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Revista Educação e Cultura Contemporânea

versión impresa ISSN 1807-2194versión On-line ISSN 2238-1279

Rev. Educ. e Cult. Contemp. vol.15 no.40 Rio de Janeiro jul./set 2018  Epub 23-Jul-2018

https://doi.org/10.5935/2238-1279.20180060 

Artigos

Escola de excelência na rede pública municipal de Teresópolis RJ: um estudo de caso

Public school excellency at Teresópolis RJ: a case study

Regis Argüelles da CostaI 

IUniversidade Federal do Rio de Janeiro; Programa de Pós graduação em Educação; rarguelles@gmail.com


Resumo

Os dados consolidados do Índice de Desempenho da Educação Básica (IDEB) e da Prova Brasil indicam uma queda significativa de rendimento da rede pública de ensino básico nos anos finais do ensino fundamental, quando comparados com os anos iniciais. Assim, procuramos identificar uma escola desse nível de ensino que, por contraste, apresentasse bom aproveitamento relativo nos índices federais de avaliação, e também na opinião dos profissionais que atuam na rede. Esse critério nos levou à Escola Chad Goblin, localizada na área urbana do município de Teresópolis - RJ, região serrana do Rio de Janeiro. O trabalho de investigação procurou analisar algumas características desse estabelecimento, a fim de compreender fatores que podem interferir na sua reputação e em seus resultados. Pretendeu-se uma aproximação com estudos que buscam refinar quais seriam as mediações que marcam alguns processos exitosos de educação formal, cujo estudo levaria à construção de uma sociologia das escolaridades, conforme Maria Nogueira. O uso de diversas técnicas de análise – quantitativas e qualitativas – ampliou as possibilidades de abordagem do objeto, indo ao encontro da literatura que ressalta a multidimensionalidade epistêmica da escola. Foi possível perceber existência de certo ethos institucional que, de certa forma, engendra a representação de escola de excelência para a comunidade escolar em geral.

Palavras-Chave: Sociologia da escola; Cultura escolar; Escola de excelência

Abstract

Consolidated data from the Índice de Desempenho da Educação Básica (IDEB) and Prova Brazil indicates a significant drop on the results of the public primary school system in the final years of elementary school, when it compared to the initial years. Thus, we sought to identify a school at this level of education that, by contrast, presented good relative performance in the federal evaluation indexes, and in the opinion of the professionals who work at the area. Those criterions led us to the Chad Goblin School, located in the urban area of the municipality of Teresópolis - RJ, near of Rio de Janeiro town. The research work sought to analyze some characteristics of this establishment in order to understand factors that may interfere in its reputation and its results. It intended to be an approximation with studies that seek to refine what would be the mediations that mark some successful processes of formal education, whose study would lead to the construction of a sociology of schooling, according to Maria Nogueira. The use of several techniques of analysis - quantitative and qualitative - extended the possibilities of approaching the object, going along with the literature that emphasizes the epistemic multidimensionality of the school. It was possible to perceive the existence of a certain institutional ethos that, in a certain way, engenders the representation of a school of excellence for the school community in general.

Key words: School sociology; School culture; School excellency

Introdução

Em recente campanha publicitária veiculada nos jornais de maior circulação do Brasil, o Ministério da Educação (MEC) publicou um pequeno texto, cujo título afirmava que “toda escola pública pode ser uma boa escola”. Chamava a atenção para a melhoria da qualidade da educação básica, de acordo com as avaliações nacionais promovidas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, sublinhando a importância da Prova Brasil — que será aplicada, em todo país, no segundo semestre de 2013 — neste processo. O anúncio prosseguiu destacando os vários recursos que estão à disposição das escolas públicas (biblioteca, transporte escolar, equipamentos digitais e quadras esportivas foram mencionadas), condicionados ao estabelecimento de convênios do governo federal com Estados e municípios.

A peça publicitária em questão adquire relevo justamente por fazer uso de uma série de categorias que, desde o início da década de 90, se difundiram no debate sobre a qualidade da educação pública. Tal processo deu forte ênfase à necessidade de avaliação contínua dos serviços educacionais, baseada nos princípios de prestação de contas (do inglês accountability) das políticas públicas. As provas e resultados dos testes de avaliação adquiriram centralidade na definição de prioridades e correções de percurso, rumo à qualidade da educação. Metas são estabelecidas, políticas implementadas; índices são comemorados ou lamentados pelas escolas. Dissemina-se, dessa forma, uma potente ideia de controle empírico da situação geral da educação básica, que implica diretamente na destinação de recursos públicos, na remuneração docente e no capital simbólico de que a escola usufrui perante a comunidade.

A questão da política contemporânea de avaliação da educação básica toma maior espessura quando se percebe que diversos países vêm testando seus alunos e publicando rankings escolares e sistêmicos (locais, regionais e nacionais) de desempenho; ademais, o índice do Programme for International Student Assessment (PISA)1difundiu-se na perspectiva de comparação entre sistemas nacionais de ensino. À dinâmica internacional acrescentam-se os programas estaduais e municipais de avaliação, bem como as aulas de reforço de português e matemática no contraturno e os “provões” escolares. No limite, podemos inferir que práticas de avaliação e ranqueamento vêm ocupando boa parte do cotidiano escolar, dando nova conformidade a tempos e espaços.

De acordo com Oliveira e Araújo (2005), o discurso sobre qualidade e educação no Brasil atravessou três momentos distintos. O primeiro foi marcado pelo foco na insuficiência de vagas na escola; a seguir, as pesquisas passaram a tratar de questões ligadas ao fluxo escolar dos alunos, tendo em vista as altas taxas de evasão e repetência; por último, o discurso de qualidade foi atrelado aos índices de avaliação do ensino, como o Saeb e, mais recentemente, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). Dessa forma, a questão da qualidade parece relacionar-se sempre a algum índice (carência de matrículas; evasão e repetência; e testes de desempenho) que, através da análise da desigualdade das posições relativas, dá o tom ao debate.

