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Revista Educação e Cultura Contemporânea

versão impressa ISSN 1807-2194versão On-line ISSN 2238-1279

Rev. Educ. e Cult. Contemp. vol.15 no.41 Rio de Janeiro out./dez 2018  Epub 15-Out-2018

https://doi.org/10.5935/2238-1279.20180069 

Artigos

Práticas formativas num cenário de contradições: problematizando as questões de gênero e da deficiência

Training practices in a scenario of contradictions: problematizing gender and deficiency issues

Rosana Carla do Nascimento GivigiI 

Juliana Nascimento de AlcântaraII 

Alfrancio Ferreira DiasIII 

Helma de Melo CardosoIV 

IUniversidade Federal de Sergipe

IIUniversidade Federal de Sergipe

IIIUniversidade Federal de Sergipe

IVUniversidade Federal de Sergipe


Resumo

A escola produz um processo de aniquilamento sutil das diferenças: seja racial, gênero, étnico, entre outras. Por outro lado há uma resistência cotidiana que recusa a homogeneização, que luta pelo poder da vida num cenário de contradições. Esse artigo objetiva discutir dois cenários onde a diferença não é apaziguada e sim problematizada. O primeiro objetivou analisar como as temáticas de corpo, gênero e sexualidades estão sendo introduzidas nas práticas formativas das licenciaturas de Química e Matemática do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe- IFS/Campus Aracaju, a partir da perspectiva pós-crítica. A proposta metodológica, na mesma perspectiva, utilizou análise documental, entrevista semiestruturada e grupo focal. O segundo analisa o processo de formação de professores no Curso de Formação Continuada de Professores na Perspectiva Inclusiva, a partir da matriz histórico-cultural. O aporte metodológico foi a pesquisa-ação colaborativo-crítica e foi construído um processo de formação continuada. Os resultados de ambas as pesquisas apontam que não é possível uma síntese totalizante das diferenças; que existe um silenciamento quanto a normatização dos corpos seja em relação a sexualidade ou a deficiência; que as representações são atravessadas pelos discursos médico, biológico, religioso, que são permeados pela heteronormatividade; que existem brechas de mudanças a partir de uma formação focada na visão dialógica; que a partir da imersão teórica na articulação com as práticas criam-se potências. Por fim, afirma-se a importância da prática pedagógica dialógica, trazendo para escola múltiplas vozes, sem invisibilizadar e/ou não reconhecê-las.

Palavras-Chave: Formação Docente; Gênero; Deficiência; Pesquisa-ação colaborativo-crítica

Abstract

The school produces a process of subtle annihilation of differences: be it racial, gender, ethnic, among others. On the other hand there is a daily resistance that refuses homogenization, which fights for the power of life in a scenario of contradictions. This article aims to discuss two scenarios where the difference is not appeased but rather problematized. The first objective was to analyze how the subjects of body, gender and sexuality are being introduced in the formative practices of the Chemistry and Mathematics degrees of the Federal Institute of Education, Science and Technology of Sergipe-IFS / Campus Aracaju, from the post-critical perspective. The methodological proposal, in the same perspective, used documentary analysis, semi-structured interview and focus group. The second analyzes the process of teacher training in the Continuing Teacher Training Course in the Inclusive Perspective, based on the historical-cultural matrix. The methodological contribution was the collaborative-critical action-research and a process of continuous formation was constructed. The results of both surveys point out that a totalizing synthesis of the differences is not possible; that there is a silencing regarding the normalization of bodies in relation to sexuality or disability; that representations are crossed by medical, biological, and religious discourses that are permeated by heteronormativity; that there are gaps of change from a formation focused on the dialogical vision; that from the theoretical immersion in the articulation with the practices are created powers. Finally, the importance of the dialogic pedagogical practice is affirmed, bringing to school multiple voices, without becoming invisible and / or not recognizing them.

Key words: Teacher Training; Gender; Deficiency; Collaborative-critical action-research

Introdução

Algumas escolas, por meio de diversas práticas de subjetivação, investem na produção/reprodução de corpos generificados nas práticas escolares, silenciando as diferenças (étnicas, gênero, sexualidades, classe, geração, dentros outros marcadores) e anulando os corpos nas salas de aula (DIAS; CRUZ, 2015). Por outro lado, há uma resistência cotidiana que recusa a homogeneização, que luta pelo poder da vida num cenário de contradições. Se por um ângulo desse prisma advoga-se, no plano discursivo das políticas públicas, por uma escola amplamente aberta à "diversidade", há noutra face desse prisma um forte movimento de conservação dos velhos moldes de se pensar a escola, sua organização e funcionamento, advindo de um olhar enrijecido sobre o processo educacional, idealizando um aluno utópico, normatizado. São as práticas desta época investidas por um olhar do passado que insiste em manter-se presente mesmo em face às pressões sociais por uma ressignificação enquanto instituição fundamentalmente voltada à formação humana.

Neste trabalho, a tônica recai sobre as questões de gênero e sexualidade e sobre o campo das deficiências. Vemos ainda nas práticas escolares um caráter heteronormativo como hegemônico, o que provoca a marginalidade de identidades rompentes dessa norma. Vemos a diferença imbuída na deficiência escandalizar e produzir estigmas indesejados (SAMPAIO, 2016).

Temos visto que múltiplos sentidos de diferença povoam e disputam espaço na instituição escolar, bem como no âmbito do currículo. Embora os sujeitos no ambiente escolar incorporem muito das problemáticas provenientes da exclusão provocada pelas práticas discriminatórias em voga nas escolas, muitos enunciados disparados são dotados de concepções binárias de significar o mundo e suas relações, lógica nefasta se queremos nos comprometer com a construção de um projeto democrático de educação, de escola.

Alguns pontos nos caminhos traçados entre as questões de gênero e as questões da deficiência na escola são bastante análogos. O encontro da pessoa com deficiência com os sujeitos ditos "normais" no âmbito escolar foi marcado pela produção de estigmas indesejados e lugares marginalizados, tal qual de pessoas que "desviam" à regra no que tange ao gênero.

De acordo com Farina (2012), baseada na perspectiva inclusiva, toma-se a estigmatização como constituidora de práticas preconceituosas. Estas, por sua vez, naturalizam verdades que são socialmente construídas, influenciando nas possibilidades de vida do outro, o qual tem seus espaços de pertencimento e desenvolvimento limitados por esses estigmas que carrega consigo, historicamente alicerçados nos parâmetros de (a)normalidade. A existência desses estereótipos consiste em elementos reguladores que, socialmente construídos e compartilhados, naturalizam os enunciados e contaminam práticas discursivas. A lógica homogeneizante na qual se assenta fere os pressupostos político-ideológicos que circunscrevem espaços abertos à diferença.

Essa produção discursiva, deflagrada nas práticas escolares, foi historicamente responsável por encapsular sujeitos em suas deficiências/questões de gênero e sexualidade, oficializando o desejo de invisibilizá-los. Os sentidos e significados produzidos, então, conceberam padrões universais de ser/existir, processo este que alimentara e sustentara a exclusão. Em comum, portanto, há ainda essa contingência da valorização do discurso organicista/patologizante, que produz diagnósticos e cria roupagem de patologia, favorecendo a manutenção e perpetuação de estereótipos de (des)enquadre em detrimento de um olhar sobre os vieses culturais, completamente subalterno ao âmbito dos "determinantes" biológicos.

Assim, no processo de normalização dos corpos, atravessados pelo gênero e pelas deficiências, a escola funda-se como uma das instituições responsáveis pela manutenção de culturas hegemônicas na sociedade, local onde as normas determinam que tudo que se afasta do modelo é tomado como anormal, tudo que desvia é deslocado à margem.

