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Revista Educação e Cultura Contemporânea

versão impressa ISSN 1807-2194versão On-line ISSN 2238-1279

Rev. Educ. e Cult. Contemp. vol.15 no.41 Rio de Janeiro out./dez 2018  Epub 15-Out-2018

https://doi.org/10.5935/2238-1279.20180078 

Artigos

A sociologia figuracional como aporte teórico-metodológico: trabalho e formação docente em educação especial

The figurational sociology as a theoretical-methodological support: work and formation of the teacher in special education

Reginaldo Celio SobrinhoI 

Giselle Lemos Schmidel KautskyII 

Edson PantaleãoIII 

IUniversidade Federal do Espírito Santo

IIUniversidade Federal do Espírito Santo

IIIUniversidade Federal do Espírito Santo


Resumo

As reflexões sistematizadas neste texto objetivam acentuar a importância de um delineamento teórico-metodológico mais explícito na realização de investigações que tematizam o trabalho e a formação docente. Nesse sentido, também figura como propósito deste texto apresentar os conceitos e as noções desenvolvidos por Norbert Elias que se vêm constituindo como aporte teórico-metodológico nos estudos realizados no âmbito do grupo de pesquisa “Políticas, gestão e inclusão escolar: contextos e processos sociais” (CNPq). Ocupamo-nos, assim, de apresentar questões teóricometodológicas capazes de orientar pesquisas no campo educacional, especialmente aquelas que tomam por objeto de análise o trabalho docente e a formação continuada de professores. De modo complementar, trazemos apontamentos e questões sistematizadas em uma pesquisa específica que, desenvolvida no âmbito do nosso grupo de pesquisa e assumindo uma abordagem teórico-metodológica de inspiração eliasiana, tematizou o trabalho e a formação docente no campo da Educação Especial. As reflexões desenvolvidas subsidiam nossa compreensão de que a formação de professores constitui um aspecto absolutamente relevante das políticas educacionais, repercutindo positivamente na qualidade da educação ofertada, sobretudo quando, pela via do diálogo coletivo, nesse espaço-tempo sistemático de estudos, os atores envolvidos nos processos formativo-educativos (professores, diretores escolares, estudantes, comunidade local) problematizam as condições objetivas e subjetivas que marcam e narram a realização do trabalho docente.

Palavras-Chave: Formação de professores; Sociologia figuracional; Educação Especial

Abstract

The reflections systematized in this text aim to emphasize the importance of a more explicit theoretical-methodological delineation in the accomplishment of investigations that thematize the work and the formation of the teacher. In this sense, it is also the purpose of this text, to present the concepts and notions developed by Norbert Elias, which has been constituted as a theoretical and methodological contribution in studies carried out within the framework of the research group "Policies, management and school inclusion: contexts and social processes "(CNPq). We are thus concerned with presenting theoretical-methodological questions capable of guiding research in the educational field, especially those that take as the object of analysis the teaching work and the continuing education of teachers. Complementarily, we bring notes and systematized questions in a specific research that developed within the scope of our research group and assuming a theoretical-methodological approach of Eliasian inspiration, thematized the work and the teacher training in the field of Special Education. The reflections developed support our understanding that teacher formation is an absolutely relevant aspect of educational policies, having a positive impact on the quality of education offered, especially when, through collective dialogue, in this systematic space-time study, the actors involved in the processes (teachers, school directors, students, local community) problematize the objective and subjective conditions that mark and narrate the performance of the teaching work.

Key words: Teacher formation; Figurative sociology; Special Education

Introdução

Compreendemos o campo científico como espaço de lutas que se desenvolvem no sentido de conservar, redimensionar e/ou transformar uma correlação de forças de natureza política e de natureza cognitiva que ali se estabelece (BOURDIEU, 2004). Essa perspectiva está assentada na nossa percepção de que, ao contrário do que supõe um construtivismo idealista, "[...] as ciências não se desenvolvem num vazio" (ELIAS, 1994, p. 72). Suas causas, seus efeitos e seu desenvolvimento dizem respeito a uma situação humana específica. Dessa assertiva decorre um importante desafio que se coloca no campo científico da educação. Trata-se da necessidade de superar os modismos sociomidiáticos que atuam no sentido de conduzir e de validar tão somente o conhecimento pautado no escopo da inovação tecnológica que, ao fim e ao cabo, mantém sintonia direta com "[...] os direcionamentos políticos que tomam os interesses do mercado como interesses universais [...]" (SILVA, JACOMINI, 2016, p. 36).

Assim é que, assumindo a perspectiva de que o conhecimento é uma ferramenta fundamental para a orientação da história humana (GOHN, 2006), encontramo-nos diante da necessidade de diferenciar os temas que, pela abrangência e consistência teóricoprática, colaboram no adensamento do conhecimento social, daqueles temas que, atendendo aos imperativos da "inclusão produtiva" (MORENO, 2005) e às exigências avaliativas dos órgãos de fomento, solicitam "resultados práticos" e "pontuais" que respondam às demandas político-econômicas advindas do modelo social vigente e justifiquem os gastos gerados pelos estudos por eles financiados (SILVA, JACOMINI, 2016).

Compreendemos que é nessa correlação de forças (políticas e cognitivas) que se inserem e se delineiam as questões históricas, sociais e políticas conformadoras dos estudos no campo da educação. Nesse debate, compartilhamos a compreensão de Silva e Jacomini (2016, p. 106), quando acentuam o referencial teórico-metodológico como aspecto absolutamente fundamental para a produção científica. Por essa via, o pesquisador terá maior clareza sobre o campo teórico no qual seu trabalho se inscreve, possibilitando-lhe identificar os interlocutores com os quais ele compartilha uma base epistemológica e, portanto, um posicionamento político, histórico e social específico, mobilizando seus esforços e seu posicionamento perante aqueles interlocutores, cuja produção se distancia e/ou se coloca em oposição à sua.

Ademais, na medida em que "[...] não há pesquisa desinteressada e objetividade absoluta na coleta e análise de dados [...]" (SILVA E JACOMINI, 2016, p. 149), parecenos fundamental evidenciar a perspectiva epistemológica e o enfoque metodológico assumido no trabalho investigativo, expressando, assim, o posicionamento e o lugar de onde o pesquisador fala. De modo complementar, Silva e Jacomini (2016, p. 52) ressaltam que "[...] tão importante quanto explicitar a perspectiva epistemológica é usá-la de forma coerente e articulada ao enfoque metodológico na análise de dados, de maneira a permitir uma compreensão consistente do objeto de pesquisa". Em nossa compreensão, depreende-se dessa perspectiva um compromisso político-epistemológico que acentua a necessidade e a importância de superarmos a produção de pesquisas empíricas ricas em dados, acompanhadas, entretanto, de análises pouco abrangentes e superficiais (SILVA, JACOMINI, 2016).

