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Revista Educação e Cultura Contemporânea

versão impressa ISSN 1807-2194versão On-line ISSN 2238-1279

Rev. Educ. e Cult. Contemp. vol.15 no.41 Rio de Janeiro out./dez 2018  Epub 15-Out-2018

https://doi.org/10.5935/2238-1279.20180068 

Artigos

Formação de professores para a educação básica: tensão entre limites e possibilidades

Training of teachers for basic education: tension between limits and possibilities

Maria Carmen Silveira Barbosa1 

Sandra Simonis Richter2 

1UFRGS

2UNISC


Resumo

Este ensaio aborda a relação entre a formação de professores para a Educação Básica e distintos conceitos filosóficos que atuam como intercessores nos discursos e na abertura à possibilidade de promover fissuras nos modos hegemônicos de compreender e realizar a formação inicial de professores. A interlocução com Hannah Arendt, Paul Ricoeur, Martha Nussbaum e Gert Biesta permite atualizar a compreensão de formação humana como atitude encarnada em percursos coletivos e singulares; recolocar proposições que buscam superar a oscilação de ênfase na teoria ou na prática; sustentar que a docência exige “tornar-se presença” por ser uma profissão relacional; considerar a política e a ética como vida vivida e significada na própria experiência formativa no ensino superior desde o encontro com a alteridade, o reconhecimento da diversidade e a responsabilidade com os outros pelo mundo comum. A conclusão aponta que a formação de professores dirigida para a atuação educacional com bebês, crianças e jovens poderia adquirir novos contornos a partir da tensão entre ideologia e utopia como criação de outro imaginário pedagógico comprometido tanto com a retomada da força conceitual e integradora da escola, em sua dimensão de espaço social da esfera pública, quanto com a responsabilidade criadora de imaginar contextos de vida e de experiência educacional materializados no agir docente.

Palavras-Chave: Formação de Professores; Educação Básica; Formação inicial; Imaginário pedagógico.

ABSTRACT

This essay deals with the relationship between teacher education for Basic Education and different philosophical concepts that act as intercessors in discourses and in the openness to the possibility of promoting fissures in the hegemonic ways of understanding and realizing the initial formation of teachers. The interlocution with Hannah Arendt, Paul Ricoeur, Martha Nussbaum and Gert Biesta allows to update the understanding of human formation as an embodied attitude in collective and singular paths; to reposition propositions that seek to overcome the oscillation of emphasis in theory or practice; to maintain that teaching requires "becoming a presence" because it is a relational profession; to consider politics and ethics as lived and meaningful life in the formative experience itself in the higher education since the encounter with the alterity, the recognition of the diversity and the responsibility with the others by the common world. The conclusion is that teacher training directed to the educational activity with infants, children and young people could acquire new contours from the tension between ideology and utopia as creation of another pedagogical imaginary committed both to the resumption of conceptual and integrative strength of the school, in its dimension of social space of the public sphere, as well as with the creative responsibility of imagining contexts of life and educational experience materialized in the teaching action.

Key words: Teacher training; Basic education; Initial formation; Educational imaginary

Formação docente: entre limites e possibilidades

Quando o tema de discussão gravita em torno da formação de professores para a Educação Básica no Brasil é impossível desconsiderar que, se no país os sistemas educacionais estatais emergiram na virada do século XX, o processo de expansão da escolarização primária foi lentamente desencadeado apenas em meados do mesmo século. Em termos de ampliação efetiva da oferta de vagas e da ampla cobertura em rede pública, essa expansão ocorreu somente a partir dos anos 1980. Nesse percurso histórico, a expectativa de universalização ou movimento de consolidação ao direito de matrícula na educação básica brasileira é muito recente.

Por outro lado, não há como desconsiderar que esse movimento de universalização do acesso à educação básica acarretou transformações na comunidade estudantil brasileira ao torná-la muito mais heterogênea em suas configurações. Nos últimos anos, as escolas passaram a conviver de modo mais intenso com as contradições da diversidade e dos conflitos no interior de seus muros, assim como amplificaram uma gama de problemas comuns às sociedades desiguais e competitivas.

Ambas as considerações permitem constatar que o problema da “formação docente” no ensino superior é muito recente no país e que vários fatores interagem na configuração da complexidade dos desafios para aqueles que assumem essa responsabilidade. Gatti e Barreto (2009) sintetizam a relação entre expansão da oferta, transformações sociais e política de formação docente no ensino superior ao escreverem que

De um lado, temos a expansão da oferta de educação básica e os esforços de inclusão social, com a cobertura de segmentos sociais até recentemente pouco representados no atendimento escolar oferecido nas diversas regiões do país, provocando a demanda por um maior contingente de professores, em todos os níveis do processo de escolarização. De outro, as urgências colocadas pelas transformações sociais que atingem os diversos âmbitos da atividade humana e penetram os muros da escola, pressionando por concepções e práticas educativas que possam contribuir significativamente para a construção de uma sociedade mais justa, democrática e moderna. No quadro de fundo, um país com grandes heterogeneidades regionais e locais, e, hoje, com uma legislação que estabelece a formação em nível superior como condição de exercício do magistério, num cenário em que a qualidade do ensino superior também está posta em questão (GATTI, BARRETO, 2009, p. 12).

Atender a demanda do imenso universo de bebês, crianças, jovens e adultos por vagas em escolas no Brasil exige considerar, com as autoras, a crescente necessidade de profissionais aliada à necessidade de considerar a especificidade e a contemporaneidade dessa formação. Consideramos importante acrescentar às questões acima destacadas, a inversão na dinâmica escolar em relação a sua função na difusão da informação. Nas sociedades contemporâneas, a escola deixa de ser o centro distribuidor de informações ao ser substituído pela onipresença das tecnologias de comunicação. Cabe hoje à escola de Educação Básica estabelecer espaços de diálogo que permitam situar as informações e constituir modos interativos de reflexão, assim como temporalidades que detenham a diluição e a rapidez que submetem os percursos singulares de aprendizagens na comunidade escolar.