A análise dos dados do IDEB do ano de 2011 permite algumas deduções de caráter bastante geral. Primeiro, a melhora global do índice desde 2005, tanto nos anos finais quantos nas iniciais do ensino fundamental (EF). Há uma queda de desempenho nos anos finais, o que implica que é bastante razoável a saída desse jovem de tal nível do ensino com distorção idade-ano de escolaridade e deficiências em português e matemática. O resultado alcançado no IDEB parece correlacionar-se com as condições socioeconômicas da região da escola; assim, os números indicam que, quanto maior o nível de pobreza da região, piores os resultados da escola. Por último, existem algumas escolas públicas que se destacam em suas redes de ensino, ficando ranqueadas entre as melhores do Estado e até do país.

Considerando o déficit de desempenho nos anos finais do EF, procuramos selecionar, para fins de estudo, um estabelecimento escolar que mantivesse uma regularidade de bons resultados nos índices de avaliação e que gozasse de boa reputação perante a comunidade escolar. As questões que permeiam esse trabalho giram em torno do que diferencia tais escolas e seus alunos. Por que eles se destacam nas avaliações? Como os alunos avaliam sua escola e quais são suas expectativas em relação à educação escolar? Quais processos pedagógicos, disciplinares e políticos permeiam o contexto de uma escola considerada de qualidade? Com isso, pretendemos uma aproximação com estudos que buscam refinar quais seriam, afinal, as mediações que marcam alguns processos exitosos de educação formal e cujo estudo levaria à construção de uma sociologia das escolaridades (NOGUEIRA, 1995, p.16).

Com isso chegamos à Escola Chad Goblin, um estabelecimento municipal de anos finais do EF, localizado na zona urbana de Teresópolis. Trata-se de um município da região serrana do Estado do Rio de Janeiro, distante cerca de 80 Km da capital. Construída em um bairro de classe média alta, a pequena escola atingiu os melhores resultados da Prova Brasil e do IDEB da rede pública municipal, em 2010, repetindo o resultado dos anos anteriores. É também muito bem avaliada por diversos professores, nas conversas informais na hora do recreio.2

Uma das possibilidades de abordagem deste trabalho é a de que os processos escolares de excelência são fruto de um ajuste entre (1) as disposições das famílias e alunos em relação ao ensino formal e (2) a existência de certo ethos institucional que, de certa forma, engendra a representação interna e externa da escola. Esses dois fatores se encontram em um ponto ótimo de reprodução mútua, e acabam por ir ao encontro das expectativas da comunidade escolar como um todo; no caso de famílias cujos filhos frequentam uma escola de qualidade, esses processos de retroalimentação podem ser considerados ainda mais efetivos, já que a instituição passa a ter um importante papel de qualificação dos jovens e, consequentemente, de manutenção e ampliação do volume de seu capital econômico e cultural (BOURDIEU, 2009); as escolas ditas de qualidade na rede pública parecem também beneficiar-se de sua clientela diferenciada, pois assim continuam a desfrutar de uma posição de proeminência dentro de um universo de escolas públicas da mesma rede.

A contar desta introdução, este artigo está dividido em seis seções. Na seguinte, apresentaremos a metodologia utilizada na pesquisa de campo. Posteriormente, discutiremos alguns aspectos teóricos e metodológicos de pesquisa de contextos escolares, a partir da seleção de trabalhos que abrem possíveis diálogos com o estudo aqui desenvolvido. Algumas características socioeconômicas e da rede de escolas de Teresópolis serão desenvolvidas na seção de número 4. Na seção posterior apresentaremos a contextualização da escola estudada. O objetivo é partir da perspectiva do território e da rede escolar da cidade para articula-los à análise dos dados coletados e, então, compará-los com outros resultados de pesquisa. Na última seção, algumas considerações finais e questões são esboçadas.

Metodologia de pesquisa

O trabalho de campo desenrolou-se durante todo o ano de 2011, com visitas periódicas à unidade escolar. Quanto à metodologia, fizemos uso de diversas técnicas a fim de uma contextualização analítica que correspondesse com maior fidelidade às diversas dimensões constituintes do espaço escolar. Primeiro, um questionário respondido por 92 alunos, com questões fechadas e abertas. O instrumento procurou estimar escores para o nível socioeconômico (NSE), além de um índice de avaliação da escola pelos alunos, que podem fornecer pistas sobre o contexto escolar. A seção de perguntas abertas buscou avaliar a projeção do futuro escolar e ocupacional de cada estudante.

No que diz respeito ao cotidiano e equipamentos escolares, foram feitas diversas visitas de observação durante o recreio (com os alunos e também na sala de professores), na entrada e saída dos turnos. Fizeram parte da investigação um questionário para entrevistas semiestruturadas com o diretor, equipe pedagógica e alguns professores da unidade, que foram úteis no sentido de apurar as avaliações do dia a dia da escola. Também procuramos conhecer o entorno escolar e, ao longo de todo o processo, registrá-lo por meio de fotografias.

Hibridização e análise de contextos escolares

Alguns resultados de pesquisas realizadas na última década no Brasil indicam que a escola faz diferença: ela pode ter alto impacto na aprendizagem do conjunto de alunos que a frequentam, suavizando as diferenças de nível socioeconômico (NSE); por outro lado, existem escolas que favorecem àqueles de camadas superiores e médias e são extremamente “severas” com os que se encontram no outro extremo da estratificação social; há ainda as instituições em que os alunos pouco aprendem, ou seja, cujos efeitos na aprendizagem dos alunos são nulos ou, até mesmo, negativos (ALVES; SOARES, 2007; COSTA, 2008; KOSLINSKI; COSTA, 2009).