Embora a enunciação dos referenciais teórico-metodológicos ainda se constitua como importante desafio no trabalho investigativo, um conjunto representativo de trabalhos vem reunindo esforços no intuito de acompanhar essas indicações e solicitações no espaço específico da educação. Nesse campo, observamos um crescimento progressivo de estudos voltados para as políticas de formação de professores e carreira docente, desde a primeira década dos anos 2000 (PENNA; BELLO, 2016).

Ao analisarem as tendências dessas pesquisas focalizando especialmente os procedimentos metodológicos em articulação com os referenciais teóricos utilizados, Penna e Bello (2016) observam a recorrente utilização da análise documental alinhada ao uso de entrevistas, de questionários e de observação do contexto de trabalho escolar. Esses autores destacam, assim, uma tendência dos pesquisadores em considerar, em seus trabalhos, a perspectiva dos atores envolvidos nos processos formativo-educativos (professores, diretores escolares, estudantes, comunidade local), empenhando-se em analisar e problematizar os modos pelos quais as políticas educacionais são interpretadas e vividas em contextos locais.

Nessa perspectiva, também tematizando aspectos do trabalho e da formação docente, diferentes autores vêm destacando a necessidade de debater os processos formativos docente como uma dinâmica social marcada e narrada pelas profundas reformas nas estruturas legal e administrativa dos sistemas educacionais que, no curso das últimas décadas, impactaram significativamente o cotidiano escolar (SOUZA, PINHO, 2018; MOREIRA; LIMA, 2014; TEODORA et al., 2013; RODRIGUES, THERRIEN, MENEZES, 2017; AGAPITO, RIBEIRO, 2015, entre outros).

Esses autores observam que, em regra, tendo sido definidas na pauta dos organismos internacionais, tais reformas "[...] provocaram uma desqualificação da educação pública, bem como dos profissionais da educação em função de seus interesses de caráter mercantilista (TEODORA et al., 2013, p. 26). Problematizando essa dinâmica política e social, questões relativas à precarização, proletarização, desvalorização e desprofissionalização do trabalho do professor passaram a ser tematizadas nos estudos de vários autores, provocando reflexões mais sistemáticas sobre a qualidade da educação escolar ofertada em sua imbricação com os processos de formação dos professores (TEODORA et al., 2013; MOREIRA; LIMA, 2014).

Rodrigues, Therrien, Menezes (2017, p. 30), por exemplo, destacam que, no curso das últimas décadas, a universalização educacional vivida em território brasileiro desencadeou uma massificação da formação de professores, e, nesse sentido, "[...] o favorecimento de uma formação docente significativa, voltada para transformações reais na prática escolar, constitui o atual desafio do Estado brasileiro [...]", repercutindo na necessidade de esse processo formativo se desenvolver também no espaço escolar, onde as ações educativas se realizam (SOUZA, PINHO, 2018). Refletindo sobre essas questões, Rodrigues, Therrien, Menezes (2017) destacam a importância de os processos formativos dos docentes não se restringirem à implementação de cursos pontuais ou de programas de formação normativos e prescritivos. Afinal, a aprendizagem da docência é contínua e contextual. O trabalho docente não se enquadra e tampouco se restringe no modelo da racionalidade técnica (RODRIGUES, THERRIEN, MENEZES, 2017).

Partindo desses apontamentos iniciais e, em oposição (e no enfrentamento) às tendências político-epistemológicas que, via de regra, atuam no sentido de invisibilizar os antagonismos de interesses que envolvem e constituem o trabalho docente e a produção de conhecimento no campo educacional, as reflexões que sistematizamos neste texto objetivam acentuar a importância de um delineamento teórico-metodológico mais explícito na realização de investigações que tematizam o trabalho e a formação docente.

Para o cumprimento desse propósito, este texto está organizado em duas partes complementares. Na primeira parte, apresentamos os conceitos e as noções desenvolvidos por Norbert Elias que vem se constituindo como aporte teóricometodológico nos estudos realizados no âmbito do grupo de pesquisa "Políticas, gestão e inclusão escolar: contextos e processos sociais" (CNPq). Nessa primeira parte, ocupamonos de evidenciar questões teórico-metodológicas capazes de orientar pesquisas no campo educacional, especialmente aquelas que tomam por objeto de análise o trabalho docente e a formação continuada de professores em Educação Especial.

Na segunda parte deste texto, trazemos questões e apontamentos sistematizados em uma pesquisa específica que, assumindo os aportes eliasianos, tematizou o trabalho e a formação docente no campo da Educação Especial. O debate empreendido nessa segunda parte subsidia nossa compreensão de que a formação de professores constitui um aspecto absolutamente relevante das políticas educacionais, repercutindo positivamente na qualidade da educação ofertada, sobretudo quando, pela via do diálogo coletivo, nesse espaço-tempo sistemático de estudos os atores envolvidos nos processos formativo-educativos (professores, diretores escolares, estudantes, comunidade local) problematizam as condições objetivas e subjetivas que marcam e narram a realização do trabalho docente.

A sociologia figuracional como aporte teórico-metodológico

No conjunto de suas obras, Norbert Elias constituiu uma sociologia que compreende e estuda as relações humanas em sua processualidade, tomando por referência as análises micro e macrossocial nos/dos fenômenos (CHARTIER, 2001). Essa perspectiva sociológica, recorrentemente designada como "Sociologia Figuracional", busca compreender como e por que os indivíduos, ligados entre si numa dinâmica específica, constituem figurações que estão em permanente processo de constituição e de transformação (CHARTIER, 2001).

Contudo, as ricas contribuições de Elias para o campo de investigação nas ciências humanas e sociais ainda padecem do pouco conhecimento entre nós. Nesse sentido, parece-nos conveniente iniciar este item trazendo, ainda que brevemente, elementos de sua história pessoal.