A formação docente no país já apresentou várias modalidades configuradas desde o magistério em curso ginasial e secundário, as licenciaturas curtas e os bacharelados adaptados à prática docente até as licenciaturas plenas definidas pela LDB 9394/96 que, em período muito curto de tempo, deslocou o lócus de formação docente no país inteiramente para o ensino superior. Essas mudanças, de amplas consequências, realizadas muito rapidamente, suscitam indagações que dizem respeito à possibilidade de os novos cursos superiores cobrirem as vastas áreas do território nacional nas quais, há bem pouco tempo, mal chegavam os cursos de nível médio, mesmo se consideramos a ocorrência no país de um processo intenso de interiorização e de oferta de diferentes modalidades de ensino pelas instituições de ensino superior, tanto públicas quanto privadas. Como a formação de professores em cursos condensados em férias ou finais de semana, ou mesmo aqueles em complementação à ação pedagógica já existente, como o PARFOR, podem garantir o necessário compromisso com as exigências da ação docente? Como uma concepção política de formação de professores para a Educação Básica assume o compromisso público, cidadão, com a pluralidade e a singularidade dos educandos? São interrogações que agregam outras se consideramos a expansão da modalidade do ensino à distância na oferta de cursos de licenciaturas.

Com a expansão da modalidade à distância, muitos cursos que exercem plena função de formação humana passam a ser realizados sob a forma instrumental de leituras individuais, respostas a perguntas com uma única resposta certa, debates síncronos ou assíncronos, redes sociais. Como podemos aprender a pensar, a estudar, a ler e a escrever, a ensinar, senão em diálogo, em ação e relação com outros aprendendo a pensar, a estudar? Aprendendo com e em interação com um grupo que nos situa e nos significa?

Destacar algumas interrogações a esse cenário de mudanças no sistema educativo não significa, de modo algum, renegar a democratização do acesso. Antes é reconhecer que novos fatores vêm alterando radicalmente as relações de força na educação brasileira, os quais tornam as ações formativas nas escolas, em geral, e nas instituições de ensino superior, em especial, mais explicitamente problemáticas. As alternativas para viabilizar a demanda pela formação docente no ensino superior, assim como a alteração da modalidade presencial para a modalidade virtual, promoveram o deslocamento da ideia de formação como movimento entre o próximo e o distante, o presente e o futuro, o existente e o inexistente para a ideia de formação como presente realista, pragmático e isento de ingenuidades utópicas. Um desencanto pelo mundo que coloca em questão a própria ideia de realidade (UNGER, 2001). O que está em jogo é o entendimento de realismo como aderência ao já conhecido. O já sabido é o campo da objetividade e da praticidade, do passível de ser calculado em resultados previamente planejados, do que é passível de se tornar instrumento para viver e coexistir. O que aí está posto é a concepção de formação docente como formação de mão de obra especializada para o processo de escolarização como ele existe, como ele sempre existiu. Como diria Nelson Rodrigues: a vida como ela é.

Porém, cabe reafirmar, os lugares e os modelos de produção do conhecimento alteram-se. Os conhecimentos se transformam, são voláteis, sofrem contestações, caducam e são substituídos pela perda de significado social e profissional, mas também pelo impacto das políticas de financiamento e de prestígio social e acadêmico. São questões que, no campo das licenciaturas, têm oscilado entre três discursos: os conteudistas, os culturalistas e os instrumentais.

Nos discursos conteudistas, o jovem professor é concebido como aquele que necessita apropriar-se de conhecimentos científicos de modo aprofundado e a distinção entre os cursos de licenciatura ocorre apenas pela opção de qual campo do conhecimento está a sua ênfase de aprendiz. Nas licenciaturas, em geral, os conhecimentos de sua área ou disciplina de escolha são considerados os mais relevantes. Apesar dos recorrentes e acirrados debates entre bacharelados e respectivas licenciaturas, as instituições de ensino superior tendem a priorizar na formação de professores o perfil de um especialista que aplica com rigor, na sua prática cotidiana, as regras que derivam do conhecimento científico. A formação pedagógica é aligeirada e complementar ao curso. O que apenas mantém a fórmula “Três mais um”, praticamente inalterada desde 1930, quando ocorreu a regulamentação da formação de docentes para a Escola Secundária brasileira, nas antigas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, e foi adotado o modelo de racionalidade técnica que envolve a aprendizagem de três anos das disciplinas de conteúdo cientifico e acadêmico, sem discussão epistemológica ou didática, e um ano para as de natureza pedagógica – teórico e prática.

Nos discursos culturalistas, na mesma chave, permitem encontrar a defesa da perspectiva de uma formação ampliada, com conhecimentos gerais, temáticas abrangentes da atualidade, como as realidades sociais, das comunidades e das famílias, as culturas infantis e juvenis, os usos da tecnologia e outros temas de grande importância, porém pouco receptiva à compreensão de práticas docentes, à consideração das discussões sobre/da/nas escolas, às questões didáticas e pedagógicas aí implicadas.

Ambas as pedagogias consideram que a tarefa universitária passa principalmente pela formação acadêmica realizada pela ênfase na dimensão teórica e na aplicação dos conhecimentos transmitidos. Os currículos para a formação de professores da Educação Básica sustentam-se na concepção de ação pedagógica como mera ação de aplicação prática de conhecimentos teóricos, sem um estatuto pedagógico próprio à docência. Ou então, têm se pautado em discursos instrumentais, aqueles currículos que oferecem aos licenciados a instrumentalização dos conhecimentos específicos da área ou da disciplina, ou seja, os apresentam sob forma de conteúdos vinculados às estratégias e às tecnologias de sistematização de informações. Essa polarização em blocos antagônicos, os quais disputam poder e reconhecimento, tem promovido pouco espaço para a escuta dos alunos ingressantes, dos egressos, das escolas e dos professores.

A constituição de um muro entre essas posições tem nos levado a fazer uma “escolha de Sofia”, isto é, tem nos conduzido a optar por um lado e, portanto, a excluir elementos extremamente importantes na formação dos professores, pois cada uma das posições, visando a detenção do poder no campo da formação, prioriza e isola o seu discurso ao ignorar justamente a dimensão pedagógica, aquela que permite colocá-las em estreita relação.

Nosso questionamento tende a re-delinear essa relação entre especificidade do conhecimento científico, abordagem cultural e instrumental com o intuito de reconstituir outros modos de pensar a formação de professores ao formularmos outras perguntas que permitam criar uma infiltração, fender o muro que separa essas posições e promover abertura ao diálogo entre dimensão pedagógica, currículos, professores em formação e escolas. Se do ponto de vista econômico essas grandes divisões fazem sentido para demarcar pontos mais a leste ou a oeste de uma convicção educativa, consideramos que tanto um quanto outros têm sido simplificadores e excludentes na constituição de alternativas que considerem a especificidade da formação pedagógica.

