferramenta didática?

Possivelmente, essa dificuldade dos professores indígenas reside em uma das transformações provocadas pela modernidade, em que o “tempo da natureza” foi substituído pelo “tempo do relógio”. O ato de ensinar/aprender no cotidiano Paiter ocorre sem horário pré-determinado, no “tempo em que as coisas devem ser feitas”; já na escola, educador e educando têm como restrição, no mesmo ato de ensinar/aprender, o tempo para a realização das atividades. A obrigação de realizar as ações pedagógicas conforme o tempo escolar, ou seja, em aulas de cinquenta minutos, é encarada como um entrave no processo de ensino-aprendizagem no cotidiano escolar indígena.

Metodologicamente, uma das possibilidades de trabalhar os etnoconhecimentos em sala de aula nos é dada por Paulo Freire, ao tratar sobre a questão dos saberes “espontâneo, “ingênuo” e “científico”, o “pensar certo” marcado pela rigorosidade metódica:

O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea, “desarmada”, indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito. Este não é o saber que a rigorosidade do pensar certo procura. Por isso, é fundamental que na prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas, pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador. (FREIRE, 2002, p.43)

Em entrevista com a professora Magarachep Suruí, pedimos que ela relatasse uma experiência de atividade que envolvesse os saberes tradicionais desenvolvida por ela na escola. A professora nos descreveu uma atividade de produção de artesanato feminino, com cerâmica e cestaria, que se iniciou em sala de aula; contudo, para que a atividade se concretizasse, as aulas tiveram que ser realizadas fora dos muros escolares. Segundo a professora, mesmo havendo na escola condições pedagógicas (infraestrutura) e a assessoria técnica das sabedoras – indígenas mais velhas – para o desenvolvimento da produção do artesanato, os educandos só conseguiram concretizar as atividades fora do ambiente escolar. Esse é um exemplo do saber ingênuo, que precisa ser sistematizado e fazer parte do currículo escolar indígena, ao mesmo tempo em que nos revela outra relação com o ato de aprender, que se concretiza para além do rigor da disciplina escolar como, por exemplo, a obrigatoriedade da concretização da atividade no tempo do número de aulas estabelecido.

Sobre a utilização dos etnoconhecimentos em sala de aula, Joaton Suruí, que leciona as disciplinas de Língua Materna e Identidade Étnica Histórica, esclarece:

Os etnoconhecimentos que trabalho nessas duas disciplinas diversificadas são escolhidos junto com a comunidade, nas reuniões que participei, onde eles discutem o futuro da cultura e qual a contribuição da escola para a manutenção da mesma. Produzo textos para trabalhar com os alunos a respeito desses conhecimentos, também costumo citar um tema da cultura, para os estudantes pesquisarem junto aos mais velhos da sua família, que trazem para a sala de aula para apresentar para os colegas e a partir daí construir o material daquele tema. (ENTREVISTA COM PROFESSOR JOATON SURUÍ, Cacoal, 2014)

Podemos observar que quase todo o material didático existente para trabalhar os conteúdos das disciplinas ministradas pelo professor foi produzido em parceria com seus educandos. Para tanto, o educador utilizou recursos multimídia, como gravadores, câmeras digitais e filmadoras para coletar as narrativas. Metodologicamente, o professor explica como estimula os educandos a coletar dados:

Outra forma que utilizo para trabalhar as minhas aulas são as pesquisas dos temas geradores com sabedores indígenas mais velhos da minha aldeia. Nas aulas também utilizo vídeos de gravações existentes sobre a nossa cultura. Em algumas aulas convido o mais velho para falar sobre temas relacionados à cultura. Também peço para os alunos realizarem pesquisas com a comunidade. Dependendo da aula formo pequenos grupos de alunos ou duplas para realizar pesquisa sobre a cultura e apresentar em sala de aula. Faço leitura coletiva de textos dos próprios alunos, às vezes um aluno lê o trabalho do outro, verificando a compreensão do que está escrito, assim avançamos na produção da nossa escrita. Procuro organizar as minhas aulas em sala e outros espaços da comunidade que permitem aos alunos registrar os saberes da nossa cultura. Neste sentido realizamos atividades de construção de malocas e outras atividades relacionadas à cultura e costume do nosso povo. Procuro também ir com alunos nas atividades culturais da nossa aldeia, para que eles aprendam com os mais velhos sobre a nossa cultura. Às vezes também levo os alunos para participar das oficinas da cultura, limpeza do córrego e outras atividades que são realizadas no espaço da comunidade. (ENTREVISTA COM PROFESSOR JOATON SURUÍ, Cacoal, 2014).