Filho único do casal Hermann Elias e Sophie Elias, o judeu alemão Norbert Elias nasceu em Breslau (Alemanha), em 22 de junho de 1897. Serviu o exército durante a 1.ª Guerra Mundial, estudou Medicina, Filosofia e Psicologia em Breslau, Freiburg e Heildeberg. De família judia, precisou refugiar-se na França e na Inglaterra, no fim dos anos de 1930. Seu pai faleceu em 1940 e sua mãe, vítima em um dos campos de concentração (em Auschwitz), foi assassinada logo no início daquela mesma década (ELIAS, 2001a).

Quando, no início de 1933, os nacional-socialistas chegaram ao poder na Alemanha, Elias havia acabado de iniciar sua carreira acadêmica. Assim, sua habilitação foi abreviada e, diante das condições e das mudanças políticas vividas, sua tese intitulada "A Sociedade da Corte" foi publicada somente 36 anos depois.

A lista de cidades em que Norbert Elias viveu por longos períodos também deve incluir Heidelberg e Frankfurt. Em Heidelberg, Elias trabalhou e estudou com Alfred Weber, irmão mais jovem de Max Weber. Foi em Heidelberg que Elias conheceu e se tornou amigo de Karl Mannheim. Desse modo, quando Mannheim obteve uma cadeira de Sociologia na Universidade de Frankfurt, em 1929, ele convidou Elias para atuar como seu assistente acadêmico.

Por várias razões, desde o seu estilo pouco convencional de escrita até o seu passado de judeu alemão, o reconhecimento pelas obras de Elias chegou tarde. Ele tinha quase 80 anos de idade quando os anos de maior reconhecimento estavam prestes a começar (SALUMETS, 2001, p. 4).

Depois de sua aposentadoria formal na Universidade de Leicester, em 1962, e de seu breve período na cadeira de Sociologia na Universidade de Gana (1962-1964), somente um pequeno grupo de admiradores e leais apoiadores (principalmente na Alemanha e na Holanda) manifestava interesse pelo seu trabalho.

Salumets (2001) destaca que, somente em 1976, a edição de "O Processo Civilizador" foi republicada e rapidamente se transformou em um best-seller, justamente na Alemanha – país que Elias teve que deixar logo depois da ascensão dos nazistas ao poder. Nessa obra, Elias desenvolve um estudo profundo e sistemático sobre as mudanças das atitudes e dos valores da sociedade na Europa ocidental, ocorridas desde o século VIII até o século XIX. Sua tese é a de que as mudanças nos comportamentos e nos valores dos indivíduos estão intimamente relacionadas com a crescente divisão e especialização do trabalho, com a consolidação de monopólios fiscais e com o controle da violência pelo Estado. Estudando simultaneamente as transformações nas estruturas sociais e as mudanças na personalidade, na obra "O processo Civilizador" Elias evidencia uma mudança emocional que, vivida pelos indivíduos e grupos interdependentes, pode ser expressa na elevação da capacidade de sentir vergonha e repugnância. Essa dinâmica torna possível a ampliação do controle e do autocontrole, tão necessários à vida nas sociedades modernas.

No curso de sua vida, Elias não desistiu! Mas a falta de reconhecimento mais amplo durante todos esses anos foi especialmente difícil para ele. Tocou o núcleo de seu trabalho. Embora acreditasse firmemente em seu projeto, também estava convencido de que "[...] o significado de tudo que uma pessoa faz reside no que ele ou ela significa para os outros" (ELIAS, 1993, p. 6).

Assim, conforme Korte (2001), Norbert Elias considerava fundamental compreender melhor as ligações complexas e continuamente mutáveis que nos conectam uns aos outros. Para Elias (1994, p. 57), "[...] não pode existir um ‘eu’ sem 'ele', ‘ela’, ‘você’ ou ‘eles’-". Sob essa perspectiva, reiteradamente, Elias destacava o equívoco de considerar o "eu" independentemente de sua posição dentro da rede de relacionamentos à qual o resto dos pronomes pessoais também se refere.

Desse modo, ao estudar e ao problematizar questões relativas aos mais variados temas no campo das ciências humanas e sociais, desde a constituição, o lugar, a relação entre os Estados nacionais nas sociedades modernas até os processos de violência no esporte (WAIZBORT, 2001), Elias concentrou esforços no sentido de compreender a constituição peculiar de cada indivíduo no intercruzamento dos laços que os ligam uns aos outros, de forma contínua, dinâmica e flexível.

Nesse sentido, o conceito de interdependência – cunhado pelo autor (por exemplo em Elias 1994; Elias 2001a) – assume absoluta pertinência como delineamento metodológico em pesquisas no campo das ciências humanas, particularmente aquelas que se propõem assumir a perspectiva sociológica eliasiana como aporte teóricometodológico.

Fundamentado no conceito de interdependência, Elias compreende que "[...] os seres humanos só podem ser devidamente entendidos como pluralidades e não como ‘atores’ individualmente isolados que, de maneira variada, ‘interagem’ com outros indivíduos, grupos, organizações ou instituições sociais" (KORTE, 2001, p. 51). No livro "A Sociedade dos Indivíduos", Elias afirma que todas as relações humanas são delineadas por fenômenos sociais e individuais que se intercruzam continuamente. Nos termos do autor, desde a infância, cada indivíduo faz parte de uma multiplicidade de pessoas dependentes umas das outras, ligadas por laços invisíveis de trabalho, propriedade, instintos e afetos. Em nossas sociedades complexas, essa inevitável interdependência conecta os atos de muitos indivíduos diferentes e até desconhecidos entre si. Dessas interdependências "[...] surge uma ordem sui generis, uma ordem mais irresistível e mais forte do que a vontade e a razão das pessoas isoladas que a compõem" (ELIAS, 1993, p. 194).

Assim, Elias (2001a) ponderava a necessidade de os cientistas sociais abandonarem definitivamente todas as formas de individualismo metodológico muito característico das análises sociológicas que, fundamentadas na imagem do homo clausus, estudam a sociedade humana a partir do "indivíduo", considerado isoladamente, fechado em si mesmo, fora das interdependências humanas e sociais. Ele considera que essa imagem do homo clausus "[...] alimenta a ilusão de que o ‘núcleo’ de cada homem é, de certa maneira, prisioneiro de ‘foro interior’, achando-se, portanto, hermeticamente isolado do ‘mundo exterior’ e, muito particularmente, dos outros homens [...]" (ELIAS, 2001a, p. 150).