A partir dessa ideia pode-se compreender como a violência é deflagrada tanto contra aqueles que tornam explícita a instabilidade de gênero, por exemplo, onde a abjeção decorre do julgamento dos corpos que rompem padrões normativos de gênero, quanto contra aqueles que possuem a marca da deficiência no corpo, no comportamento, abjetos em sua condição física/sensorial/psíquica de diferença. A linha tênue entre normalidade e anormalidade é traçada nos padrões sociais instituídos, com manutenção via práticas e discursos, e nada deve fugir à regra. A diferença, longe de ser enaltecida, configura instâncias de subalternidade, subjuga-se por olhares desqualificantes. Contudo, a condição da diferença num movimento de contra resistência é a subversão do que está posto.

Compreendendo o currículo como fluxo cultural, espaço-tempo de negociação de sentidos, em cujo cerne emergem as diferenças de forma contínua, não podendo ser estancadas ou silenciadas, acredita-se aqui que a escola pode se configurar enquanto espaço para a efervescência de transformações, embora ainda circulem nela discursos de intolerância e conservadorismo que ecoam sobre os que impõem resistência à diferença, seja ela de qualquer ordem: de gênero, deficiências, religiosidade, dentre outros.

Assim, torna-se imprescindível que se busque provocar reflexões que visem romper com concepções binárias e normatizantes, explorando os processos de subjetivação que contingencialmente o significam, tendo em vista a crença de que, apesar de secularmente a escola ter perpetuado preconceitos, ela pode gerar discussões prospectivas acerca dos sentidos atribuídos à diferença, provocando mudanças numa arena controversa. Nesse sentido, o que se profere não é o apaziguamento da diferença, mas a necessidade de problematizá-la.

Desta forma, esse artigo objetiva discutir dois cenários onde a diferença não é apaziguada e sim problematizada. O primeiro objetivou analisar como as temáticas de corpo, gênero e sexualidades estão sendo introduzidas nas práticas formativas das licenciaturas de Química e Matemática do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe- IFS/Campus Aracaju, a partir de referencial pós-crítico foucaultiano. O segundo analisa o processo de formação de professores no Curso de Formação Continuada de Professores na Perspectiva Inclusiva problematizando a diferença no âmbito da deficiência, amparado nos pressupostos da matriz histórico-cultural.

Metodologia

Natureza das pesquisas

Serão apresentados os métodos de ambas as pesquisas, didaticamente divididas em Pesquisa 1 – Pesquisa no âmbito das questões do corpo, gênero e sexualidades (CARDOSO, 2016) 1 e Pesquisa 2 – Pesquisa no âmbito das questões da deficiência (ALCÂNTARA, 2014)2.

Ambas as investigações se ampararam nos princípios da pesquisa qualitativa, pois é ela abrange "[...] valores culturais e as representações de determinado grupo sobre temas específicos" (MINAYO, 1998, p.134). De acordo com Martins e Bicudo (1989), diferentemente da pesquisa quantitativa, busca uma compreensão particular do objeto de pesquisa, e a sua atenção é focada no específico, no individual, buscando sua compreensão.

Segundo Minayo (1998), a ênfase dada à introspecção do homem, à observação de si mesmo, encontrada na sociedade atual, ressalta o método qualitativo como opção pelo homem como ator de sua própria existência, porém, sem deixar de lado o quantitativo que pode ser um elemento para compreensão do todo.

É importante pontuar, conforme aponta Cardoso (2016, p. 20), que os princípios teórico-metodológicos que sustentam tais pesquisas têm em comum o afastamento das correntes teóricas

que propagam o binarismo teoria/prática, visto que não há como dar sentido às vivências e discursos sem um corpo teórico para se ancorar, assim como, sem a prática, não se formulariam teorias. [...] Por um longo período, as pesquisas em educação tiveram a preocupação de trazer soluções, saídas e propostas para problemas, colocando-se na posição de quem tudo sabe. No entanto, existem outras formas de escrever e pesquisar, sem, necessariamente, buscar um ponto em comum, um consenso. Pode-se buscar pela problematização, pelo questionamento. Ambas são formas de se posicionar, não existe a mais correta, trata-se de escolha. Na segunda opção, admitem-se a incerteza, as dúvidas, propõe-se a superação da contradição, no lugar de "isso ou aquilo", pode-se empregar "o isso e aquilo", ou seja, experimentar a pluralidade. Além disso, busca-se abandonar as generalizações e valorizar o local e o caso particular.

Tipos de pesquisas

• Pesquisa 1

A pesquisa foi alicerçada pelos estudos de gênero pós-estruturalistas, que abandona o caráter normativo da pesquisa e que pensa os fenômenos sociais como múltiplos e heterogêneos, sem a intenção de criar teorias ou metanarrativas. Enquanto método, utilizou-se da análise documental, entrevista semiestruturada e do grupo focal.

Na teoria pós-estruturalista não se buscam por "verdades", visto que estas são apenas "regimes de verdade", ou seja, discursos que circulam na sociedade como verdadeiros (FOUCAULT, 2015). Esse pressuposto leva em consideração todos os discursos, incluindo os que serão objeto de análise e produzidos neste estudo, pois têm como objetivo construir uma versão de verdade própria. Nesta pesquisa concebeu-se a metodologia como:

[...] um certo modo de perguntar, de interrogar, de formular questões e de construir problemas de pesquisa que é articulado a um conjunto de procedimentos de coleta de informações – que em congruência com a própria teorização, preferimos chamar de "produção" de informação –, de forma que alteram também e de estratégias de descrição e análise (PARAÍSO; MEYER 2012, p.17).

É importante perceber que as pesquisas pós-estruturalistas possuem pressupostos fundamentais para a construção da trajetória metodológica. O primeiro seria que a educação passa por mudanças significativas oriundas das grandes transformações sociais, culturais e das racionalidades, alterando, consequentemente, as formas de ensinar e aprender. O segundo é que a pesquisa ocorre no tempo pós-moderno em descontinuidade com a modernidade e com suas criações: a racionalidade, as causas universais, as generalizações, a história linear, a noção de progresso e outros, "[...] e somos interpelados, em todos os momentos, pelas múltiplas lutas de diferentes grupos e pela alteridade dos/as diferentes que desejam ser educados de modo a possibilitar viver todas as suas inquietantes experiências" (PARAÍSO, 2012a, p.27). E o terceiro é pressuposto é a ampliação das categorias de análise, que não analisam somente as classes sociais de forma isolada, mas também as questões de gênero, sexualidade, multiculturalidade, novas comunidades, etc. (PARAÍSO, 2012).

• Pesquisa 2

Com o objetivo de propor uma formação de professores da Educação Especial, tendo por base a Perspectiva Inclusiva, dispusemo-nos a acompanhar o processo de concepção, planejamento e concretização do curso de Formação Continuada de professores da sala comum e da sala de AEE, em uma parceria entre a UFS e as Secretarias de Educação do Estado e do Município de Nossa Senhora do Socorro, município circunscrito na chamada "Grande Aracaju". O convênio foi definido, mais especificamente, com as Divisões de Educação Especial dessas secretarias.

Para tanto, fora realizada uma pesquisa de natureza qualitativa a partir do aporte da pesquisa-ação colaborativo-crítica. Molina e Garrido (2010) alegam que o avanço da pesquisa qualitativa em educação, em especial na modalidade pesquisa-ação, tem a ver com a urgência, a complexidade e as demandas da prática educativa, com a necessidade de pesquisas de intervenção nessa prática, com vistas a nela operar mudanças. Nesse sentido, há uma crítica à concepção de professor como técnico, que se fundamenta em uma ideia de educação como ciência aplicada, atrelada ao enfoque positivista. Essa concepção epistemológica configura, por sua vez, um entendimento da relação entre teoria e prática como dimensões separadas, atribuindo ainda superioridade da primeira em relação à segunda.

Desta forma, a pesquisa-ação consiste num tipo de pesquisa

eminentemente pedagógica e política. Ela serve à educação do homem cidadão preocupado em organizar a existência coletiva da idade. Ela pertence por excelência à categoria de formação, quer dizer, a um processo de criação de formas simbólicas interiorizadas, estimulando pelo sentido do desenvolvimento do potencial humano (BARBIER, 2002, p. 95).

