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Revista Educação e Cultura Contemporânea

Print version ISSN 1807-2194On-line version ISSN 2238-1279

Rev. Educ. e Cult. Contemp. vol.15 no.40 Rio de Janeiro July/Sept 2018  Epub Apr 12, 2018

https://doi.org/10.5935/2238-1279.20180057 

Artigos

A representação do negro na literatura infantil contemporânea brasileira

The representation of African descendants in Brazilian contemporary children's literature

Gladir da Silva CabralI 

Daiane Barreto MartinhagoII 

Carlos Renato CarolaIII 

IUniversidade do Extremo Sul Catarinense, Brasil;gla@unesc.net

IIUniversidade do Extremo Sul Catarinense, Brasil;daianemartinhago@gmail.com

IIIUniversidade do Extremo Sul Catarinense, Brasil;crc@unesc.net


Resumo

Este artigo tem por objetivo aprofundar o conhecimento sobre o tema da representação do negro na literatura infantil, abordando a diversidade étnica afrodescendente como contribuição para a cultura brasileira. O corpus da pesquisa é composto de nove obras literárias infantis que compõem o pacote do Programa Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), destinadas a alfabetizandos do ensino fundamental. Com base em autores como Stuart Hall, Lilia Moritz Schwarcz, Nilma Lino Gomes e Kabengele Munanga, que tratam de questões étnico-raciais, foram analisadas as obras acima citadas, o que evidenciou a importância da literatura na construção da identidade dos afrodescendentes e na valorização cultural desses povos, além do caráter formativo e educativo da literatura infantil para o exercício da cidadania e da convivência com a diversidade. No entanto, observou-se também que parte das obras não problematizam de modo mais direto as relações de poder e assimetrias entre brancos e negros: questões como o preconceito e o racismo, por exemplo, não são explicitamente tratadas. O combate ao racismo deve ser tema de discussão entre os estudantes na sala de aula, estando a literatura a serviço da informação e da reflexão sobre as práticas sociais vigentes e as relações étnico-raciais. A cultura negra seria de fato valorizada, não como curiosidade ou exotismo, mas como elemento constitutivo da cultura e da sociedade brasileira.

Palavras-Chave: Negro; Identidade; Cultura; Racismo; Literatura Infantil

Abstract

This article aims at deepening the knowledge on the subject of representation of AfricanAmericans in children's literature and emphasizing the importance of studying literature and addressing the African-American ethnic diversity as a contribution to the Brazilian culture. The research corpus is composed of five childrenbooksincluded in the Plano Nacional de Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) [National Program for Literacy at Age One] distributed to elementary public schools. Based on authors such as Stuart Hall, Lilia Moritz Schwarcz, Nilma Lino Gomes, and Kabengele Munanga, who deal with ethnic and racial issues, the books selected were analyzed. The results show the importance of literature in the construction of the African American identity and in the cultural appreciation of these people, besides the formative and educational character of children literature for the exercise of citizenship and respect to diversity. However, it was also observed that the works do not directly problematize power relations and racial inequalities: issues such as prejudice and racism, for example, are not explicitly addressed. The discussion against racism must take place among students in the classroom, having literature as a source of information and reflection on current social practices and ethno-racial relations. African-American culture must be seen, not as a curiosity or an exotic item, but as a constitutive element of the Brazilian culture and society.

Key words: African Descendants; Identity; Culture; Racism; Children's Literature

Introdução

O tema “A representação do negro na literatura infantil contemporânea brasileira” surge do interesse pelo modo como o negro e a cultura africana são representados na literatura infantil, levando em conta as recomendações das Diretrizes Nacionais para a Educação - DCN (BRASIL, 2004). Em 2014, o governo federal enviou às escolas brasileiras obras da literatura infantil que tratam da cultura africana e afrodescendente. Esses livros fazem parte do Programa Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) e são destinados a alfabetizandos. Neste artigo, busca-se compreender como as obras literárias: Minha família é colorida, de Georgina Martins, As panquecas de Mama, de Mary Chamberlin, Canção dos povos africanos, de Fernando Paixão, Histórias da nossa gente, de Sandra Lane, e Maracatu, de Sonia Rosa, Porque somos diferentes, Carmen Gil, A minha bateria, de Martinho da Vila, Histórias encantadas africanas, de Ingrid Biesemeyer Bellinghasen, e Pretinho, meu boneco querido, de Maria Cristina Furtado, abordam a diversidade étnica afrodescendente.

Em princípio, o presente estudo traz um breve relato do contexto histórico e social do preconceito e da discriminação racial no Brasil. O texto também trata da importância da literatura infantil na construção identitária do afrodescendente. A fundamentação teórica do presenta trabalho inclui principalmente as ideias de cultura e identidade presentes em autores como Stuart Hall, Lilia Moritz Schwarcz, Nilma Lino Gomes e Kabengele Munanga. Por fim, as considerações finais mostram, de um modo geral, a análise das obras aqui mencionadas e qual pode ser o papel da escola, em especial, do professor, frente às questões étnicas/raciais.

A observação analítica dos livros selecionados enfocou três aspectos conceituais principais: cultura, diferença étnica e identidade. Formulamos os problemas da seguinte forma: Como se apresenta o sentido de cultura? De que forma os autores/as explicitam e abordam a questão das diferenças étnicas? Como se apresenta o sentido de identidade? As obras aqui analisadas foram selecionadas por fazerem parte do pacote do Programa Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) e por tematizarem diretamente a questão da africanidade e da negritude.

Contexto histórico e social do preconceito e da discriminação racial no Brasil

“O preconceito é um julgamento negativo e prévio dos membros de um grupo racial de pertença, de uma etnia ou de uma religião ou de pessoas que ocupam outro papel social significativo. Esse julgamento prévio apresenta como característica principal a inflexibilidade pois tende a ser mantido sem levar em conta os fatos que o contestem. Trata-se do conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos. O preconceito inclui a concepção que o indivíduo tem de si mesmo e também do outro. ” (GOMES, 2005, p. 54).

A origem do preconceito racial na Brasil remonta ao período da colonização europeia do “Novo Mundo”; foi um dos instrumentos de dominação dos colonizadores europeus, e no caso do Brasil foi difundido e instituído pelos portugueses, com apoio de espanhóis, holandeses, ingleses e franceses. No século XVIII, a cor da pele foi fator determinante para a divisão das chamadas três raças consideradas matrizes do povo brasileiro: a branca, a negra e a amarela. Já no século XIX, aliaram-se à cor da pele outros fatores determinantes, como a forma do nariz, dos lábios, o formato do crânio, por exemplo (MUNANGA, 2003, p. 3-4). Nessa época, a ciência, pautada na tese do branqueamento e na teoria eugênica, considerava os brancos como sendo mais capazes intelectualmente que os índios e, por último, os negros. Cientistas como Kid, Gobineau e Le Bon acreditavam na existência de “tipos puros” e na miscigenação como sinônimo de degeneração (SCHAWRCZ, 1993, p. 19). Na época da colonização, os colonizadores europeus (cultura branca) acreditavam ser superiores ao povo afro-brasileiro, pois dominavam a economia mundial, as principais fontes do saber e da tecnologia e eram brancos, considerando-se “puros” e, portanto, mais aptos a dominar outras raças.

