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Revista Educação e Cultura Contemporânea

versão impressa ISSN 1807-2194versão On-line ISSN 2238-1279

Rev. Educ. e Cult. Contemp. vol.15 no.41 Rio de Janeiro out./dez 2018  Epub 15-Out-2018

https://doi.org/10.5935/2238-1279.20180071 

Artigos

A formação continuada como espaço de reorientação curricular: reflexões teórico-metodológicas

Continuing education as a space for curricular reorientation: theoretical-methodological reflections

Elmo de Souza LimaI 

IUniversidade Federal do Piauí


Resumo

Os estudos críticos da educação trouxeram inúmeras contribuições à construção de propostas curriculares voltadas à valorização das práticas culturais dos diferentes grupos sociais. O desenvolvimento de projetos educativos críticos está associado à implementação de políticas de formação de educadores que favoreçam a compreensão crítica do contexto sócio-histórico e cultural e o desenvolvimento de práticas educativas fundadas nos princípios políticos crítico-emancipatórios. Esta pesquisa teve como objetivo investigar como as reflexões críticas desenvolvidas a partir da formação-investigação possibilitaram a reorientação do currículo nas escolas de educação básica. A partir das contribuições teórico-metodológicas da pesquisa-ação foi possível problematizar o contexto sócio-histórico e cultural, assim como o projeto educativo da escola, favorecendo a identificação dos desafios e possibilidades quanto à reorientação da proposta curricular na perspectiva da contextualização e da interdisciplinaridade. Nesse processo, os educadores dedicarem-se à reflexão das práticas educativas, permeada pela compreensão do contexto sócio-histórico e cultural, resultando na apropriação dos princípios políticos e filosóficos que dão sustentação ao projeto educativo em desenvolvimento, bem como à construção de propostas pedagógicas e curriculares voltadas à transformação social.

Palavras-Chave: Contextualização; Formação continuada; Reorientação curricular

Abstract

Critical studies from education have brought several contributions for the construction of educational and curricular proposals directed to the appreciation of cultural practices of different social groups and for the production of knowledge that enable social change. However, the development of critical and contextualized educational projects is associated with the implementation of educator training policies that encourage critical understanding of the socio-historical and cultural context and the development of educational practices grounded in political critical-emancipatory principles. The research aimed to investigate how critical reflections developed from the training - research enables the reorientation of the curriculum. From the theoretical-methodological contributions of the action critical research was possible to problematize the socio-historical and cultural context the educational project of the school, favoring the identification of challenges and possibilities regarding the reorientation curricular proposal in the perspective of contextualization and interdisciplinarity. In this process, educators focus on the reflection of educational practices, permeated by an understanding of the socio-historical and cultural context, resulting in the appropriation of the political and philosophical principles that underpin the educational project under development, as well as the construction of pedagogical and curricular activities aimed at social transformation.

Key words: Contextualization; Continuing Education; Reorientation Curriculum

Introdução

Os estudos desenvolvidos sobre os projetos de formação de professores da educação básica demonstram que os modelos de formação continuada instituídos no Brasil estão associados aos pressupostos políticos e epistemológicos da racionalidade prática. O papel atribuído implicitamente ao educador, na maioria desses projetos, limitase à aplicação de procedimentos teórico-metodológicos desvinculados das propostas político-pedagógicas das escolas e do contexto sociopolítico e cultural dos educandos.

Diante desse contexto, assumimos o desafio de desenvolver, durante a pesquisa de Doutorado em Educação na Universidade Federal do Piauí, uma proposta de formação-investigação fundamentada nos pressupostos teórico-metodológicos críticoemancipatório em que os educadores fossem instigados a pensar criticamente sobre suas práticas educativas e o projeto pedagógico da escola, numa interface com o contexto sociopolítico e cultural, com o intuito de promover uma reorientação curricular voltada à formação crítica dos educandos.

Desse modo, este trabalho tem o propósito de apresentar as reflexões teóricometodológicas e epistemológicas construídas a partir do processo de formaçãoinvestigação desenvolvido na Escola Municipal Liberato Vieira1, na zona rural do município de Ipiranga, envolvendo 12 educadoras que atuam naquela instituição de ensino.

Com base na metodologia da pesquisa-ação, o trabalho foi construído a partir das Rodas de Diálogos2 voltadas à reflexão crítica acerca do contexto sócio-histórico e cultural da comunidade e dos aspectos político e pedagógico da escola, visando à produção coletiva de conhecimentos que permita a reorientação da proposta curricular da escola na perspectiva da contextualização no semiárido. A opção pela abordagem teóricometodológica da pesquisa-ação crítica justifica-se pelos pressupostos epistemológicos que orientam a produção coletiva do conhecimento, que rompe com a lógica colonizadora instituída no processo de construção do conhecimento científico, colocando os diferentes sujeitos envolvidos no ato de pesquisar como protagonistas e produtores de conhecimentos.

Nessa perspectiva, a formação-investigação se constituiu enquanto espaço democrático e dialógico, no qual os sujeitos colocavam-se na condição de protagonistas do processo de investigação e puderam, a partir da compreensão crítica do contexto educativo e social, desenvolver a consciência crítica acerca dos projetos educativos desenvolvidos na escola e suas interfaces com as práticas sociais.

A partir das contribuições teóricas e epistemológicas da pedagogia crítica, vinculadas às proposições teóricas de Freire (2005), Giroux (1986) e Apple (1989), construímos uma metodologia de problematização capaz de identificar os elementos centrais – síntese da visão comum dos educadores – sobre a realidade, para iniciarmos os questionamentos necessários ao seu desvelamento, situando-o num tempo e espaço geopolítico, cultural e econômico, demonstrando as relações de poder e dominação implícitas nas práticas culturais, organizativas e políticas, tanto dos grupos sociais quanto da escola, e construindo uma visão de complexidade e totalidade da realidade.