Quando, por exemplo, Nussbaum (2017) estabelece a divisão entre uma educação humanista para a democracia em contraposição a uma educação a serviço do mercado de consumo e do lucro, sabemos que há um imenso sentido de realidade nessa afirmativa. Porém, também podemos compreender que as humanidades estão presentes na economia, no direito, na ciência e na tecnologia e, concomitantemente, presentes no mercado de consumo, isto é, também as humanidades sustentam as relações econômicas. Podemos compreender por humanidades todas as ações que elaboram sentidos da experiência humana a partir de problemas comuns atravessados por linguagens, práticas e capacidades diversas. Se as simplificações têm nos facilitado tomar posições e assumir convicções, ela é frágil e falha muitas vezes na possibilidade de assumir a responsabilidade por compreender as condições e as contradições que nos colocam diante das problemáticas que envolvem a coexistência no mundo comum.

Os modelos atuais não dão conta de uma formação pautada na escuta dos novos alunos, nas suas perguntas sobre a escola e suas transformações, nas suas convicções sobre o ato de educar e nas suas dúvidas sobre a função docente. Uma formação muito mais potente, encarnada, e socialmente justa com os futuros professores e seus alunos, poderia ser aquela que permitisse ampliar a formulação de perguntas pautadas pela instituição escolar como espaço público de partilha de um mundo comum.

Torna-se, então, pertinente indagar se as universidades estão preparadas para responder às demandas contraditórias e muitas vezes conflitantes das rápidas e radicais transformações promovidas pelo contexto nacional e internacional. Se teriam como resistir ao deslizamento de valores ligados ao conhecimento, à liberdade e ao bem social para valores ligados à informação, ao mercado e ao lucro (NUSSBAUM, 2010). Ou ainda, se poderíamos forçar uma posição que exija a discussão do compromisso com a formação humana na formação docente com o intuito de não mais sustentar as oposições binárias que impedem a articulação de outros modos de pensar a escola e à docência. Sem o acolhimento às questões que os novos professores elaboram sobre sua formação, sobre o ato de educar, sobre a escola como tempo e espaço de vida coletiva e o exercício da docência como mediação entre mundos, dificilmente sairemos desse impasse.

Nossa hipótese é que a formação docente dos alunos das licenciaturas, cada vez mais jovens, isto é em período pleno de autoformação, poderiam ter como foco refletir e agir no espaço universitário de heteroformação como percurso existencial de compreensão dos modos como se formou e como está a se formar para, num exercício de translação, formar ao(s) outro(s). Isto é, constituir uma experiência formativa na universidade, no campo da formação docente, que resista ao modelo do ensino para a aprendizagem, do pensamento apenas como experiência “interior” individualizada, da racionalidade desencarnada, da exigência do disciplinamento e da aplicação de saberes. Uma resistência sustentada na compreensão da docência como capacidade transformativa de agir no mundo, da formação intersubjetiva como corresponsabilidade pela cidadania a partir da concepção de educação como bem-comum e elo de ligação entre humano e mundano.

Diante da cisão entre os três discursos, a interrogação que permanece é como formar professores jovens e adultos sem que tenham a experiência reflexiva com parâmetros abertos, com profissionais experientes para que possam constituir sua imagem docente a partir da autocompreensão, da reflexão íntima de seus processos formativos e sua potência social e cultural. Uma formação docente constituída no exercício de aprender a estabelecer a mediação entre conhecimentos e relações com o(s) outro(s) nas escolas em direção a um propósito comum. Será possível educar novos humanos sem o desenvolvimento de um conceito de formação, de ação como intervenção no real, num projeto de amor ao mundo e constituição de um mundo em comum?

Para enfrentar tais questões, propomos quatro pautas estabelecidas na interlocução com Hannah Arendt (2014), Paul Ricoeur (2009), Martha Nussbaum (2010) e Gert Biesta (2008; 2013). Quatro pontos de reflexão que se articulam filosoficamente para afirmar a formação docente como ação política e ética que exige considerar a concepção de formação humana, a integração entre teoria e prática, a presença e a participação como condição para a ação pedagógica. Uma formação docente sustentada na coexistência e significada na experiência educativa da vida vivida no ensino superior desde o encontro com a alteridade, o reconhecimento da diversidade e a corresponsabilidade pelo mundo comum.

Atualização da concepção de formação humana

A primeira pauta destaca a relevância educacional de atualizar, na discussão das licenciaturas, a ideia de formação humana na perspectiva da vida comum ao permitir recolocar a questão da formação pedagógica como percurso singular humano, intimamente atravessado pelo inumano, no contexto contemporâneo de um planeta em perigo.

Está cada vez mais difícil propor ou assumir uma reflexão em torno da tarefa educacional de preparação profissional daquele ou daquela que participará da “formação humana” de crianças e jovens que viverão o século XXI, mais adiante de nós. A dificuldade está em como podemos compreender a problemática relação entre a perspectiva da autoformação humana, aquela que acontece na singularidade da existência em um mundo de pluralidade e diferença, e as concepções de “formação”, “humano” e de “humanismo” (GADAMER, 2005; SLOTERDIJK, 2003; BIESTA, 2013, 2008), amplamente contestadas a partir dos acontecimentos evidenciados no início do século XXI.

Rever os sentidos da formação humana pode apontar algumas perspectivas para a formação docente. Recolocar o problema nos parece imprescindível pois, como afirma Biesta (2013), as palavras vão cristalizando significados. De modo crescente, a partir do ponto de vista da globalização neoliberal da segunda metade do século XX, as concepções de formação vinculam-se às ideias de capacidade técnico-profissional para a competividade, o empreendedorismo individual, a inovação tecnológica, o acesso à informação e o enriquecimento das empresas.

Enfrentar a complexidade dos desafios contemporâneos postos à formação docente a partir do conceito de formação humana oferecido pela tradição do pensamento ocidental pode tornar-se empreendimento altamente duvidoso se não forem consideradas as críticas ao conteúdo universal e totalizante de tal conceito. Conteúdo metafísico que historicamente ressoa um sentido universal – uma formulação para a essência ou universalidade de uma ideia de formação e de humano – que nos faz recuar na história desse conceito até encontrar sua origem mística na Idade Média, a qual sobrevive na determinação fundamental do século XIX como “formação que eleva à humanidade” (GADAMER, 2005, p. 45).