No século XIX, as elites luso-brasileiras assimilaram o discurso cientificista que preconizava a inferioridade racial dos povos com cor de pele escura ou não branca, sugerindo que a miscigenação era fator de degeneração de uma raça supostamente mais pura. Por isso, durante a Primeira República (1889-1930) o Estado brasileiro preocupou-se em incentivar a imigração do povo europeu a fim de branquear a população mestiça RIBEIRO, 1995, p. 404), como se isso não fosse também outra forma de miscigenação, o que provocou mudanças nos hábitos e nos costumes da sociedade brasileira, pois um outro “padrão”, o de “modernidade”, estava sendo imposto. O Brasil proclamou sua independência política de Portugal, mas as novas elites brasileiras adotaram o modelo civilizatório europeu, preservando obsessivamente a dependência do modelo cultural. Assim, quando no século XIX a Revolução Industrial impulsiona a modernização da Europa, as elites republicanas impõem medidas para acompanhar o ritmo da modernidade. No caso da sociedade carioca, por exemplo,

Acompanhar o progresso significava somente uma coisa: alinhar-se com os padrões e o ritmo europeu. A imagem do progresso - versão prática do conceito homólogo de civilização - se transforma na obsessão coletiva da nova burguesia. Dois princípios fundamentais regerão essa transformação: a condenação dos hábitos e costumes brasileiros; a negação da cultura popular. (SEVCENKO, 1983, p. 29)

Nesse contexto, os negros alforriados e pobres foram deslocados das áreas centrais das cidades para os morros, áreas periféricas. Esse deslocamento ocorreu pautado num discurso eugênico, que visava à construção de uma cidade “civilizada”. “Nas décadas de 30 e 40, o centro da cidade já não abrigava mais as populações negras e pobres” (MARIA, 2009, p. 150).

Na década de 1930, constrói-se a ideia da democracia racial, ainda que sem esse termo propriamente dito, ou seja, a adoção da miscigenação, pelo governo, como marca mais importante da identidade nacional. Nessa perspectiva, o povo brasileiro resultaria da mistura de três raças: os índios, os portugueses e os negros. É particularmente interessante às elites conservadoras que o povo acredite que não existe discriminação racial, embora mascaradamente os negros sejam sempre vistos como preguiçosos, inferiores e incapazes. No fundo, a crença na ideia de democracia racial e cordialidade do brasileiro oculta o preconceito presente na sociedade.

No início da década de 1950, Florestan Fernandes e Oracy Nogueira participaram de uma série de pesquisas, sob o patrocínio da Unesco, cujo foco era as relações interraciais no Brasil. No desenvolvimento de suas pesquisas, eles acabaram por problematizar a suposta “harmonia racial” que se acreditava haver no Brasil e, nesse movimento, elaboraram o conceito e a expressão conhecida hoje como “democracia racial”. Esses trabalhos foram apresentados no Simpósio sobre Etno-sociologia, no XXXI Congresso Internacional de Americanistas, realizado em São Paulo (MAIO, 2008, p. 35- 6). Para o sociólogo brasileiro Florestan Fernandes:

A convicção de que as relações entre “negros” e “brancos” corresponderiam aos requisitos de uma democracia racial não passa de um mito. Como mito, ela se vinculava aos interesses sociais dos círculos dirigentes da “raça dominante”, nada tendo que ver com os interesses simétricos do negro e do mulato. (1978, p. 262-3)

A antropóloga norte-americana Robin E. Sheriff, a partir das leituras de Florestan Fernandes e Oracy Nogueira, descreve a democracia brasileira como um mito e como um sonho (1993 apud MAIO, 1996, p. 12-3). Nessa perspectiva, a democracia racial é um mito, uma vez que o racismo sempre existiu e interessava à classe dominante para o exercício do seu poder e controle social. É um sonho, pois muitos afro-brasileiros gostariam que o racismo deixasse de existir para terem seus direitos efetivamente assegurados.

Na sociedade brasileira existem hierarquias de classificação social baseadas na ideia de raça. Por isso, o fato de um indivíduo pertencer a uma determinada raça/etnia pode restringir o acesso a saúde, educação, moradia, entre outros recursos. O preconceito e a discriminação étnico-racial aliados a condições socioeconômicas precárias impedem que as relações sociais sejam igualitárias entre brancos e negros. Kabengele Munanga lembra que uma sociedade deve ser igualitária justamente para proporcionar aos indivíduos a possibilidade de escolher caminhos, meios e modos de vida, reconhecendo o direito que toda a pessoa e cultura têm de cultivar sua especificidade, respeitando a diversidade étnica e cultural (2003, p. 7).

Uma sociedade igualitária implica a luta contra o racismo, que sempre esteve enraizado à nossa cultura. O racismo, termo que designa a convicção de que uma raça é superior à outra, foi construído socialmente e considera que as características intelectuais e morais de um dado grupo são consequência direta de características físicas ou biológicas que determinado grupo possua (MUNANGA, 2003, p. 8). Para o sociólogo Anibal Quijano (2005, p. 117), nas Américas o racismo moderno é uma herança da colonização europeia, uma herança herdada e manipulada pelas elites dominantes que conquistaram a hegemonia dos estados nacionais no século XIX, no contexto das lutas pela emancipação política. A conquista da América foi codificada e legitimada pela ideia de raça e operacionalizada pela exploração do trabalho em torno do capital e do mercado mundial, viabilizando a expropriação de recursos naturais e seus produtos. (QUIJANO, 2005).

Nos tempos da escravidão, o negro era excluído por sua condição social e, principalmente, pela cor da pele. Hoje, ele é discriminado como cidadão. A exclusão tem sua origem, portanto, na escravidão. Nosso país reconhece sua diversidade cultural, mas é incapaz de assumi-la. “O Brasil apesar de ter em sua história uma forte influência de um período de escravidão, nega até hoje, estas influências baseadas na ideológica afirmação da democracia racial” (LIMA; ROMÃO; SILVEIRA, 1998, p. 12).

Munanga comenta que ainda existem raças fictícias nas representações mentais e no imaginário coletivo de todos os povos e sociedades contemporâneas (2003, p. 12). O racismo é camuflado. Substitui-se a palavra raça por etnia, mas a relação de dominação e exclusão permanece. Compreende-se que os seres humanos pertencem à raça humana, e o que há de diverso são etnias, manifestações socioculturais. No entanto, a palavra etnia vem carregada das mesmas cargas semânticas atribuídas ao termo raça. Nas palavras de Dunn et al.:

A concepção moderna de raça, fundada sobre os fatos conhecidos e sobre as teorias da hereditariedade, priva de toda justificação a antiga concepção segundo a qual existiriam diferenças fixas e absolutas entre as raças humanas e, por conseguinte, uma hierarquia de raças superiores e inferiores fundado no conceito biológico de raça. Para os sábios atuais as raças são subdivisões biológicas de uma espécie única, a do Homo sapiens. (1972, p. 8)

Por etnia compreende-se “um conjunto de indivíduos que, histórica ou mitologicamente, têm um ancestral comum; têm uma língua em comum, uma mesma religião ou cosmovisão; uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território” (MUNANGA, 2003, p. 12).

De acordo com a Constituição Federal (BRASIL, 1988), todos os cidadãos brasileiros têm seus direitos assegurados pela Lei, mas numa sociedade capitalista, na qual a divisão social perpetua uma relação de desigualdade e exploração, o homem é condicionado pelas condições materiais assimétricas e violentas, ou seja, pela base econômica da vida social, que determina e afeta as instituições e as regras de funcionamento da sociedade, bem como suas ideias e valores. Entretanto, a discriminação racial ultrapassa as dimensões de classe, pois mesmo os indivíduos que pertencem a classes sociais mais altas sofrem alguma forma de preconceito e discriminação.

