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Revista Educação e Cultura Contemporânea

versão impressa ISSN 1807-2194versão On-line ISSN 2238-1279

Rev. Educ. e Cult. Contemp. vol.15 no.40 Rio de Janeiro jul./set 2018  Epub 15-Nov-2017

https://doi.org/10.5935/2238-1279.20180059 

Artigos

Cultura surda na "escola inclusiva”? Construção de identidades no encontro pessoa surda-pessoa surda

Deaf culture in the "inclusive school"? Construction of identities among deaf people

Lucas RomárioI 

Ana DorziatII 

IUniversidade Federal da Paraíba;lukas_ro_mario@hotmail.com

IIUniversidade Federal da Paraíba; ana_dorziat@hotmail.com


Resumo

Este artigo é proveniente de uma dissertação, realizada num Programa de Pós-Graduação em Educação e desenvolvida sob a base teórica dos Estudos Culturais e dos Estudos Surdos. Com o objetivo de analisar as relações construídas entre pares surdos no espaço da "escola inclusiva”, foram realizadas entrevistas com professoras surdas e observações de práticas pedagógicas que envolviam professoras surdas, alunas surdas e alunos surdos, desenvolvidas no Atendimento Educacional Especializado (AEE) de escolas comuns da cidade de João Pessoa-PB. A metodologia (qualitativa) esteve aberta a várias possibilidades, entre elas os princípios da análise de conteúdo, que foram tomados como base para subsidiar as análises realizadas. As análises sinalizaram que, ao socializar as experiências com as alunas surdas e os alunos surdos, especialmente as relativas à diferença surda, as professoras surdas fazem circular os artefatos da Cultura Surda nos momentos didático-pedagógicos do AEE. Com isso, elas proporcionam a suas alunas e seus alunos conhecimentos históricos e políticos acerca do seu grupo cultural, contribuindo para que elas e eles desenvolvam processos de identificação e fortaleçam a Cultura Surda. Ademais, o encontro cultural com as professoras surdas permite que as alunas surdas e os alunos surdos construam identidades mais empoderadas, mesmo estando imersas e imersos numa sociedade e numa escola normalizadoras que as/os percebem apenas pela ótica da deficiência.

Palavras-Chave: Cultura Surda; Construção de identidades; "Escola inclusiva”

Abstract

This article was produced at a Graduate Program in Education and it was developed under the theoretical basis of Cultural Studies and Deaf Studies. Interviews with Deaf teachers and observations of pedagogical practices involving deaf teachers and deaf students were conducted in the Specialized Educational Service (SES) of common schools of João Pessoa-PB, with the objective of analyzing the relations built between deaf peers in the "inclusive school". The (qualitative) methodology was open to several possibilities, including the principles of content analysis, which were taken as a basis to support this analysis. The analyzes indicated that, by socializing their experiences with deaf students, especially those related to the deaf difference, the deaf teachers circulate the artefacts of Deaf Culture in didactic-pedagogical moments of the SES. In doing so, they provide their students with historical and political knowledge about their cultural group, helping them to develop identification processes and strengthen the Deaf Culture. In addition, the cultural encounter with deaf teachers allows the deaf students to construct more empowered identities, even if they are immersed in a normalizing society and school that perceive them only from the point of view of disability.

Key words: Deaf Culture; Construction of Identities; "Inclusive School”

Introdução

Na tentativa de compreender as diversas faces que envolvem as pessoas surdas no processo educacional, para além daquela que enfatiza a deficiência auditiva, esta pesquisa buscou argumentos convincentes no campo dos Estudos Culturais e dos Estudos Surdos, assim como tem sido feito nas pesquisas sobre as diferentes culturas. Por que os Estudos Culturais? Porque, em sua origem, eles se ocuparam em problematizar as concepções hierárquicas entre cultura erudita e popular, respectivamente tidas como alta e baixa cultura. De acordo com Costa, Silveira e Sommer (2003), buscaram romper com a visão segregacionista e democratizar o conceito de cultura de modo que abrangesse e valorizasse os significados e as práticas culturais de pessoas e grupos comuns. Originalmente, visaram "uma educação em que as pessoas comuns, o povo, pudessem ter seus saberes valorizados e seus interesses contemplados” (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003, p. 37). Nesse sentido, esse campo apresenta-se como um importante aporte teórico-político de análise para se problematizar as desigualdades culturais e desnudar as relações de poder.

Aplicados à educação contemporânea, os Estudos Culturais passam a problematizar outras questões culturais, para além da hierarquização entre alta e baixa cultura. A identidade e a diferença, por exemplo, passam a ser algumas das categorias centrais deste campo.

A identidade, concebida na perspectiva pós-moderna, não comporta mais a ideia de unificação. Essa visão de que os sujeitos possuem apenas uma única essência está em derrocada. Para Hall (2011, p. 7), "as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado”. As mudanças que vêm ocorrendo na sociedade, considerando o acelerado processo de globalização, vêm ocasionando o que Hall (2011) chamou de crise de identidades, podendo ser compreendida também como um processo de democratização das identidades.

A diferença, por sua vez, tem sido enunciada negativamente nos processos educacionais (SILVA, 2014), especialmente na escola. No contexto escolar, ela tem sido representada pelos sujeitos que o compõem, nos discursos e nas práticas, como algo que suscita negação, silenciamento e apagamento, o que tem resultado em tentativas de normalização e exclusão do outro.

Quando se trata do outro surdo, muitas concepções sobre a identidade baseiam-se na natureza, na biologia. Desse modo, são ressaltadas a patologia, o corpo, o cérebro, a audição e o ouvido das pessoas surdas (, 2006). Essa perspectiva, por muito tempo hegemônica, impacta ainda hoje, mesmo quando temos disponível uma gama de vertentes culturais. Num contexto em que perdura a ótica biológica, que põe em questão o corpo surdo, e não a pessoa surda, a Cultura Surda – caracterizada especialmente pela língua de sinais, pela experiência visual e pelas identidades surdas – encontra dificuldades de ser compreendida pelo conjunto da sociedade.

Em contrapartida, as vertentes culturais configuram um discurso contrahegemônico que passa a aprofundar as análises sobre o fenômeno como um todo, política e epistemologicamente (SKLIAR, 1998), considerando que as pessoas surdas são sujeitos culturais que possuem múltiplas identidades e uma diferença cultural. Perlin, (2013, p. 53) defende essa ideia, ao afirmar que "em Estudos Culturais, tenho de me afastar do conceito de corpo danificado para chegar a uma representação da alteridade cultural”. Assim, à luz desse campo, os discursos patologizantes são abandonados e o fenômeno da surdez passa a ser visto como uma construção cultural sobre aquela ou aquele que não ouve, compreendendo-a como uma grande invenção (LOPES, 2007). Ao tomar a perspectiva cultural, antropológica, para reinterpretar a surdez e compreender as pessoas surdas como muito mais do que um corpo danificado, inaugurase um novo campo de estudos, que trata especificamente de questões relacionadas às pessoas surdas: os Estudos Surdos.

Os Estudos Surdos são, assim, fortemente enraizados nos movimentos surdos e nas pesquisas desenvolvidas e influenciadas pelos Estudos Culturais. De acordo com (2006, p. 65-66), "os estudos surdos inscrevem-se como uma das ramificações dos estudos culturais, pois também enfatizam as questões das culturas, das práticas discursivas, das diferenças e das lutas por poderes e saberes”. Esse campo teórico objetiva compreender e visibilizar a Cultura Surda, as identidades, as línguas de sinais, a história e os artefatos culturais das pessoas surdas; desnudar as relações de poder existentes na educação dessas pessoas e na sociedade; desconstruir binarismos e estereótipos acerca da surdez e sobre essas pessoas, a partir da diferença (SKLIAR, 2013).