Todas as considerações sobre a contribuição efetiva da escola na aprendizagem dos alunos partem do princípio de que a mesma pode ser apreendida enquanto objeto de análise e, por conseguinte, de intervenção (WILLMS, 2008). Essa ainda é, ao que parece, uma das principais justificativas para o estudo da escola: a sua possibilidade de servir como orientação e fomento às políticas públicas voltadas para a melhoria da qualidade da educação. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de métodos cada vez mais sofisticados de coleta e análise de dados e o crescente investimento dos estados em estratégias de avaliação e divulgação de resultados de seu sistema e de suas escolas têm ampliado o leque de possibilidades de estudo da instituição.

Várias questões podem ser formuladas a partir daí. A primeira delas é a de como se capta a influência — positiva ou negativa — da escola. Quais são seus determinantes? Qual seria a melhor forma de abordá-los? Há toda uma linha de pesquisa quantitativa em educação que procura desvelar os efeitos agregados da escola por meio de variáveis expressas numericamente. Essa linha se utiliza de sofisticados softwares estatísticos, capazes de trabalhar com uma grande complexidade de dados e metodologias de análise de surveys. Nesse aspecto destacam-se as técnicas de Modelagem Linear Hierárquica, consideradas por Lee (2008) como as mais apropriadas para o estudo do contexto escolar.

Os estudos realizados nas escolas brasileiras mostram que o efeito delas é mais significativo quando comparado ao que se vê nos países industrializados, o que pode ser creditado à maior segmentação do nosso sistema educacional. Na Região Sudeste, por exemplo, foi observado que o efeito da escola tem maior influência nos resultados escolares de seus alunos, considerando tanto o efeito bruto (sem o controle do NSE) quanto o controlado por esta variável. Mais ainda: no Brasil, os equipamentos e o prédio escolar influenciam a eficácia escolar, de acordo com várias publicações (SOARES, 2004; ALVES; FRANCO, 2008).

A abordagem qualitativa, por outro lado, é utilizada em larga escala em estudos sobre a escola, principalmente naqueles que se voltam para a questão da cultura escolar. A escolha pela pesquisa qualitativa em educação se constrói a partir da crítica ao método da grande pesquisa e suas promessas de apontar práticas virtuosas passíveis de generalização a todo um sistema escolar, à medida que se percebe que

os efeitos de uma inovação aparecem consideravelmente instáveis de um estabelecimento para outro. Não só uma inovação que obtém sucesso em um estabelecimento pode fracassar em outro, mas pode também mudar de sentido, ter outros efeitos, implicar modificações diferentes no comportamento dos indivíduos e no funcionamento do estabelecimento. Encontra-se aí o sinal de que o estabelecimento dispõe de uma identidade que se apropria dos elementos que lhe são injetados do exterior, volta a trabalhá-los, reformula-os por uma espécie de metabolismo que ainda fica por definir (DEROUET, 1995, p. 229).

A tentativa de apreensão de tal metabolismo parece ser o grande desafio das pesquisas qualitativas em educação. Boa parte da metodologia que aplicam é herdeira da tradição da Antropologia e Etnologia anglo-saxã e seus métodos etnográficos, sobretudo aqueles desenvolvidos pela Escola de Chicago (DEROUET, op.cit.). Sobre esse aspecto é importante ressaltar que a maioria dos estudos da Escola de Chicago eram sobre grupos sem cultura escrita, ou grupos marginalizados da sociedade, como delinquentes, prostitutas e ladrões. O que se buscava com essas pesquisas era compreender a lógica do código discursivo desses grupos, através da observação e da descrição densa (VAN ZANTEN, 2004). A observação do dia a dia, dentro e fora de sala de aula, além de entrevistas abertas, fechadas e informais com a comunidade escolar dará, portanto, o tom da pesquisa voltada para a escola.

Conforme nos lembra Canário (1996), a pluralidade de teorias e epistemes no estudo da escola vem contribuir para a riqueza metodológica do campo e deve ser vista como um elemento que convida a imaginação do pesquisador. Para além de debates vazios sobre a suposta dicotomia existente entre as diferentes metodologias de pesquisa, esse autor considera que a pluralidade é parte constituinte da construção do objeto de estudo. Talvez essa característica seja o reflexo do próprio papel que a escola assume nas sociedades contemporâneas, cuja especificidade é atravessada por mediações fundamentais com o mundo do trabalho — de pais e funcionários da escola — ou com as contradições políticas e sociais do território.

O acúmulo das pesquisas em instituições escolares vem estimulando inovações teórico-metodológicas a fim de que se superem os impasses entre modelos hegemônicos, ainda que se isso não signifique a negação absoluta das proposições anteriores. Um dos caminhos mais difundidos é aquele que entende a necessidade de contextualizar o tempo e o lugar das escolas estudadas, a partir da compreensão de que elas refletem tanto os interesses e necessidades postos pela sociedade quanto as expectativas, vivências e a história sociocultural e profissional de seus personagens (MAFRA, 2003). Acreditamos que essas considerações estimulem pesquisas abertas à hibridização metodológica, que, aliada à clareza e explicitação teóricas, podem contribuir para a renovação desse campo de estudos.