O professor Joaton Suruí aprendeu a trabalhar o “saber científico”, o “pensar certo”, como preconiza Paulo Freire (2002), ultrapassando a curiosidade epistemológica do sujeito, o “pensar ingênuo”. Desde 2007, o professor Joaton Suruí, em parceria com o professor Uraan Anderson Suruí, vem estudando a língua e a cultura Paiter; o fruto dessas pesquisas foi a publicação do livro História do clã G̃apg̃ir e o Mito do Gavião Real (2011), da cartilha O tempo da floresta (2012) e do glossário Paiter e por ah etĩg; todas essas produções são bilíngues, escritas em Paiter e português.

Em 2010, Joaton e Uraan passaram a contar com as contribuições do também professor Luiz Weymilawa Suruí. Juntos, os três educadores estão desenvolvendo projetos de sistematização dos conhecimentos Paiter. Suas principais fontes são os registros das narrativas de dois anciãos indígenas: Gakamam Suruí e Joaquim Suruí.

Para realizar as coletas de dados, a Associação Gãbgir do Povo Indígena Paiter Suruí buscou financiadores, submetendo o projeto de normatização e construção da escrita da língua Paiter aos editais de várias agências de fomento, sobretudo o MEC. Após os dados serem coletados, realizaram-se oficinas assessoradas pela linguista Ana Suelly de Arruda Câmara Cabral (LALI- UnB) e pela pedagoga Laide Maria Ruiz Ferreira. Nas oficinas, os Paiter escolhem quais temas deveriam ser trabalhados e sistematizados, com vistas à construção de um currículo escolar onde aparecessem os etnoconhecimentos. Esse currículo passou a fazer parte do Projeto Político Pedagógico da escola, assim como algumas atividades culturais – como a confecção de artesanato, a dramatização das histórias narradas pelos mais velhos e a festa tradicional. Após a sistematização destes trabalhos, foram construídos materiais, posteriormente publicados (imagens 1, 2 e 3).

Podemos observar que, no desenvolvimento do projeto de normatização e construção da escrita da língua Paiter os professores indígenas saíram do “pensar ingênuo” para o “pensar certo”.

O reconhecimento público desse projeto ficou expresso nos prêmios Educador Nota Dez da Fundação Victor Civita e Professores do Brasil (MEC), no ano de 2008, ao professor Joaton Suruí; e em 2014, quando a Associação Gãbgir (representada pelo professor Joaton Suruí) recebeu do MEC a Menção Honrosa em Direitos Humanos em Educação pelo desenvolvimento do trabalho de escrita da língua Paiter por meio dos etnoconhecimentos

Gráfico 1: Imagem 1 - Livro Histórias do Clã G̃apg̃ ey e o Mito do Gavião Real - Fonte: Associação Gãbgir 

Gráfico 2: Imagem 2 - Cartilha Tempo da Floresta - Fonte: Associação Gãbgir 

Gráfico 3:  Imagem 3 - Glossário Paiter e por ah etig̃ - Fonte: Associação Gãbgir 

Considerações finais

As informações contidas neste artigo nos mostram que a legislação brasileira contribui para a educação escolar indígena específica e diferenciada; no entanto, ainda falta muito para que os povos indígenas tenham acesso a um princípio básico da cidadania: a educação de qualidade.

No Brasil, o esforço de criar e sistematizar o material didático para trabalhar os etnoconhecimentos em sala de aula ainda vem sendo feito aos poucos; em geral, são iniciativas de professores indígenas e de suas comunidades, com o auxílio técnico de instituições de ensino superior – vale registrar que nem sempre essas produções contam com financiamentos.