A partir dessa base epistemológica, desenvolvemos nossa curiosidade investigativa, com foco nas relações culturais pessoa surda-pessoa surda, sobretudo professoras-alunas surdas e alunos surdos. Partimos da hipótese de que, mediante os processos educacionais, a Cultura Surda passa a circular no espaço escolar quando há essa relação direta, ou seja, de uma pessoa surda com a outra. Contemplamos, então, nesta pesquisa, as relações que vêm sendo construídas no espaço da "escola inclusiva”, entre professoras surdas e alunas surdas e alunos surdos, em escolas comuns da cidade de João Pessoa-PB, mais especificamente nas Salas de Recursos Multifuncionais (SRM), onde as professoras surdas desenvolviam o Atendimento Educacional Especializado (AEE).

Portanto, este artigo é proveniente da dissertação de Mestrado em Educação, intitulado "Pedagogia Surda: o papel de professoras surdas na construção de identidades de alunas surdas e alunos surdos”, desenvolvida entre 2015 e 2017 na Linha de Pesquisa Estudos Culturais da Educação (ECE) do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que teve por objetivo investigar o papel de professoras surdas na construção de identidades de alunas surdas e alunos surdos, a partir de seus discursos e práticas pedagógicas.

Trilhas metodológicas percorridas

Desenvolvemos esta pesquisa com base na abordagem qualitativa (DENZIN; LINCOLN, 2006), porque a mesma perpassa vários campos, temas e disciplinas do conhecimento, oferecendo-nos a oportunidade de interpretar o objeto de estudo em sua dimensão cultural, subjetiva e objetiva.

Embora a metodologia estivesse aberta para outras possibilidades, utilizamos princípios da análise de conteúdo para subsidiar esta pesquisa, na busca de criarmos o nosso próprio percurso metodológico (COSTA, 2007). A respeito desse método, Bardin (2011, p. 15) afirma que a análise de conteúdo é "um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez mais sutis em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a ‘discursos’ (conteúdos e continentes) extremamente diversificados”.

Como técnicas, utilizamos as observações não participantes (RICHARDSON, 1999) buscando identificar pistas que corroborassem ou contradissessem os discursos das professoras surdas, além de outros indicativos silenciados em suas narrativas. Além das observações, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, por considerarmos que seria importante relacionar prática e discurso, considerando-os como uma arena de significados (SILVEIRA, 2007).

Procuramos estar atentos aos procedimentos éticos de pesquisa, submetendo-a, antes do seu início, ao Comitê de Ética da UFPB, por meio da Plataforma Brasil. Para além de uma exigência, a submissão dos projetos de pesquisa a um Comitê de Ética é imprescindível, visto que "seu objetivo maior é preservar a integridade dos sujeitos, objeto da pesquisa científica, bem como apreciar previamente os projetos de pesquisa” (PRODANOV; FREITAS, 2013, p. 47). A assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), conforme a Resolução do CNS 196/96 (BRASIL, 1996), também foi uma etapa importante, haja vista que proporcionou às participantes informações sobre todas as etapas da pesquisa e sobre as técnicas que seriam realizadas, ficando as mesmas livres para participarem ou não, bem como desistirem a qualquer momento.

Ainda seguindo princípios éticos, buscamos manter as identidades dos sujeitos em sigilo, zelando por não divulgar seus nomes pessoais ou quaisquer informações que os revelassem, como os nomes das instituições em que trabalhavam. Desse modo, foram utilizados nomes fictícios para todos os sujeitos e participantesi e, em nenhum momento, foram citados os nomes das escolas-campo da pesquisa.

A despeito dos sujeitos, a pesquisa dedicou-se a investigar o trabalho de três professoras surdas denominadas Karin, Carolina e Gladisii, sobre as quais passamos a realizar uma breve descrição:

  1. Karin, uma mulher negra de 29 anos, era professora de Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) havia aproximadamente sete anos, dos quais, quatro eram na escola em que trabalhava como prestadora de serviço. Nos outros anos, trabalhara como professora polivalente numa escola para pessoas surdas. Cursou Licenciatura em Letras-LIBRAS na UFPB por três períodos, alegando motivos pessoais para o trancamento do curso, mas pretendia voltar em 2016. Trabalhava todos os dias, sendo que em três ministrava aulas de LIBRAS pela manhã nas salas de aula comuns, com 40 minutos de duração; e em dois dias na SRM, realizando o AEE para as alunas surdas e os alunos surdos no horário vespertino, por quatro horas/dia. Recebia cerca de um salário mínimo pelo seu trabalho. Ela nasceu ouvinte e ficou surda aos três anos idade, após ter meningite. Seu esposo era surdo e sua filha de quatro anos era ouvinte.

  2. Carolina, uma mulher branca de 27 anos, era licenciada em Letras-LIBRAS e cursava especialização em LIBRAS. Trabalhava todos os dias na mesma escola, em horário integral (40 horas semanais), oscilando entre o trabalho no AEE e as aulas de LIBRAS nas salas regulares. Ela dividia esta última tarefa com outro professor de LIBRAS, que era ouvinte. Esse trabalho era sua primeira experiência como professora, embora já trabalhasse nesta escola havia quatro anos. Nasceu surda e desconhecia a causa de sua surdez. Aprendeu LIBRAS aos sete anos numa escola especial em João Pessoa-PB, nunca tendo sido oralizada. Em sua família, a mãe e a irmã sabiam LIBRAS. Seu salário era de aproximadamente dois salários mínimos. Era mãe de duas crianças ouvintes.

  3. Gladis, uma professora negra de 43 anos, era licenciada em Letras-LIBRAS e especialista em LIBRAS. Trabalhava todos os dias na escola-campo pela manhã com uma carga horária de 20 horas semanais, além de trabalhar em outro turno em uma escola estadual (20 horas). Ela também recebia um salário mínimo do município. Era professora de LIBRAS havia dez anos, dos quais seis eram na mesma escola. Era surda pós-lingual, tendo perdido a audição após ter sarampo, aos nove anos de idade. Aprendeu LIBRAS apenas aos 20 anos em uma instituição especializada e de apoio às pessoas com deficiência no Estado da Paraíba. Era casada com um surdo e tinha um filho e uma filha ouvintes. O filho, a filha, um irmão e o esposo se comunicavam com ela em LIBRAS.

Nas situações pedagógicas apresentadas a seguir, bem como nas narrativas das professoras durante as entrevistas, surgem a figura das alunas surdas e dos alunos surdos. Foram nomeados/as como Samuel e Sofia (aluno e aluna de Karin), Sinésio, Santiago e Sérgio (alunos de Gladis) e Sarah (aluna de Carolina). Além destes/as, surgem nos dados também Inácia e Izaura, intérpretes de LIBRAS.

O encontro pessoa surda-pessoa surda nos processos educacionais

Esta pesquisa foi respaldada em várias/os autoras e autores, a exemplo de Dorziat (1999), Skliar e Lunardi (2000), (2006), Reis (2007), Quadros (2012), Rangel e Stumpf (2012), Perlin (2013) e Skliar (2013), que reputam como muito importante a presença de professoras surdas e professores surdos na educação de seus pares, por estes/as poderem ser para as crianças surdas referências em termos linguísticos, identitários e culturais.

No que tange ao ambiente escolar "inclusivo”, a presença desses sujeitos torna-se ainda mais necessária para, minimamente, resgatar a Cultura Surda, além de ser essencial para o autoconhecimento das crianças surdas. Se pensarmos, por exemplo, em uma criança surda "sozinha na escola”, sem nenhum par cultural surdo – embora consideremos que qualquer sujeito produz cultura, individual ou coletivamente –, como a Cultura Surda pode circular nesse espaço fundamental para a sua construção identitária, intelectual e de cidadania?