Por fim, tratemos da questão da validade dos dados nos estudos da escola, sejam quantitativos ou qualitativos. O problema existe na medida em que se possa ou não os extrapolar do contexto imediato de seu objeto, o que leva a pensar de que maneira o microssociológico pode relacionar-se como o macrossociológico para que não se caia na armadilha da mera descrição de várias situações que ocorrem em espaços escolares diversos. Para Van Zanten (op.cit.), não se devem opor os dois níveis de pesquisa: mais importante é o status e a maneira como se trabalha com os dados em escala micro, explorando suas conexões com fenômenos estruturais. Já Elias e Scotson (2000), no estudo de uma pequena comunidade industrial da Inglaterra, defendem que o micro possa ser usado para esclarecer o macro, e vice-versa, uma vez que

o uso de uma pequena unidade social como foco da investigação de problemas igualmente encontráveis numa grande variedade de unidades sociais, maiores e mais diferenciadas, possibilita a exploração desses problemas com uma minúcia considerável (p. 20).

Outro trabalho de Canário (2004) oferece um esquema para o estudo da escola em sua relação com fenômenos sociais e procura estabelecer três níveis de análise. O macro, de definição e construção das políticas educativas; o meso, que se refere ao estabelecimento escolar, no sentido de espaço de regulação local (territorialização) daquelas políticas; e, por último, o micro, que diz respeito às ações pedagógicas em direção aos alunos, sendo a sala de aula o espaço privilegiado de investigação. Esses três níveis estão necessariamente articulados e em interação. Sobre o nível meso, que possui especial importância neste trabalho, o mesmo autor chama atenção para a necessidade de se “ultrapassar uma visão redutora de territórios circunscritos às suas dimensões escolares, procedendo-se à construção de territórios educativos onde se construam modalidades de interação entre o escolar e o não escolar” (p. 50).

A pesquisa de contextos escolares, conforme a discussão desenvolvida nos parágrafos acima, aponta para um conjunto interessante de possibilidades de investigação e análise. Modelos reducionistas e monocausais são constantemente desafiados pela complexidade da escola; essa, por sua vez, convida o pesquisador fazer uso de técnicas variadas, cujo manuseio tem sido facilitado pela crescente difusão de modelos de armazenamento, apresentação e manipulação de dados. Ademais, a análise deve precaver-se da adesão acrítica a uma determinada metodologia que, pelo próprio teor, pouco tem a dizer sobre a dimensão sócio-histórica da instituição que se pretende investigar. Uma abordagem ampliada e reflexiva da escola parece-nos uma direção profícua no sentido da desmistificação dos processos escolares, a fim de uma compreensão sociologicamente mais mediada dos mesmos.

Características socioeconômicas de Teresópolis e sua rede escolar

O município de Teresópolis está localizado a 80 km da capital do estado do Rio de Janeiro e tem população de 171.482 mil habitantes, dos quais cerca de 24.000 na faixa etária entre 6 a 14 anos. A rede pública municipal de ensino conta com 2.080 matriculas na Educação Infantil e 19.530 no Ensino Fundamental, nível de ensino que responde, portanto, por 78% do total de matrículas. São ao todo 72 escolas públicas municipais, sendo que 12 oferecem matrícula nos anos finais do Ensino Fundamental. Nos últimos 15 anos o processo de municipalização desse nível foi bastante significativo na cidade, seguindo uma tendência nacional.3

As principais fontes de renda do município são advindas do turismo de veraneio e de escalada (Teresópolis é laureada com o título de “Capital Nacional do Montanhismo”) e da produção de hortaliças, esta responsável pela articulação –da cidade ao circuito de acumulação urbano—industrial regional, que prioriza o estabelecimento de espaços agrários setoriais para suprir o abastecimento de alimentos de grandes centros (no caso, a região metropolitana do Rio de Janeiro). Mais ainda, a agricultura confere ao município e ao estado do Rio de Janeiro a posição de produtor nacional de vários legumes e hortaliças (RODRIGUES, 1999). Recentemente, por conta das fortes chuvas de janeiro de 2011 que devastaram boa parte da zona rural de Teresópolis, os moradores do Região Metropolitana do Rio de Janeiro experimentaram um aumento nos preços das hortaliças, o que pode ser considerado um efeito colateral dessa concentração inter-regional da produção agrícola.

Nos anos recentes, Teresópolis vem sendo palco de dois fenômenos importantes. O primeiro é o da favelização, que aumentou consideravelmente a partir do início dos anos 90, sendo a segunda maior taxa do estado do Rio de Janeiro, de acordo com os dados do Censo de 2010. O Plano Diretor de Saneamento da cidade, de dezembro de 2008, indicou que a área urbana já se encontrava saturada: os vales estavam ocupados e as encostas apresentavam um alto grau de antropização. Apesar das condições de relevo acidentado, não se encontram vazios urbanos e a média da ocupação dos terrenos por edificações não é muito baixa. O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) municipal é, da mesma forma, preocupante. O município teve o menor desempenho do PIB per capita dentre 22 municípios do Estado, escolhidos para o comparativo. O crescimento médio do PIB de Cabo Frio, por exemplo, foi de 32% entre 2002 e 2005, enquanto Teresópolis teve apenas 11% de evolução no mesmo período. Uma das consequências desse problema pode ser observada no fato de que 37% dos domicílios da cidade ou não têm luz elétrica, água encanada ou ainda instalações sanitárias adequadas (TERESÓPOLIS, 2008).