Karl Marx, filósofo alemão, analisou o sistema capitalista em seus aspectos políticos, sociais e econômicos, valendo-se do método dialético. A realidade objetiva, seus elementos contraditórios, em movimento, constitui o foco do seu método dialético. Para Marx, a história é construída por meio de contradições, antagonismos e conflitos. O ser humano, através de suas ações e relações, constrói-se a si mesmo, a sua história e a natureza, é um ser ativo na construção do conhecimento, que se dá num processo de ação e reflexão, cujo sujeito e objeto estão inter-relacionados dialeticamente (ANDERY, 2002). “Dessa forma as próprias coisas constituem-se na relação com os homens e não têm valor em si, já que não podem ser apreendidas, independentemente dessa relação” (ANDERY, 2002, p. 409).1

Ao estudar a sociedade, suas classes e contradições, Marx tinha por objetivo conscientizar os seres humanos de sua realidade histórica, para que eles mesmos pudessem modificá-la (ANDERY, 2002, p. 420). O pensamento marxista utiliza como ferramenta de compreensão da realidade o materialismo histórico dialético. Andery cita uma fala de Marx em O dezoito brumário de Luis Bonaparte: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente legadas e transmitidas pelo passado” (MARX apud ANDERY, 2002, p. 402). Nessa perspectiva, o desprezo com que o homem branco tratou o negro acabou por condená-lo, naquele momento da história, a uma posição social inferior aos demais; e mais do que um mero desprezo social, Marx desmistificou a visão positivista do capitalismo moderno, salientando que o capitalismo europeu nasceu a partir da invasão e conquista do “Novo Mundo”, ou seja: “A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da era de produção capitalista” (MARX, 1985, p. 285). É necessário, portanto, compreender o contexto histórico-social em que o conhecimento é produzido, dialeticamente, para transformá-lo.

A identidade atribuída ao homem negro é marcada pelo preconceito e pelo não reconhecimento da negritude como elemento positivo e legítimo da história cultural do Brasil. Neste país, a imagem do negro sempre esteve relacionada a um passado escravagista. A identidade, bem como a cultura, é uma construção histórica, política e econômica que se dá num movimento aberto e flexível. Sendo assim, é na interação com outras pessoas que o ser humano descobre sua individualidade, forma sua identidade, numa tensão constante entre a identidade atribuída pela sociedade e a identidade reivindicada pelo indivíduo. Nessa direção, Stuart Hall entende a construção identitária como um processo de percepção da diferença e em contraponto à presença do outro. Segundo ele,

[...] a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros. (HALL, 2005, p. 39)

Portanto, a diferença é que permite a construção da identidade, do mesmo, do semelhante. Sem o outro, não há o self.

A identidade do negro, contudo, é marcada não somente pela diferença simbólica, pela linguagem atribuída a ele no período escravista, ou pelas narrativas que se inventaram desde sua chegada, mas é também marcada pela diferença social, considerando os sistemas classificatórios de classe entre brancos e negros, por exemplo. O que é da dimensão do simbólico, da representação apoia-se nas relações sociais e históricas, entre movimentos, gestos e institutos de poder.

A escola, por meio do currículo, pode colaborar para a propagação da discriminação racial, toda vez que deixar de abordar de maneira inteligível a participação do negro na sociedade brasileira e a interação com índios, mestiços e demais etnicidades, ao mesmo tempo em que não problematizar a assimetria das relações étnico-raciais. No caso do professor de Português, por exemplo, é preciso que ele reflita sobre as obras literárias que irá oferecer aos seus alunos no currículo escolar e no conteúdo da disciplina que leciona, bem como sobre as atividades que proporá para as atividades em classe. No caso de livro didático e livros da literatura infantil, a percepção da representação do negro por meio das imagens presentes nas publicações é fundamental.

Os educadores devem ter bem definidos seus compromissos sociais para com muita objetividade implantar ações que realmente façam com que as desigualdades étnicas sejam discutidas e não dissimuladas. O “mascaramento” das diferenças entre as etnias faz com que o racismo continue intacto, todavia o professor não pode em nenhum momento ser conivente com essa prática. A dificuldade em se posicionar frente aos problemas de preconceito étnico faz com que o educador legitime ainda mais situações deste tipo preconceituosas. (LIMA; ROMÃO; SILVEIRA, 1998, p. 21)

A literatura brasileira infantil contemporânea oferece obras que valorizam a diversidade e o lugar do negro na sociedade, embora isso seja relativamente recente e essas obras não sejam todas de fácil acesso ao público em geral. É importante que o professor disponibilize essas obras a seus alunos e converse com eles sobre o assunto, provocando a reflexão sobre a vida em sociedade, a causa e a complexidade das desigualdades sociais, favorecendo o desenvolvimento do respeito à diversidade cultural para a construção de uma sociedade democrática em que as diferenças étnicas não se tornem pretexto para exclusões e atitudes preconceituosas.

Análise da representação do negro e do afrodescendente nos livros infantis

Ao estudar obras literárias que ressaltam a importância da cultura afro-brasileira, o estudante negro desenvolve sua autoestima, tem sua identidade étnica confirmada e valorizada e vislumbra a possibilidade de reconstruir a história do seu povo. Os demais estudantes aprendem a valorizar a diversidade cultural do nosso país e a respeitá-la, compreendendo criticamente as relações sociais e aderindo a atitudes contrárias ao racismo. Pelo estudo do negro nas obras da literatura infantil, pretendem-se descobrir as contradições sociais e as possibilidades de transformação das relações. Segundo Antonio Candido,

[...] a literatura tem uma “função humanizadora”, ou seja, tem a capacidade de “confirmar a humanidade do homem.” Daí derivam suas funções mais específicas: “satisfazer a necessidade universal de fantasia, contribuir para a formação da personalidade” e, ainda, ser “uma forma de conhecimento do mundo e do ser.” De acordo com esse ponto de vista, a literatura é algo que “exprime o homem e depois atua na própria formação do homem”. E sua função educativa advém do fato de ela agir com “o impacto indiscriminado da própria vida” nas camadas mais profundas e de corresponder àquelas necessidades humanas. (1972 apud MAGNANI, 2001, p. 75)

A obra literária infantil Minha família é colorida, da escritora Georgina Martins, trata da miscigenação racial, enfatizando aspectos biológicos positivos, pois nela o branco e o negro assumem belezas singulares. A personagem principal se chama Ângelo e tem dois irmãos: João e Camilo. Ângelo é um menino questionador. Certo dia, ele pergunta à sua mãe porque o seu cabelo não voa como o dela e o da avó. E complementa: “Mãe, eu sou negro?” (MARTINS, 2011, p. 10). Nesse momento, a mãe de Ângelo mostra a foto da bisavó do menino. Ele, então, questiona: “Ela é bisavó do Camilo também?” (p. 12), isso porque o irmão de Ângelo não se parecia com a bisavó de ambos, pois ele era branco e a bisavó era negra.