Não obstante as políticas de inclusão para as pessoas surdas considerarem o aspecto linguístico desses sujeitos (língua de sinais), na prática escolar, ele acaba sendo simplificado, uma vez que, praticamente, acaba sendo reduzido ao trabalho de intérpretes de LIBRAS. Conforme Dorziat (2004, p. 78), "quando se trata de inclusão, a valorização da língua de sinais para os surdos é [...] uma das questões essenciais, como possibilidade de igualdade de condições de desenvolvimento entre as pessoas”. Contudo, a autora adverte que apesar de ser um critério básico, o uso da língua de sinais não deve ser compreendido como uma solução mágica para a inclusão das pessoas surdas. A exclusão, por sua vez, só pode ser enfrentada, segundo ela, por meio de uma educação engajada e atenta aos aspectos de ordem individual e aos desdobramentos educacionais, no âmbito da educação mais ampla, em sua totalidade.

Assim, quando analisamos a educação das pessoas surdas nas "escolas inclusivas”, as práticas pedagógicas não correspondem ao ideal que compreendemos por inclusão. Esse ideal, a nosso ver, considera a diferença surda como critério básico nos processos educacionais, englobando a língua, a experiência visual, as crenças, os valores e as identidades surdas. Para tanto, as práticas educativas devem ir muito além da relação intérprete-criança surda, elas devem ser recheadas de sentido cultural. Conforme Dorziat, Araújo e Soares (2011, p. 59-60):

[...] a defesa de uma educação de surdos que os valorize como membros de comunidade linguística diferenciada, com modos diversos de apreensão, transmissão de valores, ideias e sentimentos [...], passa pela constatação de que a inclusão de surdos não é assegurada com a presença do intérprete, embora reconheçamos a importância desse profissional para a inclusão social dessas pessoas. Os surdos, assim como os outros cidadãos, têm direitos fundamentais, entre eles e o mais importante é: vivenciar sua experiência humana de ser surdo em toda a extensão que isso represente.

Sem o contato com seus pares surdos na "escola inclusiva”, dificilmente as crianças surdas constroem suas identidades surdas, pelo contrário, podem passar a desenvolver atitudes negativas quanto à sua diferença (produto de relações de poder que oprimem, anulam e apagam as suas identidades). Sendo outro o cenário, ou seja, havendo mais de uma criança surda na escola (algo característico das escolas bilíngues), certamente elas podem trazer para este espaço os artefatos da Cultura Surda, desde que já os tenham adquirido. À luz dos Estudos Culturais, Strobel (2013, p.43-44) esclarece que o conceito de artefatos culturais "não se refere apenas a materialismos culturais, mas àquilo que na cultura constitui produções do sujeito que tem seu próprio modo de ser, ver, entender e transformar o mundo”.

Todavia, dificilmente essas produções/artefatos culturais já foram construídas/adquiridas pelas crianças surdas, por conseguinte, estão presentes na escola comum, uma vez que essa construção é favorecida na relação com pares surdos adultos, experiência que poucas crianças surdas têm tido a oportunidade de vivenciar, pelo fato de o seu núcleo familiar, geralmente, ser constituído apenas de pessoas ouvintes (STROBEL, 2013), e não haver, na maioria das escolas, professoras surdas e professores surdos.

Quando a experiência escolar é diferente das que, em geral, temos visto nas escolas comuns, ou seja, quando as crianças surdas têm a oportunidade de ter um contato, mesmo que mínimo, com a sua cultura, por meio de seus pares culturais, as elas não só vão aprendendo a fazer relações mais significativas com os conteúdos escolares, mas se envolvem nas próprias formas de interação, como destacou a professora Karin:

Samuel gosta tanto de LIBRAS que quando a mãe vem buscá-lo e o chama, ele diz: "Calma, calma!” (PROFESSORA KARIN, 26/11/2015).

Ao narrar essa situação que ocorria com um de seus alunos, a professora Karin dá indícios do prazer que o menino sentia em estar junto de sua professora surda e de suas colegas, também surdas, por conseguinte, prazer em aprender a sua língua e imergir em sua cultura. O discurso proferido pela mãe de Samuel corrobora isso:

Quadro 1 Quadro 1: Situação 1 – O desejo da mãe e do filho surdo, envolvendo a professora Karin 

SITUAÇÃO 1 – O DESEJO DA MÃE E DO FILHO SURDO
Professora Karin – (22/10/2015)
Presenciamos uma conversa entre a mãe de Samuel e Karin, na qual a mãe afirma que Samuel em breve ia ficar muito triste porque não queria trocar de escola, mas que isso iria acontecer pelo fato de que no próximo ano o menino iria ingressar no Ensino Fundamental II e a escola não oferecia essa etapa escolar. Segundo a mãe, ele iria sofrer, porque gostava muito de frequentar o AEE e queria que Karin fosse para a outra escola, para ficarem juntos. Ela ainda afirmou: "Queria que Samuel continuasse aqui no colégio, eu estou com raiva! Aqui na escola deveria ter o 6º, 7º, 8º... Eu gostaria que a professora Karin continuasse como professora do meu filho”.

Quadro 1: Situação 1 – O desejo da mãe e do filho surdo, envolvendo a professora Karin

As colocações da mãe de Samuel puderam ser constatadas por nós, durante as observações: Samuel chegava muito animado para as aulas e, em nenhum momento, sentia-se apressado para voltar para casa. Em outras ocasiões, a mãe também relatou que o filho ficava triste e com raiva, quando ela não podia levá-lo ao AEE. Para evitar isso, ela tentava manter a frequência do filho, mesmo que para isso tivesse que deixar de fazer outra atividade.

A satisfação de Samuel em frequentar o AEE ratifica o que afirma Perlin (2013, p.54) sobre a importância desse contato. Para ela, "o encontro surdo-surdo é essencial para a construção da identidade surda, é como um abrir o baú que guarda os adornos que faltam ao personagem”. Isso ficou patente quando as professoras falaram de sua relação com as crianças surdas:

É muito boa, a gente bate papo. Temos uma relação boa. A gente brinca, falamos sobre a vida, sobre o futuro, brincamos de dominó. Na hora do lanche sempre batemos papo, tem dias que el@siii vêm aqui na sala olhar o que eu estou fazendo, são curios@s. Perguntam o que eu estou fazendo, quais são os materiais novos... [...]. Mas, se tem coisa errada, eu aconselho, eu penso e explico que precisa mudar, porque são crianças, pensam diferente. Aí eu digo não e ensino o caminho, aconselho para que el@s mudem. El@s entendem, são inteligentes (PROFESSORA CAROLINA, 09/12/2015).

Aqui na sala é melhor, tem uma troca, a gente conversa. Aqui na sala é bem melhor, tem muita troca, muita conversa. El@s perguntam: "como é a sua vida, a sua casa?” [...] Por exemplo: Sofia foi à igreja e quando chegou aqui, ela me explicou tudo como foi lá no sábado... Ela me explicou tudo, nós conversamos, foi uma troca, foi bom, entendeu? Por exemplo: Samuel não saberia explicar: há pouco tempo, perguntei a ele para onde ele havia ido num sábado. E ele não soube me explicar, não lembrava. Então, não tem essa relação, é pouca. A outra, Sofia, é inteligente, tem essa troca, ela explica tudo, tudo, não tem vergonha. A relação com Sofia é melhor. Com Samuel é mais ou menos, porque ele não sabe explicar... Por exemplo, ele não soube dizer o que aconteceu com ele no sábado. [...]. É diferente! Em casa também, Samuel usa o faceboook. Ele sempre me manda vários emoticons, igual tem no whatsapp. Samuel sempre manda os emoticons no facebook (PROFESSORA KARIN, 26/11/2015).

É bom porque sou professora surda, sou igual a el@s. Eu ensino LIBRAS e nós somos iguais, el@s são iguais a mim. [...]. Às vezes eu sou rígida, não @s deixo livres não. [...] El@s têm que gostar! (risos). @s surd@s gostam de liberdade, ficar brincando, mas eu não gosto, eu não quero. Quem gosta mais de mim é o moreninho, Sérgio. Santiago pergunta muita coisa, tem muitas dúvidas, todos os dias, mas não pode, porque eu não posso ensiná-lo todos os dias. Com Sinésio, eu sou mais rígida, mas eu gosto dele. Ele brinca demais, todos os dias me pede para ir para o AEE, eu falo: "Amanhã!” (PROFESSORA GLADIS, 26/11/2015).