Inspirada na teoria do conhecimento concebida por Freire (2005), a proposta de formação-investigação e, consequentemente, o processo de reorientação curricular foi construído com base nos seguintes procedimentos teórico-metodológicos: a) problematização e apreensão da realidade; b) reflexão coletiva sobre as práticas educativas e o desvelamento das situações-limites no cotidiano escolar, bem como suas relações com o contexto sociocultural; c) as possibilidades de reorientação da proposta curricular.

Formação continuada de educadores: rediscutindo suas bases epistemológicas

Nas últimas décadas, ampliaram-se as exigências com relação à melhoria da qualidade da educação oferecida nas escolas públicas brasileiras. Juntamente com isso, cresceu o debate em torno das políticas de formação de professores, transferindo-se a responsabilidade da melhoria da educação para o processo de formação dos profissionais da educação. Sabemos que a qualidade da educação não está associada somente às políticas de formação, no entanto não podemos ignorar os desafios vivenciados historicamente nessa área, refletidos nas dificuldades dos educadores em desenvolver projetos educativos consistentes, capazes de desenvolver a criatividade, autonomia e a capacidade crítica dos educandos para lidarem com o conhecimento no contexto das escolas brasileiras.

Os estudos de Gatti (2008), Freitas (2007), Nascimento (2007), entre outros, demonstram que a fragilidade das políticas e práticas de formação inicial e continuada dos educadores no Brasil vão desde a fragmentação nos projetos curriculares à dicotomia entre teoria/prática, passando pela frágil formação teórico-metodológica, que limita a capacidade dos futuros educadores quanto ao desenvolvimento das leituras críticas acerca das teorias que norteiam os projetos educativos e à apropriação crítica do modelo de educação que pretende construir em diálogo com seus pares e com a sociedade, situado num determinado contexto sócio-histórico e cultural. Por outro lado, temos ainda a descontextualização das práticas formativas e a ausência de uma inserção crítica dos estudantes no ambiente da escola que possibilite a apropriação da cultura da docência e a apropriação crítica do cotidiano da escola, ainda na formação inicial.

Desse modo, a compreensão das políticas e práticas de formação de educadores no Brasil passa pela discussão dos pressupostos políticos e epistemológicos que dão sustentação aos diferentes modelos de formação instituídos em nosso país nos diferentes tempos e espaços. O desvelamento desses pressupostos teórico-metodológicos e político-ideológicos podem tanto abrir caminhos para o desvelamento das políticas de educação e de formação de educadores, quanto contribuir no desenvolvimento de estratégias políticas e pedagógicas associadas à luta pela formação crítica dos educadores.

A reflexão acerca das bases epistemológicas que dão sustentação à formação de educadores no Brasil torna-se imprescindível no sentido de desconstruir os falsos discursos disseminados nos projetos de formação que, apesar de incorporar conceitos que apontam na direção de uma prática inovadora, trazem em sua essência valores e interesses inerentes aos princípios políticos e pedagógicos conservadores e neoliberais. A partir desse ideário conservador, os profissionais da educação são preparados com base em procedimentos didático-metodológicos instrucionais, voltados à transmissão de conhecimento a serem aplicados de forma acrítica em sala de aula. Dessa forma, os problemas serão solucionados mediante a seleção dos meios técnicos.

Os estudos desenvolvidos por Pimenta (2006) e Ghedin (2006) sobre os pressupostos políticos e epistemológicos que norteiam a formação docente no Brasil destacam a predominância de três modelos teórico-metodológicos e políticoepistemológicos, denominados de racionalidade técnica, racionalidade prática e racionalidade crítica. Esses modelos são construídos a partir de perspectivas políticas e filosóficas que apontam diferentes caminhos à formação dos educadores e aos papéis exercidos pelos profissionais da educação no contexto dos projetos educativos. Além disso, trazem implícitas diferentes concepções de educação, de escola e do processo de produção do conhecimento.

Os modelos de formação docente fundados nos princípios da racionalidade3 técnica reforçam a dualidade apresentada nas dicotomias (teoria-prática), fragmentação (conteúdo-forma) e a polarização (saber e saber fazer). Sob a influência da filosofia positivista, esse paradigma4 privilegia a formação do professor técnico-especialista voltado à transmissão de conhecimentos e à aplicação de métodos e técnicas de ensino. Enquanto técnico, o docente tem o papel de selecionar e aplicar metodologias que considera mais eficazes para atingir os propósitos pedagógicos, sem fazer considerações sobre os propósitos da educação e seus fins.

Nessa perspectiva, os educadores são condicionados à implementação de práticas educativas sem a compreensão dos fins que norteiam tais ações, resultando em atividades alienantes, uma vez que os educadores não dominam os princípios políticos e filosóficos que norteiam essas atividades. Assim, os profissionais exercem suas funções de forma acrítica, limitando-se ao repasse dos programas e conteúdos pré-estabelecidos, sem fazer uma intervenção crítica e transformadora. Nesse processo, o/a educador/a "se torna prisioneiro da ação instrumental e prática", não sendo capaz de enxergar os limites de sua ação nem a essência de sua prática (NORONHA, 2010, p. 13).

No entanto, as mudanças ocorridas no campo da produção do conhecimento, das relações sociais, culturais e políticas, fomentadas pelo surgimento de uma nova sociabilidade democrática, levantaram inúmeros questionamentos acerca da eficácia desses modelos de formação fundada no princípio da racionalidade técnica, já que suas concepções de educação e o papel atribuído ao/a educador/a não atendem às necessidades formativas da atualidade.

Contrapondo-se à racionalidade técnica, Tardif (2000, p. 11) aponta para a necessidade de se adotar a epistemologia da prática profissional, cuja finalidade seria a de revelar os saberes que englobam "[...] os conhecimentos, as competências, as habilidades e as atitudes, aquilo que muitas vezes foi chamado de saber, saber-fazer e saber-ser", objetivando compreender a natureza desses saberes, assim como o papel que desempenham tanto no processo do trabalho docente quanto na identidade profissional dos educadores.

