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Revista Educação e Cultura Contemporânea

versão impressa ISSN 1807-2194versão On-line ISSN 2238-1279

Rev. Educ. e Cult. Contemp. vol.15 no.41 Rio de Janeiro out./dez 2018  Epub 15-Out-2018

https://doi.org/10.5935/2238-1279.20180073 

Artigos

Formação de professores indígenas Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul: o empoderamento que circula Entre dois mundos

Formation of Guarani and Kaiowá indigenous teachers in Mato Grosso do Sul: the empowerment that circulates between two worlds

Maria Beatriz Rocha Ferreira1 

Marina Vinha2 

Veronice Lovato Rossato3 

1Universidade Estadual de Campinas

2Universidade Federal da Grande Dourados

3Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul


Resumo

Estudos antropológicos apontam que as forças de poder guarani e kaiowá concentram-se em dois pilares - a força extraterrena e a força terrena. Estas forças se entrelaçam no dia a dia das pessoas, em maior ou menor intensidade. O texto busca problematizar o seguinte questionamento: "a formação dos professores guarani e kaiowá reflete as relações de poder, inseridas nas figurações históricas desse grupo"? Para tal, objetivamos compreender as redes de interdependência que figuram nos cursos de formação de professores indígenas da etnia guarani e kaiowá, na Secretaria de Educação de Mato Grosso do Sul e na Universidade Federal da Grande Dourados. Essa formação, nos níveis médio e superior, foi uma conquista dos povos indígenas, inseridos num processo histórico mais amplo e complexo. A pesquisa é de caráter bibliográfico enriquecida com depoimentos de uma indigenista que atua na formação de professores guarani e kaiowá há mais de 30 anos e participa da escrita deste texto. A relevância do estudo consiste em registrar o processo de efetivação de uma formação específica dos povos indígenas, em um país que demorou 488 anos para inserir a população indígena na sua Carta Magna. Um país que dispõe de 240 línguas faladas em seu território nacional, embora enfatize somente a língua do colonizador nos estudos escolares da Educação Básica. Nas considerações finais pontuamos a formação da rede de interdependência que fortalece o empoderamento dos indígenas da etnia guarani e kaiowá de Mato Grosso do Sul, no quesito formação de professores.

Palavras-Chave: Formação de professores indígenas; Guarani e kaiowa; Figurações e poder

Abstract

Anthropological studies indicate that Guarani and Kaiowá power forces are concentrated on two pillars - extraterrestrial force and earthly force. These forces intertwine in people's daily lives, to a greater or lesser extent. The text seeks to problematize the following questioning: "Does the formation of Guarani and Kaiowá teachers reflect the power relations inserted in the historical figurations of this group"? To do this, we aim to understand the networks of interdependence that appear in the training courses of indigenous teachers of the Guaraní and Kaiowá ethnic groups, at the Department of Education of Dourados, Mato Grosso do Sul and at the Indigenous Intercultural Faculty of the Federal University of Grande Dourados. This training, at the middle and higher levels, was an achievement of indigenous peoples, inserted in a broader and more complex historical process. The method is bibliographical, with the testimony of an indigianist who has worked with the Guarani and Kaiowá for more than 30 years and participates in the writing of this text. The relevance of the study is to record the process of carrying out specific training of indigenous peoples in a country that took 488 years to insert the indigenous population into its Constitution. Brazil is a country that has 240 languages spoken in its national territory, although it emphasizes only the language of the colonizer in the school studies of Basic Education. In the final considerations we point out the formation of the network of interdependence that strengthens the empowerment of the Guaraní and Kaiowá natives of Mato Grosso do Sul in the training of teachers.

Key words: Training of indigenous teachers; Guarani and Kaiowa; Figuration and power

Introdução

Estudos antropológicos apontam que as forças de poder guarani e kaiowá 1 concentram-se em dois pilares - a força extraterrena e a força terrena. Estas forças se entrelaçam no dia a dia das pessoas, em maior ou menor intensidade.

Para compreendermos o poder nos baseamos na teoria de Norbert Elias. O autor (1994b) explica poder como um atributo intrínseco às relações pessoais nas figurações humanas, como fator não centrado e congelado nas mesmas pessoas, nos grupos ou instituições; e que se desloca à medida em que ocorrem novas informações, pressões externas ou internas, e no próprio processo de mudanças sociais. Nesse contexto, o autor argumenta que todos nós temos poder na sociedade e que poder é uma "expressão um tanto rígida e indiferenciada", usada para designar a "margem individual de ação associada a certas posições sociais" (ELIAS, 1994b, p.50). Este expressa a oportunidade social de se autorregular e de regular o destino de outras pessoas. E como mencionado acima, os Guarani e Kaiowá se fortalecem por disporem também de um poder extraterreno.

Nesse sentido, o texto busca problematizar o seguinte questionamento: "a formação dos professores guarani e kaiowá reflete as relações de poder, inseridas nas figurações históricas desse grupo"? Para tal, objetivamos compreender as redes de interdependência que figuram nos cursos de formação de professores indígenas da etnia guarani e kaiowá, na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e na Secretaria de Educação de Mato Grosso do Sul. Ambas as formações, nos níveis superior e médio, respectivamente, foram conquistas dos povos indígenas, inseridos num processo histórico mais amplo e complexo.

Para elucidar tal objetivo foi necessário especificar: (i) as instituições internacionais e nacionais e seus lugares de poder no processo de conquista do Ára Vera e Teko Arandu; (ii) identificar as figurações advindas do poder indígena em geral e dos Guarani e Kaiowá em particular; e (iii) dialogar com a teoria eliasiana no sentido de apontar a interdependência dos grupos para a conquista dos referidos cursos.