Esses depoimentos mostram que o encontro das professoras surdas com as alunas surdas e os alunos surdos é muito representativo para eles/as, não apenas por lhes possibilitar utilizar a sua língua, facilitando a troca de experiências cotidianas, mas pela possibilidade de eles/as "tirarem do baú” (PERLIN, 2013), a história surda, as lutas que esse grupo vem travando socialmente, suas crenças, visões de mundo e sua experiência enquanto pessoa surda. O compartilhamento desses significados entre pares surdos permite que as identidades surdas sejam construídas, porque dão o sentido "real”aos acontecimentos referenciados por pessoas que, de fato, vivem uma experiência identitária e cultural próprias. Conforme (2006, p. 126), "a(s) identidade(s) de surdo/dos surdos não se constrói(oem) no vazio, forma(m)-se no encontro com os pares e a partir do confronto com novos ambientes discursivos”.

O AEE é, assim, utilizado pelas professoras surdas, alunas surdas e alunos surdos,não só como um momento formal, especializado. Elas e eles têm as SRM como um ponto de encontro para momentos de conversas, brincadeiras, aconselhamentos, entre outros.A identificação entre elas e eles – docentes e discentes – faz com que sejam criados laços de amizade no processo educacional, transformando o processo educativo em momentos de ação e interação, como afirma Boneti (1997), o que permite enriquecer suas identidades culturais. Essa visão de processo educacional é problematizada por Costa,Silveira e Sommer (2003), para quem o papel de professor e de professora ultrapassa a noção de transmissores/as de informações. Esses sujeitos devem ser pensados, também,como produtores culturais que, como tal, precisam organizar suas práticas pedagógicas baseadas nas experiências de estudantes imersos numa sociedade cambiante e recheada de valores e representações.

No caso de Karin e Gladis, as mesmas demonstraram que há diferenças nas relações estabelecidas com as alunas e os alunos. Karin afirmou ter uma relação mais próxima de Sofia, por ela ser mais aberta e por se expressar melhor. No entanto, segundo ela, a relação com Samuel ultrapassava o momento do AEE, porque o aluno sempre buscava manter contato extraclasse com ela pelas redes sociais. Além disso, as crianças procuravam saber mais de sua vida pessoal, o que pode representar uma busca em conhecer como é a vida de uma pessoa surda adulta. Carolina confirma isto ao dizer:

El@s se interessam porque eu sou surda. [...] Sim, a gente bate papo, conta as fofocas. @s ouvintes ficam calad@s, conversam um pouquinho com @s surd@s. Mas quando é outr@ surd@, é muita conversa, é bom! Temos muitos assuntos(PROFESSORA CAROLINA, 09/12/2015).

Percebemos, então, que existe uma relação de trocas culturais que se estabelecem de forma diferente com cada aluna e aluno, o que significa também que os processos relacionais são dinâmicos e não homogêneos. Essa não homogeneização também se aplica às identidades, entre elas as surdas. O depoimento da professora Gladis, nesse sentido, é revelador. Embora ela tenha afirmado que a relação entre ela, suas alunas eseus alunos fosse boa porque eram pessoas iguais, podendo levar ao entendimento deque todas as pessoas surdas são iguais; ao discorrer sobre suas educandas e seus educandos, ela deixou clara a diferença entre eles/as, o que acabava influenciando na relação professora-alunos/as. Não é pelo fato de terem – professoras, alunas e alunos –os traços culturais surdos, que as identidades e as relações se estabelecem de forma igual com todas as pessoas surdas. Assim como a cultura de forma geral é dinâmica, a Cultura Surda e as relações sociais que se estabelecem em torno dela também o são. É preciso romper com o estigma da padronização, herança de um modelo clínico terapêutico, que cerca as pessoas surdas e a sua cultura.

Já a afirmação de Carolina, fundamentada em situações trazidas por suas alunas e seus alunos, mostrou que ela discutia com elas e eles sobre o futuro, inclusive aconselhando-as/os. É uma prática necessária, pois preenche um pouco a lacuna deixada pelo isolamento das crianças surdas dentro das próprias famílias (STROBEL, 2013). Além disso, pode estabelecer vínculos de confiança com a professora, muitas vezes, decisivos para seu desenvolvimento pessoal, porque são baseados na abertura para o diálogo e reconhecimento de suas identidades culturais (FREIRE, 2014). Sobre estes conselhos Carolina narrou:

Por exemplo: é bom @s surd@s estarem junt@s com @s ouvintes, acompanharem uns aos outr@s. Mas, tem que ter cuidado, podem sofrer bullying, pode ter união entre@ @uvinte e @ surd@, mas el@s precisam ficar atent@s para não serem insultad@s, não serem feit@s de bob@s, eu vou aconselhando. Namorar, namorar,por exemplo, eu falo: "precisam ter calma, vocês são jovens, não têm idade para namorar”. Falo também sobre gravidez, sobre brigas por vagas nas filas, discussões...Eu aconselho para el@s mudarem. Se eu explico, explico, explico, e el@s não estão nem aí, eu digo: espera aí! Eu pego a foto e mostro: "está vendo aqui?”. El@s respondem: "eu não, não sou eu”. Ou então, eu pego um DVD e mostro uma situação de violência, dessa forma, el@s entendem. Eu pergunto: "vocês acham engraçado?”.El@s dizem não, que é triste. Eu explico e depois digo: "vocês se lembram do que viram na televisão?”. Ou mostro a revista e pergunto: "é engraçado? Vocês querem isso pra vocês?”. El@s falam: "não, já entendemos!”. Eu mostro a revista porque @ssurd@s gostam, se interessam pelas imagens, percebem (PROFESSORACAROLINA, 09/12/2015).

A professora mostrou-se disponível para dialogar com suas educandas e seus educandos sobre os mais variados temas. Os conselhos giravam em torno de questões que, para ela, eram importantes como, por exemplo, gravidez, namoro, brigas, violência etc. (ela se referia mais especificamente às suas alunas e aos seus alunos adolescentes).Considerava que, se a adolescência era uma fase complexa para todas as pessoas, isso era ainda mais adensado para as pessoas surdas, que são privadas de muitas informações. Ela buscava discutir também o tema da violência, orientando suas alunas e seus alunos sobre situações recorrentes e lamentáveis na história educacional das pessoas surdas.

Os aspectos favoráveis na relação pessoa surda-pessoa ouvinte, como a interculturalidade, eram mesclados a debates sobre vários tipos de violência que suas alunas surdas e alunos surdos podiam sofrer, entre eles o bullying, o assédio moral, a violência física ou outras formas. Apesar de essas formas de violência, especialmente obullying, só venha sendo discutida mais fortemente nos últimos anos, as pessoas surdas têm sofrido historicamente seus efeitos, em consequência das representações sociais produzidas pelas pessoas ouvintes acerca da sua diferença cultural, que resulta,inclusive, na produção das subjetividades surdas (FRANCO, 2014). Esta autora afirma que as representações impostas às pessoas surdas foram feitas de tal forma que se constituíram verdades absolutas. Em decorrência disso, pelo fato de a maioria das pessoas surdas não questionar essas verdades, até hoje sofrem com as consequências dessas representações. Por isso a presença dessas professoras surdas é importante.Elas podem desconstruir representações negativas sobre as pessoas surdas, além de contribuir para que as alunas surdas e os alunos surdos, a partir da construção de autoimagens positivas, se empoderem e enfrentem as diversas situações adversas que se apresentem.