Significa pensar a ação sempre alicerçada à teoria, de modo que uma só exista na confluência com a outra. Materializando essa relação, poder-se-ia dizer que atua como um espiral, em recorrentes reflexões sobre a ação. O pesquisador está compreendido dentro do grupo e todos devem participar igualmente, devendo envolver-se nas questões postas no/pelo grupo. O pesquisador tendo por base esses pressupostos entende a realidade como dinâmica e complexa, aprendendo a lidar com os confrontos, embates, contradições e movimentos inerentes ao processo que se constrói.

Há, por parte dos pesquisadores, o interesse de não apenas verificar algo, mas de transformar. Nesse sentido, precisa haver uma interação entre pesquisadores e pessoas investigadas. O processo de pesquisa é realizado com avaliações e discussões no grupo tanto para redirecionar os planos, quanto para partilhar o conhecimento entre os envolvidos (MATOS; VIEIRA, 2001, p. 48).

Procedimentos de coleta e sistematização dos dados

• Pesquisa 1

Antes da coleta de dados, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Sergipe, através da Plataforma Brasil (base nacional e unificada de registro de pesquisas envolvendo seres humanos) pelo CAAE 46699215.8.0000.5546, mediante a qual foi submetida toda documentação necessária para a pesquisa: Autorização da instituição para realização da pesquisa, termo de consentimento livre e esclarecido-TCLE, roteiro do grupo focal e roteiro da entrevista.

Inicialmente foi analisado o Projeto Político Pedagógico da Instituição e os Projetos Pedagógicos dos Cursos de licenciatura do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe (IFS)/Campus Aracaju, sem perder de vista a perspectiva de currículo adotada neste estudo, os três documentos se encontravam disponíveis no site da Instituição, conforme consta das referências.

Para atingir os objetivos, considerou-se pertinente a realização de grupo focal, com estudantes do último ano das licenciaturas, como estratégia metodológica para produção de dados e que pode ser definido como uma "[...] interação entre os participantes e o pesquisador, que objetiva colher dados a partir da discussão focada em tópicos específicos e diretivos (por isso é chamado grupo focal)" (LERVELINO; PELICIONI, 2001, p. 116).

Em seguida, foi realizada uma entrevista com a professora responsável pela disciplina Educação e Diversidade (encontrada nos documentos oficiais e citada no grupo focal), com o intuito de conhecer se a temática do corpo gênero e sexualidade foi pautada em sala de aula e de que maneira foi trabalhada, além de ter sido sugestão da banca de avaliação da Disciplina Seminário de Pesquisa. Para isso, organizou-se uma entrevista semiestruturada, utilizando um pré-roteiro na perspectiva das narrativas de experiências educativas.

Para conseguir realizar o grupo focal, primeiro foi mantido contato com os coordenadores dos dois cursos para solicitar acesso aos/as estudantes do sétimo e oitavo períodos das licenciaturas em Matemática e Química. A seleção desses/as participantes foi motivada pelo fato de se encontrarem já no último ano do curso, cursado, teoricamente, a maioria dos componentes curriculares que seria importante visto que é um dos objetivos pensar as contribuições do curso à percepção dos/as estudantes, além de que todos/as já passaram pelo menos por uma experiência de estágio em escolas. Combinou-se com os/as professores/as que lecionavam as disciplinas para esses períodos e que a pesquisadora seria apresentada e teria um espaço para falar da pesquisa e realizar o convite para que participassem do grupo focal. Importante salientar que se manteve o registro no diário de campo de todas as atividades realizadas na instituição.

O local escolhido para a realização do grupo foi a própria instituição para facilitar o acesso dos/as estudantes. Gatti (2005), ao discutir a técnica de grupo focal, afirma que a escolha do local é muito importante para a realização da atividade.

Houve registro em áudio para análise das discussões, assim foram usados dois gravadores de áudio para garantir uma boa gravação, além de gravadora de vídeo.

* Nomes fictícios sem qualquer ligação com a realidade ** Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência

Quadro 1: Quadro 1 – Caracterização do(a)s participantes da pesquisa 

Todos os dados coletados foram submetidos à análise do discurso desenvolvida por Foucault, por acreditar que não seja o sujeito o detentor do discurso, pois todo discurso é formado por uma rede de saber–poder e, portanto, tanto os sujeitos quanto o discurso são constituídos por essa rede. Para criar as categorias de análise levou-se em conta algumas implicações como a obrigação de evitar as verdades absolutas posto que os discursos linguísticos conduzem a uma complexidade e a múltiplas realidades e, por visualizar na linguagem um espaço onde as verdades podem ser desconstruídas e transformadas. Sendo assim, buscou-se analisar quais são os discursos que estão presentes nas narrativas dos sujeitos e como produzem efeitos em suas representações, ensinando-lhes formas de ser e agir.

• Pesquisa 2

Foram eleitos como sujeitos desta pesquisa professores das redes estadual e municipal (Estado de Sergipe/Município de Nossa Senhora do Socorro), tanto da sala de aula comum quanto das salas de Atendimento Educacional Especializado (AEE). Formamos um grupo de 22 professores.

Gráfico 1: Gráfico 1 – Relação Professores do AEE x Professores da Sala Comum 

Realizou-se um encontro inicial com os mesmos, a fim de apresentar a proposta e discutir sobre questões fulcrais à formação, bem como escutar suas demandas, pois o currículo do curso fora construído junto, a partir do desejo emanado pelo grupo formado. Desse grupo, apenas duas professoras não possuíam pós-graduação, o restante possuía especializações diversas (como em Atendimento Educacional Especializado e Libras) e duas delas cursavam mestrado em Educação.

O curso de formação foi realizado durante o período de fevereiro a julho de 2014. Os encontros aconteceram na sede da pesquisa na UFS, no denominado Espaço da Linguagem e Comunicação Alternativa do GEPELC (Grupo de Estudos e Pesquisa da Linguagem e Comunicação Alternativa), bem como em espaços cedidos pela SEED: o chamado "antigo auditório" e o Auditório do bloco III, onde fica a DIEESP (Diretoria de Educação Especial). Os encontros previamente planejados foram quinzenais, acontecendo às terças-feiras, nos períodos matutino e vespertino. Foram totalizadas 80 horas, sendo 52 horas presenciais e 28 horas não presenciais.

Para o desenho da pesquisa, utilizamo-nos da perspectiva do Grupo de Discussão (GD) a fim de consistir em instrumento de coleta de dados. O grupo de discussão é uma técnica de recolha de informação normalmente utilizada pelos investigadores qualitativos. Baseia-se na produção de discursos orais de determinado grupo social, possibilitando uma representação em que se reflete a dinâmica de uma realidade: normas, valores, interações sociais, perspectivas da realidade, etc. (COLÁS, 1998).

Esta dimensão social da fala é suportada teoricamente pelas concepções de Bakhtin (1995) ao afirmar que a verdadeira realidade da linguagem é o facto social da interação verbal que se cumpre no(s) enunciado(s). Na fala, o que se diz ou o que alguém diz em determinadas condições de enunciação articula-se com a ordem social e a subjetividade (CANALES; PEINADO, 1995). Cada sujeito é considerado parte do processo e não uma entidade isolada.

Todos os encontros foram filmados, totalizando cerca de 48 horas de filmagem. Tais filmagens foram parcialmente transcritas, privilegiando trechos discursivos que coadunavam com as análises realizadas e as categorias levantadas.

Recorreu-se ao diário de campo, tomando-o como instrumento que efetivasse os registros de nossas observações, formação e intervenção ao longo do curso, ao passo que em nossa atividade investigativa possuía o dever de participar e colaborar, intervir e mediar.

Discussão e resultados

A questão do corpo, gênero e sexualidades

A pesquisa de Cardoso (2017) trabalhou com os discursos que atravessavam as representações de estudantes de licenciatura a respeito do corpo, gênero e sexualidades durante o processo formativo. Esse estudo utilizou a abordagem pós-estruturalista, realizando como estratégia metodológica para produção de dados um grupo focal com a participação de cinco estudantes (quatro do gênero feminino e um do masculino).