Hegel (1770-1831) formula o que sua época compreendia por formação: “a essência universal da formação humana é tornar-se um ser espiritual, no sentido universal. Quem se entrega à particularidade é inculto, é o caso de quem cede a uma ira cega sem medida nem postura” (GADAMER, 2005, p. 47). O termo “formação” assume o sentido de algo mais elevado e mais íntimo ao dizer respeito ao modo de perceber que vem do conhecimento e do sentimento do conjunto do empenho espiritual e moral, e que se expande harmoniosamente na sensibilidade e no caráter.

Como fenômeno educativo a que os gregos chamaram de Paidéia; o idealismo alemão denominou Bildung e nós designamos formação, apesar de usual e muito difundida, se presta a muitos equívocos por se tratar de um conceito operativo. Isto é, conforme a interpretamos, muda nossa concepção sobre a realidade, pois o que entendemos por formar e/ou educar se expressa em ações e a tarefa de elucidá-las emerge da própria situação vivida. Nesse sentido, diferentes conceitos de formação produzem distintas estratégias nas ações educativas.

São conceitos difíceis de sustentar quando constatamos, sem muita dificuldade, que não há hoje consensos em torno da concepção de “formação” e muito menos de “humano”. Progressivamente, se diluem os clássicos conceitos humanistas de formação integral, crítica e criativa, pautada na “elevação cultural” e no fortalecimento da democracia e de seus valores fundamentais de bem-estar coletivo, equidade e justiça social (NUSSBAUM, 2010).

Quanto à ideia de “humanismo”, o problema está na prévia definição do que consistiria essa humanidade do “homem”. Na tradição do pensamento moderno europeu encontramos apenas uma única forma de humanidade, por exemplo, a ideia kantiana de autonomia racional, a qual não apenas exclui modos de ser humano, mas também define modos de ser humano antes mesmo que outros modos se manifestem (BIESTA, 2008; 2013). Que as humanidades estejam hoje em transição significa que o sentido do humano está em disputa.

Pensar o humano é pensar os sentidos que lhe atribuímos. Portanto, torna-se difícil submeter concepções de “humano” à univocidade de enunciados sem lhe extirpar aquilo que justamente o especifica: a potência de sua autocompreensão e autocriação, de sua incompletude, de sua permanente possibilidade de conversar, recompor e narrar experiências. Se é necessária a crítica ao humanismo histórico e seus modelos universais, também é necessário não apagarmos em nós a capacidade de nos vincularmos ao fundo comum da experiência humana. Esse fundo comum remete à potência humana de compartilhar experiências fundamentais da vida como a morte, o amor, o medo, o sentido da dignidade e da justiça, o cuidado. Por isso, a reflexão educacional enfrenta a impossibilidade de pretender estabelecer nítidas fronteiras entre transmissão e instrução, pois, ao final, somos o que nos tornamos a partir da singularidade que forjamos naquilo que outros nos oferecem para viver e pensar (CERTEAU, 2012).

Nessa perspectiva, o que é irrevogável na ideia de formação, ou o que nela não se pode apagar ou anular, é a liberdade da experiência de autoeducação ou autocriação no coletivo, isto é, o fato de que cada um se constitui a si mesmo num vínculo com o mundo e com os não humanos (ARENDT, 2014; GADAMER, 2000). Na singularidade desse vínculo, também está presente o momento não controlável da experiência educativa. O que escapa é o cerne da educação como experiência única de coexistência. Cada humano, em sua condição de singular absoluto, cria seu modo próprio de coexistir na pluralidade do mundo comum, ou seja, de agir no público como o que pertence a todos, simultaneamente iguais e diferentes (ARENDT, 2014).

Assim, na contemporaneidade, de uma compreensão constituída no pensamento ocidental de educação como formação humana, universal e essencialista, passamos à possibilidade de pensar a ação educativa como experiência de produzir mundos com outros. Ao transmitirmos o que aí já está – corpo, língua, lugar – também transmitimos as possibilidades de emergência do novo contidas em um corpo, em uma língua, em um lugar (BÁRCENA, 2012). Em outras palavras, as opções em torno de qual formação docente exigem das licenciaturas redefinirem os sentidos da formação e sua relação com os saberes de nosso tempo. Que saberes e que ações culturais necessitamos elaborar e compartilhar para buscar tecer o vivível no conjunto do planeta? Pode parecer uma questão ingênua, mas quando o pensamento educacional perde o vínculo com esta questão se converte em mera gestão técnica de um conjunto de conteúdos e de procedimentos, um abandono da vida a uma gestão econômica da inteligência, dos vínculos e das emoções.

Superação e integração da polaridade teoria e prática

A segunda pauta destaca a importância educativa da resistência à redutora tendência de manter polarizada a relação entre teoria e prática. A oscilação é dada pela cisão entre uma formação docente pautada no aprofundamento científico dos estudos a serem posteriormente aplicados na escola, considerada a “verdadeira” pois exercita a cognição, e uma formação técnica fragilizada como a “falsa”, pois apenas opera manualidades, instrumentos e materialidades. A teoria frente à prática declara sua livre relação com a verdade ao estabelecer como critério ser um fim em si mesma, pois não pode estar subordinada a nenhum outro interesse nem influência. Esta condição, entretanto, converte-se em condenação de esterilidade quando o discurso teórico se isola de sua relação com a ação transformadora da vida e do mundo. Sua separação, torna-se sua neutralização (GARCÈS, 2015).

Por outro lado, a atual saturação informativa e seus correspondentes saberes se apresentam cada vez mais segmentados em especializações. As práticas das diversas disciplinas se autonomizam entre si e trazem como consequência saberes apenas de uma e ignorância radical das noções fundamentais das demais. A especialização, cada vez mais exigente, permanece em mãos de muito poucos enquanto que o que se produz, em geral, é uma pulverização de saberes e de públicos, tanto no mercado quanto na academia. Frente à proliferação acadêmica e mediática de conhecimentos fragmentados, os quais neutralizam nossa atenção e nos distanciam da relação entre distintas ciências e artes, conhecimentos e saberes atuais, como podemos estabelecer relações entre a teoria e a prática, entre o pensamento e a vida? A aproximação entre saberes e decisões se anuncia urgente hoje para superar barreiras e buscar respostas a problemas comuns.