Para Schön (2001), a epistemologia da prática advém do conhecimento que os profissionais constroem a partir da reflexão sobre as suas práticas, pensar o que fazem, enquanto fazem em situações de incerteza, singularidade e conflito. Nesse caso, o desenvolvimento da racionalidade prática está associado ao processo formativo que fomenta o desenvolvimento da reflexão-na-ação, vinculada aos pressupostos teóricos e metodológicos do pensamento pragmático, apresentados anteriormente.

Para o autor, a reflexão sobre a prática se dá em diferentes categorias e momentos: i) conhecimento-na-ação, que se manifesta no saber-fazer, na solução de problemas da prática, fruto da experiência e de reflexões anteriores; ii) reflexão-na-ação, que se refere aos processos de pensamento que se realizam durante o desenvolvimento da experiência, tendo como objetivo identificar os problemas que surgem durante a ação e promover as mudanças no curso da intervenção; iii) reflexão sobre a ação, que ocorre num momento posterior à intervenção, com o intuito de repensar o vivido, descrevendo e objetivando o que já ocorreu; iv) reflexão sobre as reflexão-na-ação, que implica um distanciamento maior da ação e a interpretação e investigação do próprio processo, permitindo uma revisão contínua da prática (SCHÖN, 2001).

Nesse caso, a formação docente, pensada a partir da epistemologia da prática, tem como ponto de partida a reflexão das situações concretas vivenciadas pelos/as educadores/as no contexto da ação educativa. Nessa perspectiva, as vivências e experiências práticas dos educadores tornam-se o foco central dos processos de formação, considerando que a prática assume um lugar decisivo na produção do conhecimento e saberes docentes, atribuindo-se à formação teórica um papel secundário ou de menor importância.

Desse ponto de vista, esses processos formativos são construídos sob a orientação filosófica do pragmatismo e voltam-se à construção de conhecimentos vinculados às necessidades práticas dos educadores, limitando-se em grande medida à apropriação de informações e conhecimentos fragmentados e descontextualizados dos processos políticos e pedagógicos implícitos ao fazer educativo. Esse aspecto é duramente criticado por Scalcon (2008, p. 40), pois ao assumir o caráter de espontaneidade da atividade docente, a filosofia pragmática

[...] reduz o saber profissional à mera aquisição de informações e dados que não ultrapassam o nível do senso comum, não permitindo apreender as articulações históricas existentes entre o trabalho educativo e a apropriação do conhecimento socialmente elaborado.

As políticas de formação vinculadas à epistemologia da prática, ao supervalorizar a prática, distanciam-se da teoria enquanto elemento capaz de possibilitar uma reflexão profunda sobre a educação, enquanto projeto emancipador, e sua dimensão política e pedagógica, pois "[...] é a teoria que possibilita, de modo indissociável, o conhecimento da realidade e o estabelecimento de finalidades para sua transformação" (SILVA, 2011, p. 22).

O fato de questionarmos os pressupostos teórico-metodológicos e epistemológicos que norteiam os projetos de formação docente voltados à reflexão sobre a prática, num viés pragmático, não significa que desconhecemos a importância da prática na formação dos educadores. Pelo contrário, a reflexão crítica sobre as experiências educativas e socioculturais dos profissionais da educação e educandos é imprescindível no desenvolvimento de processos formativos críticos, pois a transformação dos projetos educativos instituídos na escola ocorre na medida em que submetemos as atividades escolares aos processos de problematização e reflexão crítica, auxiliados pelas teorias da educação. Desse modo, compartilhamos com a argumentação de Noronha (2010, p. 19):

Não se trata, portanto, de negar o cotidiano da prática do educador caracterizando-o simplesmente como o lugar do senso comum (vivência), em contraposição a uma perspectiva teórico-acadêmica que este deveria adquirir para entender e dar sentido à experiência.

Defendemos que a reflexão sobre as práticas educativas assuma um espaço de destaque dentro dos projetos formativos, no entanto, que essa reflexão não seja limitada ao espaço da sala de aula, mas também contemple uma análise mais ampla sobre o contexto sócio-histórico e cultural em que estão inseridos os educandos, educadores e as práticas educativas. Que essa reflexão seja construída a partir dos princípios políticos e filosóficos da racionalidade crítica.

Nesse caso, enquanto a formação de educador construída sob a orientação da racionalidade prática busca resposta para os problemas educativos na reflexão sobre as práticas dos educadores em sala de aula, compreendendo-a numa perspectiva individualizada e isolada do contexto sócio-histórico e cultural, os processos formativos desenvolvidos a partir da racionalidade crítica partem do princípio de que a reflexão sobre as práticas educativas precisam estar articuladas a uma análise mais ampla sobre a realidade na qual os projetos educativos são produzidos, tendo em vista que limitar a reflexão somente à prática dos educadores é correr o risco desta ficar situada passivamente numa atitude acrítica em relação a ela mesma, perdendo a capacidade de transformação da realidade.

Corroborando essas reflexões, Pimenta (2006), Contreras (2002), dentre outros, alertam para o risco da formação desenvolvida com base na racionalidade prática limitar as possibilidades que os docentes têm em desenvolver novas leituras críticas sobre suas práticas e os projetos educativos. Para esses autores, ao dar-se uma ênfase excessiva à prática, pode-se esvaziar o processo formativo da dimensão teórica necessária para o aprofundamento da reflexão crítica acerca da prática e de sua transformação. Para Pimenta (2006, p. 26), a teoria tem um papel fundamental na formação dos profissionais da educação, pois é por meio dela que se pode

[...] oferecer aos professores perspectivas de análise para compreenderem os contextos históricos, sociais, culturais, organizacionais e de si mesmos como profissionais, nos quais se dá sua atividade docente, para neles intervir, transformando-os.

A proposição de uma reflexão sobre a prática deslocada do contexto sóciohistórico, político e cultural e dos referenciais teóricos que dão sustentação às políticas educacionais e às próprias práticas educativas constitui-se numa das principais limitações das concepções políticas e filosóficas da racionalidade prática. Para Ghedin (2006, p. 131-132),

A grande crítica que se coloca contra Schön não é tanto a realização prática de sua proposta, mas seus fundamentos pragmáticos. A questão que me parece central é que o conhecimento pode e vem da prática mas não há como situá-lo exclusivamente nisto. É decorrente desta redução que se faz da reflexão situada nos espaços estreitos da sala de aula que se situa a crítica ao conceito de professor reflexivo.