Neste primeiro cenário pode-se perceber que há grande necessidade de que este tema seja abordado numa perspectiva questionadora ainda na formação de professores, destacando suas possibilidades e responsabilidades numa educação sem exclusões, visto que este tema aparece de forma imprevista em sala de aula, não escolhe disciplina, nem momento e, portanto, a princípio todo/a professor/a deve estar preparado/a para a primeira abordagem. A abordagem sobre a temática do corpo, gênero e sexualidade não pode ser realizada com os conhecimentos do senso comum ou ainda da religião (SEFFNER, 2011).

Neste item trazemos a pesquisa do Cenário 1, onde a pesquisadora levou em conta algumas implicações para criar as categorias de análise, como a obrigação de evitar as verdades absolutas posto que os discursos linguísticos conduzem a uma complexidade e a múltiplas realidades e, por visualizar na linguagem um espaço onde as verdades podem ser desconstruídas e transformadas.

Sendo assim, buscou-se analisar quais são os discursos que estão presentes nas narrativas dos sujeitos e como produzem efeitos em suas representações, ensinando-lhes formas de ser e agir. Entendendo representações como um modo de produção de significado na cultura, que implica relações de poder e ocorre a partir da linguagem (MEYER, 2010), para a construção do debate.

Apresentaremos duas categorias a fim de trazer as representações dos/as participantes da pesquisa a partir de enunciados: dicotomia sexo/gênero e representações sobre a formação nas temáticas, todos apresentados por falas retiradas das discussões do grupo focal que buscaram representar as discussões presentes em cada categoria.

• "Se voce nasceu mulher é mulher, se nasceu homem é homem": dicotomia sexo/gênero

Neste enunciado foram reunidas as impressões dos/as participantes com relação as estereótipos de gênero. O constante em todas as respostas é que os estereótipos de gênero marcam suas representações de ser homem de ser mulher, exemplificados marcadamente com características biológicas e comportamentais:L

Fonte: Dados retirados da pesquisa de Cardoso (2017).

Quadro 2 Quadro 2 – Representações sobre os Significados de ser Homem e Mulher Fonte: Dados retirados da pesquisa de Cardoso (2017). 

E encontrou-se que a diferença entre homem e mulher, na fala dos/as participantes, fica marcada pela diferença física e genética que seria causadora primeira das diferenças entre os comportamentos. Atributos como sensibilidade, atenção, carinho, organização e delicadeza seriam todos inerentes às mulheres, enquanto a força, a racionalidade, a rudeza, frieza e a praticidade seriam características masculinas.

Os discursos médico e biológico, nos quais se amparam as concepções dos/as estudantes, revestem-se de grande importância, de saber-poder, visto que alcançaram, modernamente, credibilidade de se tornarem parâmetros de verdade acerca dos conhecimentos sobre a condição humana. Convém, no entanto, lembrar que desde 1990 a homossexualidade não figura mais no Código Internacional de Doenças (CID). Para Junqueira (2009), é importante o reconhecimento pela comunidade médica, mas considera problemática a necessidade de reconhecimento da diversidade sexual por esses discursos. O autor acredita que essa credibilidade pode tanto facilitar como limitar a construção e o reconhecimento dos novos direitos. E acrescenta:

Diante das "verdades" da medicina e da clínica, é preciso não esquecer que todas as formas de conhecimento, pensamento ou prática social, são construções interpretadas de concepções de mundo, ideologias, relações de força, interesses e que, assim como qualquer forma de conhecimento, seus enunciados e enunciações são produzidos em meios de tensões sociais, históricas, culturais, políticas, jurídicas, econômicas, etc. (JUNQUEIRA, 2009, p. 371).

Além disso, não se pode perder de vista que o conhecimento produzido acerca da sexualidade, independente de ser da Medicina ou outra área, podem estar acompanhado por fortes padrões de moralidade e religiosidade da época. Compreender isso é imprescindível para entender a preocupação dos discursos biológicos, médico e clínico em procurar causas naturais para a homossexualidade.

As características citadas surgem em consequência de um aprendizado que começa ainda na infância, quando os meninos são incentivados a serem fortes, viris, heroicos, e as meninas a serem delicadas, maternais e preocupadas com a beleza. No entanto, tais características podem pertencer tanto a homens quanto a mulheres, cabe esclarecer que não existe uma essência feminina ou masculina, pois são características aprendidas pela educação diferenciada que é imposta a meninos e meninas, na família, escola e outras instituições. É importante perceber que as características culturais, como sensibilidade, racionalidade e outras habilidades, temperamentos e qualidades variam entre as pessoas, independente do sexo biológico, pois o gênero, segundo Carvalho, Andrade e Menezes (2009), é uma estrutura de dominação simbólica, uma construção social permeada por relações de poder baseadas na superioridade masculina, que traz como modelo o homem branco e heterossexual.

Fazendo um apanhado geral das discussões dos/as participantes, percebe-se que estão atravessadas por um discurso biologizante, normatizador de gênero, patriarcal e pautado no binarismo, ou seja, reproduzem as normas criadas na sociedade para homens e mulheres, repassadas inicialmente pela família e, mais tarde, pela escola e demais instituições com as quais os indivíduos se relacionam. Questiona-se, ainda, se estas conclusões seriam diferentes se os/as estudantes tivessem contato com o conteúdo sobre corpo, gênero e sexualidade na formação, se isso contribuiria para alterar a reprodução de estereótipos de masculinidade e feminilidade.

• "Um jovenzinho lá que ele se intitula lady gaga": representações sobre a formação docente nas temáticas

De modo geral, a literatura voltada para a temática de gênero na formação docente esclarece que esta temática é praticamente ignorada durante os cursos de licenciatura, perpetuando uma educação normalizadora, que busca doutrinar os/as alunos/as a partir de modelos preestabelecidos de ser e de compreender a si e ao outro, a partir de relações de poder que permeiam as práticas e ditam normas silenciosas. Mas, é também evidente que houve nas últimas décadas uma tentativa, seja por educadores/as, seja por programas ou políticas de governo, algumas alterações no processo educativo com a entrada da perspectiva de tolerância da diversidade. Nessa perspectiva, a diversidade é aceita para uma convivência pacífica sem, contudo, alterar o status de poder dominante do homem branco e a heteronormatividade. Não há uma real transformação nas relações com o diferente.

As representações sobre gênero na formação docente estão marcadas pelos estereótipos de masculino e feminino trazidos pelo modelo hegemônico binário que discrimina quem se distancia. Daí resulta a dificuldade de professoras e professores em lidar com o diferente em sala de aula, visto que não foram preparados nas licenciaturas para falar sobre o corpo, o desejo e o gênero (DIAS, 2013).

As práticas na educação formal ainda não acompanharam a lógica de tolerância à diversidade proposta pela legislação brasileira, menos ainda as propostas teóricas produzidas na academia que propõem o reconhecimento e transformação nas relações de poder frente ao diferente. Não se aprende a reconhecer o outro em si mesmo, apenas silencia-se a diferença e a trata como se fosse algo que não existisse na vivência (MISKOLCI, 2015).

Nesta subseção, a partir do panorama apresentado, serão analisadas as representações dos/as estudantes a respeito da temática corpo, gênero e sexualidades na formação docente do IFS/Campus Aracaju e as possíveis implicações para a prática futura desses/as estudantes. Assim, retoma-se o conceito de representações como um modo de produção de significado na cultura, que implica relações de poder e ocorre a partir da linguagem (MEYER, 2010), para a construção do debate.