Se as práticas informam as teorias, são as teorias que orientam as práticas. Há aí uma fecunda circularidade que nega a oposição entre uma e outra, pois reflexão e técnica são lados da mesma moeda na formação de professores. Para Bernard Charlot (1996), a oposição entre teoria e prática é falsa porque aquele que fala em nome de sua prática efetivamente “fala” e, ao falar, está teorizando. O que há é uma prática que se diz nos discursos, e que implica teoria. Para o autor, somente quando os professores se permitem o prazer da atividade intelectual deixam de opor teoria e prática.

A universidade, como instituição formadora, se preocupa com a preparação para o exercício de atividades profissionais desde suas origens medievais. Portanto, desde o início a universidade esteve comprometida com a sociedade, com a produção da ciência e das tecnologias. Não é algo ilegítimo. A existência da relação técnica com a empresa não garante a perda de autonomia do pensamento, como se um constituísse a condição de outro. Nos encontramos justamente na tensão de uma abertura à experimentação de outras aproximações entre saberes e conhecimentos, sempre com a atenção exposta ao que os problemas de nosso tempo nos exigem pensar e realizar, e não na fronteira linear das oposições excludentes. Fronteira que impõe obstáculos à possibilidade de falar da pluralidade do mundo desde a potência da imaginação e da experimentação prática como busca e formalização, conjetura e verificação.

Na contemporaneidade, não é difícil constatar que a preocupação com a aplicabilidade do conhecimento científico tem se amplificado pelo crescente interesse – ou insistência – das políticas educacionais em repensar o ensino superior a partir da lógica da resposta às necessidades (quantitativas e qualitativas) da economia e do mercado de trabalho. Cada vez mais acompanhamos a tendência contemporânea das instituições de ensino superior se sujeitarem ao domínio dos procedimentos, dos aplicativos e das metodologias exigidas pelo mercado, restringindo tanto o sentido da prática à ideia de utilidade quanto o sentido de teoria à ideia de acesso ao conhecimento científico. Nas palavras de Marina Garcès (2015), em sua resistência à asfixia do pensamento na universidade e defesa da filosofia como prática educativa, “a teoria e a prática se separaram, a criação e a análise se distanciaram, o pessoal e o coletivo se isolaram e as ciências se autonomizaram” (GARCÈS, 2015, p. 19).

A tendência de reduzir a educação básica a processos utilitários não configura uma mudança isolada na política educacional brasileira, mas se insere no panorama internacional, sendo, em certa medida, seu reflexo. Porém, essa ênfase ou mudança nas políticas educacionais não é uma questão que possamos enfrentar sem nos determos minimamente na concepção do termo ou da ideia de formação.

A pergunta pelo sentido da “formação docente” implica assumir que toda resposta é histórica, pois cada possível resposta é uma possível renovação política do pensamento pedagógico que revitaliza outros modos de compreender e conviver no mundo comum. Respostas que implicam a responsabilidade pelas escolhas de mundo futuro. Por isso, “envolver-se em relações educacionais, ser um professor ou ser um educador, implica a responsabilidade por alguma coisa (ou melhor, por alguém) que não conhecemos e não podemos conhecer” (BIESTA, 2013, p. 51, grifos do autor).

Para Gauthier (1999, p. 24), “[...] cada dispositivo do olhar e da observação modifica o objeto de estudo [...] por isso, nunca estudamos um objeto neutro, mas sempre um objeto implicado, caracterizado pela teoria e pelo dispositivo que permite vê-lo, observá-lo e conhecê-lo”. Nessa compreensão, os significados conceituais são importantes formulações discursivas para a reflexão das ações docentes, pois permitem organizá-las pelo pensamento sistematizado. Ou seja, um olhar e uma escuta mais atentos à circularidade entre teoria e prática, entre o que pensamos e como fazemos, como escrevemos e como narramos, constitui o mais significativo objetivo do processo educacional.

Tornar-se presença como condição da ação pedagógica

A terceira pauta destaca a exigência na formação docente das dimensões sociais e éticas de “tornar-se presença”, as quais só podem ocorrer entre humanos e inumanos em situação, pois o magistério é um exercício profissional relacional. Isto é, “só podemos nos tornar presença num mundo povoado por outros que não são como nós, um mundo de pluralidade e diferença” (BIESTA, 2013, p. 27).

Uma importante questão nos debates da formação de professores é a considerável, ou crescente, tendência das faculdades e universidades ampliarem a oferta de formação em licenciaturas na modalidade à distância. Custos baixos, menor tempo de deslocamentos entre casa, trabalho e estudos, possibilidade de estudar e, ao mesmo tempo, estar em casa com os familiares – condição extremamente importante para estudantes que tem dependentes. Da mesma forma, essa oferta é muito oportuna para professores em exercício, especialmente aqueles que não tiveram condições de formação no ensino superior, e que almejam salários mais dignos.

Cada vez mais as universidades públicas e comunitárias constatam tanto a redução nas matrículas em seus cursos de licenciaturas pela diminuição da demanda quanto a permanência daqueles estudantes que irão fazer parte da elite do magistério, pois tem condições de vida que possibilitam a experiência da formação presencial, muitas vezes diurna. Esse deslocamento de uma formação presencial, em comunidade, para uma experiência individual de aprendizagem, calcada na relação com a escrita e a máquina, desloca a experiência relacional que especifica a formação docente.

Biesta (2017, p.141), ao abordar a formação docente, sublinha que muitos documentos têm sido publicados induzindo a grandes reformas na formação inicial dos professores ou em suas formações continuadas. Nessa perspectiva duas possibilidades de compreensão de formação docente estão colocados como as opções mais viáveis: por um lado a tradição norte-americana de formar a partir das evidências, perspectiva centrada em fatos, na procura da causalidade entre os processos de entrada e de saída e na obrigatoriedade do professor de cumprir pautas normativas que destituem de importância a singularidade dos valores implicados no ato pedagógico, a centralidade da reflexão docente e a responsabilidade pelo julgamento e tomada de decisões pelos professores.

Por outro lado, temos o discurso das competências, de origem europeia, no qual o papel do professor volta a ter centralidade, porém é definido minuciosamente em suas ações, consideradas neutras, negando a imprevisibilidade dos contextos no ato educativo e deixando o professor cativo de um modo único de ser profissional da educação e realizar sua tarefa educativa (MASSCHELAIN, SIMONS, 2013). Como afirma Biesta (2017), a redução das discussões de formação de professores a estes dois discursos, muito intrinsecamente semelhantes, levam a um empobrecimento das possibilidades de pensar a formação docente ao diminuírem a diversidades de modos de propor ações educativas. O discurso das competências vem hegemonizando o campo da educação no Brasil, especialmente a partir da publicação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) que encaminha a formação nessa direção.