A mãe de Ângelo começa a contar a história de sua família, lembrando o caso de amor dos bisavôs. Ela era negra como a noite e seus olhos, pretinhos como duas jabuticabas maduras; ele era branco como um copo de leite e seus olhos, azuizinhos como o céu. Eles gostavam muito um do outro e, desse amor, nasceu o avô do Ângelo: Agostinho. Agostinho, por sua vez, conheceu Marli. Ele se apaixonou pelas tranças dela e ela, pelos cabelos enroladinhos dele. Os dois ficaram juntinhos e tiveram o pai de Ângelo, que por sua vez se apaixonou pelos caracóis dos cabelos da mãe do Ângelo. Ela se apaixonou pelo sorriso dele, “que iluminava a cara toda” (p. 31). Eles se casaram e tiveram o Camilo e o Ângelo. João, o outro irmão de Ângelo, é fruto do primeiro casamento da mãe. Ângelo conclui, então, que sua família é colorida e bonita, igualzinha à sua caixa de lápis de cor. A partir desse enredo, a autora sugere ao professor que trabalhe com seus alunos a árvore genealógica de suas famílias.

É importante frisar que a obra ressalta aspectos biológicos (cor dos olhos, tipo de cabelo), mas não mostra aspectos culturais (região geográfica, religião, etc.). Desse modo, a construção da identidade do afrodescendente se restringe a uma visão romântica entre as personagens brancas e negras, prezando as relações intersubjetivas, mas isoladas de um contexto social e histórico mais amplo.

A obra As panquecas de Mama, de Mary e Richard Chamberlin, retrata a cultura de um vilarejo da costa leste da África. Mama Panya decide ir ao mercado livre com seu filho Adika, que, entusiasmado, convida a todos para o jantar. A mãe do menino se preocupa com o pagamento da compra dos ingredientes que pretende adquirir para o jantar. Há muitas pessoas convidadas e pouco dinheiro: “Mama segurou entre os dedos duas moedas que estavam guardadas no pano preso em sua cintura” (CHAMBERLIN; CHAMBERLIN, 2005, p. 5). No caminho de volta para a casa, Mama pergunta: “Quantas pessoas convidamos para hoje à noite?” (p. 19). Saltitando bem na frente dela, Adika cantarola sua resposta: “Todos os nossos amigos, Mama” (p. 20). Mama Panya começa a fazer a panqueca. Nesse momento, chegam seus convidados com os outros ingredientes para a panqueca. “E o banquete começou assim que todos se sentaram debaixo do baobá para comer as panquecas de Mama Panya” (p. 27). Como se vê, aspectos culturais como a comida, a dança, a música e o gestual estão presentes nessa história.

O livro, que é bem ilustrado, fala ao final sobre o Quênia. Traz um vocabulário kisiwahili, uma das línguas oficiais dos quenianos, ao lado do inglês. Kisiwahili significa “falando a língua do povo do litoral”. Além disso, apresenta a receita da panqueca de Mama Panya. Em As panquecas de Mama Panya, pode haver uma certa generalização ao mostrar uma África ainda tribal, sem cidades grandes, mas tudo vai depender do mediador da leitura, do professor, que precisará fazer alguma pesquisa para desconstruir possíveis equívocos e generalizações. A possível pobreza sugerida pela simplicidade da vida rural na África é compensada com uma grande riqueza cultural refletida pela linguagem, roupas, comidas, hospitalidade e celebração da vida. A história não trata dos conflitos internos no Quênia ou mesmo nas diferenças tribais e pode dar a impressão de que o país é um todo harmonioso e pacífico. Certamente, há conflitos e tensões. Cabe ao mediador da leitura problematizar a recepção ingênua do texto literário.

O livro Canção dos povos africanos, de Fernando Paixão, narra uma história de cordel do folclore africano. Lendas, contos e canções criadas pelos povos africanos possuem narrativas belas e cheias de conteúdo reflexivo. “O livro fala que o continente africano é berço de belas culturas com expressões singulares, de gestos exemplares” (PAIXÃO, 2010, p. 5). De acordo com a obra, nas culturas africanas a vida é pensada coletivamente. Cantigas são inventadas para anunciar o nascimento de uma criança; quando ela inicia seus passos na educação; quando se torna adulta; quando morre e sua alma se despede deste mundo para a imortalidade entre seus ancestrais. O negro africano expressa e cultiva intensamente suas crenças religiosas; a construção de sua identidade se dá por meio de rituais de canção. Cada um tem a canção como parte da sua identidade (p. 14).

De acordo com a narrativa, quando alguém erra, comete um crime ou pecado, é colocado dentro do círculo e o povo canta a canção pelo culpado (p. 17). A própria narrativa é formatada em versos, como trovas de um repente, como versos de uma canção:

Então a sua canção Naquele instante é cantada E vem em sua memória A sua vida passada E a pessoa que errou Por todos é perdoada. Não existe punição Naquela comunidade Enquanto ouve a canção A pessoa na verdade Sente no fundo da alma O valor da liberdade. (p. 18)

O livro Canção dos Povos Africanos parece retratar a África como um espaço no qual todas as culturas vivem em paz, são felizes e livres. O texto sugere que todas as culturas africanas são iguais, simplesmente ignorando tantos países e culturas circunvizinhas. O livro também não reconhece ou faz referência aos conflitos internos na África.

A obra Histórias da nossa gente, de Sandra Lane, narra a trajetória do guerreiro Zumbi e o Quilombo dos Palmares. Em princípio, a autora faz referência à história da escravidão dos negros trazidos da África para o Brasil. Assim,

trazidos nos porões imundos dos navios negreiros, sem nada de mala, mas na alma e no corpo toda a sua cultura: homens, mulheres e crianças de várias partes da África chegaram às terras que já eram conhecidas por Brasil. Longe de casa, escravizados, muitos se revoltaram. A escravidão, porém, foi demorada... Tempo mais que suficiente para que nascessem crianças da cor de jambo, filhos dos colonos com as negras escravas... (LANE, 2010, p. 20)

Num segundo momento, a autora explica a origem do povo brasileiro:

E assim, o tempo, que não perde tempo, pôde ver o passar do tempo, nascer pessoas de todas as cores, forma, jeito de falar, pensar, dançar, comer, ter fé, enfim, uma gente que não queria ser colônia nem colonizadores de ninguém. Desde então, entre dores e alegrias, a história vem sendo construída por um povo que, quando se reconhece herdeiro do índio, do branco e do negro, encontra o seu lugar e descobre o que é ser brasileiro. (LANE, 2010, p. 21)

Na obra, apesar de sofrer no porão sujo de um navio negreiro, de trabalhar como escravo nas minas de ouro da antiga Vila Rica, de ser humilhado e/ ou de apanhar no tronco, o negro é descrito como um rei dotado de um espírito forte e alegre. “Dono de um espírito forte e alegre, Chico não deixava o olhar de sua gente cair. Relembrava as tradições de sua terra, alimentava a todos com esperança de liberdade...” (LANE, 2010, p. 24). O negro africano revela devoção e respeito pela religião do branco, pois ergue uma igreja para agradecer pela sua liberdade. “Em sinal de agradecimento e fé, no alto do morro, próximo à Mina da Encardideira, uma igreja foi erguida por Chico e sua gente” (LANE, 2010, p. 28). E ainda: “Ricamente vestidos, Chico Rei e toda a sua corte, depois de assistirem à missa cantada, voltaram tocando tambores, dançando e cantando pelas ruas da Vila Rica, como se fazia na África” (p. 28). O texto sugere, assim, uma mistura de diferentes tradições religiosas.