De modo complementar, de acordo com Elias, essa imagem do homo clausus "[...] constitui o núcleo de uma ideologia burguesa que ocupa lugar preciso no leque das doutrinas sociais e políticas contemporâneas [...]" (ELIAS, 2001a, p. 150). Em regra, essas doutrinas tomam "[...] o indivíduo autônomo, responsável por si mesmo e pelos bens que é proprietário (incluindo a força de trabalho) [...]" (MORENO, 2005, p. 90), constituindo-se, assim, como um dispositivo importante, senão fundamental, no processo de sacralização do sistema econômico e social vigente e de culpabilização de suas vítimas; afinal, "[...] quem se sente culpado não se rebela" (MORENO, 2005, p. 90).

Na concepção de Elias, a correção dessa perspectiva de análise social ocorrerá na medida em que os cientistas sociais assumam, em substituição à imagem do homo clausus, uma orientação teórico-metodológica pautada na noção homines aperti ou pluralidades de pessoas abertas que se transformam nas inter-relações, ao mesmo tempo que transformam as inter-relações que eles constituem.

Entre outras importantes questões, vale destacar que essa mudança de perspectiva na produção do conhecimento nos possibilita problematizar e romper com as epistemologias filosóficas tradicionais que, cunhadas no seio do pensamento moderno ocidental, envidam esforços no intuito de estabelecer e legitimar o conhecimento único, válido e universal (LOYAL; QUILLEY, 2004). Em suma, é exatamente essa epistemologia que, pautada na imagem do homo clausus, subsidia o imperialismo constitutivo do estado moderno e reitera a exacerbação do individualismo, negligenciando, portanto, a realidade das interdependências humanas (SCHEFF, 2001).

Em Elias, somente no momento em que pensarmos em termos de interdependências e de inter-relações no lugar de pensar em termos de substâncias isoladas e únicas, e, portanto, sem dicotomizar indivíduo e sociedade, teremos a possibilidade de compreender melhor a nossa experiência social.

De nossa perspectiva, em termos teórico-metodológicos, decorre dessa indicação eliasiana a necessidade de o pesquisador assumir uma atitude cuidadosa para não tomar o indivíduo isolado, em si mesmo, fora das inter-relações sociais. Aqui, portanto, a humanidade e a sociedade não são, de maneira alguma, um dado meramente e exclusivamente estatístico (LOYAL; QUILLEY, 2004). Assim, como ponto de partida do trabalho investigativo, é primordial considerar as interdependências dos indivíduos e destes entre os grupos que eles constituem.

E nesse aspecto é mister considerar que, na condição de estudiosos de um campo específico do conhecimento, somos "pessoas de dentro", mais ou menos envolvidas e implicadas na situação ou no tema investigado. Somos "produto" e "produtores" das transformações sociais que pesquisamos, por isso mesmo pessoas inteiras e incompletas (KILMINSTER, 2004).

Diante disso, para Elias (1998), o pesquisador precisa estabelecer uma condição de desapego e de distanciamento em relação àquilo que tematiza e estuda. Precisa afastar-se o quanto antes de sua atitude natural. Isso não significa assumir uma perspectiva de neutralidade científica que, por seu turno, indicaria, desde logo, que o pesquisador não veja a si mesmo no processo social. Assim, distanciar-se em relação àquilo que se tematiza e que se estuda significa mudar e ampliar o foco de análise, buscando elementos e/ou aspectos que, embora impregnem e narrem os processos sociais, não podem ser notados à primeira vista (KILMINSTER, 2004).

Pela via desse desapego (ou distanciamento), ainda durante o trabalho de campo e ao longo do processo de sistematização e análise dos dados, inúmeras questões e situações tendem a provocar a revisão de nossa intenção de pesquisa, dando-nos clareza ou retirando/deslocando certezas. Em algumas situações, de fato, mudamos a rota, redefinimos objetivos, realçamos elementos/dados que antes não nos pareciam pertinentes. Estudar aspectos da vida social e de suas transformações sem perder de vista a nossa presença "por inteiro" nesse processo nos coloca esse desafio.

Ao seguirmos as proposições eliasianas, reiteramos que o autor via a realidade como algo extremamente dinâmico e insistia na percepção de que a sociedade constitui um movimento complexo e aberto, "[…] sem regras e leis universais, composta de indivíduos não necessariamente racionais, porém interdependentes, que, sem planejarem, conduzem seus destinos em uma determinada direção" (KIRSCHNER, 1999, p. 54). Elias entendia, assim, que "[...] a natureza da psicologia de um indivíduo e o modo de ver emergem das figurações matrizes em que ele/ela é participante" (LOYAL; QUILLEY, 2004, p. 5).

Chegamos a outra importante noção desenvolvida por Norbert Elias que, imbricada no conceito de interdependência, constitui referente importante no trabalho investigativo em ciências humanas e sociais. Trata-se do conceito de figuração.

Korte (2001) destaca que Elias desenvolveu o conceito de figuração como uma alternativa aos termos estrutura, sociedade e sistema. Do modo trabalhado por Elias, o conceito de figuração permite-nos designar o modo peculiar de organização e de integração dos homens em sociedade. Além disso, o autor esclarece-nos que "[...] o conceito de figuração foi criado expressamente para superar a confusa polarização das teorias sociológicas em teorias que colocavam o "indivíduo" acima da sociedade e outras que colocavam a "sociedade" acima do indivíduo" (ELIAS, 2001b, p. 148).

Para apresentar o conceito de figuração, Elias (1993, p. 70-71) recorre à imagem de uma rede de pesca:

[...] rede é feita de múltiplos fios ligados entre si. No entanto, nem o conjunto desta rede, nem a forma que cada um dos diferentes fios assume se explicam a partir de apenas um destes fios, nem de todos os diferentes fios em si; eles se explicam unicamente por sua associação, sua relação entre si. [...] a forma de cada fio se modifica quando se modificam a tensão e a estrutura do conjunto da rede. E, no entanto, essa rede de pesca não é nada além da reunião de diferentes fios; e ao mesmo tempo, cada fio forma, no interior do todo, uma unidade em si; ele ocupa ali um lugar particular e toma uma forma específica.

Nesse sentido, as figurações não são nem mais nem menos reais que os indivíduos que as constituem (HEINICH, 2001). Mais exatamente, em Elias, os homens singulares não perdem seu caráter e valor como homens singulares que, orientados para a reciprocidade e ligados por interdependências, moldam as figurações que formam.

Sem perder de vista a alta complexidade dos processos (inclusive de longa duração histórica) que envolvem a sociedade humana, as figurações sociais não podem ser percebidas como apresentando uma forma e uma estrutura fixa que podem ser observadas lá de fora. Em Elias, elas são sempre incompletas, expressam-se por um fluxo contínuo, às vezes mais rápido, às vezes mais lento. No seio das figurações mutáveis, vale reiterar: os seres humanos se transformam ao mesmo tempo que transformam as figurações que eles constituem.