Nas situações a seguir, presenciamos duas cenas em que uma das professoras interferiu em situações de bullying, praticadas por um aluno surdo e sofridas por outro:

Quadro 2 Situação 2 – Relato da professora sobre bullying e Situação 3 – Bullying entre surdos, envolvendo a professora Gladis. 

SITUAÇÕES
Professora Gladis
SITUAÇÃO 2 – RELATO DA PROFESSORA SOBRE BULLYING (29/09/2015) Em determinado momento da aula, Gladis percebeu a dificuldade dos alunos em escrever em português e lembrou que Sinésio, outro dia, chamara Santiago de burro, por ele ser mais velho, estar no 7º ano e não saber escrever em português. Nesse momento, ela explicou a ele que não se podia chamar qualquer colega de burro, porque era normal ter dificuldades. Ela deu o seu próprio exemplo: segundo ela, no passado, as pessoas surdas eram vistas como burras e loucas, sofrendo bullying. Disse que sofreu muitas práticas de bullying na escola, porque tinham essa concepção sobre ela, de burra e louca. Ela ressaltou que sempre corrigia essas práticas de Sinésio, porque as consideravam erradas.
SITUAÇÃO 3 – BULLYING ENTRE SURDOS (13/10/2015) Ao assistirem o filme "O milagre de Anne Sullivaniv, num determinado momento, após Sérgio perguntar à professora o que significava um sinal que aparecia no filme (MAMÃE), Santiago o chamou de burro. Gladis interveio e afirmou que ele não podia chamar ninguém de burro, ressaltando que Sérgio apenas conhecia poucos sinais em LIBRAS.

Quadro 2: Situação 2 – Relato da professora sobre bullying e Situação 3 – Bullying entre surdos, envolvendo a professora Gladis

Gladis tentou desestabilizar esta concepção de que as pessoas surdas são menos inteligentes, concepção essa tão enraizada socialmente, ao ponto de fazer com que os/as próprios/as surdos/as a reproduzam. Os alunos não tinham noção de que o atraso linguístico em língua portuguesa, apresentado por muitas pessoas surdas, era proveniente de vários fatores, entre eles: não ser a sua língua natural; metodologias de ensino de português inadequadas e não acesso ao conhecimento, como acontecia no caso de Sérgio, que sequer tinha o auxílio de um/a intérprete educacional.

Gladis buscou, com isso, desestabilizar a concepção negativa, excludente e que afeta diretamente a subjetividade surda. Sua intervenção poderia, inclusive, ter sido mais enfática, problematizando sobre as diversas situações que podem desencadear atraso educacional nas pessoas surdas, algo totalmente possível de ser discutido naquela realidade, haja vista que seus alunos já eram adolescentes.

O que vemos como mais significativo na situação é a disposição de a professora trazer a sua própria experiência para a situação. Isso a coloca como uma partícipe da história das pessoas surdas, que se utiliza de um artefato cultural surdo (STROBEL, 2013) para fazer circular a Cultura Surda em várias situações no espaço reservado a estes sujeitos na escola: o AEE. Em sua entrevista, Gladis reforça as violências sofridas por ela:

As pessoas pensavam: "Gladis? Difícil de ela estudar!”. Elas explicavam, oralizavam, mas era difícil, eu não entendia nada. As pessoas pensavam: "parece que é doida! Não entende nada, não sabe estudar, não sabe ler, não sabe escrever”. Elas gritavam: "é doida! É doida”. Todos os dias, todos os dias. Eu me sentia muito triste, chorava... As pessoas me massacravam... Na escola, na família, meus prim@s também. Comecei a estudar, eu gostava de estudar, com muito esforço, mas reprovava. Eu nunca esqueço que no 3º ou 4º ano, mais ou menos, eu fiz uma prova com o tema "as partes das plantas”, por exemplo: folhas, frutos, flores, caule, raiz. Eu não sabia de nada, então eu pensei "é família?v”. Primeiro vovô, vovó, papai... Eu respondi e entreguei. Quando a professora viu, disse: "Como? Família?”. Eu respondi assim porque eu não sabia de nada. Eu tirei zero na prova. As pessoas ficavam me provocando, dizendo: "ela não sabe estudar, ela é doida, doida”! Eu ficava triste, chorava... Depois dessa prova que tirei zero com esse tema que eu não sabia o que era. Eu nunca esqueci dessa prova (PROFESSORA GLADIS, 26/11/2015).

Este tipo de representação construída socialmente pelas pessoas ouvintes é, para Franco (2014), um preconceito declarado e arraigado que vem contribuindo profundamente para a construção da imagem dos sujeitos surdos. Assim como Sérgio, quando apresentava dificuldades desencadeadas pela falta das condições escolares necessárias para que se desenvolvesse academicamente, Gladis sofria bullying por colegas que atribuíam seu fracasso escolar à incapacidade e à "loucura”. Sobre o bullying, Martínez (2013, p. 38) esclarece:

Chamamos de bullying a intimidação e o maltrato entre escolares de forma repetida e mantida no tempo, sempre longe dos olhares dos adultos/as, com a intenção de humilhar e submeter abusivamente uma vítima indefesa por parte de um abusador ou grupo de valentões através de agressões físicas, verbais e/ou sociais com resultados de vitimização psicológica e rejeição grupal.

Na verdade, Gladis sofreu diversas formas de violência ao longo de sua vida. Em algumas ocasiões era bullying, quando a violência ocorria entre seus pares escolares; em outras, era assédio moral, quando ocorria envolvendo pessoas adultas, de sua família ou seus/suas professores e professoras. O relato da professora surda juntamente com a situação que ocorrera com seus alunos mostram que, embora em moldes, situações e sujeitos diferentes, as pessoas surdas ainda sofrem esse tipo de violência na escola, o que afeta a construção de suas identidades e subjetividades.

O assédio moral também esteve explícito em uma situação observada (descrita a seguir), praticado por uma intérprete com uma aluna surda. Ele, assim como o bullying, é uma forma perversa de relações de poder.

Quadro 3 Situação 4 – Relação intérprete-criança surda, envolvendo a Professora Carolina. 

SITUAÇÃO 4 – RELAÇÃO INTÉRPRETE-CRIANÇA SURDA
Professora Carolina - (28/09/2015)
Em determinado momento da aula de Carolina, Inácia, uma das intérpretes de LIBRAS, ao conversar com as pessoas que estavam na sala, fez um comentário acerca da deficiência física de Sarah, afirmando que achava engraçado quando a aluna utilizava a mão que ela não possuía as falanges mediais e distais dos dedos mínimo, anelar, médio e indicador. Depois, pediu que a aluna fizesse o sinal de ÁGUA, rindo da situação. A garota, constrangida, fez o sinal com a outra mão. A intérprete, então, insistiu para que ela fizesse com a mão que possuía a deficiência. A menina fez. Inácia e a outra intérprete (Izaura) riram, dizendo que achavam engraçado. A menina com expressão de tristeza e vergonha baixou a cabeça. O primeiro autor deste texto, incomodado com a situação, disse à menina: "você pode fazer o sinal com as duas mãos, você escolhe!”. E pediu que ela fizesse o sinal novamente, parabenizando-a. Ela, desta vez, fez com a mão sem deficiência e sorriu. Ao término da aula, indo embora, a aluna se despediu de todas as pessoas que estavam na sala, dando um abraço e um beijo, porém, não se despediu de Inácia que logo perguntou: "não vai me beijar”? Sarah balançou a cabeça indicando que não. Ela então tomou a bolsa que estava com a menina e disse: "vou pegar de volta a bolsa que te dei”. Após o comentário, Sarah foi ao encontro da intérprete, deu-lhe um beijo, e a bolsa foi-lhe devolvida.

Quadro 3: Situação 4 – Relação intérprete-criança surda, envolvendo a Professora Carolina.