Numa das cenas do conto, a personagem vó Maria explica à sua neta que os negros têm seus heróis, mas muita gente esquece-se de contar, referindo-se, nesse contexto, à escola. Assim, ela conta a história de Francisco, o Chico, líder do Quilombo dos Palmares. Quando ainda era um menino, Chico foi capturado no Quilombo dos Palmares e entregue a um padre, que passou a chamá-lo de Francisco. O padre ensinoulhe histórias da Bíblia, Matemática e Latim. Francisco não se conformava com a sua condição de escravo e, por isso, voltou para Palmares. Nessa terra de refugiados, negros e negras resistiram aos ataques dos bandeirantes. Lá, Francisco passou a usar o nome de Zumbi e lutou até a sua morte pela liberdade. O livro Histórias da nossa gente supera a história contada sobre os negros vencidos, passivos, sem história, sem religiosidade, sem identidade e sem cultura e apresenta a questão da luta pela autonomia e pela dignidade. Nesse livro, os conflitos por liberdade e autoafirmação são apresentados de forma historicamente contextualizada e explícita.

O livro Maracatu, de Sonia Rosa, faz parte de uma coleção que trata dos costumes africanos que foram incorporados aos costumes dos brasileiros após a vinda dos negros da África para trabalhar como escravos. A palavra maracatu significa as “nações”. Segundo Sonia Rosa

muitos escravos bantos vieram do Congo para Pernambuco. Eles tinham o costume de formar um grupo e escolher um casal de líderes. Os dois eram coroados como rei e rainha do Congo. Depois, iam visitar os portugueses ricos, as igrejas das irmandades dos negros e as casas de candomblé. Todos se vestiam com luxo: os reis debaixo de um grande guarda-sol, damas da corte, guerreiros, nobres e embaixadores. Todos cantavam e dançavam ao som de tambores. Algumas damas carregavam “calungas” (bonecas que representavam espíritos protetores). Hoje, os grupos de maracatu desfilam no carnaval. (ROSA, 2009, p. 12)

A obra mostra que, devido à escravidão, o negro não podia viver sua negritude com liberdade, pois parte de sua identidade ficou perdida na saudade que sentia de sua pátria, da sua terra. “Assim que a África aqui chegou / O negro não podia mostrar / Tudo que na sua terra ele aprendeu a adorar” (ROSA, 2009, p. 1). “A saudade / Ardia noite e dia no seu peito” (p. 3), continua a canção, que vai mostrando como o negro africano tem sensibilidade espiritual, pois cuida da sua fé e da sua gente: “Mas mesmo assim ele nunca esqueceu de cuidar / da sua fé, da sua gente... / E de fazer seu culto a ‘Calunga’” (p. 3). Tanto as ilustrações quanto o texto vão mostrando:

Uma procissão tão colorida Segue o seu destino Tem rainha Tem Dama do Paço E Calunga é adorada com louvor. (p. 7)

O negro cor da noite tem dança, música, raça e fé. As nações de Maracatu, lembrança africana, são o foco da obra.

A obra Por que somos diferentes, de Carmen Gil, é narrada em primeira pessoa e conta a história de Marta, que durante uma excursão conheceu Tenka, uma menina brasileira cujos pais são de uma aldeia do sul da África. Tenka é “escura como o café” e tem cabelos pretos e encaracolados. Marta é “branca como o leite” e quer saber por que elas são tão diferentes. Roberta, uma monitora, explica que no grupo da excursão há crianças de muitos lugares: do Marrocos, da Polônia, da Bolívia, da China, de Botsuana, entre outros países etc.

Raul, o monitor, primo de Marta, propõe um desafio ao grupo: responder à pergunta de Marta: “Por que somos diferentes?” Tenka responde que Deus, após vários dias de chuva, modelou homens e mulheres com barro branco do chão e pintou-os com as cores do arco-íris. “Mas ele fez isso tão devagar que o arco-íris foi desaparecendo. As figuras foram ficando cada vez mais claras, e ele precisou deixar as últimas totalmente brancas” (GIL, 2006, p. 13). Júlio, um menino ruivo de óculos, argumentou que a pele serve como camuflagem. “Os que têm pele muito branca, por exemplo, podem se esconder melhor na neve. Por outro lado, os que têm pele escura podem caminhar durante a noite sem que ninguém os veja” (p. 14). Estevão diz: “Acho que a culpa é toda da água. Pois é, da água. Os seres humanos que vivem em países chuvosos são brancos porque acabaram desbotando com tanta chuva. Eu bem que digo à minha mãe que tomar banho demais não pode ser bom” (p. 16). Irena acha que

[...] os homens e mulheres pegaram a cor das tarefas que realizaram. Os que se dedicavam a acender e conservar o fogo, fazer carvão e descer às minas acabaram tingidos de preto. Os oleiros e os camponeses se cobriram da cor avermelhada do barro e da terra. Os que ordenhavam vacas e cabras, como se manchavam sempre de leite, ficaram brancos. (GIL, 2006, p. 18)

Ela concluiu, então: “Por isso nós temos peles de diferentes cores: a cor do carvão, a cor da terra e a cor do leite” (GIL, 2006, p. 18). Raul, o monitor, explica que a cor da pele depende de uma substância química chamada melanina, que protege a pele dos raios UVA contidos nos raios do sol. Ele dá, portanto, uma explicação científica para a razão da diferença de cor entre brancos e negros: “Quanto mais melanina uma pessoa tem, mais escura ela será” (GIL, 2006, p. 23). Raul complementa: “Quando tomamos sol, o nosso corpo produz mais melanina que de costume, pois precisa de mais proteção” (p. 25). A diferença é ancorada, portanto, na pigmentação da pele e não na cultura ou no olhar. Raul continua: “Há milhares de anos, nossos antepassados se pareciam muito com os macacos e tinham o corpo inteiro coberto de pelos. Esses pelos os protegiam dos raios solares. Pouco a pouco, e sem saber por quê, nós fomos perdendo os pelos” (p. 26). “O corpo é muito esperto e logo produziu uma espécie de creme protetor de cor marrom: a melanina. Assim, a pele dos homens e das mulheres ficou da cor do chocolate, como o da Tenka” (p. 27).

Mohamed indaga sobre as pessoas de pele branca. E Raul diz que a cor da pele mudou conforme o clima do lugar onde os seres humanos estavam instalados. “Quanto mais sol, mais escura a pele. Onde havia menos sol, a pele ficou mais branca” (GIL, 2006, p. 29). Por fim, as crianças reclamam o prêmio que Raul havia prometido para a criança que soubesse melhor responder a pergunta de Marta: Por que somos diferentes? Raul diz a elas que o prêmio seria um livro, o livro com todas as histórias contadas. Marta aprendeu que a única diferença entre Tenka e ela é um punhado de raios de sol. A obra é bem ilustrada e traz uma explicação científica para a origem da cor da pele branca e negra. No entanto, não aprofunda questões como o preconceito e a discriminação de modo explícito.

O livro A rainha da bateria, de Martinho da Vila, conta a história de Maria Luisa, filha de Dona Luzia. Maria gostava de música brasileira, especialmente samba. Ela morava numa casa de subúrbio, perto da quadra de uma escola de samba e costumava adormecer ouvindo o som da batucada. Maria Luisa pedia para sua mãe levá-la à quadra, mas sua mãe cheia de preconceito se negava.

Não. Lá não é lugar para você! Por que, mãe? Vejo sempre crianças indo para lá. É meninada de morro, filhos de gente que não presta. (VILA, 2009, p. 5).

Maria passou, então, a fugir para assistir ao ensaio da escola. Um dia, sua mãe a encontrou sambando e tirou a menina do samba. Maria continuou a fugir para assistir aos ensaios, apesar da proibição de sua mãe. “Jovem e bela, atraía as atenções nos ensaios. Aprendeu a sambar muito bem, mas não se demorava na quadra da escola” (VILA, 2009, p. 10). Dona Luzia descobriu que Maria fugia pela janela e mandou colocar uma tranca de ferro: “Maria, que era uma menina alegre, tornou-se uma jovem adolescente muito triste” (p. 14).