A pesquisa é de caráter bibliográfico enriquecida com depoimentos de uma indigenista que atua na formação de professores guarani e kaiowá há mais de 30 anos e participa da escrita deste texto. As fontes de informações abarcam acontecimentos históricos, convenções e declarações internacionais e nacionais, organizações e movimentos indígenas, referencial curricular na educação, ações institucionalizadas na educação escolar indígena no Mato Grosso do Sul e a cosmovisão guarani e kaiowá. O referencial teórico da sociologia figuracional foi obtido em Norbert Elias (1993, 1994 a,b), e as referências sobre os Guarani e Kaiowá em Eliel Benites (2014). A empiria foi obtida com relatos de Veronice Lovato Rossato.

A relevância do estudo consiste em registrar o processo de efetivação de uma formação específica, em um país que demorou 488 anos para inserir a população indígena na sua Carta Magna (BRASIL, 1988), um país que dispõe de 240 línguas faladas em seu território nacional, embora enfatize somente a língua do colonizador nos estudos escolares da Educação Básica, um país que mantém uma política de desrespeito à Mãe Terra, tão valiosa para esta população.

Nas considerações finais pontuamos a formação da rede de interdependência que fortalece o empoderamento dos indígenas das etnias guarani e kaiowá de Mato Grosso do Sul, no quesito formação de professores e os percalços enfrentados para efetivação dessa conquista.

Redes de interdependência no processo de conquista da formação diferenciada

Para compreendemos as redes de interdependência que influenciaram os Guarani e Kaiowá no processo de empoderamento educacional, vamos fazer um recorte nos principais fatos internacionais e nacionais.

No início do século XX, a Organização das Nações Unidas (ONU) estava com apenas cinco anos de funcionamento quando, em 1924, foi "surpreendida por uma visita pouco convencional, a do chefe indígena Deskaheh, também ele representante de uma comunidade de nações – as seis nações dos iroqueses". Os iroqueses são povos indígenas norte-americanos, habitantes de uma província do Canadá, compostos pelos povos Seneca, Cayuga, Onondaga, Oneida, Mohawk e Tuscarora, formando uma ‘confederação’. O representante indígena "reivindicava um espaço para as questões indígenas no seio daquela nova organização que se dizia universal", explica Marques (2011, p. 515). Outra liderança indígena W. T. Ratana, da etnia Maori, da Nova Zelândia, "havia se deslocado de sua terra natal até Genebra em busca do cumprimento de um tratado firmado entre seu povo e o Rei Neozelandês" (Idem). O Tratado de Waitangi, assim era denominado, "que garantia aos indígenas maoris a propriedade sobre suas terras ancestrais", registra Marques (Ibidem).

Nas duas ocasiões, argumenta a autora, "não se deferiu aos líderes sequer a possibilidade de serem ouvidos", mesmo com os resultados desses primeiros encontros sem expressividade significativa, "o ativismo indígena teve papel fundamental na conquista de visibilidade, proteção e direitos específicos", diz ela. Assim, as figurações internacionais foram se constituindo resultantes de "fazeres" e "saberes" indígenas que, "ao enfrentarem as contingências, tornam-se cada vez mais ativos e atuantes no cenário internacional" (MARQUES, 2011, p.515).

A autora denomina a ONU como um ‘sistema’, e que o espaço indígena foi conquistado e "conduzido pela atuação desses movimentos", de forma que, "a partir de 1945, concederia progressivamente às comunidades indígenas o direito de vez, de voz e de serem ouvidas em um foro multilateral". Processualmente, foi necessário estabelecer "termos normativos" internos ao sistema ONU para chegar ao seu estágio atual (Idem, 2011, p. 517). As fontes com maior poder vieram de duas instâncias, a Comissão e a Corte, vinculadas à Organização dos Estados Americanos (OEA).

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), juntamente com as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), "constituem, hoje, a fonte mais rica e sistemática de Direitos dos Povos Indígenas no continente", afirma Marques (2011, p. 518). O início desse processo ocorreu em 1926, "dois anos depois da viagem do Cacique Ratana a Genebra", quando a Organização Internacional do Trabalho (OIT) iniciou uma investigação sobre os abusos sofridos pelos povos indígenas. A esse estudo somou-se a Convenção nº 107, elaborada em 1957, com "propostas relativas à proteção e integração das populações indígenas e de outras populações tribais e semitribais de países independentes" (OIT, 1957).

Resultante dessas figurações ou redes de interdependência foi disseminado, naquele período, para o Brasil e outros países, a compreensão e o referencial para muitas Constituições - de que os povos indígenas constituíam os humanos em "um estágio menos adiantado que o atingido pelos outros setores da comunidade nacional" (OIT, art. 1º 1.a, 1957). Diante desse fato, as redes foram se estabelecendo, voltadas para integrar 2 gradualmente esses grupos ao estado nacional onde habitavam. Nesse contexto, o EstadoNação "assume papel decisivo, centralizando a criação e execução de políticas públicas, aplicadas a agrupamentos indígenas cuja compreensão de mundo, língua materna e mecanismos de solução de conflitos sequer eram conhecidos pelos órgãos oficiais" (MARQUES, 2011, p. 518-519).

A contribuição dos documentos citados, principalmente da Convenção nº 107 de 1957, é inquestionável por, pelo menos, três motivos: (I) o reconhecimento dos povos indígenas enquanto grupos humanos que necessitam de atenção especial; (II) o reconhecimento do direito de propriedade desses povos sobre as terras que ocupam tradicionalmente; e (III) a compreensão de que é preciso respeitar o direito que vigora entre os povos indígenas, admitindo que ele seja distinto do direito oficial, desde que com ele compatível, explica Marques (2011).