Apesar da técnica adotada na pesquisa ter sido a observação não participante, é preciso ressaltar que diante da violência contra uma criança e pela falta de intervenção da professora, como educador e pesquisador engajado na luta surda por respeito, dignidade e uma educação de fato inclusiva, o primeiro autor deste texto sentiu a necessidade nessa situação de, ao menos, minimizar a agressão à criança. Além disso, ressaltamos também que embora tenhamos explicitado à professora a nossa opção por esse tipo de observação, a mesma nos deu plena liberdade para participarmos e contribuirmos em suas aulas, por isso, num momento isolado, agimos propositalmente, por acreditarmos que a nossa simples ação pudesse contribuir para a reflexão da professora, visto que ela própria talvez não tenha conseguido desnaturalizar algumas formas de "brincadeiras”, que passam a ser banalizadas pelas pessoas – exceto pela menina que nitidamente sofria com elas –, ou então, talvez não se sentisse forte o suficiente para reagir a agressões como esta, por ter sido igualmente, ao longo de sua vida, vítima delas. Dessa forma, consideramos que a intervenção não descaracterizou a técnica adotada (observação não participante) por ter ocorrido em um único momento, tampouco a atrapalhou o processo investigativo.

Uma intervenção da professora Carolina, no entanto, era fundamental, pois, a situação era claramente de desrespeito e violência simbólica. Segundo Bourdieu (1989), as relações de poder são engendradas na cultura de forma tão sutil, ao ponto de as pessoas não se aperceberem. Contudo, não foi o que ocorreu nesta situação, visto que o poder dessa pessoa, que, provavelmente, se considerava "normal”, e a violência praticada por ela, são expressos de forma explícita e consciente.

Nessa situação, emerge também a questão das diferenças dentro das diferenças (SCOTT, 1999). Sarah sofria assédio por não possuir as falanges mediais e distais de quatro dedos de uma mão, ou seja, uma deficiência física, o que supostamente, para a intérprete, dificultaria a menina de expressar-se plenamente em LIBRAS, e faz dessa condição física um motivo para assediá-la psicologicamente. É oportuno questionar: o que fazia com que uma intérprete educacional agisse dessa forma, haja vista que seu trabalho deveria consistir, segundo Quadros (2004), não só em prestar um serviço às crianças surdas, mas entender as questões que as envolvem, combatendo equívocos das representações sociais sobre elas?

Neste momento, a omissão de Carolina em fazer com que a criança fosse respeitada nas suas diferenças foi questionável por ela ser a professora naquele ambiente. Contudo, no que concerne à sua diferença surda, também pode significar que a histórica relação de poder pessoa ouvinte–pessoa surda a fez paralisar diante da violência contra suas alunas e seus alunos. Por isso, para Perlin (2013), é importante considerar que o processo de construção das identidades surdas deve ser acompanhado de uma sólida base político-cultural. É essa base que proporcionará o empoderamento surdo e permitirá que estas pessoas assumam posturas de resistência. No caso das crianças que não participam de comunidades surdas (associações, igrejas, pontos de encontro), é fundamental que a escola, por meio de professoras surdas e professores surdos, assuma esse papel de constituição subjetiva, cultural e de cidadania, oferecendo as bases para que estas crianças possam adquirir referências de sua cultura, a fim de que se empoderem. Para Dorziat (1999, p. 191), "o contato dos surdos adultos com os alunos surdos é o meio mais adequado para estabelecer as bases da estruturação da identidade social e do fortalecimento da autoestima”.

Na mesma linha de raciocínio de Dorziat (1999), Perlin (2000, p. 24) sustenta que "o contato do sujeito surdo com as manifestações culturais dos surdos é necessário para a construção de sua identidade, caso contrário, sua experiência vai torná-lo um sujeito sem possibilidades de autoidentificar-se como diferente e como surdo”. Destarte, as professoras surdas e os professores surdos inseridas/os no espaço escolar podem ser esta referência político-cultural para as crianças surdas, desde que possuam esse traço político em prol de sua cultura e diferença. Concordamos também com Perlin (2007, p. 2) quando ela afirma que:

A importância do professor surdo dentro de sala de aula atuando em língua de sinais se dá a partir da identidade e do acesso ao conhecimento. [...]. Com relação ao professor ouvinte, a criança surda tem uma grande dificuldade de se identificar numa perspectiva de futuro. Então essa criança se sente excluída no processo de formação de sua própria identidade. O professor de surdo pode ser o modelo de como nós, surdos, precisamos ser, em termos linguísticos e culturais.

Quanto ao contato das alunas surdas e dos alunos surdos com as professoras surdas, disse uma delas:

[...] no futuro el@s vão ficar inteligentes, vão me copiar. "Você é professora surda? Eu quero ser igual a você.” Por exemplo, antigamente uma aluna surda que frequentava a escola ficava me olhando e pensava que eu era uma professora ouvinte. Ela me via fofocando, conversando com a intérprete e ficava sempre encucada, encucada, observando o tempo todo. Noutro dia, ela chegou e eu estava batendo papo, ela ficou observando e eu perguntei: "o que foi?”. Ela disse espantada: "você é surd(aaaaa)?”. Respondi: "Sim, você pensava que eu era ouvinte? Não, eu sou surda!” Ela ficou muito impressionada. Eu disse: "Eu sou surda, ela é intérprete, é diferente. Você viu? É verdade!” Ela disse admirada: "você é professora? Pensava que não podia”. Eu disse: "pode sim, professora surda pode!”. Ela ficou admirada! Faz tempo isso já, ela achou que eu era ouvinte, imagine... Nunca! El@s me percebem... No futuro el@s vão me copiar: "professora surda? Inteligente? Eu vou estudar, estudar, estudar, vou copiá-la, no futuro vou ser igual a ela”. Porque el@s pensam que @s ouvintes são inteligentes e @s surd@s só fracassam. E quando el@s se deparam comigo: "você já tem faculdade? Na UFPB? Especialista? Já? Quero ser igual!”. El@s ficam vidrad@s, muito interessad@s. El@s ficam se lamentando: "@s ouvintes sabem português e eu não sei!” Eu digo: "nada disso! Como, se eu já estudei até na UFPB?”. E el@s ficam calad@s. El@s entendem porque que precisam me copiar para no futuro crescerem (PROFESSORA CAROLINA, 09/12/2015).

Imersas na Cultura Surda, as identidades surdas podem emergir. Quando falamos em identidades surdas, referimo-nos às identidades construídas historicamente, em constante processo de construção e reconstrução ( SKLIAR; LUNARDI, 2000). Por isso, acreditamos que, no espaço escolar, onde as relações entre pares surdos são mais efetivas, as professoras surdas podem representar uma fonte de inspiração para seus alunos surdos e suas alunas surdas, não apenas a partir de identificações culturais, mas como possibilidades de futuro, de vida, contrariando os discursos da nossa sociedade normalizadora e excludente.

O espanto da garota, citada por Carolina, ao ver uma professora surda, demonstra que as alunas surdas e os alunos surdos não enxergam as pessoas surdas em lugares de "prestígio social”. Embora a docência seja um espaço desvalorizado socialmente, para as pessoas surdas esse campo tem status privilegiado, visto que o máximo que muitas delas têm conseguido é o espaço do trabalho subalternizado ( RANGEL; STUMPF, 2012).

O papel docente pode representar, para estes/as estudantes, não só uma possibilidade de ascender socialmente e, em especial, de incluir-se, mas uma realidade diante da existência de professoras surdas. Elas, mesmo tendo a sua cultura desvalorizada socialmente, conquistaram seu "lugar no mundo”, passando a ser referência para muitas pessoas surdas, sobretudo as mais próximas: seus alunos e suas alunas. Nesse sentido, Perlin (2007, p. 2) sustenta que "em termos pedagógicos, o professor surdo em sala de aula é muito importante, porque quando a criança surda mira o professor surdo, ela se sente refletida nesse professor, ela sabe que, se esse professor chegou lá, ela também pode chegar”.