Assim, em Elias, as figurações sociais que os indivíduos constituem engendram uma dinâmica que não pode ser reduzida exclusivamente à ação ou à motivação individual. É essa dinâmica imanente que sustenta os processos individuais e a trajetória da vida dos homens (LOYAL; QUILLEY, 2004).

Nessa perspectiva, um trabalho investigativo delineado com base nos constructos eliasianos supõe considerar o caráter radicalmente inter-relacional e radicalmente processual que narra a constituição das figurações sociais. De fato, conforme Elias (1994, 2001, 2005), se, por um lado, o indivíduo não pode ser pensado como reflexo ou "fruto", exclusivo, das coerções externas ou das forças sociais, por outro, nenhuma força social tem seu efeito nas decisões e escolhas dos indivíduos, fora da longa duração histórica.

Desse modo, outro ponto importante do conteúdo teórico-metodológico na abordagem sociológica eliasiana diz respeito à percepção de que, em longo prazo, as formas de organização social mudam ao mesmo tempo que também mudam as pessoas envolvidas nessas organizações (KORTE, 2001). Por esse prisma, Elias evidencia a imbricação dos aspectos psicogênico e sociogênico que subjazem o processo de desenvolvimento da sociedade humana (KORTE, 2001).

Cumpre destacar que um dos principais avanços de Elias foi considerar a íntima associação entre a psicogênese e a sociogênese no estudo dos fenômenos sociais (LOYAL; QUILLEY, 2004). A psicogênese refere-se ao processo ontogenético e à socialização dos indivíduos, enquanto a sociogênese diz respeito à trajetória de desenvolvimento da regulação econômica e política no fluxo histórico de constituição dos estados-nações. Na perspectiva de Loyal e Quilley (2004), com essa elaboração, Elias conseguiu contornar as tensões entre as sociologias da ação e da estrutura social.

Diante do propósito deste texto, evidenciamos a perspectiva de Scheff (2001, p. 112), sobretudo ao afirmar o modo de recolha e de análise de dados desenvolvido por Elias, que se revela potente para e na produção do conhecimento em ciências humanas e sociais. Trabalhando no sentido de reconstituir o procedimento de análise utilizado por Elias no conjunto de seus estudos, Scheff (2001) enumera três momentos complementares que, associados, constituem o que ele classifica como um modo peculiar de análise micro-macro.

Ao abordar essa questão, Scheff (2001) assinala a importância de procedermos inicialmente ao exame das partes menores e até "individuais" que constituem o fenômeno estudado. Neste momento, busca-se uma morfologia individual, atentando para os detalhes da constituição e principalmente para as partes verbais e não verbais dos discursos, da palavra e dos gestos de indivíduos e/ou grupos que constituem o campo empírico da investigação. Buscam-se mais exatamente, nesse recorte micro, os sinais da totalidade social nas "partes menores" por meio do rastreamento dos indícios de suas particularidades (LOYAL; QUILLEY, 2004).

Nessa perspectiva é que, em seguida, sem perder de vista a peculiaridade e a particularidade de cada uma dessas partes menores, ampliamos o contexto de análise, comparando essas partes entre si e procurando similaridades que orientem nossa compreensão sobre processualidade das mudanças, continuidades e descontinuidades vividas. Aqui empreendemos uma reflexão que considera o intercruzamento dos laços que ligam os indivíduos e grupos uns aos outros, de forma contínua, dinâmica e flexível no curso do tempo.

Finalmente, no terceiro momento de análise, passamos à interpretação das partes que foram descobertas em um todo mais amplo possível. Ou seja, a microanálise das partes é interpretada no contexto de totalidades cada vez maiores – no contexto biográfico, histórico e cultural – no qual essas partes estão inseridas. Observa-se que a análise das partes menores é histórica e está relacionada com as instituições sociais e o sistema social em larga escala (SCHEFF, 2001).

Conforme Scheff (2001), procedendo assim, Elias superou as perspectivas de trabalhos científico-sociais que, assumindo um nível de teorização mais profundo, dão conta de totalidades maiores e abstratas, porém perdem de vista os seres humanos reais. Também superou a perspectiva da pesquisa quantitativa e qualitativa que lida quase inteiramente com partes, mas contém pouca teoria abstrata.

Ocorre que esse trabalho de análise supõe igualmente a adoção de uma abordagem interdisciplinar. De fato, Elias apontava permanentemente a necessidade do entrelaçamento de disciplinas afins, como a psicologia, a economia, a filosofia, a linguística, a história e a teoria literária (WAIZBORT, 2001). De acordo com Kirschner (2014, p. 57):

[…] em toda sua obra observa-se o cuidado de evitar o emprego de categorias rígidas e dicotômicas para examinar seres humanos e sociedades. O sociólogo olhou com um ar bastante crítico a tendência à excessiva especialização nas ciências humanas, defendendo, ao contrário, a multidisciplinaridade na pesquisa sociológica.

Diante do exposto, destacamos que assumir a Sociologia Figuracional como aporte teórico-metodológico para o trabalho investigativo no campo da Educação Especial temse constituído como um desafio instigante para o nosso grupo de pesquisa. Assumindo essa empreitada sem escapar à correlação de forças (políticas e cognitivas) que narram o campo da produção de conhecimento da educação, no próximo item, trazemos algumas questões e alguns apontamentos sistematizados em um trabalho investigativo que, subsidiado numa abordagem teórico-metodológica de inspiração eliasiana, tematizou o trabalho e a formação docente no campo da Educação Especial.

Sobre a dinâmica constitutiva do trabalho e da formação docente na perspectiva inclusiva

O campo de investigação se constituiu a partir de uma formação continuada desenvolvida com um grupo de oito professores atuantes na sala de aula comum, sendo três professores pertencentes ao quadro docente do sistema de ensino do estado do Espírito Santo, dois professores vinculados ao sistema municipal de ensino de Domingos Martins-ES e, por fim, três professores originários de uma escola privada localizada no município citado.

A pesquisa foi realizada em 2015, em dois momentos complementares: o primeiro constituiu-se do desenvolvimento de 21 encontros de formação continuada realizada no período de fevereiro a maio daquele ano; e o segundo, realizado quatro meses após o término da formação continuada, quando entrevistamos os professores que participaram da formação continuada.