Em 1966, a ONU adota dois pactos internacionais, sendo um para os "direitos econômicos, sociais e culturais; e outro para os direitos civis e políticos" (DAVIS, 2008, p.573). E foram ambos os documentos que normatizaram complementarmente aquela Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada em 1948, explica o autor. Com a chegada de denúncias sobre as condições dos povos indígenas, foi criada uma Subcomissão, e outro estudo foi solicitado pela ONU, o qual perdurou por 10 anos. Os resultados do referido estudo contribuíram para que os indígenas fossem "reconhecidos como detentores de necessidades e direitos distintos daqueles de outras minorias étnicas", esclarece Davis (2008, p. 574). O cenário internacional foi, de forma progressiva e ampliada, dando mais atenção à Subcomissão em relação às populações indígenas, de forma a realizar a ‘1ª Conferência Internacional de Organizações Não Governamentais’ (ONGs) voltadas para as populações indígenas das Américas, ocorrida em 1977.

Esta primeira conferência resultou das pioneiras figurações internacionais voltadas aos direitos indígenas, tais como: Cultural Survival, nos Estados Unidos; a Survival International, na Inglaterra; e a International Work Group for Indigenous Affairs (IWGIA), na Dinamarca. As demandas dos movimentos indígenas ainda embrionários, vindos do clamor dos povos da América Latina e de outras partes do mundo, encontraram eco "junto com vários antropólogos latino-americanos que participaram do famoso seminário "Conflito inter-étnico na América do Sul", realizado em Barbados, em 1971", registra Davis (2008, p.571).

Para este autor, o Seminário de 1971 produziu as "bases intelectuais do grupo de trabalho das Nações Unidas sobre povos indígenas, criado em 1982, e na redação inicial da Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) sobre povos tribais e indígenas, em 1989" (Idem, p.571). Além disso, estas organizações monitoraram "os impactos sociais e culturais que as atividades de instituições internacionais de desenvolvimento tiveram sobre os povos indígenas, como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Asiático de Desenvolvimento" (Idem, p.571- 572). Organizadas em redes com outros grupos internacionais voltados à defesa ambiental, protagonizaram a definição de "políticas especiais e programas de proteção ao meio ambiente e aos direitos humanos e culturais dos povos indígenas, durante a década de 1980 e no início dos anos 1990" (Idem, p. 572).

Outras instâncias de poder foram se constituindo no decorrer do final do Século XX e estudos mostraram que a Convenção 107, de 1957, não atendia as especificidades dos povos indígenas e que o texto precisava ser revisto. Na sequência, a ONU realizou duas "Conferências Mundiais de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial", em 1978 e 1983. Os relatórios finais desses dois eventos trouxeram à tona os seguintes reconhecimentos: 1) de que as populações indígenas têm o direito de "manter suas tradições econômicas, sociais e culturais, promovendo o seu desenvolvimento"; e 2) de que há a necessidade de consultar as populações indígenas nos assuntos inerentes aos seus interesses, esclarece Marques (2011, p. 520). Esta autora explicita também que:

O protagonismo indígena que passava a ser percebido refletir-se-ia, ainda, em outras modificações. O indígena, que passou a integrar os quadros das Nações Unidas e que liderava revoltas contra os governos ditatoriais no início da década de 1980, firmava-se, cada vez mais, como agente de seu destino e assim começou a ser refletido na legislação internacional. (MARQUES, 2011, p. 520).

No Brasil, as figurações em torno da questão indígena se inter-relacionaram no processo internacional e mais especificamente no latino-americano. As políticas da Ditadura Militar contra os povos indígenas e o abandono em que viviam mobilizaram diversos setores da sociedade civil, dentre eles, o setor progressista da Igreja Católica, que criou o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), em 1972, para um trabalho específico de apoio aos índios. De acordo com D’Angelis (2011), esta instituição favoreceu a articulação entre aldeias e povos, promovendo figurações assertivas por meio de grandes assembleias indígenas, quando se desenharam os primeiros contornos da luta pela garantia do direito à diversidade cultural e os primeiros indícios da sistematização de um forte movimento político. Contando também com apoio de outras instituições, como a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI) essas assembleias Indígenas eram realizadas, tendo como pauta principal a luta pela terra, como condição para combater a violência e assegurar o futuro (LOEBENS, 2008; BICALLHO, 2010).

O desfecho deste movimento pode ser observado nas organizações indígenas que foram surgindo, seja por povos, por atividade, por gênero, por função social, por faixa etária, com diferentes objetivos, com representação das lideranças nos mais diversos segmentos, tanto em nível internacional quanto nacional, a elaboração de projetos para atender as demandas das comunidades e a intervenção para elaboração de políticas públicas.

A primeira organização indígena de abrangência nacional foi a União das Nações Indígenas (UNI) criada em 1980. Em 1992 surge o Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil (CAPOIB), de nível nacional. Também grandes organizações indígenas regionais foram criadas na Amazônia, nas regiões Leste e Nordeste e em Mato Grosso do Sul (PREZIA, 2006, p.54).

Na 2a Conferência Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92) houve uma maior participação política dos Povos Indígenas. O Comitê Intertribal Memória e Ciência Indígena (ITC), entidade multiétnica, foi fundado em 1990, tendo os irmãos Marcos Terena e Carlos Justino como os principais mentores. A finalidade, inicialmente, era organizar a participação indígena na ECO-92 na questão político-ambiental, mais tarde focalizaram na organização dos Jogos dos Povos Indígenas. (TERENA, 2011; ROCHA FERREIRA e VINHA, 2017)

Em 2004, as principais organizações indígenas e indigenistas do país criaram o Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas (FDDI), que mobiliza e dá suporte, desde então, ao Acampamento Terra Livre, em Brasília, anualmente. E, em 2005, foi criada a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)3.