Neste enunciado apresenta-se uma cena referente à necessidade de disciplina dos corpos no ambiente escolar, trazida por Eliane de sua prática de sala de aula, que evidencia a impossibilidade de articular o conhecimento e as manifestações do desejo:

No Pibid mesmo, [...] teve uma situação bem interessante, um jovenzinho lá que ele se intitula Lady Gaga [...]. Ele tem uns doze anos, ele é bem pequenininho. Aí toda hora passava um rapaz na frente da porta, eles estavam jogando e tavam passando na quadra, e toda vez que passava ele fazia: "Psiu, gostoso." E aquilo começou a me incomodar. A gente tava conversando e ele não parava de fazer isso. Até que num momento eu vi que o rapaz incomodado, olhou com um olhar mortal. Aí eu cheguei, sentei do lado dele e falei: "Meu jovem". Desse jeito: "Meu jovem, você não tem nem 40 quilos, a tia aqui, a professora, não tem 50 quilos, o jovem deve ter uns 60, se ele quiser vir bater em você o que eu vou fazer?" Aí ele olhou pra mim: "É, eu vou parar". Aí ele parou e nunca mais ele fez isso novamente. Era a única argumentação que eu tinha, porque se ele realmente partisse pra cima dele, eu ia fazer o quê? Eu não teria força nenhuma pra apartar a briga e eu não sei se o rapaz se eu falasse ele iria me aceitar como autoridade. Enfim, era uma escola pública (ELIANE).

Inicialmente, observou-se na fala de Eliane a dificuldade de lidar com o desejo em sala de aula, mais especificamente num comportamento homossexual em um de seus alunos, acreditando que o fato de ele estar paquerando outro garoto poderia levá-lo a ser vítima de violência. Essa necessidade de desassociar o desejo das relações escolares é uma das formas encontradas pela Instituição para domar os corpos e mascarar uma dificuldade dos profissionais de lidar com tais situações. O objetivo é doutrinar os corpos, moldando-os de acordo com suas aprendizagens sociais, dos costumes, da religião e da tradição, para disciplinar a masculinidade e a feminilidade.

Mais uma vez nota-se que o comportamento que foge à norma incomoda, tanto que passa a ser descrito como momento difícil durante a prática de estágio. O fato de o garoto estar paquerando outro garoto atrapalha o ritmo da aula, desconcerta a estagiária e a deixa em alerta com relação a algum tipo de retaliação violenta. Eliane, assim como tantos/as outros/as profissionais da educação, relata a experiência como se fosse igualitária, porém não se faz boa educação só com intenção. Com frequência, "[...] colocamos nossas boas intenções e nossa confiança em uma educação a serviço de um sistema sexista e heterossexista de dominação que deve justamente a essas intenções e confiança uma parte significativa de seu poder de conservação [...]" (JUNQUEIRA, 2009, p. 14) contribuindo mais com o sistema de opressão que se quer combater.

Ainda com relação ao desejo, Eliane fala que é muito difícil dar aula com os/as alunos/as se beijando, materializando o desejo. Segundo Dias (2013), as mais diferentes práticas escolares trazem a ideia do corpo como sagrado e íntimo e torna-se muito comum entre professores/as uma grande dificuldade de lidar com situações como essas, talvez porque em suas trajetórias (familiar, religiosa, escolar e outras) tenham aprendido a anular a representação de seus corpos e por isso reproduzem este comportamento com seus/suas alunos/as. Louro (2000) esclarece que quando a escola educa os corpos de meninos e meninas ela também estabelece um modelo "normal" de sexualidade. O que se percebe nessas passagens é que o gênero e a sexualidade "gritam" em sala de aula para serem ouvidos, nas mais diversas formas de expressão, pedindo espaço, mas são silenciados, pois a ordem dominante proíbe a discussão do desejo e da sexualidade nos espaços educativos e sociais, permitindo apenas o silenciamento e anulação dessas questões cotidianamente.

Quanto ao medo da retaliação violenta, esse dado infelizmente é real o que torna a preocupação genuína, visto que a violência contra homossexuais é uma realidade, ao mesmo tempo em que a naturaliza, como se o rapaz estivesse em seu direito de retaliar a uma cantada de um gay, com violência, como forma de demarcar sua própria masculinidade. Tratando a paquera como uma ação de violência contra ao garoto heterossexual, de forma que a reação violenta passa a ser naturalmente aceita. Em pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em 13 capitais brasileiras e no Distrito Federal constatou-se que entre os estudantes masculinos "bater em homossexuais" foi apontada como ação menos violenta em uma lista de várias outras ações violentas (atirar em alguém, estuprar, usar drogas, roubar e andar armado). E, quando questionados sobre quais pessoas eles não gostariam de ter como colega de sala, aproximadamente ¼ dos meninos indicaram que seria um homossexual (ABRAMOVAY; CASTRO; SILVA, 2004).

Tal panorama de exclusão e violência se forma em decorrência da heteronormatividade, pela compulsoriedade heterossexual que rejeita a homossexualidade em vários espaços sociais, principalmente na escola, onde os meninos são ensinados a serem machos, a deixarem qualquer comportamento de aproximação com outros meninos, sob pena de serem taxados de afeminados, de serem comparados com meninas que são sentimentais e têm permissão para demonstrarem afeição.

A imposição de condutas sempre foi um dos papéis da escola, principalmente referentes aos corpos, ao gênero e à sexualidade. Ao longo do tempo, ela vem produzindo formas de masculinidade e feminilidade a partir de currículos baseados nos discursos médico higienistas (LOURO, 2000). Desta forma, as marcas mais profundas não se referem ao conteúdo programático apresentado e sim às experiências vividas com colegas, professores e outros sujeitos da escola.

Os/as participantes, futuros/as professores/as da educação básica, trazem suas representações pautadas em discursos que reproduzem as concepções dominantes na sociedade trazendo uma visão estereotipada dos gêneros, biologizante e normatizadora. Ficou evidente que não tiveram contato com a temática no curso de licenciatura, de forma oficial, como conteúdo, debates e questões, no entanto, suas representações de corpo, gênero e sexualidades estão fortemente atravessadas pelo discurso heteronormativo, por isso questiona-se se esta não seria a razão para apresentarem essa visão sobre o tema.

Sendo assim, percebe-se a necessidade da inclusão das temáticas para auxiliar os/as estudantes das licenciaturas a perceber que a feminilidade e a masculinidade não são essências da natureza humana, são construções plurais que se alteram historicamente, e nas diversas sociedades. É necessário perceber que as diferenças foram transformadas em desigualdades que resultam na desigualdade sexual observada no trabalho, no preconceito contra pessoas de sexualidades que fogem a norma heterossexual, na exploração sexual e demais problemáticas.

Que fique claro, no entanto, que não é interesse deste estudo apontar as falhas e erros desses/as estudantes, futuros/as professores/as e demais profissionais, com relação as suas representações e atitudes diante do diferente, mas de apontar quais os discursos que estão agindo em suas falas e percepções sobre a prática de professor/a no dia a dia da escola, discursos estes que os direcionam para práticas comprometidas com a "normalização". Defende-se, no entanto, uma postura de reconhecimento do estranhamento no contato com o "outro" e a necessidade premente de desconstrução dessas representações preconceituosas.

O que seria possível, então, já que na perspectiva pós-estruturalista não se admite a superação dos discursos e emancipação dos sujeitos de forma a essencializar novas crenças e atitudes, numa transformação automática? No entanto, é importante recordar que um aspecto de grande importância nessa perspectiva são as estratégias de resistência das minorias e dentro da educação, pois onde "[...] há uma relação de poder, há a possibilidade de resistência [...]" (FOUCAULT, 2015, p. 360), de forma que ao confrontar-se com novos discursos, novas possibilidades e desestabilizações, esse sujeito pode pautar sua prática de modo diferenciado, convivendo com os conflitos discursivos. E, apesar de não haver caminhos prontos se faz necessária a constante problematização das concepções existentes, mostrando que as ideias vinculadas pelos discursos hegemônicos foram construídas e, portanto, podem ser criticadas e reinventadas.

A questão da deficiência

Os discursos encontrados na formação continuada com as professoras diziam de lugares muito distintos, concepções heterogêneas, mas convergiam para uma compreensão dos modos de funcionamento do processo de inclusão no estado. Esses profissionais carregavam consigo muitas marcas, marcas que falam da construção subjetiva desses professores, falam do movimento de vida entrecortado pela malha semiótica proveniente dos elementos sócio-histórico-culturais na qual estão imersos. Nesse sentido, muito fora observado em relação à forte herança do modelo de educação especial assentado numa visão médico-psicológica, daí forjando os olhares sobre a deficiência neste grupo.