No contexto da epistemologia da prática construiu-se também a ideia da formação do professor pesquisador capaz de refletir sobre seu próprio fazer e promover as mudanças necessárias à inovação dos projetos educativos. Com a crescente difusão dessa ideia do professor pesquisador, Silva (2011) alerta para a fragilidade dessa modalidade de pesquisa, pois restringe a produção de conhecimentos ao conhecimento pedagógico, assim como "recusa-se à totalidade explicativa e se filia a uma concepção em que o senso comum é emancipatório, pois sustenta que a ação do professor produz saberes que nada ficariam devendo aos conhecimentos obtidos por meio da pesquisa acadêmica" (SILVA, 2011, p. 27).

Nesse caso, tornam-se evidentes os limites implícitos neste trabalho de pesquisa sobre a prática, uma vez que os problemas que permeiam as práticas educativas e a ação docente são bem mais amplos e complexos, associados aos processos históricos, políticos e sociais da sociedade capitalista. Assim, as soluções encontradas pelos/as educadores/as, no âmbito deste modelo de pesquisa, não dão conta de responder e/ou resolver os problemas estruturais e institucionais presentes nas escolas.

O fato de apontarmos os limites da proposta de formação do professor reflexivo não significa que somos contra a formação do educador enquanto pesquisador na educação básica. A transformação das práticas educativas passa pela formação de educadores enquanto intelectuais críticos que tenham a competência técnica, ética, política e científica para desenvolver pesquisas sobre sua própria prática, articulando-a com o contexto político no qual está inserido. Por essa razão, concordamos com Silva (2011, p. 29), quando afirma que

[...] para nós, não existe um professor pesquisador/reflexivo capaz de resolver, por meio da pesquisa, apenas problemas que se apresentam na sala de aula ou no cotidiano escolar. Se for para reivindicar a pesquisa na educação básica, queremos um professor capacitado como pesquisador no sentido estrito – ciência, que seja capaz de investigar o campo em que desenvolve a sua vida profissional e os objetos de estudo da sua área; um profissional que possa produzir e enriquecer o acervo científico de uma área específica e/ou da educação.

Nessa perspectiva, torna-se necessário pensar no desenvolvimento de processos formativos que favoreçam aos educadores a apropriação dos fundamentos políticos, pedagógicos e epistemológicos da práxis educativa. Uma formação fundamentada na epistemologia da práxis que permita aos profissionais da educação uma ação crítica e consciente diante dos fins, princípios e valores implícitos nos projetos educativos e curriculares.

As políticas de formação inicial e continuada associadas à epistemologia da práxis se constituem a partir da articulação teoria-prática, permitindo uma problematização e uma reflexão crítica profunda acerca da realidade concreta e das ideologias que permeiam a forma (senso comum) de ver e pensar o mundo de educandos e educadores/as, possibilitando a destruição da pseudoconcreticidade, que na perspectiva gramsciana equivale ao momento da ‘catarse’ "em que o domínio das estruturas de dominação e da práxis reiterativa ou repetitiva torna-se em instrumento de uma nova forma ético-política e em fonte de novas iniciativas" (NORONHA, 2005, p. 90).

A partir das contribuições teóricas da filosofia da práxis, Contreras (2002) propõe o desenvolvimento de uma racionalidade fundada nos princípios da epistemologia da práxis que amplie o processo de reflexão sobre as práticas educativas. Nessa perspectiva, os educadores precisam assumir uma postura crítica frente ao projeto educativo, bem como diante das concepções de sociedade, de escola e de ensino, participando tanto da construção do conhecimento teórico quanto da transformação do pensamento e da prática social. Desse modo, o autor defende que o educador desenvolva

[...] um conhecimento sobre o ensino que reconheça e questione sua natureza socialmente construída e o modo pelo qual se relaciona com a ordem social, bem como analisar as possibilidades transformadoras implícitas no contexto social das aulas e do ensino. (CONTRERAS, 2002, p.157-158).

Com essa proposição teórica, Ghedin (2006, p. 133) recomenda a transição da epistemologia da prática para a epistemologia da práxis, "[...] pois a práxis é um movimento operacionalizado simultaneamente pela ação e reflexão, isto é, a práxis é uma ação final que traz, no seu interior, a inseparabilidade entre teoria e prática". Assim, o processo de reflexão não pode limitar-se ao espaço da sala de aula, deve voltar-se para as condições históricas e culturais que envolvem o contexto educativo e os sujeitos envolvidos no processo formativo. Nesse caso,

Um processo de reflexão crítica permitiria aos professores avançar num processo de transformação da prática pedagógica mediante sua própria transformação como intelectuais críticos, isto requer a tomada de consciência dos valores e significados ideológicos implícitos nas atuações docentes e nas instituições, e uma ação transformadora dirigida a eliminar a irracionalidade e a injustiça existentes nestas instituições [...]. A reflexão crítica apela a uma crítica da interiorização de valores sociais dominantes, como maneira de tomar consciência de suas origens e de seus efeitos (GHEDIN, 2006, p. 139).

Diante desse contexto, enquanto o paradigma da racionalidade técnica pregou o distanciamento entre sujeito-objeto, conhecimento-contexto, racionalidade-subjetividade, a epistemologia da práxis propõe a rearticulação dos diferentes saberes e contextos, possibilitando que as práticas formativas sejam construídas a partir da articulação entre teoria/prática, conhecimento científico/saber social, experiências intelectuais e socioculturais.

No âmbito da epistemologia da práxis, os cursos de formação de professores possibilitam a articulação e a integração dos diferentes saberes oriundos das práticas sociais, culturais e educativas, visando à produção de um olhar integral e global da sociedade, resultando numa compreensão ampla da realidade sócio-histórica e dos processos educativos.