No MS surgiram as organizações de lideranças políticas guarani e kaiowá Aty Guasu, de rezadores e de professores, entre 1985-1990, também com apoio de instituições não indígenas. O Movimento de Professores Guarani e Kaiowá (MPGK) foi criado em 1991, forte organização que congrega professores, estudantes e lideranças, tendo como escopo a garantia e o fortalecimento da educação escolar indígena, específica e diferenciada, como instrumento para o fortalecimento da identidade, da língua e da cultura destas etnias, e com a meta de irem assumindo os postos de docência e de gestão escolar, com autonomia. Esse Movimento já realizou o 23º Encontro anual. Entre as conquistas destacam-se a formação institucional de professores indígenas, através de cursos específicos e diferenciados - curso médio Ára Vera e curso superior Teko Arandu - além do aumento considerável de escolas e de professores concursados e contratados. Em 1985 não havia registro de professor indígena, hoje já são mais de 500 professores guarani e kaiowá atuando na docência e na gestão, somente na região do Cone Sul do Estado. Destaca-se também, no contexto escolar, o Fórum Estadual de Educação Escolar Indígena de MS (FEEEIMS), que organiza e mobiliza professores indígenas de todas as etnias de Mato Grosso do Sul, já em sua 7ª edição em 2018. O FEEEIMS também se articulou com outras organizações de professores e foi criado o Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena (FNEEI), com dois encontros nacionais já realizados, esclarece a indigenista Rossato em seu depoimento.

No âmbito governamental nacional, como exemplo, a educação escolar indígena conquistou um documento norteador denominado "Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas" publicado pelo Ministério da Educação e do Desporto (MED), por meio da Secretaria de Educação Fundamental e da Coordenadoria Geral de Apoio às Escolas Indígenas, em 1998 (BRASIL, 1998). Este documento norteador foi escrito por antropólogos, linguistas e pedagogos brasileiros e está organizado por áreas do conhecimento que devem se interligar, sendo que a parte 5 é dedicada à Educação Física Escolar4.

Em seguida, no ano de 2002 foi publicado um Caderno com "Referenciais Curriculares para a Formação de Professores Indígenas" também pelo Ministério da Educação (MEC) via Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD). Na última década, vários outros documentos oficiais normatizam e garantem a educação escolar indígena, também nos âmbitos estaduais e municipais, com a participação das organizações indígenas e não indígenas. Em 2009, depois de muitas discussões, foram criados os Territórios Etnoeducacionais (VINHA et. al, 2016), que organizam uma nova estrutura para a gestão da educação escolar indígena no país, em grandes regiões territoriais, articulando vários Estados e Municípios, de acordo com povos e interesses comuns, através de uma gestão compartilhada entre diferentes instâncias governamentais, comunidades e organizações indígenas, e instituições não indígenas. Entretanto, há ainda uma enorme distância entre o desejado e o executado. Por exemplo: "A gestão compartilhada entre a União, estados e municípios não funciona, o controle social está relegado a um 2º plano e a escola continua sinalizando muito fortemente para as crianças e jovens que o futuro está fora das comunidades e das terras indígenas", analisa Loebens (2008, s/p).

Agentes de seus destinos, os indígenas no Brasil passaram por seis das sete Constituições5, sendo reconhecidos como pessoas de nível inferior no processo civilizador, de forma a ser naturalizada a integração gradual desses povos à sociedade civilizada. Somente em 1988, final do século XX, a Constituição de 1988 dedica um capítulo apenas para os povos indígenas brasileiros.

O processo de reconhecimento do indígena como cidadão brasileiro foi lento e, para tal, houve mobilização de diferentes setores da sociedade. De acordo com Wouters (2009), para que haja mudanças sociais, a interdependência dos grupos/instituições precisa crescer e se tornar razoavelmente estável para que possa ser estabelecida e se interrelacionar com outras áreas da sociedade. Niezen (2003) enfatiza que os movimentos indígenas recentes refletem um fenômeno chamado de ‘encurtamento global’ – global shrinking, advindo da maior mobilidade das pessoas, do aumento da transmissão dos meios de comunicação, facilidade na troca de informações e fortalecimento do empoderamento dos grupos. Bicalho (2010, p. 251) concebe o movimento indígena como "a expressão de uma luta por direitos fundamentais à sobrevivência física e cultural de centenas de povos diferenciados, que têm resistido bravamente a uma série de situações adversas à sua perpetuidade".

Loebens (2008, p.1) analisa as conquistas e percalços do movimento indígena. Argumenta que as organizações surgidas entre 1980 e 1990 tinham "uma legitimidade mais ampla", porque sua constituição política era configurada por uma maior participação das etnias. Com as conquistas - esclarece o autor -, algumas comunidades "se viram na contingência de assumir um papel, que, em tese, seria de responsabilidade do Estado, na solução dos problemas das comunidades indígenas". Atualmente, há organizações que "já nasceram influenciadas pela possibilidade de acessar recursos e passaram também a assumir um papel político". No entanto, a legitimidade das organizações atuais não é a mesma das primeiras organizações cujo poder foi adquirido junto às comunidades. As lideranças indígenas mostravam-se, para a sociedade em geral, que estavam aptas a gerir projetos mesmo com o preconceito que pairava sobre elas. Por outro lado, argumenta Loebens (Idem), as organizações indígenas, mesmo aquelas legitimadas pela luta, não estavam aparelhadas para assumir o compromisso de planejar, executar e avaliar projetos com todas as responsabilidades exigidas por uma "burocracia estatal que a todo momento sustava o repasse de recursos financeiros acarretando a desassistência nas aldeias".