Observou-se ainda a existência de profissionais que trabalham, simultaneamente, na sala de estimulação e na sala de recursos, o primeiro, espaço que culturalmente serviu à reafirmação de práticas clínicas dentro do ambiente escolar, visivelmente distante do que se pretende ao propor a perspectiva inclusiva, o segundo, espaço materializado para atender aos princípios inclusivos, com enfoque pedagógico: é nessa dualidade perante propostas tão antagônicas que alguns professores ainda trabalham, o que denota a profunda deturpação das políticas públicas vigentes, uma não-filiação paradigmática, como o processo de inclusão no estado vê-se circunscrito por elementos de resistência repletos de amarras. Vemos, assim, que as representações feitas no espaço escolar sobre a pessoa com deficiência se sustentam em campo escorregadio, tendo em vista que os discursos pedagógicos e médico-positivistas se imbricam e provocam fragilidades nos lugares ocupados por tais sujeitos.

No trecho transcrito abaixo, retirado da fala de uma das professoras, observa-se que a pessoa com deficiência é enquadrada no significante "especial" e, diante das dificuldades encontradas no processo de inclusão, outorga-se à família a decisão de escolha em por ou não seu filho na escola regular, retirando da escola o peso sobre essa acolhida, discurso este contraproducente se pensarmos na trajetória de pesquisas e estudos voltados à trajetória de poucos avanços de pessoas com deficiência em instituições especializadas, tendo em vista a assunção de um cunho terapêutico em detrimento das questões pedagógicas, o que propiciou a entrada dessas crianças em instituições regulares de ensino, via legitimação perante as políticas públicas.

"Eu acredito na inclusão, que ela é processual [...] Mas ao mesmo tempo eu acredito também na liberdade de escolha, não deve ser uma coisa compulsória [...] A família pode escolher também, a família que tem uma criança especial tem o direito, aí que acho que entra a igualdade [...] se há uma escola especial de qualidade, por que não? [...] Será que a gente tá ouvindo a família desse especial?" (PROFESSORA DA SALA DE ESTIMULAÇÃO – ESTADO)

Tal qual o discurso que desobriga a escola de assumir a responsabilidade pelo processo inclusivo, viu-se discursos que alegavam o "despreparo" da escola, mesmo em face às políticas vigentes terem sido desenvolvidas a partir de outras fomentadas há mais de vinte anos. Preocupante perceber a força com que ainda sensibiliza a inclusão desse alunado. Sabemos da dificuldade de acompanhar todas as resolutividades propostas na legislação, devido as mazelas enfrentadas na educação, contudo, a não-ressignificação das práticas para que cheguemos o mais próximo possível das determinações políticopedagógicas precisa ser repensada. Quanto mais ampliávamos nossa escuta ao vivido daqueles professores, mais reafirmávamos a necessidade do trabalho colaborativo, da produção de novos/outros afetamentos, da contaminação dos discursos a fim de carregá- los de potência, da necessidade de criação de redes de contágio.

"Bom, gente, eu acredito sim na inclusão [...] mas eu acho que pra que isso aconteça de verdade falta muito, né? A gente ainda tá engatinhando... Porque assim... O sistema ele aceita, ele adere à inclusão, mas não há preparação nenhuma para o profissional receber aquele aluno [...]" (PROFESSORA DA SALA COMUM – SOCORRO)

Apesar de o acesso ao ensino regular estar configurado com um direito previsto em lei, por uma gama extensa de políticas públicas voltadas para este fim e cada vez mais estudos e pesquisas evidenciarem os ganhos à aprendizagem e ao desenvolvimento quando na diversidade, micro resistências fortalecem o cunho assistencialista ao defenderem a escola especial e tendem a minar a construção de uma escola inclusiva. Na reunião, o discurso confluía refratando a imposição da escola regular ao advertir sobre a chance do sujeito/família escolher pelo tipo de escola que julgue mais conveniente. Sob a roupagem de preocupação com a condição do aluno com deficiência na escola regular num contexto de adversidades, há subjacente a esse discurso a iminente dificuldade em lidar com a diferença, de aceitá-la e, para além disso, tomá-la como propulsora de interações significativas e terreno fértil para o desenvolvimento, tornando a escola espaço de desautorização, que mina a heterogeneidade e hostiliza a democratização do acesso e permanência no processo escolar.

"Até que ponto a gente tá colocando a questão de ‘inserção por inserção’ e até que ponto e até quando a gente tá priorizando a qualidade de vida desses sujeitos?" (PROFESSORA DA SALA DE ESTIMULAÇÃO – ESTADO– REUNIÃO INICIAL – 25/02/2014).

Noutras palavras, se advogava pela coexistência das escolas especial e regular, refutando a "arbitrariedade" com que a legislação impõe a inclusão como princípio fundante da educação hoje. Num tempo onde a nível mundial e até mesmo nacional as discussões muito avançaram e as problematizações são outras, mais específicas, concernentes a questões que desabrocham no desenrolar do movimento, constatar que ainda existe uma discussão tão ampla, em torno de "quem é a favor e quem é contra a inclusão", significa retroceder e reconhecer-se muito aquém em relação a uma proposta mais prospectiva, visto que estatisticamente várias são as constatações de que a escola especial falhou em sua disposição inicial, de preparar o sujeito para o retorno à sociedade, e que o modelo instituído parece falido nos moldes em que se acomodou.

É evidente ainda o enaltecimento da dimensão da saúde/da instância diagnóstica sobrepondo-se ao âmbito educacional/formativo quando tomamos a pessoa com deficiência. A condição biológica é tomada por muitos como condicionante de seu desenvolvimento, aprendizagem e dinâmicas relacionais, o que contribuiu massivamente para a produção de estigmas.

Conforme Sobrinho, Sá e Nunes (2013, p. 9) as relações que "a instituição especializada estabelece com os pais e com a escola comum termina por legitimar as baixas expectativas quanto à educabilidade das pessoas com deficiência". Reiterar a "limitação" na aprendizagem, pautada na supervalorização dos pressupostos biologizantes do/no desenvolvimento humano e da psicologia de práticas behavioristas, como elementos para justificar a pertinência do trabalho da escola especial promoveu o incitamento ao fortalecimento desse pensamento, tensionado hoje pelo paradigma inclusivo.

Outro ponto importante nessa conjuntura é salientado por Franklin (1996) ao afirmar que as modificações realizadas no campo da educação especial (serviços, conhecimentos e políticas) foram implementadas ausentadas de uma reflexão sobre os sentidos da deficiência, do cientificismo na formação docente e no processo de escolarização pelo ensino regular, o que provocou tantos hiatos e tantos disparates na discussão mais ampla em torno da inclusão.

"[...] Aí às vezes ela tá ali num cantinho isolado e se sente mais excluída... infelizmente assim ainda não temos a solução em materiais... eu trabalho só com a educação especial [escola especial], e eu prefiro... [...] tem que ter um aparato grande pra criança se sentir incluída, senão acontece o inverso (PROFESSORA DE ESCOLA ESPECIAL – ESTADO)

Nas palavras de Freitas (2011, p. 4) os "agenciamentos brincam de esconde/esconde. São produzidos como os dispositivos. Densos, líquidos, presentes/ausentes, com tons leves e firmes no sentido de ser um efeito, montagem, bricolagem de práticas e técnicas de subjetivação". Tais dispositivos engendram a concepção de normal/anormal.