Nesse caso, a compreensão crítica do contexto sócio-histórico e cultural é fundamental ao desenvolvimento da consciência crítica do educador, possibilitando-o a superação de uma compreensão sobre a prática pedagógica concebida de forma fragmentária, incoerente, desarticulada e simplista, guiada pelo senso comum. A partir da reflexão filosófica, os educadores serão capazes de desenvolver uma compreensão unitária, coerente, articulada e intencional dos projetos educativos, guiada pelo desenvolvimento da consciência filosófica. Com isso, criam-se as condições para que os educadores superem as concepções ingênuas, pautadas numa visão superficial do contexto que envolve suas atividades, assumindo uma postura crítica frente à missão política de construir processos educativos que se coloquem enquanto processos políticos voltados à formação crítica e emancipadora dos jovens.

Para Saviani (2003), os projetos de formação docente devem ser construídos a partir de uma pedagogia emancipadora que fomente a construção coletiva do conhecimento e o desenvolvimento de metodologias e práticas curriculares que permitam questionar os conhecimentos legitimados socialmente, articulando-os com os saberes oriundos das vivências dos alunos. Os docentes devem compreender que a construção do currículo deve pautar-se pelo resgate da cultura do aluno e "não pela distribuição do conhecimento, que se reveste de caráter prescritivo e limita ao professor à condição de meio" (SAVIANI, 2003, p. 50).

Corroborando essa reflexão, Sacristán (2000) reafirma que os docentes devem exercer um papel significativo na reelaboração do currículo no contexto da prática pedagógica. Para o autor,

O professor é um agente muito ativo e decisivo na concretização dos conteúdos e significados dos currículos, moldando a partir de sua cultura profissional qualquer proposta que lhes é feita, seja através da prescrição administrativa, seja do currículo elaborado pelos materiais, guias, livros-textos, etc. independentemente do papel que consideramos que ele há de ter neste processo de planejar a prática, de fato é um "tradutor" que intervém na configuração dos significados das propostas curriculares. O plano que os professores fazem do ensino, ou o que entendemos por programação, é um momento de especial significado nessa tradução (SACRISTÁN, 2000, p. 105).

Desse modo, o autor defende a ideia de concebermos o professor como um mediador decisivo entre o currículo estabelecido e os educandos, assumindo um papel estratégico no desenvolvimento do currículo, com a tarefa de selecionar e organizar os conteúdos e estabelecer a mediação entre os conhecimentos escolares e aqueles oriundos das práticas socioculturais dos educandos.

O processo de formação-investigação e as possibilidades de reorientação curricular

Com base nos pressupostos teórico-metodológicos da epistemologia da práxis, construímos a proposta de formação-investigação com o propósito de fomentar reflexões críticas acerca das práticas educativas e curriculares implementadas pelos educadores, assim como sobre o contexto sócio-histórico e cultural nos quais essas práticas estão situadas, com o propósito de fomentar um processo de reorientação crítica das práticas educativas e curricular instituídas na Escola Municipal Liberato Vieira.

Nesse caso, a proposta teórico-metodológica foi concebida tendo a práxis como princípio político-epistemológico norteador do processo de compreensão crítica das práticas educativas e curriculares dos educadores e do contexto sócio-histórico em que estão situados, assim como do processo de organização e seleção do conhecimento escolar. Ou seja, compreendemos que a práxis constitui um dispositivo filosófico que deve orientar tanto os processos de formação dos educadores quanto a reorientação das propostas curriculares construídas na perspectiva crítico-emancipatórios, constituindo-se num elemento fundamental à produção do conhecimento crítico comprometido com a transformação social.

Nessa perspectiva, o processo de formação-investigação foi desenvolvido a partir da articulação entre teoria-prática, texto-contexto, conhecimento científico-popular e da relação dialética ação-reflexão-ação, possibilitando aos sujeitos a apropriação crítica de suas práticas educativas e a compreensão das interfaces entre o projeto educativo e as práticas sociais. Com este trabalho, tivemos a intenção de provocar a reorientação dos princípios políticos e epistemológicos que dão sustentação ao fazer/pensar das educadoras, instigando os/as educadores/as a revisarem o projeto educativo na perspectiva da formação crítica e emancipadora (LIMA, 2015).

Imbuído do desejo de pensar uma formação que se constitua enquanto práxis formativa5, as estratégias pedagógicas utilizadas na formação foram construídas tendo o diálogo e a problematização como dispositivos6 teórico-metodológicos que fomentem a compreensão do contexto sócio-histórico no qual estão inseridos educadores, educandos e os projetos educativos, assim como o desenvolvimento de projetos educativos com base nos pressupostos políticos, pedagógicos e epistemológicos crítico-emancipatórios.

Nesse caso, o diálogo e a problematização se colocam como categorias teóricometodológicas imprescindíveis na construção de propostas de formação de educadores e de práticas educativas e curriculares vinculadas aos princípios políticos e epistemológicos críticos, que concebe a produção do conhecimento enquanto processo dialógico e dialético, fundado na compreensão crítica que os sujeitos sociais têm sobre o seu contexto, numa perspectiva de pensar com os sujeitos, compartilhando as diferentes perspectivas de conhecer e compreender o mundo, problematizando e dialogando com os diferentes conhecimentos e saberes construídos na práxis cotidiana.

A partir dessa concepção política e epistemológica, buscamos expandir esse olhar dos sujeitos sobre o mundo, tornando-o crítico, consistente e coerente, a partir das sínteses construídas por meio da práxis formativa voltada à investigação do pensar do próprio povo sobre a realidade, seu ato de atuar sobre ela, enfim, sua práxis. Desse modo, primeiro dialogamos com as diferentes visões que os sujeitos têm sobre a realidade sociocultural com o intuito de compreender como eles se veem no/com mundo e quais suas concepções do mundo, para, em seguida, submeter essas visões aos processos de problematização com o propósito de produzir sínteses reflexivas, permitindo uma compreensão crítica da realidade, a partir da construção do olhar histórico-dialético. O propósito era instigar os educadores a pensarem sobre a realidade dentro de um movimento histórico, permeado por interesses políticos, econômicos e culturais, concebendo-a não como algo estático, pronto, acabado, mas fruto da ação humana, das relações de poder instituídas durante determinados tempos e espaços, condicionadas pelas relações sociais e políticas.