As nove escolas dos anos finais do Ensino Fundamental da área urbana funcionam em três turnos. Nos dois primeiros é oferecido o ensino regular (6º a 9º ano, com algumas oferecendo também os anos finais do 1º segmento), ficando o terceiro turno reservado para a Educação de Jovens e Adultos; todas, mais duas da área rural, foram visitadas durante o ano de 2010. Os equipamentos da área urbana direcionados aos anos finais do Ensino Fundamental estão, em geral, em boas condições estruturais e pode-se afirmar que alguns dispõem de espaços escolares bastante satisfatórios. Entretanto, algumas escolas sofrem visivelmente de problemas de espaço, principalmente no que diz respeito às áreas comuns de atividades (quadra, demais áreas de lazer, biblioteca, refeitório). Esse problema foi relatado por professores e diretores da Escola Chad Goblin, por conta da relação aluno x espaço construído. 4

O corpo docente da cidade para os anos finais do Ensino Fundamental é bastante heterogêneo. Alguns grupos principais podem ser tipificados: há aqueles professores de 15 ou mais anos de carreira, que são moradores da cidade; destes, boa parte teve formação inicial em pedagogia, tendo posteriormente se formado em licenciatura de alguma disciplina obrigatória da grade curricular. Há também muitos que moravam em outros municípios e na capital e que, após a aprovação em concurso para o magistério, mudaram-se em definitivo para a cidade. Em menor número, podem-se citar os professores que moram fora de Teresópolis. Há uma rotatividade notável desse último tipo de profissional: apesar do salário compatível com o mercado, a distância da região metropolitana e obrigatoriedade de a carga de 16 horas ser cumprida em três dias (alguns professores tinham que viajar à cidade para ministrar dois — ou até mesmo um — tempos de aula) podem ser considerados empecilhos à sobrevida desse profissional na rede. Ademais, a relação entre o professor teresopolitano (em cargo de gestão ou não) e aquele que vem de outra cidade parece ser marcada por tensões, o que foi observado em plenárias da I Conferência Municipal de Educação de Teresópolis — RJ, realizada em 2009.

Chad Goblin e a excelência escolar: status em disputa

A Escola Chad Goblin foi fundada em maio de 1970. A composição de sua vizinhança é típica de um bairro de classe média: condomínios, casas de luxo, supermercados, padarias, restaurantes, lojas de móveis sofisticados e um pequeno shopping. Complementam essa paisagem a Igreja de Santo Antônio — das mais antigas da cidade — , uma sinagoga, templos evangélicos, colégios particulares e um campus universitário. O bairro também é tradicional pela feirinha de roupas, que atrai muitos turistas da capital e de municípios vizinhos, nos fins de semana.

Uma das mais importantes avenidas e vias de acesso da cidade, especialmente para a BR-116 (Rio-Teresópolis), passa defronte à unidade. Alguns alunos costumam ficar na praça após a saída do turno da manhã, brincando ou simplesmente conversando. A escola é também fronteiriça ao campus da maior universidade da cidade. Muitos estudantes universitários, teresopolitanos ou não, circulam pela área, tendo que obrigatoriamente passar pela fachada da unidade para entrar no campus.

A Chad Goblin não foi construída pelo poder público, e sim doada à cidade pelo já extinto Grupo Manchete, que pertencia ao jornalista Adolpho Bloch (1908-1995). No pequeno portão de entrada há uma placa de bronze onde se faz menção à doação. No início de suas atividades, a escola atendia apenas as turmas de 5ª série, no turno da tarde, contando com 120 alunos. Já em 1975, passou a admitir alunos até a 8ª série, funcionando em dois turnos.

O projeto da unidade representa elementos clássicos de uma escola: o prédio principal emula o quadro-negro; o auditório/biblioteca tem o formato de um apontador; o anexo ao prédio principal, transformado em sala de aula, é o apagador; e a caixa d'água da escola, apoiada em uma estrutura cilíndrica, representa um giz. Existe certa polêmica em torno desse projeto, por conta do mesmo ser atribuído ao arquiteto Oscar Niemayer.

Conforme a auxiliar de direção, “essa coisa de Niemeyer tem sido uma pedra no sapato desta escola”. A “assinatura” impede que se façam mudanças no espaço escolar, apesar do escritório do arquiteto não reconhecer a autoria. Prossegue a funcionária:

Nós fomos lá ao Rio, há alguns anos, ver se tinha algo. Não acharam e fica esse impasse, e por quê? Se mexer deixa de ser Niemeyer. Mais o escritório dele não reconhece! Sabe o que eu acho que foi? Ele veio aqui, com o Dr. Bloch, fez um desenho qualquer no papel, um esboço (...) daí alguém pegou e fez o definitivo. Ou seja, é um Niemeyer ‘mais ou menos’. (Auxiliar de Direção)

Quando perguntada sobre essa questão, uma professora afirmou que “essa história de Niemeyer é uma droga, pois a escola precisa fazer certas obras”. Um funcionário da secretaria reclamou que sua sala de trabalho não tem nenhuma janela, o que torna o ambiente desagradável, “ainda mais com um jardim bonito aí fora, a gente não vê nada dele”. Não ficou claro de quem é a responsabilidade pelo impedimento de obras, já que o projeto não foi reconhecido. Ao que tudo indica, alguns professores mais antigos da escola resistem às propostas de modificação, devido à suposta originalidade da construção.

Em comparação com outras unidades da rede que atendem aos anos finais do Ensino Fundamental, a escola é a menor de todas. Sua área coberta conta com 850 m², onde estão dispostas seis salas de aula, que atendem 12 turmas, nos dois turnos. Dessas seis, cinco fazem parte do projeto original; a outra era espaço originalmente destinado ao refeitório. A área coberta também abriga um pequeno refeitório, cozinha, sala da direção, banheiros, sala de professores, secretaria e depósito, além de um auditório de curioso formato (é o “apontador” do projeto) que, sozinho, ocupa 260 m² (PPP, 2008).

O espaço escolar chamou a atenção já no pequeno hall de entrada, por conta de uma autêntica memorabilia: busto de bronze, em homenagem ao doador; um vistoso quadro retratando a pessoa laureada com o nome da unidade; outro quadro, com várias fotos de ex-alunos e professores e o brasão da escola disposto ao centro; galeria de fotos de ex-diretores; algumas placas de homenagens à escola e lembranças de reformas realizadas em gestões passadas, além da bandeira de Teresópolis.