A medicalização do ensino se sustenta também na epidemia dos diagnósticos que vivemos e muitas escolas resistem seguindo a condicionar seu trabalho a partir das soberanas prescrições diagnósticas. Muitas vias têm servido a este processo, mesmo que essa não seja a intenção. Instituições públicas como os Centros de Referências em Educação Especial, em nosso estado e em outros lugares do país, realizam diagnósticos e os encaminham a escola determinando, muitas vezes, o direcionamento do seu fazer, endossado pela visão organicista. Conceber a organização pedagógica a partir do diagnóstico tem se mostrado uma posição bastante perigosa, pois desqualifica a diversidade do alunado, e muitas experiências, inclusive a nível mundial, constataram que esses servem para ampliar a desigualdade. De imediato, uma indagação nos toma: será que a escola vem pensando sobre os efeitos desse atravessamento?

O que emerge em nosso panorama indica que essa discussão precisa ser aprofundada, e que a tomada de consciência quanto a essa questão está distante de ter atingido o coletivo de educadores/agentes do processo educacional, o que leva a conferir aos problemas de cunho social contornos de uma problemática intrínseca à saúde, configurando um problema de natureza complexa. Isso sinaliza o que Baptista (2007, p.40) declara a respeito da necessidade de a escola se submeter a um processo de reinvenção, calcado nos pilares inclusivos, vide a

[...] educabilidade de todos os sujeitos, o potencial de modificabilidade que existe em todas as pessoas, a compreensão de que nos constituímos em situações que devem ser contextualizadas historicamente, e, portanto, o verbo "estar" parece sempre mais potente para descrever nosso interlocutor (e a nós mesmos) do que o "ser". Somos transitoriedade, modificamo–nos continuamente.

Os relatos por vezes tocavam o senso comum, soavam como conjecturas díspares em relação aos conhecimentos que subjazem à inclusão, víamos com nitidez em alguns momentos a ausência de um discurso teoricamente sustentado, sentíamos os deslizes em torno da concepção do projeto inclusivo. Ainda assim, era notória a necessidade da crítica ao sistema, (em alguns discursos, demarcado quase como uma entidade, como se o mesmo não fosse regido por pessoas), de sinalizar à gestão os problemas vivenciados, de solicitar uma intervenção mais efetiva.

"Eu acredito que nossa categoria é a categoria que mais aceita [...] é a categoria do professor... então assim, cadê o compromisso do secretário?... eu acho que a comunidade está aberta, tá faltando investimento, formação [...]" (PROFESSORA DA SALA DE ESTIMULAÇÃO – ESTADO– REUNIÃO INICIAL – 25/02/2014).

Alguns discursos vinham mais politizados, intumescidos de uma crítica melhor fundamentada quanto à conjuntura histórico-social. Entre o discurso dos professores e da gestão presentes na reunião observamos uma característica comum: a presença massiva de justificativas; justificativas para os equívocos, para a falta de ação, para a resistência.

Também apareceram os reconhecimentos das deficiências, das lacunas, mas, ainda que muito importante, reconhecer não implica resolutividade, embora seja um impulso para possíveis mudanças. Uma coisa é certa: precisamos justificar e reconhecer menos, nos movimentar e buscar ressignificar mais nossas práticas. O caminho delineado através de justificativas é perigoso e nos leva a uma condição de paralisação, de engessamento das ações e um processo estático em detrimento da dinamicidade que o projeto inclusivo supõe.

Nos recortes abaixo, observam-se discursos que dizem do sentimento de exclusão da criança com deficiência quando no encontro com a criança dita normal, no entanto, a afirmação não vem seguida de uma problematização, de uma reflexão, o que se segue é uma vitimização do lugar do professor. Uma serie de "lugares comuns" discursivos que parecem não ter a intenção de pensar sobre novos/outros modos de se conceber a deficiência, de acolher a diferença. No segundo recorte, outro enunciado repleto de chavões, com nítida influência dos pressupostos positivistas na educação, fazendo menção à ordem como eixo norteador de todo processo educativo. A diferença sucumbe à norma, então o que lhe resta?

"A criança, a meu ver, se sente mais excluída ainda quando você coloca, digamos, uma criança com deficiência junto com outra dita comum [...] Aí quem se desdobra é a professora... O professor é o salvador da pátria, o sistema coloca toda responsabilidade nele [...] (PROFESSOR DE ESCOLA ESPECIAL – ESTADO).

"[...] (na escola) tem que existir é ordem, sem ordem não tem progresso" (PROFESSORA DA SALA COMUM – ESTADO– 1º ENCONTRO – 01/04/2014).

Com o passar dos encontros, foi se constituindo uma rede dialógica entre os participantes do grupo e problematizações, estranhamentos e provocações foram sendo colocados. O intuito era desestabilizar a ordem engessada, provocar rachaduras, fazer ver as frestas de possibilidades, ressignificar os sentidos atribuídos à diferença no contexto da deficiência. No trecho abaixo pode-se notar uma reflexão crítica que situa a dificuldade mesmo do aluno dito normal no acesso ao currículo, o que retira do aluno com deficiência o peso sobre o fracasso escola, trazendo para a escolar muito dessa responsabilidade, um chamamento a uma meta análise sobre o que se tem produzido em termos de dificuldades no âmbito educativo. Na segunda fala também se observa um outro olhar, mais prospectivo, sobre o estatuto do erro, fortemente enraizado na pessoa com deficiência em seu processo de aprendizagem, no qual se veem subjugados, numa tentativa de desmistificar esse lugar.

"na verdade o currículo tem que ser flexível para qualquer aluno, às vezes eu tô dando um assunto e aí vejo que tem alunos que já estão além, então eu passo atividade diferenciada para ele, não é só com o aluno com deficiência... [...] e até pra o aluno dito normal o currículo às vezes é muito fechado, então veja o problema que nós temos" (PROFESSORA DA SALA COMUM – SOCORRO)

"[...] eu mesma não vejo o erro do meu aluno com deficiência, nem de nenhum outro, como motivo para eu desmerecer ele ou achar que ele não aprende... sei que cada um tem seu tempo e, mesmo sendo um desafio, eu tento trabalhar com esse tempo de cada um, com sua subjetividade..." (PROFESSORA DA SALA COMUM – SOCORRO)

No recorte abaixo, a professora se posiciona frente à culpabilização feita pela sociedade à família do sujeito deficiente, apontando inclusive que o professor tem obrigações para com esse aluno e não se deve remeter aos pais a responsabilidade pelo processo escolar, mediante indagações inflamadas que dizem de uma análise crítica que rompe com a leitura superficializada muitas vezes embutida nas reflexões sobre a família na inclusão socioeducacional.

"[...] A grande responsabilidade que nós (professores) temos, pois parece ser que começa na mãe e no pai ter um ‘ET’, o filho deficiente... o erro já começa dela... primeiro bota o filho defeituoso no mundo [...] quem traz o manual? Como é que essa família tem que se comportar? como é que esse professor tem que agir? É a mãe que tem que ensinar o professor? Porque o professor sabe... ele sabe que tem que adaptar o currículo, eu sei que eu tenho que convencer o diretor, ele sabe, mas não sabe como fazer...e aí a gente vai assim empurrando a bola...e no final o prejuízo é do aluno [...]" (PROFESSORA DA SALA DE AEE – SOCORRO – 1º ENCONTRO – 01/04/2014).

O curso visava formar professores mediante a criação e concepção de novas possibilidades de aprofundamento do diálogo teórico-prático, fundante da práxis, sendo norteado pela pesquisa-ação. Desta forma, apostou-se na dialogia circunscrita no movimento grupal como potencializadora da construção de um processo crítico-reflexivo que pudesse se desdobrar noutro viés formativo, com vistas ao alcance de maior conscientização das problemáticas, levando a constituição de modos de ser/pensar/fazer mais autônomos e emancipados.

Quanto à atividade dialógica, acreditamos que esta "produz texto e gera outros textos, balança a estabilidade do dizer e do pensar, e é capaz de produzir outras formas de ver e analisar as questões relacionadas à prática cotidiana" (GIVIGI, 2007, p.218). Bakhtin concede lugar de inestimável destaque ao discurso na constituição do sujeito, atribuindo ao outro ser condição "para o discurso e que o mundo da cultura tem primazia sobre a consciência individual". O discurso "apresenta-se como uma forma de conhecer o ser humano, mas na sua condição de sujeito múltiplo, inscrito na história, no social e no cultural. É no entrecruzamento entre discurso, história e sociedade que os saberes se modificam" (GIVIGI, 2007, p.125).