Aos dezessete anos, Maria entrou para a Faculdade de Comunicação para ser jornalista. Lá, ela conheceu Silas, um amigo de turma. Eles começaram a namorar e freqüentaram a escola de samba juntos.

Atualmente, ela desfila na frente dos ritmistas como Rainha de Bateria e fotos dela são publicadas em jornais, para orgulho de sua mãe. É que Dona Luzia perdeu o preconceito, começou a gostar de samba e retomou a alegria de viver, depois que a filha se casou com Silas e eles tiveram uma linda filha. (VILA, 2009, p. 20)

O livro enfatiza o preconceito por parte de D. Luzia contra as pessoas que dançam o samba e destaca a beleza da jovem negra Maria Luisa. O samba, cultura africana, é comparado a um teatro ambulante, pois num desfile há “pintura, escultura, artesanato, cenografia, literatura, poesia, música e dança” (VILA, 2009, p. 20).

A obra Histórias encantadas africanas, de Ingrid Biesemeyer Bellinghausen, traz três narrativas: “Baobá, a árvore de ponta-cabeça”, “Anansi e o baú de histórias” e “Os filhos do fogo”. “Baobá: a árvore de ponta-cabeça” conta que a primeira árvore criada por Deus era grande e forte: o baobá. Essa árvore vivia descontente, porque não tinha flores de várias cores. Um dia, reclamou a Deus, que disse: “Não reclame, você é perfeito: dá frutos, deliciosas sementes, flores, sombra e até água” (BELLINGHAUSEN, 2011, p. 7). Baobá continuou a lamentar. Então, Deus arrancou o tronco do baobá da terra e plantou novamente, com as raízes viradas para cima: “Será que hoje ele pensa diferente?” (2011, p. 9). Como se vê, o livro traz uma narrativa tradicional africana e tematiza questões relacionadas à identidade e autoaceitação.

A narrativa “Anansi e o baú de histórias” fala de um tempo em que as histórias ficavam em poder do Deus do céu: Nyame. Ele as aprisionava num baú de ouro. Um homem velho e fraco chamado Anansi Kwaku achava que o mundo era triste, sem histórias, e teceu uma teia com fios prateados que iam até o céu. Nyame ficou muito bravo, mas Anansi disse que queria comprar suas histórias para espalhar pelo mundo.

O preço pelas histórias, Nyame disse que ele não poderia pagar. O preço era: trazer quatro assustadoras criaturas: Onini, a jibóia que engole um homem inteiro; Osebo, o leopardo com dentes-de-sabre; Mmoboro, o enxame de vespas de furões mortais; Mmoatia, a fada que nunca é vista. (BELLINGHAUSEN, 2011, p. 12).

Anansi capturou as quatro criaturas e Deus entregou a ele o baú de ouro com as histórias, que espalhou por todo o mundo.

Na narrativa “Os filhos do fogo”, Nyame, o Deus do céu, vivia sozinho. Então, ele criou a terra, as árvores e os animais. Depois, fez a lua e as estrelas. Fez um casal que, apesar de viver bem, também passara a sentir solidão. Um dia, a mulher modelou com argila pequenas figuras humanas e cozeu-as. O homem sugeriu que chamassem as figuras de filhos. Nyame, o Deus do céu, foi visitá-los e perguntou-lhes se estavam cuidando bem da terra. O casal respondeu que sim. Escondidos de Nyame, passaram a cozer mais figuras. E durante uma visita de Nyame, cozinharam por muito tempo as figuras, que escureceram.

Com frequência o Deus do céu vinha fazer visitas. Alguns dias demorava mais, outros menos. Dessa forma, as figuras cozinhavam por tempos diferentes, apresentando diversas cores. As pouco cozidas eram brancas, outras, mais cozidas, amarelas, e assim por diante. (BELLINGHAUSEN, 2011, p. 22)

Após terminar o trabalho, o casal deu o sopro da vida e as figuras humanas, filhos do fogo, cresceram, casaram, tiveram filhos e se espalharam pelo mundo. As três narrativas nos remetem a mitos tradicionais da cultura, todos eles relacionados com a figura da divindade. Na narrativa intitulada “Baobá”, Deus castiga a árvore por reclamar flores coloridas em sua copa. Na narrativa “Anansi e o baú de histórias”, Deus é o detentor do conhecimento, e o entrega a Anansi, um homem velho e fraco, que espalha as histórias pelo mundo. Na narrativa “Os filhos do fogo”, Deus cria o homem e a mulher e dá a eles o conhecimento e a autonomia para criar seus filhos a partir da argila. Mas, a partir de um erro em que o casal cozinhou as figuras de argila por tempos diferentes, surgiram as pessoas de cores diferentes. Ou seja, a diferença ocorre por algum tipo de transgressão do plano divino e alguma forma de afirmação da liberdade humana.

O livro Pretinho, meu boneco querido, de Maria Cristina Furtado, conta a história de Nininha, uma menina que fala com os seus bonecos. Nininha tem um carinho muito especial por Pretinho, um boneco negro como ela. Os bonecos mais antigos têm ciúmes de Pretinho e o tratam com preconceito e discriminação.

No Rio de Janeiro, em uma casa próxima à praia, no bairro Recreio dos Bandeirantes, mora uma menina chamada Nininha. Nininha tem oito anos e possui muitos amigos, fora e dentro de casa. Quando digo fora, quero dizer a meninada da rua e da escola. Dentro de casa, como sua irmã é muito mais velha, os seus amigos são os bonecos que enfeitam o seu quartinho. (FURTADO, 2008, p. 4)

A narradora é a amiga da mãe de Nininha. Ela diz que Nininha contou-lhe um segredo, que os seus bonecos falam, brincam e até discutem. Quando fez oito anos, Nininha ganhou de presente um boneco negro como ela. Sua mãe a levou para escolher o presente numa loja de brinquedos. Nininha apresenta Carlos, ou Pretinho, aos ouros brinquedos e coloca-o na prateleira do quarto. Sempre que a menina vai para a escola, Pretinho se esconde no armário, após ter sido maltratado pelos outros bonecos.

Um belo dia, alguns bonecos jogam bola, outros andam de bicicleta... e uma confusão começa quando Pretinho pega um carrinho e o boneco Malandrinho tira o brinquedo dele, dizendo: – Sai, Pretinho, você vai deixar tinta preta no carrinho e quando eu for brincar vou me sujar. (FURTADO, 2008, p. 8)

Nesse momento, aproveitando a ocasião, o ursinho Malaquias também implica com Pretinho dizendo:

– Vai jogar bola, Pretinho. Não aborrece! Pretinho, irritado, responde aos dois: – Eu quero andar de carrinho! O boneco Malandrinho reage: – Vê se entende, boneco, aqui só entra boneco branco – e dá um empurrão em Pretinho. (FURTADO, 2008, p. 9)

Nininha encontra Pretinho no armário. Ele chora e diz que quer ser branco. O livro problematiza a questão da identidade, o preconceito, a segregação.

– Eu... Eu... Eu quero ser branco. A menina se assusta com as palavras do boneco e pergunta: – O que você falou?