A participação dos professores supunha a adesão voluntária à pesquisa e à atuação docente com estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e indícios de altas habilidades e/ou superdotação em classes de ensino comum. O planejamento dos encontros de formação foi organizado em conjunto com os professores, que sugeriram temas como a inclusão escolar, significados do termo deficiência, deficiência visual, deficiência intelectual, a teoria psicológica de Vigotsky e a tecnologia assistiva.

Tendo essas temáticas como ponto de partida, propusemos dinâmicas que nos possibilitassem a partilha de experiências mediadas por reflexões coletivas que nos permitissem enriquecer e/ou construir outros sentidos para o trabalho que vinha sendo realizado juntos aos estudantes em classes de ensino comum.

Assim, assumimos os encontros de formação como espaço-tempo privilegiado para reflexões relativas às condições objetivas e subjetivas do/no trabalho docente. Durante esse primeiro momento da pesquisa, por meio do compartilhamento de reflexões sobre as experiências vividas no contexto da escola de ensino comum, empreendemos um esforço coletivo no intuito de compreender a constituição pessoal e profissional de cada integrante do grupo. Buscávamos ver a nós mesmos no fluxo do intercruzamento dos laços que continuamente nos ligam a uma multiplicidade de pessoas interdependentes.

Ao longo desses 21 encontros de formação, diferentes dinâmicas e temas se constituíram como disparadores dos debates. Em meio ao estudo de documentos legais, às leituras de textos, à produção de material didático que respondesse às necessidades específicas dos estudantes com os quais os docentes trabalhavam, aos relatos e às trocas de experiências entre os integrantes do grupo, as narrativas dos participantes estiveram orientadas permanentemente pela tentativa de compreender que as condições de "ser professor(a)" mantém vínculos estreitos com a garantia de condições objetivas facilitadoras do trabalho docente (a remuneração; a constituição de espaços formativos para os docentes; o acesso às tecnologias de informação e da comunicação que contribuam para o trabalho escolar; a disponibilização de materiais e de serviços específicos facilitadores dos processos de ensino e de aprendizagem; entre outras).

Ademais, nosso investimento esteve pautado na perspectiva de que as relações laborais estabelecidas em contexto criam marcas na trajetória de cada pessoa em particular. É nesse sentido que, para nós, as políticas educacionais precisam ser discutidas e avaliadas quando, na realização de encontros formativos, privilegiamos o diálogo coletivo sobre as experiências vividas no contexto da escola. Vislumbramos, assim, a formação de professores como um aspecto absolutamente relevante na implementação de políticas educacionais que se pretendem inclusivas. Com esse foco nos permanentes diálogos ocorridos durante os encontros de formação, buscamos pistas que nos permitissem conhecer, do ponto de vista dos participantes, a concepção de inclusão escolar e o "lugar" do professor nesse processo.

Nas reflexões que realizamos sobre a temática "Uma conversa sobre inclusão escolar", por exemplo, os professores deixaram como registro coletivo um pequeno texto, apontando que "[...] a escola se torna inclusiva quando os profissionais e as pessoas da comunidade que nela estão compreendem isso" (ATIVIDADE, 5.º Encontro de Formação Prof.ª 5, Prof. 12 e Prof. 13, 06 mar. 2015). Nessa discussão, o grupo destacou que, diante das diferenças individuais, o trabalho docente será mais inclusivo na medida em que, ao ser planejado o ensino, os materiais disponibilizados e as atividades propostas atendam às demandas formativas de todos os estudantes da classe.

Em diferentes momentos de outros encontros quando motivamos reflexões sobre o lugar do professor no processo de inclusão escolar, os docentes, em suas narrativas, se responsabilizavam pelo seu não saber e indicavam a necessidade de formação específica para atuar com os estudantes com deficiência e/ou com transtornos globais do desenvolvimento, matriculados no ensino comum. Traziam esse destaque entendendo que, muitas vezes, o currículo de sua formação pedagógica inicial não aborda as especificidades dos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e/ou com indícios de altas habilidades e/ou superdotação. Conforme apreciamos na narrativa de um professor, muitas vezes a presença desses estudantes na escola comum tende a provocar insegurança acerca do processo de ensino e da aprendizagem: "[...] não sei se estou fazendo do jeito certo. Pelo menos vou tentando e às vezes dá certo [...]" (DIÁRIO DE CAMPO, 4.º Encontro de Formação, 03 mar. 2015, Prof.ª 15).

O relato desse professor aponta para a necessidade profissional de conhecer mais sobre a temática e as singularidades do grupo de estudantes que, constituindo o públicoalvo da Educação Especial1 está matriculado em classes de ensino comum. Entendendo que o acesso desses estudantes à escola está garantido, sua permanência poderá ter mais qualidade na medida em que também sejam oportunizados aos docentes as condições adequadas de trabalho, que incluem a garantia de espaços e tempos favoráveis à organização de encontros coletivos formativos no interior da escola.

Em nossa perspectiva, trata-se de um desafio político e social bastante complexo, tendo em vista que, se, por um lado, a instituição escolar tem demandado dos seus profissionais um saber cada vez mais ampliado sobre a vida em sociedade, por outro, a precarização profissional emerge como forte indício das condições objetivas que impactam o trabalho docente. A situação social e econômica vivida pelos docentes que participaram daqueles encontros de formação nos levam a questionar: como garantir espaços qualificados e sistemáticos de formação que permitam aprofundamentos sobre os propósitos inclusivos escolares perante o significativo contingente de docentes que atuam em mais de uma escola, chegando a atuar com uma carga horária média de 40 horas/aulas semanais, por vezes, distribuídas em até dois sistemas de ensino?

Os encontros de formação que deram base ao primeiro momento desta pesquisa proporcionaram outras reflexões com o grupo, permitindo-nos tanto discutir sobre os processos sociais e políticos a que estamos profissionalmente vinculados quanto debater sobre a compreensão de que, no seu conjunto, as condições objetivas que garantem a realização do trabalho docente delineiam as práticas pedagógicas, materializando uma perspectiva específica de inclusão escolar.

Sem perder de vista os apontamentos trazidos pelos participantes, fomentamos o diálogo coletivo problematizando o fato de que ainda que há professores com formação específica para atuar com os estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e indícios de altas habilidades e/ou superdotação em classes de ensino comum, é imprescindível considerar a inter-relação entre essa qualificação docente e as condições efetivas de trabalho na escola.