Os discursos que despontaram foram tomados como fenômenos histórico-culturais e entoaram enunciados heterogêneos, efeitos da multiplicidade de vozes sociais evocadas, dotados das tensões provocadas pela (in)apropriação dos pilares da inclusão, do trabalho com a diversidade; traziam controvérsias, falavam de concepções cristalizadas, estereotipavam a relação com a deficiência. Diziam das dificuldades, liam os impasses que se impunham, das micro às macro resistências que se corporificam, das relações escolares à responsabilidade pública das gestões. Ao lado das mazelas, coexistiam enunciados que apontavam o brotamento de algumas mudanças, o espraiamento do desejo de ressignificação das práticas, de sinalização de novos modos de conceber um processo que tão tardiamente atingiu nosso contexto educacional.

Enlevamos o discurso dos professores no curso ao estatuto de elemento máximo para o debruçamento sobre as análises e apreensões do movimento que se instituía. Os discursos têm os sentidos construídos e desconstruídos nas/pelas relações dialógicas, pois o interdiscurso, assentado no âmbito social, remete à constituição do intradiscurso, não sendo possível dissociar o funcionamento discursivo da relação com o discurso do outro. Assim, para que se possa capturar os sentidos, faz-se necessário compreender o dialogismo, que tem na polifonia sua forma suprema, que traça os contornos, que dá vida aos enunciados (BAKHTIN, 2003).

O trabalho colaborativo que propúnhamos partia da acepção de que na interação com o outro podemos confrontar, (re)afirmar, refutar, definir posições, (re)criar papeis. A enunciação se produz numa relação de alteridade, num dado contexto situacional, no entremeio da intersubjetividade: foi preciso, desse modo, entender a dimensão dialógica da ação educativa.

Nessa relação formativa entendida sob esse prisma, toma-se a dialogia como espaço de excelência, no qual constroem-se os conhecimentos num processo de interação que pressupõe encontros e choques de ideias, movimento polifônico e posições enunciativas entre os sujeitos entendidos como acontecimentos singulares e contingentes, com efeitos decisivos para a apropriação subjetiva dos construtos culturais.

A diferença existe. Os discursos circulam. No movimento da inclusão damos um passo para romper com a lógica homogeneizante do capitalismo. Não podemos identificar o outro pela aparência, pelo nível social, pelo comportamento, pela diferença. Temos dificuldade em conviver com o outro quando este não se enquadra nas expectativas construídas. Precisamos aprender. [...] Quando as explicações naturalizadas se desmontam é possível pensar de forma menos determinista e ver que o aspecto biológico por si só não é capaz de definir o humano e seu desenvolvimento (GIVIGI, 2002, P. 207).

A materialização demonstrou a necessidade do professor em discutir as práticas pedagógicas, em estabelecer para com elas nova relação com fazeres e lugares mais potentes, abertos ao trabalho com a diversidade. Ecoava no espaço formativo a necessidade de que as trocas e discussões ali instauradas se perpetuassem pelas instituições escolares, contagiando equipes que, em boa parte, ainda resistem à construção de parcerias na constituição da escola inclusiva. O resultado disso são trabalhos individualizados, práticas solitárias, profissionais coexistindo na escola, em pequenos guetos que não dialogam entre si, pouco interpenetram-se visando à consolidação de ações mais potentes.

A proposta diferenciada de formação se coaduna à pesquisa-ação por compreender que devemos priorizar uma "autorreflexão crítica que seja coletiva, superando a mera interpretação das causas de questões e problemas, e que aponte alternativas no sentido de transformações". A pesquisa crítica "conjuga esforços de ‘pesquisadores e práticos’" na realização da tarefa investigadora, no sentido de transformar as situações educativas num compromisso com uma ciência educativa crítica sem dissociar-se das realidades políticas" (JESUS, 2011, p.213).

Assumindo essa concepção, a escola não está desvinculada da realidade, sendo assim, nela circulam ideologias e, se a hegemonia dominante atualmente tem ditado os moldes da escola sob a égide do capitalismo e políticas públicas são forjadas, penetradas pelo pensamento neoliberal, precisamos pensar na assunção de formas distintas, mais humanas e igualitárias, num movimento contra-hegemômico, por forças centrífugas que repilam da escola os pressupostos da exclusão e desigualdade de oportunidades. Conforme Saviani (2004b, p. 238) "[...] os que visam à transformação da ordem existente se empenharão no encaminhamento das questões educacionais em sintonia com as necessidades de transformação".

Considerações finais

As pesquisas apontaram a impossibilidade de uma síntese totalizante das diferenças, tendo em vista que existe um silenciamento quanto à normatização dos corpos, seja em relação à instância da sexualidade ou da deficiência. Há no currículo um atravessamento, de forma naturalizada e silente, dos discursos normatizantes que trazem em seu bojo uma lógica dicotômica dos gêneros e estigmatizante das deficiências.

As representações feitas, tomadas a partir do discurso dos sujeitos, demonstram o atravessamento dos discursos médico, biológico, religioso, permeados pela regra da heteronormatividade. É pela via discursiva que se delineia a trama de repulsa à diferença, firmando-se historicamente no cotidiano das práticas inundadas pelos enunciados que estão para além do espaço e dos saberes escolares, consistindo no germe da pretensa norma buscada/exigida, que institui, portanto, que o que não está enquadrado nessa acepção, é desvio, via de regra. Assim, essa engrenagem de produção de desvios à norma se retroalimenta no campo discursivo, gerando uma cadeia que irrompe em práticas segregadoras e massificadoras.

Entretanto, brechas de mudanças são possíveis a partir de uma formação focada na visão dialógica, que pode desestruturar ideários estanques. Tal processo movimenta a estrutura social, porque desestabiliza a ordem cristalizada. A imersão teórica, articulada com as práticas, cria potências de (trans)formação.

Acredita-se, portanto, que há a necessidade da desconstrução desses discursos, levando a um desenraizamento da heteronormatividade, para que os sujeitos possam vivenciar sua feminilidade, masculinidade e sexualidades de formas diversas do padrão hegemônico, bem como para que a deficiência não seja arraigada a estigmas de incapacidade e busca desenfreada por diluir-se na norma, moldar-se ao enquadre preestabelecido.

É necessário que as experiências invisibilizadas sejam valorizadas e incorporadas no dia a dia da escola. Para Miskolci (2015), não existe um modelo a ser seguido, o importante é que a escola possa se tornar um veículo social de desconstrução de desigualdades e injustiças, e, caso deixe de investir no ensino e reprodução da experiência de preconceito, poderia transformar a aprendizagem num processo de ressignificação do anormal, do diferente como caminho de mudança social. É preciso despatologizar a pluralidade de formas de subjetivação atuais.

Como um possível caminho, aponta-se a pesquisa-ação, como ciência da práxis, para promover a anulação de posturas de neutralidade e controle das circunstâncias de pesquisa que buscam transformações na escola. Epistemologicamente, caminha na direção de uma perspectiva que prioriza a dialeticidade e historicidade da realidade social e dos fenômenos, das contradições, da ação dos sujeitos sobre as circunstâncias, das relações com a totalidade, tendo na práxis a mediação central na construção do conhecimento e mudanças sociais, sendo valioso instrumento para a construção de percursos mais inclusivos (FRANCO, 2005).

Por fim, afirma-se a importância da prática pedagógica dialógica, com potencial de trazer como efeito à escola múltiplas vozes, sem invisibilizá-las e/ou não reconhecê-las, amparando-lhes em sua subjetivação, permitindo-lhes engendrar novas formas de resistência e assunção de lugares mais prospectivos, legitimados por um olhar verdadeiramente democrático e inclusivo no campo social dimensionado na escola.

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Recebido: 24 de Maio de 2018; Aceito: 03 de Dezembro de 2018

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