O autor relata que a ocupação dos espaços políticos com acesso aos recursos públicos "gerou entendimentos distintos sobre as estratégias que o movimento indígena deveria adotar, gerando tensões internas com repercussões sobre as entidades de apoio à causa e à política de alianças" que constituíram a base da legitimação das organizações indígenas. Segundo ele, todo esse contexto de poder cerceado interessava ao governo. A lógica era que, ao manter as organizações indígenas ocupadas, a luta pela terra por meio de "cobrança dos direitos territoriais e por mudanças na política indigenista" ficavam estagnadas.

Figurações advindas do poder indígena guarani e kaiowá

Na questão escolar das etnias guarani e kaiowá residentes em Mato Grosso do Sul, em decorrência da Constituição de 1988, a primeira ação educacional institucionalizada6 em favor desta comunidade indígena foi a criação, em 1999, do "Curso Normal Médio Intercultural Ára Vera" (espaço/tempo iluminado), para formação de professores guarani e kaiowá, realizado pela Secretaria de Estado de Educação de MS. De 2002 a 2006, os egressos da primeira turma de formandos do Ára Vera, a partir da conjugação de esforços institucionais envolvendo a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), a Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), o Movimento de Professores Guarani e Kaiowá (MPGK), o governo do Estado de Mato Grosso do Sul, o Ministério da Educação (MEC), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), além de cerca de 20 prefeituras municipais e outras entidades e apoiadores7 não institucionais das causas indígenas, em parceria com a organização de lideranças guarani e kaiowá - Aty Guasu -, influenciaram a criação do curso superior, a Licenciatura Intercultural Teko Arandu (viver com sabedoria) para os professores guarani e kaiowá.

Tanto o Ára Vera como o Teko Arandu são organizados para funcionar segundo o ‘método da pedagogia da alternância’ o qual busca a interação entre o estudante e a realidade que ele vivencia no cotidiano na aldeia, de forma a promover constante troca de conhecimentos entre seu ambiente de vida e de trabalho e o escolar.

A dinâmica desse método ocorre em dois tempos, o ‘tempo escolar’ [período intensivo de aulas presenciais] e o ‘tempo comunidade’ [período de estudos nas aldeias]. O currículo é construído a partir de temas geradores definidos pelo coletivo e se articulam em torno de três eixos estruturantes, baseados nos princípios culturais da etnia: teko [modo de ser e de viver dos Guarani e Kaiowá], tekohá [território/territorialidade] e nhe’? [língua e espiritualidade]. A metodologia é baseada no ensino-pesquisa, em que o aluno reelabora e sistematiza seus conhecimentos tradicionais articulados com os novos conhecimentos necessários para uma vivência intercultural, conforme o Projeto Político Pedagógico (PPP) do curso (UFGD, 2006).

Inicialmente o Teko Arandu foi inserido na Faculdade de Educação da UFGD como um curso de licenciatura intercultural e, a partir de 2012, com a criação da Faculdade Intercultural Indígena (FAIND), o curso passou a fazer parte desta faculdade juntamente com outra licenciatura voltada para alunos do campo. Simultaneamente, indígenas oriundos de outros cursos de Ensino Médio não específicos se espalharam por outras instituições e cursaram o 3º grau em Enfermagem, Direito, Pedagogia, Biologia, dentre as mais usuais.

A UEMS, através do ‘Programa de Ação Afirmativa para Indígenas’, e o ‘Programa de Pós-graduação Mestrado e Doutorado da UCDB’ estão entre as mais procuradas para a formação superior. Outros, como o ‘Programa Rede de Saberes’ realizado pela Museu do Rio de Janeiro, com recursos da Fundação FORD, e o ‘Programa Saberes Indígenas na Escola’, com recursos do MEC, também contribuem para a formação de egressos do Ensino Médio/SED e Superior/UFGD, específicos para os Guarani e Kaiowá de MS (FERRI e BAGNATO, 2018).

Os Guarani e Kaiowá afirmam que só se tornam agentes de seus destinos e protagonistas de suas histórias, se se fortalecerem também no mundo espiritual. O modo de ser e de viver na terra [teko] é constituído por parâmetros de ser e de viver dos seres divinos. A cosmovisão guarani e kaiowá tem características de atemporalidade e de poética. A sabedoria ancestral, para ser socializada, requer obediência às regras transmitidas pelos mitos e pelas rezas sustentadas pelos nãnderu (rezador) e nandesy (rezadora), conforme Rossato (2002). Para compreender estes ensinamentos é preciso também aprender a ler e a ouvir a natureza. O ensinamento da tradição começa sempre pelo nome das coisas e do modo como são nomeadas" (OLIVEIRA, 2012, p. 6).

O movimento cósmico entre o terreno e o divino se traduz nas figurações sociais e no modo de viver dos Guarani e Kaiowá, ao compreender que as palavras são "as próprias almas" e os nomes das coisas têm vida, e quando essa vida é entoada ela acontece. As plantas, as pedras, os animais, o céu, a terra, os humanos e os não humanos têm seus ‘donos’ no mundo extra físico. Fazendo uma analogia com a compreensão de poder eliasiana, a natureza constitui figurações que se movimentam, ressignificando o viver. A cosmovisão guarani está constituída por entidades celestiais, as quais são consideradas elementos estruturantes da identidade da etnia, explica Benites (2014).

Por tais fatores, Elias (1993, p.198) entende que as sociedades vinculadas a um "mundo mágico", expressão adotada pelo autor para designar povos guiados por uma cosmovisão/extraterrena, quando vivendo simultaneamente com um mundo "não mágico", elas vivem sob grandes tensões e confrontos. Os conflitos são de diferentes formas e provêm de um sistema detentor de "um conjunto inteiro de meios cuja monopolização permite ao homem, como grupo ou indivíduo, impor sua vontade aos demais". Elias quer dizer que as sociedades não mágicas detêm o monopólio da força – seja ela física, da produção, da economia, do modo de vida – de forma que este fato muda o comportamento e a constituição afetiva das pessoas (1993, p. 198).