Assim, orientamos nossas reflexões perspectivando que a materialização da inclusão escolar não pode estar exclusivamente fundamentada na aposta em uma formação específica no campo da Educação Especial. Outras questões que dizem respeito às circunstâncias sociais potencializadoras do trabalho docente precisam constituir a agenda formativa dos profissionais do ensino. Nesse aspecto, compartilhamos a perspectiva de Rodrigues, Therrien, Menezes (2017) de que a aprendizagem da docência é contextual e, por isso, dinâmica. A formação não pode ficar restrita aos programas pontuais, de natureza prescritiva e técnica. Sem condições de trabalho e de formação docente que garantam reflexões sistemáticas sobre as experiências educativas vividas, seguimos um projeto de inclusão que tão somente legitima uma dinâmica de exclusão em outro script.

Conforme destacamos, tendo concluído os encontros de formação, retornamos o contato com os participantes quatro meses depois. Com eles desenvolvemos entrevistas semiestruturadas, assumindo-a como uma "escuta ativa e metódica" que "[...] associa a disponibilidade total em relação à pessoa interrogada, a submissão à singularidade de sua história particular" (BOURDIEU, p. 713), na mesma medida em que proporcione aos sujeitos envolvidos uma situação confortável que lhe possibilite falar sem constrangimento sobre o que está sendo colocado em questão.

Bourdieu (1997) também considera como dever do pesquisador a legibilidade do texto transcrito, destacando a importância de considerar as singularidades sociais e os comportamentos durante a entrevista. Desse modo, adotamos as indicações de Bourdieu (1997) para a transcrição, procurando compreender o significado singular nas falas dos entrevistados e formulando hipóteses sobre as informações contidas na textualização do relato oral entrelaçado com o comportamento no instante de formulação das respostas pelos entrevistados.

Ao atendermos ao que nos indica Elias (1994), não deixamos escapar a ideia de que a singularidade de cada concepção individual está em inter-relação com o desenvolvimento sócio-histórico de um espaço social e da própria humanidade e, nesse sentido, essa concepção individual deve ser olhada como um movimento permanente e complexo. Essa nossa compreensão orientou a sistematização e as análises das narrativas recolhidas por ocasião das entrevistas.

As narrativas desenvolvidas, principalmente aquelas decorrentes das entrevistas, nos ajudaram a olhar as "partes menores", possibilitando-nos, assim, melhor compreensão da totalidade do nosso objeto de estudo.

Aspectos do contexto do trabalho e da formação docente em Educação Especial

Ao nos referenciarmos em Elias, desenvolvemos nosso trabalho investigativo atentos à importância de considerar cada história particular, buscando conhecer as informações singulares de relevância para/na constituição dos valores, dos sentimentos e emoções que, ainda, não estavam perceptíveis à primeira vista.

No delineamento de nossa intenção investigativa, inicialmente importava-nos entender a adesão dos professores aos encontros de formação. Assim, ao perguntarmos sobre o interesse em conhecer os conteúdos desenvolvidos nos encontros de formação, uma professora narrou: "Não que a gente tenha o objetivo de trabalhar na salinha de acompanhamento do aluno, mas que a gente possa estar mais preparada para esse aluno em sala de aula, o que muitas vezes não acontece" (ENTREVISTA, 1.º out. 2015, Prof.ª 8). Nas entrelinhas, a professora parece indicar-nos que percebe uma particularidade no movimento de matrícula e na necessidade de permanência de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e indícios de altas habilidades e/ou superdotação em classes de ensino comum. Dessa narrativa também podemos inferir que a realização de encontros de formação se apresenta como imprescindível para que os professores acessem conhecimentos específicos que lhes propiciem criar atividades, materiais e recursos que, no contexto da educação geral, qualifiquem o processo de universalização escolar, tão propalado nos documentos legais.

Nessa mesma direção, durante as entrevistas, a Prof.ª 1 nos disse que participou dos encontros de formação objetivando entender "[...] como fazer para ensinar ao aluno com mais dificuldade, já que ele não fica como os outros alunos na sala de aula [...]". Ela segue destacando que,

"[...] quando está trabalhando uma coisa, dando matéria, o aluno sai para o Atendimento Educacional Especializado e vai fazer outras coisas. Então, o aluno perde aquele conteúdo que eu trabalhei com o restante da turma, depois que ele saiu de classe. A prova tem que ser a mesma para todos e ele perdeu conteúdo... [silêncio] acho muito complicado [...]" (ENTREVISTA, 6 out. 2015, Prof.ª 1).

Nessa narrativa, observamos que a professora faz uma avaliação crítica sobre a prática docente real, demonstrando uma situação objetiva dentro da escola que, na sua compreensão, revela descuido com a qualidade da escolarização de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e indícios de altas habilidades e/ou superdotação matriculados em classes de ensino comum. Particularmente, ela questiona o fato de esses estudantes participarem do Atendimento Educacional Especializado2 no horário regular de ensino. Nessa circunstância, o silêncio da Prof.ª 1 parece-nos falar alto sobre sua responsabilidade de ter que responder profissionalmente sobre o desenvolvimento escolar de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e indícios de altas habilidades e/ou superdotação, em um contexto onde o trabalho realizado em classe de ensino comum é colocado "em suspensão" em detrimento do trabalho especializado, realizado na sala de recursos multifuncionais.

Também percebemos nessa narrativa que a presença de um "aluno com mais dificuldade" não se constitui como problema indesatável para a professora. A questão que se coloca aqui é a dinâmica institucional que estabelece a saída do estudante de sua classe para "fazer outras coisas" no Atendimento Educacional Especializado. Essa dinâmica nos revela pistas sobre as condições de desenvolvimento da prática docente na sala comum e, simultaneamente, aponta para a necessidade de planejamento entre os profissionais que atuam com um mesmo estudante, garantindo a materialização de um currículo mais articulado.

No bojo das reflexões que desenvolvemos nesta investigação, compreendemos que a dinâmica inclusiva proposta pelas/nas políticas educacionais se materializa nas ações desenvolvidas pelos profissionais do ensino, conforme a dinâmica institucional, específica e peculiar estabelecida em cada escola. Mas, ainda assim, essa análise precisa considerar que "[...] o que caracteriza o lugar do indivíduo em sua sociedade é que a natureza e a extensão da margem de decisão que lhe é acessível dependem da estrutura e da constelação histórica da sociedade em que ele vive e age" (ELIAS, 1994, p. 49).