A questão das pequenas dimensões da Escola Chad Goblin merece algumas breves considerações, devido à literatura que procura relacionar o tamanho da instituição ao sucesso dos alunos. De origem estadunidense, essa linha de pesquisa tomou corpo nos anos 60, quando a política governamental apontava para o fechamento de pequenas escolas, por questões de economia de recursos. Seus trabalhos buscaram demonstrar o condicionamento dos resultados escolares à proximidade das relações sociais, típica de pequenos estabelecimentos (DEROUET, 1995). Um estudo levado a cabo por Baker e Gump (apud HOWLEY, 1994) concluiu que escolas secundárias menores ofereciam melhores oportunidades aos estudantes em participar de atividades extracurriculares e no exercício de papéis de liderança.

No Brasil, a pesquisa de Waiseifisz (2000) procurou debruçar-se sobre o tema, considerando a realidade dos ambientes escolares nacionais, a partir dos dados do Saeb/97. Seu trabalho encontrou uma significativa associação entre o tamanho da escola e os resultados dos alunos nos testes de proficiência do Saeb, mesmo quando controlada pelo nível de escolaridade das famílias dos alunos.

A questão da qualidade do ensino ministrado é, sem dúvida, um dos componentes mais importantes da “imagem” do estabelecimento reproduzida por alunos, suas famílias e os profissionais que lá trabalham. Durante as entrevistas, esses profissionais demonstraram orgulho face ao IDEB da escola de 2009 (5,4 pontos, o melhor de Teresópolis, e o 18º em todo o Estado do Rio), que comprova “o trabalho de qualidade que é feito por essa equipe” (Professora 2). Esse resultado foi, de acordo com a Orientadora Pedagógica, “comemorado discretamente, sem cartazes na entrada na escola, só uma pequena nota de parabéns fixada nas salas”.5 O motivo de toda essa discrição foi, segundo uma professora, “a inveja e perseguição que isso pode trazer para a escola”. Ela prosseguiu afirmando que “ser primeiro lugar não é fácil (...) nós o somos por muito tempo. E vêm as insinuações de que nós somos beneficiados pela Secretaria, tratamento diferenciado (...).”

Os profissionais entrevistados afirmaram, ao caracterizar a escola, que se trata de uma instituição “que busca constantemente a qualidade de ensino”; que “é uma escola de ponta no município”, “uma escola boa, de qualidade”. Tal condição foi justificada por conta da qualidade, união e trabalho da equipe de profissionais:

Acho que é a forma de trabalho da equipe, pois estamos sempre ligados e participando de tudo a nossa volta. Existe uma grande sintonia entre a direção, equipe pedagógica e professores, fazendo com que tudo funcione. É muito bom! (Professora 2)

Outra professora fez questão de frisar, no que diz respeito à qualidade de ensino, que “a Escola Chad Goblin não só passa conhecimento, como também cidadania”. O diretor, por sua vez, afirmou que o aluno fica em média quatro anos na escola, já que os índices de reprovação são baixos, além de que vários ex-alunos vão estudar em escolas particulares no Ensino Médio e em “diversas faculdades”. A taxa de aprovação medida pelo IDEB 2011 foi de 84%,6 o que a qualifica como uma das escolas públicas de Teresópolis que menos reprovam.

Tudo indica que a escola é vista pelos profissionais da rede como uma unidade diferenciada. Em visitas às outras escolas — quando ainda se estava na fase de escolha dos estabelecimentos de ensino —, frases como “Ah, pesquisar lá deve ser bom, escola com boa clientela”, ou “A Escola Chad Goblin é luxo: bairro e alunos, tudo de bom” chamaram atenção. Outra professora de uma escola cercada de favelas, ao saber que o trabalho iria discutir a qualidade da escola pública, usando a unidade como exemplo, disse:

Eu tenho certeza que o trabalho lá é bom, mas será que está tão distante do que é feito na minha escola? O que eu quero dizer é: trabalhar com aquela clientela, filhos de papai, que tem família e tudo o mais em casa, é mais fácil. Quero ver colocar meus alunos lá na Escola Chad Goblin e eles obterem os mesmos resultados!

A preocupação com a manutenção da qualidade foi frequentemente explicitada pelos profissionais da instituição. Alguns se mostraram pessimistas, ao contarem que “a escola vem perdendo espaço para outras coisas que eles têm lá fora, como o computador e os shopping centers” (Professor 3); e que “hoje a escola pública não é mais como antigamente, quando quem estava ali queria estudar. Hoje, a gente precisa implorar para o aluno fazer uma atividade”. A Orientadora Pedagógica caracterizou que o desafio vivido pela escola a fim de que seja mantido o padrão de qualidade vem em duas frentes: primeiro, um grupo de alunos que não compreendem mais o valor da escola, pois já têm acesso a uma grande quantidade de informações em casa, o que os leva a achar que prescindem da orientação docente. O segundo fator destacado se refere a alunos de famílias carentes, de pouca escolaridade, que apresentam dificuldades em acompanhar os níveis exigidos por cada ano de escolaridade.

Os dados do survey confirmaram a observação descrita acima: a escola pode ser considerada um reduto significativo de frações de classe média de Teresópolis. A mediana da amostra de índices padronizados de NSE ficou em 0,60; 75 casos atingiram mais que 0,74 nesse índice,7 mas há representantes das classes populares na escola, ainda que tenham um peso bem menor no conjunto dos dados 2. Os dados sobre o NSE também sugerem que a desigualdade social é pronunciada na unidade

Ao confrontar esses dados com a informação — fornecida por uma das mais antigas funcionárias, que na época fazia parte da equipe diretiva — de que a escola não fazia mais seleção de alunos, pode-se elaborar duas hipóteses explicativas. A primeira diz respeito à própria “seletividade” processada no estabelecimento, que eliminaria aqueles cujo volume de capital social é reduzido, mantendo seu caráter elitista. No entanto, o próprio tipo de distribuição espacial da cidade de Teresópolis, marcada por um estilo de segregação territorial que conjuga distância social e proximidade física, permite supor que a escola era — até um passado bem recente — reduto exclusivo de frações médias superiores da área urbana. Tal exclusividade tem sido gradativamente rompida com a presença de alunos de bairros pobres da redondeza. Para um maior esclarecimento desse quadro seria interessante obter dados sobre o NSE dos alunos dos anos iniciais, que frequentam o turno da tarde. Todavia, não se teve acesso a esse material.