No caso específico da Escola “Sertanista José do Carmo Santana”, a sistematização dos conhecimentos Paiter levou cerca de cinco anos até a publicação do primeiro livro. Contudo, é notório que os educadores Paiter estão produzindo materiais cada vez mais rapidamente, e mais ricos em informações. Atualmente, concentram-se na produção de dois glossários, um de plantas e outro de animais da região. Os glossários estão sendo confeccionados de acordo com os conhecimentos dos mais velhos e serão escritos em três línguas: português, Paiter e, agora, o inglês. O material contará ainda, com o nome científico dos espécimes da fauna e da flora, ilustrações e fotografias; todas as fontes foram coletadas pelos professores e educandos.

Por fim, mesmo com uma legislação favorável, o trabalho de sistematizar os saberes Paiter, com vistas à produção de material didático para a Escola “Sertanista José do Carmo Santana”, foi desenvolvido pela iniciativa dos professores, das associações e da comunidade, que sentiram a necessidade de materiais que valorizassem a língua materna. É notório que a Secretaria da Educação de Rondônia (SEDUC) – órgão que, a rigor, é responsável pela educação escolar indígena – ainda não possui uma equipe pr/eparada para lidar com a sistematização e a confecção de materiais específicos de etnoconhecimentos, ficando a cargo de cada etnia a realização dos mesmos. Torna-se, portanto, urgente que o governo disponibilize condições estruturais aos povos indígenas de Rondônia, por meio da efetivação de políticas que possibilitem aos profissionais (como antropólogos, pedagogos, historiadores e linguistas) auxiliar os povos do Estado na sistematização desses etnosconhecimentos

REFERÊNCIAS

BASTIDE, Roger. Itinerário da democracia. Encontro com Bernanos. Diário de São Paulo, sexta-feira, 17 de agosto de 1944. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984. [ Links ]

BRASIL. Constituição 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado. 1988. [ Links ]

BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Lei de Diretrizes e Bases. Brasília: Congresso Nacional, dezembro, de 1996. [ Links ]

BUSARELLO, Flávia Roberta e KEIM, Ernesto Jacob. Espaço Ameríndio, 2011, v.5(3), p.123-142. [ Links ]

CHICOEPAB, Suruí. Reflorestamento da Terra Indígena Sete de Setembro: uma mudança da percepção e da conduta do povo Paiter Suruí de Rondônia? Dissertação (Mestrado Profissional em Desenvolvimento Sustentável). CDS/UNB, Brasília. 2013 [ Links ]

CUNHA, Rodrigo Bastos. Políticas de línguas e educação escolar indígena no Brasil. Educar em Revista, 2008(32), p. 143-159. [ Links ]

FREIRE, José R. B. Tradição oral e memória indígenas: a canoa do tempo. In: Salomão, Jayme (Dir.). América: Descoberta ou invenção. 4º COLÓQUIO UFRJ. Rio de Janeiro. Imago, 1992. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 24. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra S/A, 2002. [ Links ]

IANNI, Octavio. A questão nacional na América Latina. Revista Estud. av., São Paulo, V. 2, n. 1, Mar. 1988. [ Links ]

MAHER, Terezinha Machado. Ser professor sendo índio: questões de língua(gem) e identidade. Tese (Doutorado). Campinas: IEL/Unicamp, 1996. [ Links ]

RAMOS, Arthur. Guerra e Relações de Raça. Rio de Janeiro: Departamento Editorial da União Nacional dos Estudantes, 1943. [ Links ]

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido de Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. [ Links ]

SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. [ Links ]

TESTA, Adriana Queiroz. Entre o canto e a caneta: oralidade, escrita e conhecimento entre os Guarani Mbya. Educação e Pesquisa, 2008, v. 34, n.2, p. 291. [ Links ]

TOLLEFSON, James W. Planning language, planning inequality. Londres: Longman, 1991. [ Links ]

WAGLEY, Charles (Org.). Race and Class in Rural Brazil. New York: Columbia University Press, 1952. [ Links ]

Recebido: 04 de Junho de 2015; Aceito: 22 de Julho de 2018

Creative Commons License Attribution 3.0 Unported (CC BY 3.0) This is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License