Carolina narrou que o fato de ela ter estudado numa universidade federal (socialmente representada como para poucas pessoas) e feito graduação e especialização significa, para as alunas surdas e alunos surdos, uma possibilidade de romper com a lógica de que somente pessoas ouvintes chegam a estes espaços, apesar de muitas delas também se depararem com barreiras sociais que as impedem de realizar esse feito.

As observações seguintes reforçam que a presença das professoras surdas nos processos educacionais dessas alunas e desses alunos transcendia as questões puramente escolares:

Quadro 4 Situação 5 – Condução de veículo, Situação 6 – Menstruação e Situação 7 – Assalto, envolvendo a professora Karin. 

SITUAÇÕES
Professora Karin
SITUAÇÃO 5 - CONDUÇÃO DE VEÍCULO (08/10/2015) Sofia afirmou que já havia ido à casa da avó pela rodoviária de João Pessoa, mas que não gostava de andar de ônibus. Nesse momento, Karin disse à Sofia e a Samuel que, futuramente, ela e ele podiam dirigir e, que, inclusive, ela tinha o desejo de tirar sua carteira de habilitação. A menina voltou-se à professora dizendo que não poderia dirigir porque ela era surda. Karin confirmou que poderia dirigir, pois esse era um direito das pessoas surdas, desde que se submetessem às provas necessárias e utilizassem uma placa indicativa no veículo, referente à condição surda. Ela reafirmou, enfatizando mais uma vez que as pessoas surdas podiam dirigir e que ela queria isso.
SITUAÇÃO 6 – MENSTRUAÇÃO (22/10/2015) Durante o intervalo, quando as crianças se ausentaram da SRM, a professora contou algumas dificuldades e situações que ocorreram com alunas surdas e alunos surdos na escola. Segundo ela, uma destas situações envolvia uma aluna surda que menstruara na escola e mostrara o absorvente sujo às outras crianças sem entender o que estava acontecendo. Então, ela teve de intervir dizendo que a garota não podia fazer aquilo, porque era feio. Em outro momento, a menina menstruara novamente e, dessa vez, sujou a calça, o que a deixou envergonhada, mas a professora surda lhe explicou que aquela situação era normal, e que, às vezes, acontecia mesmo. Perguntou se a menina tinha um absorvente, mas ela disse que não. Nesse caso, a professora lhe deu um. Ao narrar isso, Karin afirmou que situações como essa também deveriam ser ensinadas às alunas surdas e aos alunos surdos, pois elas e eles não compreendiam e não tinham na família quem lhes explicasse.
SITUAÇÃO 7 – ASSALTO (29/10/2015) Karin narrou a história de um dia em que faltou água na escola e a direção resolveu liberar todas as pessoas. Assim que ela e dois intérpretes saíram da escola, avistaram uma motocicleta com dois homens. Logo eles se aproximaram e pararam em sua frente. Ela ficou parada sem fazer nada, pois não havia entendido o que eles queriam. Um deles desceu da motocicleta e começou a falar com ela com o revólver apontado, mas ela não conseguia entender o que dizia, ainda mais porque ele estava com capacete, o que a impossibilitava de fazer alguma leitura labial. Ela permaneceu estática, com medo e sem entender o que, de fato, ele queria. Depois, a intérprete disse a ela que os assaltantes queriam a sua bolsa. Nesse momento, ela permaneceu parada, sem olhar para nenhum dos lados, pois tinha receio que ele atirasse. Enquanto isso, um dos intérpretes tentou fugir, fazendo com que o assaltante percebesse e agisse rapidamente, pegando a mochila dele. Quando o mesmo percebeu que Karin não compreendia o que ele dizia, puxou bruscamente a sua bolsa, quase a levando ao chão. Durante sua narração, Sofia observava atentamente, assustada. Samuel, como de costume, chegou por volta das 15 horas, e ela recapitulou o início da história para ele. Na continuação, Karin afirmou que ela e os dois intérpretes foram à polícia. O menino perguntou por que a polícia não prendera os assaltantes. Ela disse a ele que a polícia era muito fraca e não se intrometia, além de que, no dia, não tinha nenhuma viatura disponível. Depois de saber da história, Sofia e Samuel ficaram assustados. Karin, então, disse a ele/a que se um dia ela fosse assaltado/a, que entregasse tudo e não reagisse.

Quadro 4. Situação 5 – Condução de veículo, Situação 6 – Menstruação e Situação 7 – Assalto, envolvendo a professora Karin.

Nestas três situações, é possível verificar a importância do papel da professora surda no processo educacional de alunas surdas e alunos surdos. As situações anteriores demonstram que Karin abordava temas que iam além daqueles esperados num atendimento especializado. Ela transmitia, trocava e ampliava as experiências de vida com suas alunas e seus alunos.

Na situação 5, assim como na situação em que a professora Carolina narrou, Karin mostrou à sua aluna as possibilidades de cidadania que uma pessoa surda pode conquistar. A garota, possivelmente já influenciada pelo discurso normalizador imposto às pessoas surdas, ou, simplesmente por falta de acesso à informação, desacreditava que uma pessoa surda pudesse dirigir, espantando-se quando a professora afirmou ter vontade de ter carteira de habilitação.

Na situação 6, o fato de a professora ter orientado uma aluna surda no que concerne às questões de higiene pessoal, provavelmente, se deu porque a garota não tinha essas orientações no âmbito familiar. Segundo Terra (2011), sobre a relação entre professoras surdas e professores surdos-alunas surdas e alunos surdos, o contato com as/os semelhantes propicia a essas pessoas um sentimento de não estar só, de partilha de angústias com quem consegue compreendê-las. É provável que a própria escola também recorresse à professora para que ela auxiliasse as alunas surdas e os alunos surdos em assuntos pessoais, pelo fato de ela ter as condições linguísticas para explicar questões que nem a família, nem as professoras e os professores ouvintes das salas comuns, conseguiam.

Terra (2011, p. 136) assegura que "o professor surdo, além de ensinar a LIBRAS, de ser alguém com quem as crianças se identificam, deve preparar os alunos para viverem na inclusão”. Essa ideia de "dever” pode ser questionada, uma vez que, muitas vezes, a escola não proporciona as condições (preparação) adequadas para que as professoras surdas e os professores surdos assumam um papel mais amplo na vida das alunas surdas e dos alunos surdos. Contudo, as práticas das professoras surdas pesquisadas apontaram que, de forma até intuitiva, nesses contextos inclusivos específicos, tem havido um esforço delas em estabelecer forte relação afetiva e social com suas alunas e alunos nos processos educacionais.

No tocante à situação 7, a professora compartilhou com sua aluna e seu aluno uma experiência a que todas as pessoas estão sujeitas, mas que, para as pessoas surdas, pode ser ainda mais traumática. Ao ser assaltada, embora de modo geral estivesse compreendendo a situação por meio da percepção visual, Karin não compreendia o que o assaltante pedia. Então, isso aumentava sua vulnerabilidade frente à situação.

O que deve ser ressaltado é que Karin compartilhava das dificuldades que uma pessoa surda enfrenta socialmente, seja na rua, na escola (como sua aluna sofreu na situação 6), ou em qualquer outro espaço. Isso não quer dizer que esse sofrimento é desencadeado pela diferença surda, mas pelas precárias condições que a sociedade e a cultura apresentam às pessoas surdas.

Dessa forma, ao compartilhar variadas temáticas com suas alunas surdas e seus alunos surdos, Karin propiciava a elas e a eles experiências que só uma pessoa surda pode transmitir a outrem, mesmo que a situação pudesse acontecer com qualquer outra pessoa, como é o caso da possibilidade de um assalto (fenômeno que atinge a todos os espaços e grupos sociais). Por estas questões, "a preferência de surdos em se relacionar com seus semelhantes fortalece sua identidade e lhes traz segurança. É nos contatos com seus semelhantes que eles se identificam com os outros surdos e encontram relatos, problemas e histórias semelhantes às suas” ( STROBEL, 2013, p. 120).