Ambos os discursos, da evidência e da competência, apresentam obstáculos para situar a docência como formação pessoal em contexto de liberdade, de intersubjetividade, de responsabilidade, autoconhecimento, amor e cuidado com o mundo, a qual permite a constituição de uma pluralidade de consciência(s) (GARCÈS, 2013, p.130). Uma formação que possibilita aos professores se tornarem capazes de dizerem: “eu falo”, a qual subentende o “eu faço, eu penso, eu sou” (LÉVINAS, 1993, p. 16), ou ainda o “eu posso” (MERLEAU-PONTY, 1991). Uma formação docente que permite tornar-se capaz de tomar decisões justas relativas ao contexto educacional e à formação humana.

Há um componente ético na formação dos profissionais que se dedicam ao cuidado que precisa ser tomado como responsabilidade formativa das licenciaturas. Biesta (2013, p.66) busca o conceito de presença na obra de Lévinas procurando afirmar a necessidade de o professor ser e “tornar-se presença” para o Outro, estudante. Tanto no que se refere ao professor universitário com relação ao jovem licenciando, quanto ao professor em relação aos jovens e as crianças na escola. Quem existe ali? Alguém. Não um eu substancial, mas um nós, um eu que inicia algo no mundo junto com outros, como diria Hannah Arendt (2014).

Só podemos nos tornar presença naquelas situações em que agimos sobre seres que são capazes de suas próprias ações. Tornar-se presença (...) implica assim vir a um mundo povoado por outros iniciadores, um mundo de pluralidade e diferença. (...) só podemos agir se ao mesmo tempo outros também podem agir, isto é, se outros são igualmente capazes de introduzir seus inícios no mundo (BIESTA, 2013, p.74).

Estar no mundo com outros possibilita interromper a “normalidade” do mundo pela inserção de uma diferença a ser compartilhada. Estar ao lado, fazer uma pergunta, mostrar uma imagem, indicar uma leitura é provocar uma experiência estésica ou estética que toca o outro e o impele a sair da anestesia da sociedade contemporânea.

Gumbrecht assegura que a palavra "presença" não se refere (pelo menos, não principalmente) a uma relação temporal. Antes, ela refere-se a uma relação espacial com o mundo e seus objetos. Uma coisa "presente" deve ser tangível por mãos humanas - o que implica, inversamente, que pode ter impacto imediato em corpos humanos. A produção de presença" aponta para todos os tipos de eventos e processos nos quais se inicia ou se intensifica o impacto dos objetos "presentes" sobre corpos humanos (2010, p.13). Produzir presença na relação com o outro, como também afirma Ramoa (2017), é relação, é constituir ou configurar situações que envolvam os sujeitos em atos de intensidade nos quais corpo, emoção e cognição sejam acionados. Desamortizar o corpo e atingir a sensibilidade provoca mudanças.

Se alguma coisa nos anima a educar é a possibilidade de que esse ato de educação, essa experiência em gestos, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos, para ser outra coisa para além do estamos sendo (BIESTA, 2013). Estar com os outros, tornar-se presença em si e para o outro aponta para o insubstituível exercício relacional da formação docente.

Participação na construção do mundo comum

A quarta pauta destaca a relevância educacional de considerar que se na escola e na pluralidade das interações mundanas as crianças e jovens iniciam seus primeiros encontros existenciais com a diversidade e a diferença será exatamente no momento de formação docente que os jovens professores poderão compreender, do ponto de vista da formação acadêmica, a experiência de participação em uma instituição educativa. Ou seja, é no percurso de formação docente que pode compreender a sociedade na qual vive, as questões educativas que afetam a sua comunidade e enfrentar, no cotidiano acadêmico, as interações entre sua subjetividade e a dos demais.

Tal condição de participação singular e pertencimento coletivo conduz à interrogação pelo modo como fazemos “formação” e, mais especificamente “formação docente” nos cursos de licenciatura. Quais valores priorizamos nas ações formativas dos futuros docentes da educação básica? Como os relacionamos com a concepção de formação que sustenta a intenção de articular Formação Geral (conteúdos básicos e necessários) e Formação Específica (essencial e singular)? Como agimos na formação para que ela ofereça contexto e interações sociais e culturais para que os alunos se situem no mundo e por ele se responsabilizem através da formação das novas gerações?

No que concerne à formação de professores, uma verdadeira revolução nas estruturas institucionais formativas e nos currículos da formação é necessária. As emendas já são muitas. A fragmentação formativa é clara. É preciso integrar essa formação em instituições articuladas e voltadas a esse objetivo precípuo. A formação de professores não pode ser pensada a partir das ciências e seus diversos campos disciplinares, como adendo destas áreas (...) A forte tradição disciplinar que marca a identidade docente entre nós, e leva os futuros professores em sua formação a se afinarem mais com as demandas provenientes da sua área específica de conhecimento do que com as demandas gerais da escola básica, leva não só as entidades profissionais como até as científicas a oporem resistências às soluções de caráter interdisciplinar para o currículo, o que já foi experimentado com sucesso em vários países. A formação de profissionais professores para a educação básica tem que partir de seu campo de prática e agregar a este os conhecimentos necessários selecionados como valorosos, em seus fundamentos e com as mediações didáticas necessárias, sobretudo por se tratar de formação para o trabalho educacional com crianças e adolescentes (GATTI, BARRETO, 2009, p. 257).

O desafio contemporâneo é fazer da universidade uma comunidade aberta às mudanças como espaço e tempo de compartilhar saberes e conhecimentos como bem público e não como vantagem individual competitiva. Criar o comum. Algo que diz respeito a todos e a cada um.

Essa discussão remete à importância de dois conceitos. A presença, acima citada, pois para formar um/a professor/a é preciso outros professores que lhes ofereçam intensidades de presença e convivência compartilhada, na vida vivida em uma instituição educativa que tem definido seu papel na defesa da educação como bem comum. Ambos sustentam a intencionalidade de constituir o campus da universidade como espaço de aprender a interpretar e dialogar, como tempo de conversar e compartilhar experiências de formação. Para tanto, os cursos – não apenas as licenciaturas – terão que aprender a compartilhar experiências de formação. A pluralidade humana favorece a unicidade em vez de destruí-la. O paradoxo está no fato de a pluralidade humana ser uma pluralidade de absolutos singulares dada pela condição de agir e de discursar e assim fazer emergir uma “teia de relações humanas” dada nos espaços de vida comum (ARENDT, 2014, p. 228).