Em relação ao local de moradia dos alunos, os dois bairros mais citados (Alto e Granja Guarani) representaram 23 casos entre os 92 analisados; o restante distribuiu-se por uma grande variedade de bairros da cidade, espalhados em uma extensa área. Há, inclusive, menção a Albuquerque — bairro da zona rural de Teresópolis— e a São Pedro — que, como vimos, conta com duas grandes escolas de anos finais do Ensino Fundamental. É importante que se ressalte aqui que no bairro do Alto localizam-se três unidades privadas de educação básica, que atendem boa parte da elite teresopolitana. Isso talvez explique a pouca representatividade de alunos daquele bairro, e também de alunos de Araras e Agriões, dois bairros vizinhos de casas e condomínios de alto padrão. As crianças e jovens, moradoras dos bairros mais ao sul do Alto – Cascata Guarani, Cascata dos Amores, Parque do Ingá, Soberbo — deveriam estar matriculadas na Escola Chad Goblin, pela proximidade e também pelo fato de que essas localidades são habitadas por famílias de baixo NSE. Contudo, esses bairros ficam limitados pelas montanhas e pelo PARNASO e pode-se argumentar que a baixa densidade demográfica explique os números da tabela. Entretanto, essa argumentação não invalida a pergunta: de onde provêm os alunos que ocupam as vagas da escola? Por que a distribuição do local de moradia das famílias é tão dispersa?

A escolaridade das mães da Escola Chad Goblin tornou-se dado de interesse para o conjunto da pesquisa, especialmente pela importância das mães na trajetória escolar dos filhos. Assim, a maioria delas (37 casos) completou o ensino superior, contra apenas 8 casos de mães que estudaram até a oitava série. Isso indica que boa parte das crianças convivem em famílias com escolaridade superior e média, o que parece impactar positivamente no relacionamento com unidade; a maior escolaridade das mães pode significar também uma série de outras vantagens, como, por exemplo, o fato de pessoas mais escolarizadas terem acesso às melhores informações sobre oportunidades escolares (ou seja, as melhores escolas públicas), além da possibilidade de uma orientação mais efetiva dos filhos nas atividades de ensino e aprendizagem propostas pela escola. Vale destacar que a escolaridade da mãe esteve fortemente correlacionada ao NSE das famílias (rs= 0,621, p=0,01).

Dentre as famílias de baixo NSE que têm filhos matriculados na Escola Chad Goblin, há outro elemento que pode ser frisado sobre a questão das relações entre escolaridade da família e qualidade de ensino. Observando a profissão dos responsáveis declarada pelos alunos, vê-se um bom número de ocupações de doméstica, porteiro, jardineiro, zelador, pintor, etc. Esses provavelmente compõem o quadro dos que trabalham em serviços, nos condomínios e casas de veraneio dos bairros nobres da região. A despeito de sua baixa escolaridade, seus trabalhos permitem uma convivência com pessoas de maior escolaridade, que possuem estável condição econômica, o que permitiria a associação entre estudo e mudança de status; além disso, a proximidade a estratos mais elevados poderia levar a esses trabalhadores ao acesso às informações privilegiadas sobre o sistema de ensino da cidade. Essas talvez sejam tendências importantes em regiões compostas por bairro(s) de alto poder aquisitivo, que fazem uso da mão de obra disponível no entorno para serviços de caráter doméstico.

O índice estimado para o clima escolar apresentou correlação negativa com o NSE das famílias (r=-0,233 p=0,05), aproximando-se do resultado encontrado no estudo de Costa (2008). Tais dados podem ser interpretados, de acordo com uma sociologia da cultura escolar de base bourdieusiana, enquanto uma relação de “desinteresse” que frações mais elevadas das camadas médias mantêm com a escola, ao contrário das camadas médias mais inferiores e das classes populares que conseguem matricular seus filhos em escolas públicas de qualidade. Estas, em especial, tendem a considerar a escola como a “tábua de salvação” para o futuro de seus herdeiros, o que tem como consequências um investimento maior em uma educação de tipo escolar (NOGUEIRA, 1997, pp. 117-126) e atitudes e avaliações positivas para com a escola. Além disso, há a presença de duas instituições privadas no bairro, concorrendo no imaginário dos jovens de maior poder aquisitivo com a qualidade de sua escola. O fato de serem potenciais alunos daquelas instituições, além de possivelmente terem amigos que lá estudam (ou estudaram), tudo isso contribui para uma avaliação negativa da escola pública em que estão matriculados, mesmo sendo ela uma instituição de bom desempenho nos índices nacionais de avaliação.

Quanto à expectativa de estudo, nada menos que 88 jovens afirmaram o desejo de prosseguir com os estudos até a universidade; nenhum marcou a opção “até o 9º ano”. Ao responder o que estariam fazendo daqui a cinco anos, foi interessante notar o grau de variedade e clareza quanto ao que se quer estudar no ensino superior (“mecânica”; “medicina”; "administração de empresas”; “jornalismo”), e onde (“história na UFRJ”, “medicina em uma faculdade pública”). Esses jovens parecem, portanto, estar bem informados no que diz respeito às possibilidades de inserção no mercado de trabalho através de cursos superiores. Apenas um aluno disse não saber o que estaria fazendo em 5 anos.