– Eu não quero ser preto. Os outros bonecos caçoam de mim. – Caçoam de você? – Sim. Não gostam de mim porque sou negro. – Ora... – reage Nininha – não diga uma coisa dessas. Você é negro como eu. – Eu sei, mas isso não adianta nada. (...) (FURTADO, 2008, p. 13)

Nininha tenta consolar Pretinho, porém não o convence, e ele pede para que ela o pinte de branco.

-Pretinho, meu querido, você não sabe o quanto estou triste. Eu não entendo.... Meu pai me ensinou que nós, afrodescendentes, somos muito importantes, pois a cultura africana está dentro de cada brasileiro. Está presente na música, na religião, nos alimentos, na formação dos hábitos, costumes, crenças... Além disso... – e começa a cantar baixinho uma canção que desde bem pequenina aprendeu com o pai. (FURTADO, 2008, p. 14)

Quando termina a canção, Pretinho diz a ela: “Você pode me pintar de branco?” (FURTADO, 2008, p. 15).

No dia seguinte, Nininha vai para a escola e os bonecos assumem vida. Pretinho brinca com a Boneca de Pano. Enquanto isso, o ursinho Malaquias, o boneco Malandrinho e a boneca Fafá planejam caçoar de Pretinho. Eles preparam um balde com água e o chamam para ver seu reflexo na água. “O Malandrinho corre por trás e força a cabeça de Pretinho no balde, dando-lhe um grande caldo” (FURTADO, 2008, p. 18). Os bonecos caçoam dele dizendo que ele continua preto. O ursinho Malaquias segura Pretinho e covardemente dá vários caldos nele. “Preso, sem poder se mexer, Pretinho leva vários caldos. Depois, passam sabão em seu corpinho e metem sua cabeça novamente na água”. E então disse: “– Não tem jeito, essa tinta não sai – diz Malandrinho” (p. 20). O ursinho propõe pintá-lo com três latas de tinta: verde, branco e amarelo.

Enquanto Pretinho grita e tenta se soltar, Malandrinho diz: “Você não desejava ficar branco?” (FURTADO, 2008, p. 21). Fafá diz que Pretinho faz drama só para dormir com Nininha, e Malaquias complementa: “Eu quero saber se ela vai continuar gostando de você quando o vir de várias cores” (p. 21). A boneca de pano procura salvar Pretinho, laçando o braço do boneco com uma corda e derrubando o pincel. Pretinho foge, correndo em direção à janela e pulando no jardim. Os bonecos ficam paralisados quando ouvem os latidos do cão Hulk e pensam que Pretinho está morto.

Nininha chega da escola e pergunta pelo amigo. A boneca de pano conta o que aconteceu e Nininha encontra um pedacinho da roupa de Pretinho no canil. Nininha então, fala aos bonecos: “Como puderam! Uma das piores coisas que pode existir é a ignorância. E só a total ignorância pode levar alguém a gostar ou não de uma outra pessoa por ser alta, baixa, gorda, magra, branca, preta...” (FURTADO, 2008, p. 25). A história sugere que o preconceito nasce da falta de conhecimento do outro.

Na continuação da história, Nininha explica aos bonecos que dava mais atenção a Pretinho porque ele era um boneco novo. “[...] Será que vocês não entendem? Pretinho era novo aqui e eu precisava dar a ele mais atenção, como fiz quando vocês chegaram” (FURTADO, 2008, p. 26). De repente, Pretinho aparece pendurado na janela pedindo ajuda para subir. Nininha e os bonecos festejam o seu retorno. Malandrinho dá a mão para Pretinho subir. Pretinho perdoa os outros bonecos que decidem ser amigo dele.

Nininha traz uma linda surpresa, uma boneca negra muito bonita, com uma roupa de panos coloridos. Seu nome é Zuzu. Nininha fala aos bonecos sobre o Dia da Consciência Negra.

– Consciência Negra? O que é isso? – É um dia para lembrar a nossa história. A minha e a sua história, Pretinho. A história do negro no Brasil e a nossa luta ainda hoje, contra o preconceito, a discriminação, e para vivermos em igualdade com as outras pessoas. – E que dia é esse? – Dia 20 de novembro. Atualmente esta é a data mais importante para os negros no Brasil. Foi o dia em que morreu Zumbi dos Palmares, em 1695. – Quem? Zumbi de quê? –, perguntam todos os bonecos ao mesmo tempo. (FURTADO, 2008, p. 32).

Da caixa onde saiu Zuzu, passam a sair e a falar outros bonecos: “Quilombo era o lugar para onde os negros maltratados, que fugiam das fazendas, reuniam-se para viver em liberdade. O maior deles foi... O Quilombo dos Palmares!” (FURTADO, 2008, p. 33).

Ficava na serra da Barriga, onde, hoje, é o estado de Alagoas. Durou mais de sessenta anos e chegou a ter cerca de vinte mil negros, ali morando. O seu rei, o seu grande líder era Zumbi. Mas, dia após dia, mais escravos fugiam das fazendas e para lá se dirigiam. Então o governo pediu a ajuda do exército para acabar com Zumbi. Foram muitas batalhas! Mas aos poucos... O Quilombo dos Palmares foi sendo cercado. O exército invadiu e o quilombo incendiou, prendendo e matando os negros que ali estavam. (FURTADO, 2008, p. 34).

Os bonecos negros cantam e cantam a sua história.

Da terra mãe arrancado, O africano foi escravizado. Como um animal selvagem, tratado Pra muitos países, levado Pro Brasil foi enviado, Em senzalas, colocado. No chicote, maltratado, Ao trabalho, obrigado. Pra construção deste país, Deu o sangue e o coração

Ao irmão negro daqui, O perdão é preciso pedir. Irmão negro daqui, Você é Brasil. Irmão afro, O mundo diz obrigado! Pelo poder oprimido, Pros quilombos correu, decidido Com Zumbi, seu herói, lado a lado, Quase acabou dizimado. Ao final, a liberdade, Acabou por conquistar. Mas a tal igualdade, Não chegou a alcançar. Pra construção deste país, Deu o sangue e o coração. Ao irmão negro daqui, O perdão é preciso pedir.

Fafá, Malaquias e Malandrinho choram e dizem que querem ser negros. Nininha diz que os ama como são e complementa: “Para vivermos em paz, felizes e sermos amigos uns dos outros, precisamos aceitar a nós mesmos como somos, e precisamos aceitar, amar as outras pessoas como elas são”. A narrativa explica a origem do preconceito a partir da ignorância em relação ao outro e tenta, pela interpretação do passado, compreender o movimento histórico e as assimetrias do presente. A diversidade cultural, e aqui especificamente considerando a identidade cultural afro-brasileira, não deve ser entendida como sinal de uma deficiência, causa de atraso ou déficit, vista de maneira preconceituosa e estereotipada. É necessário superar a crença no poder absoluto de uma cultura dominante, etnocêntrica, e compreender a escola como espaço sociocultural de promoção do desenvolvimento humano. A questão do racismo deve ser tema de discussão entre os estudantes na sala de aula, estando a literatura a serviço da informação e da reflexão sobre as práticas sociais vigentes. Nas palavras de Andery (2002, p. 419),

[...] o sujeito produtor do conhecimento não tem uma atitude contemplativa em relação ao real, o conhecimento não é um simples reflexo, no pensamento de uma realidade dada; na construção do conhecimento o homem não é um mero receptáculo, mas um sujeito ativo, um produtor que, em sua relação com o mundo, com o seu objeto de estudo, reconstrói no seu pensamento esse mundo; o conhecimento envolve sempre um fazer, um atuar do homem.