O discurso de empoderamento da professora mostrou à sua aluna as diversas barreiras que o seu grupo cultural vem derrubando, a fim de se colocar enquanto sujeitos de direitos no âmbito da cidadania – o que favorece o processo de construção identitária da menina (tendo a cidadania como partícipe desse processo)

Considerações finais

As situações analisadas mostraram que a relação pessoa surda-pessoa surda pode favorecer a construção de identidades surdas mais sólidas, com bases culturais "mais vivas”, visto que é pela experiência do outro surdo que o eu surdo tem condições mais significativas de ir compreendendo a sua condição de estar sendo ( SKLIAR, 2003) no mundo.

A busca em socializar as experiências com as alunas e os alunos, especialmente as relativas à diferença surda, demonstra que as professoras surdas contribuem para fazer circular os artefatos da Cultura Surda nos momentos didático-pedagógicos do AEE. Elas proporcionam a suas alunas e a seus alunos conhecimentos culturais, históricos e políticos acerca do grupo cultural do qual fazem parte, sobretudo, ao proporcionar a elas e a eles um processo de identificação com suas semelhanças, enquanto pessoas surdas. As professoras surdas trazem exemplos que representam as experiências culturais que elas podem transmitir a suas alunas e seus alunos, isto é, a experiência visual, os costumes, a história, a LIBRAS, entre outros. Desse modo, percebemos que há uma preocupação com a construção identitária de suas educandas e educandos, com base na Cultura Surda.

Concernente ao sentimento das alunas surdas e dos alunos surdos para com as professoras surdas, as situações observadas e os discursos proferidos, inclusive pela mãe de um deles, deixa transparecer que elas e eles sentiam prazer em aprender a sua língua natural e imergir em sua cultura, juntamente com as professoras. Esse compartilhamento de significados entre pares surdos permite a construção das identidades surdas, dando real sentido aos acontecimentos, referenciado por pessoas que possuem experiências identitárias e culturais próprias.

É importante salientar que este processo de relação e significação cultural acontecia além do momento formal do AEE. Muitas vezes, esses momentos se transformavam em um encontro para diálogos sobre assuntos cotidianos, brincadeiras, aconselhamentos etc. Os laços de amizade criados entre as professoras surdas, as alunas surdas e os alunos Surdos propiciavam processos educacionais ativos e interativos, enriquecendo suas identidades culturais.

As análises trouxeram à tona também, por meio do relato de uma das professoras, as situações de bullying e assédio moral, das quais as pessoas surdas são vítimas. Quando da ocorrência do bullying, uma das professoras interveio discursivamente através da narração de suas próprias experiências, tentando mostrar o sofrimento que esse tipo de violência provoca. No entanto, quando se tratou de situações de assédio praticadas por uma pessoa ouvinte adulta, que envolve uma relação de poder mais explícita, outra professora preferiu abster-se e não intervir na situação. Essa atitude, que pode ter sido proveniente de resquícios de sentimento de inferioridade, é um empecilho para que as professoras surdas enfrentem situações de assédio, referentes especificamente à sua condição surda. Por isso, é necessário que as alunas surdas e os alunos surdos construam, cada vez mais cedo, imagens positivas sobre si e seu grupo cultural.

Foi possível perceber também, por meio da narrativa de uma professora e das observações realizadas, o espanto de alunas surdas e alunos surdos diante da possibilidade de as pessoas surdas alçarem lugares socialmente prestigiados. As alunas e os alunos não creem que seja possível seus pares culturais serem professoras e professores. Destarte, na escola, o papel docente pode representar, para as alunas surdas e os alunos surdos, possibilidades de ascensão e inclusão social, pois as professoras, embora tenham a sua cultura desvalorizada, conquistaram o seu "lugar no mundo”, passando a ser referência para muitas pessoas surdas, sobretudo para esses/as educandos e educandas.

A condição de professoras surdas pode ter muita representatividade no processo de construção de identidades de alunas surdas e alunos surdos, por mostrar, na prática, que os conteúdos escolares podem ser recheados de elementos culturais da vida das pessoas surdas. Aspectos que só podem ser compartilhados por elas próprias.

Assim, a relação das alunas surdas e dos alunos surdos com as professoras surdas poderá fazê-las/os compreender que, em meio a todas as tentativas da sociedade e da escola que elas e eles trilhem "o caminho da normalidade”, existem outras possibilidades culturais que lhes permitem construir as suas próprias identidades a partir da sua cultura, a Cultura Surda.

Por isso, enquanto espaços verdadeiramente bilíngues, que respeitem as identidades, as diferenças e as subjetividades das pessoas surdas não se materializarem em locais, como na cidade de João Pessoa-PB, onde prevalece a qualquer custo o discurso da inclusão dessas pessoas nas escolas comuns, é preciso que sejam valorizadas as microiniciativas que visam – mesmo quando o propósito não é claramente esse – o fortalecimento da Cultura Surda: a aquisição da língua de sinais, o empoderamento surdo, a construção de identidades surdas, entre outras, como vem ocorrendo em algumas escolas comuns dessa capital, por meio da relação entre alunas surdas, alunos surdos e professoras surdas.

Como as análises mostraram, as professoras surdas dessas escolas comuns, por meio do ensino de LIBRAS nas salas comuns e do Atendimento Educacional Especializado nas Salas de Recursos Multifuncionais, têm contribuído para a construção das identidades das crianças surdas, mesmo num ambiente não tão propício para isso. No AEE, a relação direta entre as professoras surdas, as alunas surdas e alunos surdos tem potencializado esse processo, pois as docentes trabalham com atenção especial aos elementos culturais e acadêmicos.

À guisa de conclusão, consideramos, portanto, que o processo de construção de identidades surdas ocorre, de fato, quando há a oportunidade de os sujeitos surdos conhecerem o universo da Cultura Surda. Nesse caso, na "escola inclusiva” – embora não seja o lugar ideal –, a chance de esse processo ocorrer tem sido no fortalecimento da presença de professoras surdas e professores Surdos no processo educacional de alunas surdas e alunos surdos. São essas/es profissionais que darão a oportunidade de as crianças surdas aprenderem a sua língua, a sua cultura e construírem as suas identidades.

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iUtilizamos sujeitos de pesquisa para as três professoras surdas, que, de fato, são os sujeitos-alvo dessa pesquisa, e participantes para suas alunas e seus alunos e outras pessoas que possam aparecer nas situações pedagógicas observadas ou citadas nas entrevistas.

iiEsses nomes foram escolhidos em homenagem às, também, professoras surdas, Karin Strobel, Carolina Hessel Silveira e Gladis Perlin, por suas contribuições teóricas e a defesa da importância de docentes surdas e surdos nos processos educacionais de alunas surdas e alunos surdos.

iiiUtilizamos @ na tradução/transcrição das falas das professoras porque em LIBRAS, na Cultura Surda, as pessoas utilizam o gênero neutro, salvo naqueles casos em que, de fato, necessita-se marcar o gênero.

ivCom base em uma história real, o filme narra a história de Anne Sullivan, uma professora cuja maior luta foi a de ajudar uma menina surdocega (Helen Keller) a adaptar-se ao mundo que a cercava. Nesse ínterim, a professora encontrou muitas dificuldades para trabalhar com a garota porque era muito mimada pela família, o que atrapalhava o seu desenvolvimento, cerceando-a da aprendizagem de ações básicas para sua autonomia, como comer, se relacionar com as pessoas e, especialmente, a aprendizagem de uma linguagem. Filme completo disponível em:[https://www.youtube.com/watch?v=9Zqn_pHoni0]. Acessado em: 14 de dezembro de 2016.

vNessa situação, quando estudante, a professora surda confundiu as partes das plantas com uma árvore genealógica

Recebido: 23 de Março de 2017; Aceito: 15 de Novembro de 2017

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