Neste trabalho, após a compreensão crítica da realidade, buscamos situar as práticas educativas nesse contexto, a fim de demonstrar que os condicionantes históricos, políticos e culturais que determinam e/ou influenciam as práticas socioculturais também estão presentes de forma implícita nos discursos e práticas curriculares, norteando muitas vezes as expectativas, os sonhos e os desejos de educando/a e educadores/as. Com isso, problematizamos também esses valores, concepções e ideologias que alimentam e norteiam as práticas sociais com o intuito de demonstrar como ambos também influenciam a forma de compreender/pensar, atuar e ser no mundo.

Com a utilização do diálogo e da problematização como dispositivos teóricometodológicos, desencadeamos as reflexões críticas necessárias sobre as práticas sociais e educacionais com o intuito de fomentar o desenvolvimento da consciência dos educadores, a partir da apropriação crítica desta realidade, possibilitando a construção de uma ação consciente na definição dos rumos políticos e pedagógicos que seriam empreendidos no processo de reorientação curricular. Nesse caso, faz-se necessário que

[...] o diálogo seja o selo do ato de um verdadeiro conhecimento, sendo preciso que os sujeitos cognoscentes tentem aprender a realidade cientificamente no sentido de descobrir a razão de ser da mesma – que faz ser como está sendo. Assim, conhecer não é lembrar algo previamente conhecido e agora esquecido. Nem a ‘doxa’ pode ser superada pelo ‘logos’ fora da prática consciente dos seres humanos sobre a realidade (FREIRE, 1982, p. 55, grifos nossos).

O processo de formação crítica voltado ao desvelamento da realidade e ao desenvolvimento da consciência crítica dos educadores está condicionado ao desenvolvimento de uma base sólida de conhecimento acerca das teorias críticas e dos princípios políticos e filosóficos que orientam a educação crítica e emancipadora. Isso implica a construção de estratégias formativas que garantam ao educador

[...] a oportunidade de adquirir uma base sólida de conhecimentos que lhes propiciem conhecer a realidade em que vivem, propiciar a vivência de relações sociais mais democráticas, que antecipam uma ordem social mais coletiva, participativa, igualitária, a partir de uma ação individual e coletiva. Compreendemos que não são os discursos que formam a consciência política, mas a prática, ao dar sentido concreto a esses discursos (ANGOTTI; BASTOS; MION, 2001, p. 190).

As reflexões desenvolvidas coletivamente estavam associadas ao esforço de teorizar sobre a compreensão que temos da realidade sociocultural e sobre as práticas educativas desenvolvidas nas escolas, buscando compreendê-las a partir do arcabouço teórico-crítico que orientam as teorias e práticas no âmbito das ciências da educação. O propósito era que os educadores compreendessem as teorias que estão presentes em suas práticas, bem como os fundamentos teórico-críticos que poderão auxiliá-las na construção de práticas e projetos educativos críticos e emancipadores.

Nesse processo de formação-investigação – construído a partir do princípio da dialogicidade e da problematização – tornou-se possível levar as educadoras a

"[...] compreenderem que esta forma de agir requer, por um lado, a interação dialógica e, por outro, quase como uma obviedade do primeiro aspecto, que não é possível fazer educação de forma isolada e individual, exigindo um atuar em comunidades [...]" (ANGOTTI et al, 2000, p. 108).

Desse modo, um dos princípios básicos da formação crítica é que os educadores assumam uma postura crítica diante da realidade sociocultural e política na qual a escola está situada, compreendendo os limites e desafios que estão colocados, tendo em vista a construção de projetos educativos comprometidos com a formação de sujeitos críticos. Para tanto, é necessário que os processos formativos contribuam na formação destes profissionais, instigando-os a exercerem o papel de intelectual crítico, capaz de pensar as propostas curriculares em diálogo com os grupos sociais e seus saberes socioculturais, voltados ao atendimento de suas necessidades formativas, considerando os aspectos político, técnico, cultural e ético (LIMA, 2011).

Nessa perspectiva, compreendemos que os projetos de formação continuada precisam comprometer-se com a transformação das práticas educativas e com os projetos curriculares das escolas. No entanto, a mudança da prática implica o desenvolvimento de processos investigativos que permitam sua compreensão crítica, tendo o trabalho dos educadores como fonte de produção de conhecimento – como espaço de articulação entre teoria e prática – como práxis capaz de potencializar a capacidade de "ser mais" dos/as profissionais da educação. Que assuma a produção do conhecimento como um processo forjado no chão da escola – da práxis educativa – que traz em si a potencialidade e as possibilidades de transformação das práticas curriculares desenvolvidas nas escolas (FREIRE, 2005).

Dessa forma, organizamos os tempos e espaços de diálogos críticos de forma que fosse possível criar uma metodologia de formação-investigação em que os profissionais da educação pudessem expressar seus pensamentos, crenças e ideias sobre a realidade sociocultural, bem como sobre suas práticas educativas e curriculares. Uma metodologia de problematização capaz de identificar os elementos centrais – síntese da visão comum dos educadores – sobre a realidade, para iniciarmos os questionamentos necessários ao seu desvelamento, situando-o num tempo e espaço geopolítico, cultural e econômico, demonstrando as relações de poder e dominação implícitas nas práticas culturais, organizativas e políticas, tanto dos grupos sociais quanto da escola, a fim de construir uma visão de complexidade e totalidade da realidade.

Os esforços empreendidos neste trabalho de formação-investigação voltado à compreensão crítica do contexto sócio-histórico e cultural, associado ao desvelamento das práticas educativas instituídas na escola, tinham como foco central a reorientação da proposta pedagógica e curricular da escola, considerando a realidade sociocultural dos educandos e os saberes socialmente construídos naquele contexto, bem como os princípios pedagógicos da pedagogia crítica e da educação contextualizada.