Tal figuração, que no caso a entendemos como interculturalidade, difere da figuração anterior, cuja perspectiva era integracionista. A perspectiva intercultural leva as sociedades em que não há um monopólio de força constituído, a exemplo das sociedades indígenas, a ficarem mais fragilizadas diante do Estado-nação, o qual detém o monopólio de poder terreno, com capacidade de as disfuncionalizarem. Apesar de os processos de disfuncionalização estatal atingirem as sociedades indígenas no plano terreno, mesmo elas dispondo de uma forma de resistência enraizada nas suas cosmologias, argumenta Benites (2014, p. 57), indígena e pesquisador da etnia kaiowá, essa resistência só foi possível devido à forma de vida coletiva:

A coletividade, para nós Kaiowá e Guarani, é a maneira própria de ser; nela a perspectiva individual é deixada de lado para se espiritualizar, a coletividade é ligada, intrinsecamente, com a espiritualidade. Uma é necessária por causa da outra. A coletividade é um caminho e a espiritualidade é o que faz andar nesse caminho.

O autor explica que

sem a espiritualidade não há como compreender o pensamento tradicional. Os Kaiowá e Guarani espiritualizados veem, ouvem e sentem além do óbvio constituído pela visão do conhecimento ocidental. O mundo, na nossa visão indígena, é uma conexão entre o mundo físico e o espiritual (BENITES, 2014, p. 57).

Segundo este autor, o mundo físico está constituído por "florestas, a terra, o vento, os rios, o sol e a lua, as estrelas, os relâmpagos e toda a manifestação da natureza, têm suas linguagens e vozes, que precisam ser compreendidas e interpretadas". Esse conjunto de forças formam figurações que requerem dos Guarani e Kaiowá um estado de "constante ligação com esta rede de equilíbrio da natureza" e este é "o papel fundamental da nossa [guarani e kaiowá] atuação, a partir da postura de um corpo espiritualizado", afirma Benites (Idem, p. 57).

Porém, o viver em confronto e sob tensões frente às figurações ocidentais e seu modelo de vida individualizado e não coletivo, estando os Kaiowá e Guarani perpassados pela necessidade de uma vida individual, condição dada pelo "modelo de vida baseado na sociedade ocidentalizada, surge o Kaiowá e Guarani consumidor", explica Benites (2014, p. 57). Compreendemos que os seres humanos perpassados por esta significativa cosmologia, sintetizada no presente estudo, têm no real de suas vidas tensões e conflitos vindos do confronto intercultural, cuja balança de poder, enraizada na visão de mundo guiada por valores econômicos, é implacável.

Benites (2014, p. 54) explica que a "identidade kaiowá e guarani de hoje constitui-se uma contínua ida e volta entre um universo e outro". As representações da cultura/tekoha geradoras da identidade estão continuamente atravessadas "por diversos e diferentes símbolos e signos" e vão configurando o ser Kaiowá e Guarani, "como identidades que dialogam com diversas representações da realidade, consequentemente, uma identidade que não tem fixidez" (Idem). Esta figuração, cujas forças se contrapõem de forma violenta, conduzem as novas gerações a serem formadas, segundo Benites (Idem), "por sujeitos sem identidades definidas, produtos do contexto, que sofrem as interferências do meio e que produzem continuamente a sua subjetividade em diferentes contextos temporais e espaciais". Esse balançar dos poderes tão díspares leva à formação de pessoas sob uma "posição assumida temporariamente, de acordo com a necessidade de sobrevivência", reconhece ele (BENITES, Ibidem).

Na perspectiva processual eliasiana são as interdependências entrelaçadas e as alterações na balança de poder os fatores que permeiam os vários tipos de violência, como o fato de não serem reconhecidos em suas civilizações. Elias (1994, p.15) frisa que "nenhum ser humano chega civilizado ao mundo e que o processo civilizador individual que ele obrigatoriamente sofre é uma função do processo civilizador social", isto é, do entrelaçar da psicogênese e sociogênese. Lembra o autor, que cada pessoa em sua curta história de vida passa através de alguns dos processos que a sociedade experimentou em sua longa história. No entanto, para os Kaiowá e Guarani, individualmente, o ser espiritual se torna humano no corpo de sua mãe, mas só se torna civilizado na medida em que continua mantendo o vínculo com o mundo do qual ele veio (mundo celestial8). Para o processo civilizador étnico entre os Guarani e Kaiowá, cada ser precisa receber uma alma, através de seu nome, escolhido pelos seres que habitam o "mundo verdadeiro", que é o extra físico/celestial. Só então, o ser se torna verdadeiramente humano em sua ligação com o "sociogênese" celestial.

Com a chegada dos colonizadores [época que se tem mais informações], os Guarani e Kaiowá sofreram uma ruptura em sua psicogênese e sociogênese. Passaram pelo impacto da escravidão, dizimação, perda de seus territórios e confinamento, com adoção de uma religião e ideias eurocentradas. As políticas integracionistas da Coroa Portuguesa e mais tarde do Estado brasileiro, associados com o pouco conhecimento e desrespeito pelos povos indígenas, desencadearam ‘feridas’ até então difíceis de serem curadas. Ainda assim, anciãos procuram transmitir o conhecimento ancestral e, mais recentemente, registram [indígenas e pesquisadores] a memória desse povo para que continue viva e valorizada pelos Guarani e Kaiowá e pela sociedade majoritária.