Pertencer a um grupo de colegas na universidade pode possibilitar a politização da experiência da vida vivida. A experiência de construção do exercício da cidadania, do compromisso do amor ao mundo e sua a continuidade, pois é disso que se trata. Somente pode educar quando se tem em vista a continuidade vital do planeta e a existência de um mundo comum. Exige considerar a política e a ética como vida vivida e significada na própria experiência universitária a partir do encontro com a alteridade, com o reconhecimento da diversidade e a responsabilidade com os outros e o mundo.

Aqui, a ação é a condição de toda vida pública, pois ao agirmos mostramos quem somos e assim constituímos um espaço de visibilidade no qual, ao mesmo tempo, todos aqueles que veem são também vistos. “Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos veem e ouvem de ângulos diferentes” (ARENDT, 2014, p. 70). Ser privado desse espaço comum e público, um espaço no qual eu apareço aos outros como os outros aparecem a mim, afirma Arendt (2004, p. 211), “significa ser privado de realidade”.

Nessa perspectiva, a experiência educativa é de certo modo um gesto público: um modo de aprender a estar em diferentes espaços no mundo comum como modo de aprender sua realidade e existência como coexistência. Garcès (2013), ao analisar o contexto em que vivemos e tecer contundente crítica ao individualismo, indica que a tarefa fundamental é

reaprender a ver a realidade desde a implicação em um mundo comum. Isto não significa projetar-se em um ideal ou em um desejo abstrato de reunião da humanidade consigo mesma. Bem ao contrário. Significa dar um passo atrás com respeito relativo a distância que nos mantém como seus espectadores-consumidores do mundo e fundirnos na materialidade concreta das condições atuais de vivível e do invisível (...). Mudar o mundo não é mudar de mundo. Mudar a vida não é pensar que a verdadeira vida está em outra parte, que é sempre outra. Não há outro mundo nem outra vida. Só essa. A minha. Sem cura nem salvação. Em um só mundo que é nossa dimensão comum. (GARCÈS, 2013, p. 117).

É sair do lugar seguro da transmissão desencarnada e fazer uma ação que vá muito além daquilo que já se sabe. Agir na direção de um esboço, rumo a uma criação, uma invenção. Iniciar um exercício, um movimento, um gesto. Fazer algo que não seja apenas para prever uma consequência imediata. A docência não é como muitos gostariam, uma aplicação de soluções pré-fabricadas, mas uma ação que coloca no meio, que exige julgar e tomar decisões em ato, na potência concreta da situação.

A urgência na mudança de chave faz-se não pela moralidade do dever, mas pela vida em comum. Tangenciada pela vulnerabilidade do planeta, pela intensa precarização das vidas, pelos extremos aos quais estão sendo jogadas as vidas humanas e inumanas, e por fim, pelo desejo da continuidade do planeta e da vida das novas gerações. A educação num mundo comum é o modo de prosseguir vivendo, e os professores não podem escapar a essa ética quando decidem ser professores. Pelo contrário, estão profundamente a ela vinculados pela tarefa de junto com os jovens renovar o mundo comum (ARENDT, 2013).

Por um imaginário pedagógico que permita repensar a formação de professores para a Educação Básica

Muitas vezes, a formação docente tem sido concebida e realizada apenas no sentido de forjar melhor adequação dos estudantes às demandas do atual modelo de escolarização das crianças e jovens. Ao desconsiderarmos a historicidade dos modelos torna-se impossível deslocar conceitos chaves para pensar a formação nas licenciaturas. Em outras palavras, que constituam outra chave para pensar o desafio de formar professores para a Educação Básica no Brasil.

Ao longo desse texto procuramos exercitar um diálogo fecundo entre algumas problematizações do campo da formação com o da filosofia, sem considerar que ela possa ter as respostas, mas buscando contribuir com a ampliação de vocabulário como possibilidade transformativa de enfrentar os desafios da situação existencial e material de nosso tempo.

Finalizamos esta interlocução a partir de um texto transcrito de uma conferência ministrada por Ricoeur na Argentina. O texto inicia estabelecendo instigante relação entre ideologia e utopia para concluir sugerindo a importância da imaginação e, em nosso caso, da capacidade de constituir uma imaginação pedagógica.

Ricoeur (2009, p. 81) destaca, no início de seu texto, que a imaginação não é produção apenas individual, mas também coletiva pois possibilita “relacionar nossas expectativas orientadas para o futuro, nossas tradições herdadas do passado e nossas iniciativas no presente”. Segundo o autor, o imaginário social e cultural, e podemos complementar com o pedagógico, opera algumas vezes como ideologia e outras como utopia. Por esse motivo faz-se necessário uma retomada de ambos os conceitos. Não é nada fácil utilizar estes termos, pois ambos são polêmicos e tanto podem ser apresentados em suas positividades e negatividades, como concebidos em suas funções construtivas e destrutivas. Sintetizando a longa discussão dedicada a cada um dos termos, para o autor a ideologia pode ser pensada em três dimensões complementadas, inversamente, pelas dimensões utópicas.

Na primeira acepção de ideologia, a mais usual, é concebida como uma distorção da realidade. Esta acepção foi popularizada pelo jovem Marx, a partir da metáfora da fotografia, isto é, a visão invertida da realidade. Segundo este sentido, há primeiro uma vida real dos homens que é a sua práxis, e depois um reflexo dessa vida em sua imaginação que é a ideologia (RICOEUR, 2009, p.83). Sendo a ideologia uma deformação da vida real, a tarefa revolucionária seria trazer as ideias para o mundo da prática. É importante lembrar que no início da elaboração da teoria marxista não se apresentava a oposição entre ideologia e ciência, algo que se institui mais tarde pelos marxistas alemães. Assim, nessa primeira acepção, Ricoeur (2009) levanta importante questão que necessita ser investigada:

Se se admite que a vida real, a práxis, precede de fato e de direito a consciência e suas representações não se pode entender como a vida real pode produzir uma imagem de si mesma e, menos ainda, uma imagem invertida (RICOEUR, 2009, p.84).