Nesse sentido, a escola problematizará questões acerca do racismo contra os negros e numa relação dialética com a sociedade buscará a conscientização cultural, o respeito pelo diferente, pelo ser humano histórico e social.

Entre o final dos anos 1960 e durante as décadas de 1970 e 1980, os movimentos dos grupos afrodescendentes intensificaram suas lutas e seu trabalho de resistência contra a discriminação e a favor da autoafirmação do povo negro. O rompimento com o modelo branco europeu surge como meio para o conhecimento da realidade cultural brasileira, para o conhecimento da nossa história.

Em maio de 2003, foi aprovada a Lei nº 10.639, que torna obrigatório o ensino da história da África e dos afro-brasileiros no ensino fundamental e médio. A história da África deve ser tratada numa perspectiva positiva, não privilegiando somente as denúncias da miséria que atinge o continente. A aprovação dessa Lei foi de suma importância para que os negros tivessem parte dos seus direitos efetivados.2

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (BRASIL, 1996), atualizada em 2013, em seu artigo 26, define que, nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-brasileira. Em seu primeiro parágrafo, ainda nesse artigo, é mencionado que

[o] conteúdo programático incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. (Artigo 26ª §1)

O artigo 79-b da LDB de 2013 diz, ainda, que “[o] calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra”. Mas é preciso frisar que tanto a cultura quanto a identidade do negro e do afrodescendente devem ser trabalhados durante todo o ano letivo, não se restringindo às datas comemorativas da Abolição da Escravatura em maio e de Zumbi, em novembro, para que crianças e jovens aprendam mais sobre suas histórias, a fim de desinstalar possíveis mecanismos de racismo. Na compreensão de Santomé (1998, p. 150 apud PASSOS, 2009, p. 38),

uma política educacional antidiscriminatória não pode reduzir-se a uma série de lições ou unidades didáticas isoladas destinadas ao estudo desta problemática. Não podemos dedicar apenas um dia por ano à luta contra os preconceitos raciais e a marginalização. Um currículo democrático e respeitador de todas as culturas é aquele no qual estão presentes estas problemáticas durante todo o curso escolar, todos os dias, em todas as tarefas acadêmicas e em todos os recursos didáticos.

A importância do estudo de temas provenientes da história e da cultura afrobrasileira e africana não se restringe aos negros e afrodescendentes, mas a todos os brasileiros em prol de uma sociedade democrática. As lutas e as conquistas vivenciadas pelos negros e as obras contendo personagens representadas por eles contribuem para a liberdade de expressão cultural e para que o próprio negro seja visto como cidadão crítico, capaz de provocar mudanças sociais.

Negar a multiplicidade étnica e cultural brasileira é desconsiderar a própria realidade, impondo modelos que não correspondem ao que realmente somos enquanto identidade nacional brasileira. Não existe “uma” cultura que sirva para nos caracterizar, pois a sociedade brasileira é pluriétnica e pluricultural. O etnocentrismo deve ser veementemente criticado para que se torne possível a valorização e o respeito aos vários grupos étnicos existentes no Brasil. (RIBEIRO, 2009, p. 35)

O uso de determinadas expressões como, por exemplo, “cultura branca” e “cultura negra” estão repletas de conteúdo político. Munanga (2003, p. 14-15) chama a atenção para isso. Segundo ele, não se pode deixar cair na tendência ideológica racista de estabelecer relação entre raça e cultura, pensando que os brancos produzem cultura e identidade brancas e os negros, cultura e identidade negras. Não existe uma única cultura no Brasil, assim os afro-baianos produzem no campo da religião, da música, da culinária, etc. uma cultura diferente dos afro-maranhenses e dos negros cariocas.

Considerações Finais

As obras analisadas mostram a importância da literatura na construção da identidade do negro e afrodescendente e na valorização cultural desses povos; evidenciam um avanço significativo da sociedade brasileira, juntamente com o amadurecimento intelectual de um conjunto de escritores, no sentido de problematizar atitudes e pensamentos racistas. De um modo geral, pode-se dizer que a literatura infantil analisada se propõe a contribuir com a reparação de uma injustiça social imposta à população brasileira de origem africana, na perspectiva da pedagogia das ações afirmativas. Por isso, percebe-se a tendência predominante em valorizar os aspectos culturais e biológicos referentes aos negros e afrodescendentes, evitando-se uma problematização mais crítica (ou mais agressiva) em relação às relações de poder entre brancos e negros na sociedade brasileira.

Constata-se, portanto, a opção por uma abordagem na perspectiva da “pedagogia afirmativa”. Isso significa que outros aspectos importantes da realidade social, sobretudo os econômicos e políticos que legitimam e preservam a desigualdade racial, não são abordados em boa parte da literatura infantil. Eis aqui o importante papel da escola e do professor, pois nenhum livro oferece todas as respostas para a solução dos problemas sociais. A escola deve possibilitar ao aluno o contato com o livro de literatura, pois trata-se de um importante objeto cultural. Quanto maior for o contato do leitor com obras literárias, mais conhecimento ele irá ter sobre a diversidade cultural existente e, consequentemente, mais respeito e valor atribuirá a mesma. Entretanto, para evitar o risco de uma leitura passiva ou apenas para o cumprimento de uma tarefa escolar, a mediação do professor se faz necessária.

A literatura infantil brasileira contemporânea, como toda literatura, está carregada de pressupostos ideológicos de toda sorte. O professor precisa estar atento para perceber indícios de preconceito e discriminação racial nas obras utilizadas em sala de aula, obras que possam sugerir alguma forma de elitismo racial ou de proposta mal resolvida de democracia racial. O livro de literatura deve ser instrumento de arte, de conhecimento, de entretenimento, de expressão e, sobretudo, de reflexão individual e coletiva, de democracia.

Como lembra Paulo Freire (2006), a leitura do mundo precede a linguagem escrita; e esta primeira leitura é a leitura do “mundo imediato” que se aprende e apreende no contexto em que se vive. Para Freire (2006, p. 11), a compreensão crítica do ato de ler não se reduz na simples “decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita”. Nas sociedades que dominam a palavra escrita há uma dinâmica dialética entre linguagem e realidade. Mas “a compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto”.

As obras literárias que mostram de modo positivo a diversidade étnica, dentre elas a afrodescendente e a problematização das mesmas, podem contribuir para que a democracia racial no Brasil seja aos poucos desconstruída e a imagem do homem negro revista. O negro seria então valorizado na sua condição histórica, cultural e social.

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11 Consideramos que a obra de Karl Marx ainda continua sendo uma referência relevante para uma compreensão mais crítica e sistêmica da sociedade capitalista; relevante para a compreensão das contradições sociais e dos dispositivos ideológicos e culturais que legitimam as várias formas de dominação e exclusão social. O pensamento marxista oferece importantes ferramentas conceituais que nos permitem visualizar e compreender o mundo que existe além da “caverna” de Platão. Entretanto, também reconhecemos que a questão racial não ganhou centralidade e preocupação nos estudos de Marx; e como homem de seu próprio tempo, Marx também não escapou do preconceito racial que estava fortemente disseminado no ambiente cultural europeu do século XIX.

22 “A demanda da comunidade afro-brasileira por reconhecimento, valorização e afirmação de direitos, no que diz respeito à educação, passou a ser particularmente apoiada com a promulgação da Lei 10.639/2003, que alterou a Lei 9.394/1996”. (BRASIL, 2004, p. 11).

Recebido: 06 de Abril de 2015; Aceito: 12 de Abril de 2018

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