Ressaltamos que, atualmente, há lideranças políticas e religiosas, nas aldeias indígenas destas etnias. As lideranças políticas são os ‘capitães’, seus ‘ajudantes’ e os ‘conselhos’; e as lideranças religiosas ou tradicionais são os ‘ñanderu’ [nosso pai] e as ‘ñandesy’ [nossa mãe]. O capitão é o representante da comunidade na sociedade mais ampla e o pacificador interno das tensões, e a liderança religiosa transmite os valores fundamentais da cultura indígena, explica Machado (2016).

O conhecimento mitológico indígena está sendo deslocado diante dos valores da modernidade [eurocêntricos]. A identidade, assim, sob figurações que requerem arranjos e compromissos dos Guarani e Kaiowá, a partir da relação com a sociedade maior, os levam a criar "uma linguagem específica que faz parte da sua cultura contemporânea, a qual produz a identidade das novas gerações", afirma Benites (2014, p. 54). Neste novo movimento, "apesar de parecer que nossa identidade é "temporária", pois muda de acordo com as necessidades de sobrevivência, mesmo quando boa parte do nosso ser é fragmentado, podemos dizer que há uma possibilidade de negociações na fronteira da identificação" (Idem).

Nesse caso, descartada a figuração celestial, caberia perguntar se "os Kaiowá e Guarani seriam esquizofrênicos"; ou se "são joguetes de sua insegurança ontológica"; ou ainda, se são "seres errantes sobre a terra"9. Para dirimir tais perspectivas, Benites (2014, p. 54) foi esclarecido pelo professor Levi M. Pereira, membro de sua banca, que a identidade "deve comportar leques ou campos de articulação flexíveis e mutáveis – a identidade não é fixa, mas pressupõe arranjos e compromissos – não é um vale tudo".

O trunfo da etnia está no fato de que eles têm "os elementos, marcas e valores tradicionais que permitem a resistência", e ainda existe a parte do ser guarani e kaiowá que os "identifica com a tradicionalidade, a "essência" kaiowá e guarani (explicitada por Alice Cáceres, in ROSSATO, 2002, p.124) - que é a espiritualidade do ser - e que também está ligada diretamente à nossa territorialidade, o Tekoha Guasu", argumenta Benites (2014, p. 57).

O poder, que vem do mundo espiritual, incide neles a perspectiva do ‘bem viver’ [psicogênese], que chamam de teko porã, em um processo cujo ápice é o chamado teko araguyje, que seria a ‘plenitude da vida’, o qual não se completa na terra e pelo qual estão constantemente em busca do que é conhecido como ‘terra sem males’. É essa certeza de transitoriedade que torna secundários o mundo e o poder terreno, do ponto de vista metafísico explica Rossato (2018). E esses fatores Norbert Elias não acessou nas figurações e nos entrelaçamentos que constituem a psicogênese e sociogênese humanas.

Teoria eliasiana e as interdependências para a conquista da formação institucional de professores

Para os Guarani e Kaiowá, tradicionalmente, o poder terreno tem pouca importância, mas os afeta pesadamente. Para eles o poder legítimo é aquele que está sustentado pelos seus ‘donos celestiais’, na medida em que o ser humano escuta e se comunica com eles, através das práticas e dos rituais míticos. Mas, como diz Benites (2014), esse poder terreno, almejado hoje pelas novas gerações, faz parte da nova identidade dos jovens guarani e kaiowá escolarizados. Esta identidade advém das novas relações, das figurações de poder impostas pela colonização e a da modernidade, e está centrada não mais no mundo espiritual, mas num falso mundo, que os faz temporários, frágeis, "seres errantes sobre a terra"10, porque desligados dos seus verdadeiros ‘donos’. Foi a figuração formada pelo processo colonizador e em vigor até os dias atuais que indicou ser necessário hibridizar-se para resistir e sobreviver neste novo contexto, sem perder a ‘essência’, reconhece Benites (2014).

E a escola específica e diferenciada, a partir de novos paradigmas legais, educacionais e políticos, foi e é um instrumento que lhes ajuda a romper com o que sempre lhes foi imposto, e a "voltar"11 para suas raízes, hoje com novas estratégias políticas e parcerias não indígenas comprometidas, afirma Rossato (2002). Assim, a formação institucional de seus professores, através de cursos interculturais, específicos e diferenciados - como o Àra Vera e o Teko Arandu - tornaram-se fundamentais nesta retomada do "caminho bom e verdadeiro" [tape porã], do qual os Kaiowá e Guarani nunca se afastam completamente, pois sempre há os que "seguram a reza", conforme explicou o cacique Júlio Lopes para Brand (1997, p. 250): "Tem ainda os que sabem rezar. Nós os donos da reza ainda vivemos como se fosse professor". Galvão (1979, p.143-144) analisa o fenômeno:

Esse processo de desestabilização e assimilação funciona no nível individual, porém, para o grupo indígena visto como um todo, dificilmente se completará. Restará sempre um núcleo tradicionalista, [...] que tentarão manter vivas a língua, as tradições e o sentido da comunidade.

Esse processo foi vivenciado por Benites (2014) e amplamente descrito em sua dissertação sobre o "Caminho de Construção e Desconstrução da Educação Escolar Indígena", na qual o autor faz uma autorreflexão sobre a construção de sua própria identidade.

Na visão eliasiana, o poder está inserido nas relações e, por conseguinte, nas redes de interdependência, e este se modifica em longo prazo; em algum momento na história o pêndulo da balança de poder pode pender para um lado, em outro momento para o outro lado. E o equilíbrio na balança de poder é dificilmente atingido.