Na segunda dimensão, a ideologia aparece como justificadora ou ainda legitimadora. Marx demonstra essa versão a partir da análise de que as ideias das classes dominantes, isto é, ideias que representam interesses particulares, se convertem em ideias dominantes, quase universais, para todos. Isto acontece a partir da constituição da retórica do discurso público pois a força não vence sem a persuasão já que “onde há poder, há uma reivindicação de legitimidade. E onde há reivindicação de legitimidade, se recorre a retorica do discurso público com o objetivo de persuasão” (RICOEUR, 2009, p. 86). Como essa retórica se estabelece na dimensão social? Para Ricoeur é basicamente pelo uso da metáfora, da ambiguidade, do paradoxo, entre outras figuras de linguagem, que procuram estabelecer uma forte e consistente relação entre os discursos e a ação. O discurso sustenta a legitimidade da autoridade e a dissimula. Se a ideologia procura legitimar o lugar da autoridade, também a utopia irá destinar seu olhar para o lugar onde está o poder e a autoridade e pergunta: como vai ser exercido o poder?

Por fim, temos a ideologia como integração, isto é, a seleção e a difusão de acontecimentos considerados como aqueles originários, fundadores, que se tornam constitutivos da memória social, construindo uma identidade narrativa da comunidade. A ideologia serve, desse modo, como um enlace para a memória coletiva, como um objeto de crença de todos e permite uma imagem estável, duradoura e generalizadora do real. De certa forma a função integradora da ideologia prolonga as funções de dissimulação e de legitimação. As três funções da ideologia têm um traço comum, elas constituem uma interpretação da vida real.

Para deslocar a reflexão do existente, do aqui e do agora, e transpor o debate para outra dimensão, Ricoeur (2009) estabelece a relação da ideologia com a utopia. A ideologia como perspectiva de manutenção, preserva ou conserva a realidade e a utopia questiona, problematiza, desloca o real. Uma utopia pode seguir diferentes direções, até mesmo opostas. Paradoxalmente, se a utopia por ser imaginação pode ser anúncio de abertura também pode ser de tirania, e este é o motivo de ter sido rejeitada por muitos. Se a patologia da ideologia pode ser chamada como ilusão ou dissimulação, a da utopia pode ser o desvanecimento da realidade mesma. Porém o mais importante, o que efetivamente caracteriza uma utopia, é a possibilidade de “minar, a partir de dentro, a ordem social” (RICOEUR, 2009, p.89) e constituir um imaginário de sociedade alternativa. Constituir um distanciamento entre o imaginário e o real, o estável e o mutável é a função da utopia. Para Ricoeur (2009) a utopia é o modo de projetar a imaginação para fora do real, para um lugar que é também nenhum lugar. Mas, ao mesmo tempo, é uma ucronia, um para além do tempo, uma exterioridade temporal (outro tempo). A utopia é, portanto, a

expressão das potencialidades de um grupo que se encontram reprimidas pela ordem existente. A utopia é um exercício de pensar imaginação para pensar outra maneira de ser do social. A história das utopias nos mostra que não se excluiu nenhum âmbito da vida em sociedade: a utopia e o sonho de outro modo de existência familiar, de outra forma de apropriar-se das coisas e de consumir os bens, outra maneira de organizar a vida política, outra forma de viver a vida religiosa (RICOEUR, 2009, p.89).

Nesse ensaio, seguindo os passos de Ricoeur, optamos por trazer alguns conceitos para a constituição de outro imaginário social capaz de intervir na realidade da formação inicial de professores no ensino superior. Imaginar o não tempo e o não-lugar é manter aberto o campo do possível, é considerar que “a utopia é aquilo que impede que o horizonte de expectativas se fusione com o campo da experiência. É o que mantém a distância entre a esperança e a tradição (RICOEUR, 2009, p. 91).

A investigação realizada pelo autor em torno da ideologia e da utopia, e suas relações, é pertinente ao debate em torno da formação docente pois mostra a relação complementar da tensão entre integração e subversão, entre reprodução e criação.

Parece, com efeito, que sempre temos necessidade da utopia, em sua função fundamental de impugnação e de projeção em outro lugar radical, a fim de levar a frente uma crítica igualmente radical das ideologias. Mas o recíproco também é certo. Pareceria que, a fim de curar a utopia da loucura na qual sempre se corre o risco de perder-se, temos que apelar a função saudável da ideologia e sua capacidade de proporcionar a uma comunidade histórica o equivalente do que poderíamos chamar uma identidade narrativa (RICOEUR, 2009, p. 92)

A ação formativa de docentes para a Educação Básica reúne simultaneamente grandes expectativas e grandes questionamentos. Se por um lado configura uma profissão em expansão, diante do crescimento da demanda de matrículas e das profundas mudanças na função social e política da educação de crianças e de jovens no Brasil, também enfrenta intensos debates atravessados pela revisão contemporânea dos sentidos culturais de ensinar e de aprender em uma sociedade cada vez mais voltada para a especialização técnica dos saberes e fazeres, que vem mudando aceleradamente os modos de produzir interações e conceber conhecimentos, os quais tornam necessário pensar o presente para interrogar quais as chaves para interpretar e habitar o mundo estamos alcançando aos formadores das novas gerações. Quais saberes do presente e consequentes perspectivas de atualização e renovação do já conhecido lhes oferecemos? Qual ideia sustenta ou sonha as ações de formação docente que realizamos no campus da universidade?

Reconstituir o imaginário pedagógico na formação de professores para a Educação Básica significa, seguindo as premissas levantadas nesse ensaio, reivindicar o compromisso do ensino superior, especialmente as universidades, com a constituição de uma docência que compreenda a educação como direito formativo de todos e bem comum a ser partilhado.

As quatro pautas propostas no texto tencionam limites e possibilidades para afirmar o ato de educar como condição de alargamento do vivível, como transmissão geracional que renova o mundo pela possibilidade utópica de traçar o estatuto da experiência humana desde o ponto de vista da melhoria de sua condição compartilhada. Implica renovar a compreensão da função educativa da universidade e da escola como instituições sociais que têm como desafio histórico a constituição da esfera pública e a responsabilidade de sustentar a possibilidade de efetivação do mundo comum, permanentemente reconstituído pela imaginação criadora. Tal compreensão sugere pistas para provocar outros modos de propor a formação dos jovens professores na tensão entre o componente da tradição e da renovação, das singularidades e das pluralidades, da diversidade e da diferença, na integração e subversão entre o real e o utópico.

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Recebido: 18 de Junho de 2018; Aceito: 15 de Dezembro de 2018

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