Já na pergunta referente à expectativa para daqui a 10 anos, a variedade de respostas foi ainda mais significativa. Houve uma incidência grande de respostas mais elaboradas, que associavam o futuro à profissão escolhida, invariavelmente mencionada na questão tratada no parágrafo anterior. Também são dignas de nota algumas respostas relacionadas aos estudos de pós-graduação. Esse conjunto de dados mencionados acima indica que boa parte dos alunos associam seu futuro à escola. Parecem, portanto, estar mais esclarecidos das possibilidades que os estudos oferecem, no sentido da manutenção ou até mesmo da ascensão social. Além da óbvia relação dessas atitudes com o background familiar — dada a escolaridade elevada das mães, já discutida —, é possível destacar a vizinhança que a Escola Chad Goblin tem com o campus-sede da principal universidade de Teresópolis. O fato dos alunos terem contato diário com alunos dos diversos cursos desse campus não seria mais um estímulo para fazer dos cursos superiores uma projeção quase “natural” para o futuro? A questão sobre o futuro ocupacional seguiu o padrão da anterior, sobre as expectativas de estudo: uma grande diversidade de respostas. Dentro de uma amostra tão dispersa, os destaques foram o curso de medicina (10 alunos), seguido de fisioterapia, empresário(a) e jogador de futebol (5 cada). Sobre esse aspecto, vale frisar que o curso de medicina é considerado um dos destaques da UNIFESO. Os valores informados na questão sobre a expectativa de ganhos com a profissão escolhida revelaram mais um indício desta compreensão da estrutura de classes da cidade, em especial os ganhos de posições médias: a imensa maioria ficou entre R$2.000,00 e R$10.000,00, ganhos condizentes com as possibilidades iniciais das maiorias das ocupações citadas (excetuando-se, por motivos óbvios, a de jogador de futebol).

Considerações finais

Foram observadas duas características relevantes da Escola Chad Goblin. Em primeiro lugar, uma clara excepcionalidade do estabelecimento, que se refletiu na edificação; nas equipes docente e discente e na comunidade escolar; e no entorno (o bairro). Essa excepcionalidade ficou marcada em vários discursos que versaram sobre “o prédio Niemeyer” ou sobre “a posição de melhor escola desta rede”. Longe de significar um estado de estabilidade, essa condição excepcional pareceu estar em constante disputa, o que acaba por funcionar como um elemento motivador dentro do cotidiano escolar. Outro fator importante — e profundamente relacionado com o anterior — foi a preocupação com a atividade escolar em seu caráter mais estrito de transmissão sistemática da cultura letrada às novas gerações. Professores, equipe pedagógica e alunos procuraram demonstrar que conheciam as vantagens relativas de uma formação no Ensino Fundamental realmente capaz de instrumentalizar o aluno para os próximos níveis do sistema de ensino, valorizando, assim, a importância do trabalho escolar no futuro pessoal e profissional. Nesse sentido, a escola pareceu retroalimentar, no cotidiano da cidade, a inscrição clássica da escola pública que oferece um ensino de qualidade aos seus cidadãos.

Outro elemento importante que deve ser considerado é a configuração de um ethos escolar que tanto pode fomentar um “círculo virtuoso” (BRANDÃO; MANDERLET; DE PAULA, 2005) — que acaba por impactar na excelência e no prestígio das escolas —, quanto um “círculo vicioso”, dotado de uma inércia considerável, que dificulta sobremaneira que a escola atinja certos patamares de qualidade de ensino. No caso da Escola Chad Goblin, o primeiro caso parece se adequar aos resultados encontrados.

Em outras palavras, ficou evidente neste trabalho que portar ou não determinados códigos seleciona quem — considerando aí escolas, famílias e alunos — pode ter mais sucesso no “jogo”. Conhecer, difundir e levar em conta tais limitações, bem como descobrir possibilidades inexploradas, a partir de uma perspectiva essencialmente crítica, parece ser o caminho rumo a uma educação integrada, ou seja, aquela que participe de forma mais efetiva e coerente — temporal e espacialmente — da vida de crianças e jovens que frequentam a escola pública. Ainda que sem idealismos ou prescrições, este trabalho também não mostrou impossibilidades insuperáveis a um tipo de educação escolar que abra caminho para a superação democrática das incompatibilidades dos modos de socialização e dos preconceitos instalados e reforçados pela dinâmica do quase-mercado escolar.

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1O Programme for International Student Assessment(Pisa) —Programa Internacional de Avaliação de Estudantes —é uma iniciativa de avaliação comparada, aplicada a estudantes na faixa dos 15 anos, idade em que se pressupõe o términoda escolaridade básica obrigatória na maioria dos países.

2O nome atribuído à escola (E. M. Chad Goblin) é fictício.

3Dados do censo de 2010 e do censo escolar de 2012, disponíveis para consulta em http//www.ibge.com.br.

4Em fins de Marçode 2010, foi inaugurado um “anexo” da Escola Chad Goblin, funcionando no centro da cidade, em um prédio alugado pela prefeitura. Segundo o diretor da unidade, foi a solução encontrada para dar conta da alta demanda por matrículas.

55 “ESCOLA CHAD GOBLIN, ORGULHO DA EDUCAÇÃO, 18º LUGAREM TODO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, classificação no IDEB”, eram os dizeres do pequeno lembrete, impresso em uma folha A4.

66 Fonte: www.QEdu.org.br. Dados do IDEB/Inep (2011). Organizado por Meritt (2014), acessado em 2 de março de 2015.

7A pontuação máxima nesse caso foi 1,0.

Recebido: 09 de Abril de 2015; Aceito: 23 de Julho de 2018

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