Segundo Benites (2014), muitos jovens guarani e kaiowá que não passam pelos mesmos espaços de formação e luta, não entendem este mundo escolarizado, nos moldes colonialistas, como um falso mundo (yvy rei). Estes jovens o entendem como um caminho para o poder, já que percebem neste poder terreno o único caminho para "ser alguém na vida", "ter sucesso", "evoluir" e ser "civilizado" (ROSSATO, 2002). Desta forma, reproduzindo os mesmos paradigmas da "civilização ocidental" e das modernas formas de colonização, os indígenas buscam cargos executivos e políticos, sem, necessariamente, estarem preparados, nem com os referenciais de seu mundo tradicional (ñande reko), nem com os instrumentos analíticos fornecidos por uma formação escolar específica e intercultural ou pela participação nas lutas políticas e territoriais do seu povo. Como legado desse processo histórico social, a formação específica de professores no curso de licenciatura intercultural Teko Arandu e do Normal Médio Ára Vera busca

[...] instrumentalizar os professores indígenas a partir de uma reflexão do seu papel como novas lideranças na comunidade indígena, na perspectiva de constituir ambientes curriculares que possibilitem a vivência do educando indígena do conhecimento tradicional kaiowá e guarani e dos saberes ocidentais (BENITES, 2014, p. 71).

O autor continua ponderando que o objetivo dos formandos é o de "produzir currículos na perspectiva da constituição de significados e valores culturais, a partir de diálogos entre os saberes, na vivência da interculturalidade". O diálogo intercultural, segundo ele, ocorre na interlocução das "lógicas e [d]os sistemas tradicionais kaiowá e guarani e [d]os conhecimentos ocidentais como ferramentas neste processo, que contribuem para a emergência de outros saberes e da possibilidade do diálogo intercultural". A interculturalidade pressupõe "acolher, também, os caminhos, os métodos do outro. Acolher não significa concordar, é criar, juntamente com nossos parceiros de outro mundo cultural, as bases para que o diálogo se institua" (BENITES, p. 75).

Há cinco anos os indígenas de Mato Grosso do Sul12 têm assumido cargos de poder nos espaços institucionais voltados à educação. No caso, coordenam o Centro Estadual de Formação de Professores Indígenas (CEFPI) localizado na capital, Campo Grande, instituição da Secretaria de Estado de Educação de MS. Vinculado ao CEFPI está o Curso Normal Médio Ára Vera, sediado em Dourados-MS e coordenado por um indígena guarani. A equipe de trabalho tem, em seu quadro, três indígenas. No terceiro grau, na licenciatura Teko Arandu, há um indígena kaiowá que compõe o quadro de professores, com doutorado em andamento. A partir desse processo de formação, a gestão das escolas indígenas nas 27 aldeias do Cone Sul do MS e a equipe de docentes e coordenadores pedagógicos são, em sua quase totalidade, exercidos por indígenas, além de cargos administrativos nas Secretarias Municipais de Educação.

Considerações finais

O presente estudo problematizou que "a formação dos professores Guarani e Kaiowá reflete as relações de poder, inseridas nas figurações históricas desse grupo", no sentido de compreender as redes de interdependência que figuram nos cursos de formação de professores indígenas das etnias guarani e kaiowá, na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e na Secretaria de Educação de MS, permeados pela identidade desse povo e por seus parâmetros culturais.

O processo teve início com as forças internacionais e, na especificidade brasileira, com foco nos Guarani e Kaiowá, priorizou o ‘movimento político’ por uma formação específica e diferenciada, iniciada com o Curso Normal Médio Ára Vera, quando os egressos da primeira turma deste curso encabeçaram um movimento que culminou com a criação de um curso de nível superior Teko Arandu.

Os cuidados, portanto, durante a escrita deste texto, pautaram-se pela valorização do processo, vindas das forças do movimento de professores guarani e kaiowá e dos apoiadores não indígenas. O Curso Ára Vera foi um dos primeiros a ser criado no Brasil, por força constitucional de 1988, embora por meio de posicionamentos políticos. Dessa forma, o Teko Arandu, 3º grau, não foi tão difícil de ser implantado, pois ele já veio de um movimento político processual, desde a criação do 2º grau/Ára Vera. Este movimento era muito forte. O empoderamento dos indígenas, que já estavam na luta pela continuidade da formação específica e diferenciada, possibilitou e facilitou os trâmites legais e a construção da proposta pedagógica do Teko Arandu.

Entretanto, as oscilações na balança de poder estatal geram instabilidades na realização e continuidade dos cursos. O fator financeiro gera consequências de ordem estrutural e emocional. As tensões são em rede também, pois o efeito recai sobre alunos, lideranças, professores, gestores e a repercussão mais grave ocorre nas frágeis escolas localizadas nas aldeias.

Apesar de tudo, passados 19 anos, as reflexões acerca destes dados mostram que os indígenas guarani e kaiowá conquistaram espaço intelectual e institucional, tanto nos dois cursos de formação quanto na equipe de professores e na gestão em suas terras. Não obstante as implicações e favorecimentos provenientes deste ‘poder terreno’, ele [o poder] traz tensões e conflitos de toda ordem.

Do nosso ponto de vista, principalmente motivados pela dificuldade de os Guarani e Kaiowá assumirem as responsabilidades que o poder terreno lhes atribui, a cobrança é pesada para estas minorias sociais. E, sendo indígenas com outro paradigma cultural, os dualismos tempo-espaço, espaço-poder e tempo-poder não permitem que eles se fixem apenas na visão materialista. Assim, a ambiguidade passa a estar presente entre o ser e o vir a ser, até que a interculturalidade seja mais exequível para ambos os lados, onde a partilha de saberes seja benéfica para todos os humanos e não humanos.

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Recebido: 13 de Março de 2018; Aceito: 02 de Junho de 2018

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