Nesse caso, o desenvolvimento de propostas curriculares contextualizadas está associada à desconstrução das práticas e rotinas didático-pedagógicas restritas à sala de aula, incorporando ao projeto da escola outras ações que estabeleçam um diálogo com as atividades sociais, culturais, políticas e produtivas desenvolvidas na comunidade. A estratégia é reconhecer o potencial formativo dessas atividades, ampliando assim as possibilidades de apropriação e construção do conhecimento no âmbito do currículo escolar, bem como as oportunidades de articulação entre os diferentes saberes e práticas sociais e educativas.

A reorientação curricular está associada ao processo de reorganização do trabalho pedagógico e dos tempos e espaços educativos. Ou seja, torna-se necessário criar as possibilidades de vivências dos princípios e valores que norteiam a formação humana dos educandos. É preciso garantir as condições para que os alunos construam coletivamente seus conhecimentos, possam partilhar saberes e experiências, buscar soluções para os problemas científicos, sociais e culturais, bem como possam ampliar os laços de companheirismo, amizade e solidariedade, como formas de consolidar a formação cidadã.

Com o intuito de fomentar a reorganização do trabalho pedagógico desenvolvido na Escola Municipal Liberato Viera, iniciamos a discussão sobre a organização do currículo a partir do debate sobre os princípios da interdisciplinaridade e da contextualização. Desse modo, propomos um conjunto de atividades em que o grupo fosse desafiado a pensar numa proposta de trabalho que articulasse esses dois princípios.

Na reflexão do grupo, ficou evidente que a concepção teórico-metodológica mais adequada à organização do currículo na perspectiva interdisciplinar e contextualizada é aquela associada à construção de projetos interdisciplinares a partir de temas geradores7 oriundos do contexto sociocultural dos alunos, que fomentem o trabalho coletivo de estudos e a investigação, com o auxílio das diferentes áreas do conhecimento escolar.

A construção dessa compreensão inicial – dos eixos temáticos como norteadores do processo de organização/construção do conhecimento escolar - foi um passo importante na compreensão dos princípios políticos e epistemológicos que irão nortear a proposta de currículo contextualizado. No entanto, buscamos ampliar a discussão para além das atividades e/ou projetos pontuais, pensando numa proposta curricular integrada. Daí o desafio de pensar em eixos temáticos – numa perspectiva macropolítica ou macrossocial – que garantam essa articulação entre as diferentes áreas de conhecimento, bem como a integração dos diferentes saberes produzidos nas áreas de conhecimentos em articulação com os saberes socioculturais oriundos das práticas cotidiana dos educandos (LIMA, 2014).

Nessa perspectiva, propomos aos educadores o levantamento de temáticas relevantes – socialmente, politicamente e culturalmente - tendo como base o breve diagnóstico construído juntamente com a comunidade e as vivências deles no âmbito das práticas educativas e curriculares. Os temas geradores8 foram escolhidos considerando a realidade sociocultural, ambiental, política e econômica da comunidade, em diálogo com as necessidades formativas dos educandos e os conhecimentos escolares necessários ao desenvolvimento das habilidades e competências dos educandos em cada ano de estudo.

A partir dos eixos temáticos serão desenvolvidos os projetos interdisciplinares que irão contemplar o processo de investigação e produção do conhecimento escolar articulando os saberes das diferentes áreas do conhecimento. Ou seja, de forma coletiva os educadores/as irão pensar em propostas de trabalho voltadas às necessidades e/ou demandas sociais que fomentem processos de investigação visando à produção de conhecimentos que apontem soluções a partir da articulação interdisciplinar dos conhecimentos escolares.

Nesse caso, os eixos temáticos foram pensados a partir de um olhar crítico sobre o contexto sociopolítico e cultural da comunidade, visualizando temáticas relevantes socialmente e capazes de despertar o interesse dos educandos e da população local, desencadeando processos coletivos de investigação, pesquisas e produção de novos conhecimentos sobre os aspectos locais em processo de investigação e a produção de alternativas de superação dos problemas e/ou situações-problema em estudo.

Um dos dilemas vivenciados pelos educadores na construção da proposta curricular contextualizada, a partir de eixos temáticos, é a ruptura das lógicas organizativas que norteiam a sequência didática dos conteúdos propostos pelos livros didáticos e aquelas construídas no âmbito da própria organização do conhecimento científico, determinados pelos princípios epistemológicos que orientam a construção do conhecimento nas diferentes áreas.

Desse modo, dialogamos com os educadores com o intuito de superarmos essa visão linear e fragmentada do conhecimento, demonstrando a relevância e as contribuições que uma proposta curricular integrada pode trazer para a apropriação e a construção do conhecimento dentro de cada área a partir de novos referenciais políticos, pedagógicos e epistemológicos que buscam fundamentar os estudos e as dinâmicas de produção do conhecimento a partir da vivência cotidiana dos sujeitos sociais.

A partir da superação dessa lógica fragmentada e descontextualizada de pensar o conhecimento escolar, novos princípios políticos e epistemológicos foram incorporados ao processo de reorientação curricular, na medida em que novos significados políticos e sociais são atribuídos ao conhecimento escolar, colocando-o a serviço da compreensão crítica do mundo e do desenvolvimento de competências e habilidades que auxiliem os educandos na sua inserção e atuação no mundo.

Esse trabalho de organização e abordagem do conhecimento na perspectiva interdisciplinar e contextualizada permite uma reordenação interna dos conteúdos nas diferentes áreas do conhecimento, favorecendo rupturas na organização destes conteúdos e nas sequências rígidas e fragmentadas que impedem uma apropriação significativa.

Outro aspecto importante nesse processo de reorientação curricular está associado à criação de espaços e tempos que oportunizem aos educandos vivenciar a prática da participação e do protagonismo. A proposta pedagógica das escolas deve possibilitar que os educados aprendam "a tomar decisões, a fazer escolhas, a se organizar e ajudar a organizar o espaço no qual vive. As pequenas responsabilidades assumidas pela criança podem refletir positivamente no andamento da escola" (MACHADO, 2003, p. 74). Essas iniciativas são significativas no desenvolvimento de uma cultura política que fomente a radicalização da democracia na escola e, consequentemente, na comunidade, uma vez que o espírito cidadão forjado nos espaços da escola pode contribuir na construção de uma nova cultura política na sociedade, rompendo com as práticas autoritárias consolidadas na sociedade brasileira.

Desse modo, um dos focos deste trabalho foi a criação de uma proposta curricular que permita aos educandos e educadores assumirem o papel de protagonistas do conhecimento, tendo a pesquisa e a investigação dos aspectos socioculturais, políticos e econômicos como meio de produção e apropriação do conhecimento escolar. Nesse caso, com a pesquisa e investigação, os educando serão orientados a utilizarem os saberes das diferentes áreas do conhecimento para compreenderem a realidade em sua complexidade e totalidade, criando as possibilidades de pensar o tema em estudo numa perspectiva multidimensional, utilizando-se das contribuições teórico-metodológicas de cada área para pensar a realidade em estudo a partir de diferentes perspectivas, seja ela histórica, cultural, política, socioambiental, dentre outras possibilidade de se pensar a realidade e sua complexidade e inter-relações (LIMA, 2015).

A partir dessa concepção teórico-metodológica, a pesquisa ganha uma dimensão formativa relevante, tornando-se o elemento dinamizador do processo de ensino e aprendizagem, colocando a autonomia do educando como condição essencial à produção crítica do conhecimento. Assim, os educandos são estimulados também a desenvolver experimentos, atividades práticas relacionadas às suas práticas sociais, dentre outros aspectos que irão auxiliar no processo de construção do conhecimento a partir da vivência concreta no mundo do trabalho e da vida social da comunidade.

Nesse caso, além de o educando estar se apropriando de forma ativa e crítica dos conhecimentos escolares, está também aperfeiçoando e desenvolvendo novos conhecimentos que irão auxiliar no desenvolvimento socioeconômico e cultural da comunidade. Dessa forma, os trabalhos com os projetos interdisciplinares aprofundam também a inserção da escola na comunidade, estreitando e fortalecendo o vínculo da família com a escola, contribuindo dessa forma para a permanência do aluno na instituição escolar.

Considerações finais

Com base nas experiências teórico-práticas vivenciadas com as educadoras da Escola Municipal Liberato Vieira, compreendemos que os projetos de formação continuada de educadores devem voltar-se à compreensão crítica das práticas educativas e dos saberes construídos pelos docentes no exercício de sua práxis. Saberes estes que não se restringem ao fazer educativo, mas se constituem numa interface com as vivências e experiências oriundas das práticas socioculturais e dos cruzamentos com as práticas de outros sujeitos e instituições.

Além disso, tivemos a oportunidade de compreender a complexidade que envolve as práticas formativas desenvolvidas na perspectiva crítico-emancipatória, tendo em vista as rupturas que precisamos desencadear no campo político, pedagógico e epistemológico, assim como com relação à cultura escolar e profissional que está consolidada na prática das instituições de ensino e dos profissionais associada ao paradigma positivista, com intuito de criar novas possibilidades de ensino e aprendizagens comprometidas com a formação crítica dos educandos, considerando seus contextos e saberes.

Daí a necessidade de apostarmos na construção de processos formativos que tenham a escola como lócus de formação-investigação, capaz de problematizar as práticas educativas e curriculares visando à compreensão crítica do projeto educativo, através da explicitação dos fins políticos e sociais implícitos na ação de educadores e educandos, bem como os princípios políticos e pedagógicos que orientam o trabalho coletivo do grupo.

A formação continuada construída no âmbito da escola potencializa a capacidade crítica e colaborativa do grupo na resolução dos problemas políticos e pedagógicos vivenciados na instituição, desenvolve nos profissionais maior identidade coletiva e de pertencimento à instituição, bem como favorece a construção de uma cultura de gestão participativa e colaborativa entre os diferentes profissionais e sujeitos envolvidos na ação da escola, pautada na solidariedade e na construção coletiva de um projeto educativo voltado à transformação social.

Desse modo, é fundamental que as políticas de formação continuada comprometam-se com o desenvolvimento de práticas educativas e curriculares voltadas à valorização e religação dos diferentes saberes e práticas culturais, bem como dos sujeitos ao seu lugar, favorecendo que o conhecimento escolar seja construído a partir do diálogo entre os diferentes saberes e nos diferentes contextos de atuação dos sujeitos sociais, situando-o em seu contexto local, sem com isso, isolá-lo do mundo.

Nessa perspectiva, as orientações políticas e pedagógicas construídas coletivamente, durante o processo de formação-investigação, voltadas à reorientação do currículo da Escola Liberato Vieira, buscam superar a fragmentação e a descontextualização do currículo através da construção de projetos didático-pedagógicos que favoreçam a produção do conhecimento escolar, tendo a investigação crítica do contexto sociocultural dos educandos como espaço de ressignificação do conhecimento escolar a partir da articulação e do diálogo entre os diferentes saberes sociais, culturais e científicos.

Esta formação voltada à reorientação curricular possibilitou a apropriação crítica e consistente dos pressupostos políticos e epistemológicos que dão sustentação à proposta curricular crítica e, principalmente, ao processo de construção do conhecimento numa perspectiva interdisciplinar e contextualizada. Essa apropriação crítica está associada ao desenvolvimento da práxis educativa e à compreensão crítica das vivências de educadores, educandos e demais sujeitos envolvidos no projeto educativo.

Além disso, o trabalho demonstrou que os educadores ao se dedicarem à reflexão sobre suas práticas educativas, numa conexão com a compreensão crítica dos contextos sócio-históricos e culturais nas quais estão inseridos, ampliam, por um lado, o processo de apropriação do projeto educativo em construção e, por outro, as possibilidades de construção das alternativas políticas necessárias à consolidação de propostas pedagógicas e curriculares voltadas à transformação social.

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Recebido: 21 de Abril de 2016; Aceito: 30 de Novembro de 2018

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