Assumindo uma perspectiva teórico-metodológica orientada pelos/nos constructos de Norbert Elias, a reflexão sobre a organização das atividades complementares e/ou suplementares para o atendimento às demandas educacionais dos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, indícios de altas habilidades e/ou superdotação precisa considerar que o movimento estruturado, de forma geral, no âmbito da sociedade burguesa industrial e a história dessa mesma sociedade se constituem como um importante balizador (e legitimador) de uma perspectiva inclusiva escolar específica. Vale destacar que uma das marcas dessa perspectiva inclusiva diz respeito ao fato de ela estar baseada em práticas pedagógicas que, em regra, percebem as necessidades dos estudantes em si mesmas e constroem respostas universais para a inclusão, perdendo de vista o fato de que nem sempre os estudantes demandam os mesmos recursos, os mesmos tempos e as mesmas condições de ensino e de aprendizagem.

Na condição de "pessoas de dentro", entendemos que a atenção a essa questão/indicação pode ajudar-nos a escapar à exacerbação do individualismo, permitindo-nos realçar que as necessidades e as demandas dos estudantes vivenciadas na materialização do trabalho docente precisam constituir-se como balizadoras da disponibilização dos recursos, dos materiais, bem como da organização do trabalho dos profissionais que atuam no serviço de apoio especializado nas unidades de ensino.

Ampliando o contexto de análise sobre os processos constitutivos do trabalho e da formação docente em Educação Especial

Durante a entrevista, respondendo à pergunta sobre o desenvolvimento de práticas pedagógicas com estudantes público-alvo da Educação Especial, a Prof.ª 5 afirmou: "Todos aprendem" (Prof.ª 5, 24 set. 2015). Chamou-nos a atenção a resposta breve, mas simbólica, dessa professora em razão de um questionamento feito aos outros professores no início dos nossos encontros de formação realizados no início de 2015. Naquela oportunidade, recorrentemente ouvíamos: "[...] todos aprendem, isso é certo, mas como fazer com que todos aprendam em nosso contexto escolar?" (ATIVIDADE, Prof.ª 5, 13.º Encontro de Formação, 7 abr. 2015).

Assim, o destaque dado à afirmativa "todos aprendem" expressa o crédito da professora em relação à aprendizagem dos estudantes matriculados em sua classe. Esse posicionamento, contudo, se mostrava diferente na realização dos encontros de formação, especialmente no período em que envolvemos os participantes em atividades de produção e de adaptação de material pedagógico e em discussões sobre procedimentos didáticos subsidiadores de práticas pedagógicas com os estudantes público-alvo da Educação Especial.

Essa mudança de perspectiva relativamente à prática pedagógica também pode ser apreciada na participação da Prof.ª 8, que, durante os encontros, se posicionava criticamente quanto à organização das escolas. Recorrentemente ressaltava sua percepção de que temos uma inclusão anunciada, mas que não se concretiza em termos educacionais reais, tendo em vista que o espaço escolar não está "[...] materialmente adequado a esse público [...]" e o movimento da escola é diferente de uma "[...] escola para eles" (DIÁRIO DE CAMPO, 6.º Encontro de Formação, Prof.ª 8, 10 mar. 2015). Contudo, mais tarde, durante a entrevista, ao ser perguntada sobre a prática docente, essa professora narrou: "O meu jeito de olhar hoje o aluno com deficiência e não aluno deficiente [risos] mudou" (Prof.ª 8, 1.º out. 2015).

Buscando ampliar o contexto de análise no sentido de compreender os processos constitutivos do trabalho e da formação docente no campo da Educação especial, parece-nos fundamental não perder de vista que as relações laborais criam marcas na trajetória de cada pessoa em particular e a "pessoa" se desenvolve também no interior da sua ocupação profissional. Assim, em nosso entendimento, mesmo antes da realização dos encontros de formação, espaço empírico de realização da nossa pesquisa, esses professores vinham constituindo conhecimentos sobre inclusão escolar no campo da Educação Especial.

A esse respeito, é importante considerar que tais conhecimentos se expressam de diferentes maneiras nas políticas públicas que se vêm implementando e, nesse sentido, eles também podem ser apropriados pelos indivíduos e grupos de maneiras muito diversas e distintas, a depender das condições objetivas de realização do trabalho docente em sua íntima associação com as trocas intersubjetivas, inclusive aquelas que são estabelecidas no espaço-tempo de sua atuação profissional. Atentemos, no entanto, para a indicação de que, no escopo da abordagem teórico-metodológica eliasiana, essa análise precisa considerar a processualidade histórica da interdependência entre a organização da vida em sociedade e constituição pessoal e profissional dos indivíduos.

Ao considerarmos o campo do conhecimento em que se insere nossa investigação, uma importante questão diz respeito ao fato de que a busca pela universalização da escola resultou de uma demanda social e política específica constitutiva das nações e das sociedades industriais no curso do século XIX (VEIGA, 2014). Não por acaso, diferentes eventos sociais contribuíram para que crescentemente a escola se constituísse como parte importante das responsabilidades da administração estatal, devendo, portanto, ser tutelada pelo Estado e simultaneamente contemplada no orçamento público.

Desse modo, não sem tensões, em nossas sociedades recentes, o monopólio da tributação pelo Estado reserva aos governantes uma ampla possiblidade de escolha sobre onde, quando e quanto investir os recursos arrecadados, incluindo-se aí o financiamento das políticas sociais e particularmente das atividades educativas escolares. Assim, com base nas elaborações de Norbert Elias (1994; 2001a; 2001b; 2005), ponderamos que, especialmente nas sociedades capitalistas, a política orçamentária exerce evidente influência na constituição das pessoas delineando suas crenças e seus modos de agir com os outros.

Nesse debate, importa não perder de vista que os profissionais da educação são pessoas envolvidas em trocas intersubjetivas que se realizam em tantas outras figurações sociais de que participa, como os grupos religiosos, os clubes, as festas, a comunidade, o comércio, a família. Nesses tantos espaços, o orçamento público, como dispositivo da política governamental estabelecida, assume importância sem precedentes.

Um investimento governamental maior e mais sistemático na criação de condições objetivas que assegurem a concretização dos direitos sociais das pessoas com deficiência e/ou com transtornos globais do desenvolvimento e, portanto, que garanta a participação mais ativa e qualificada dessas pessoas em diferentes espaços coletivos da/na sociedade, certamente mobilizaria a constituição de expectativas mais positivas daqueles envolvidos pessoal e/ou profissionalmente nos processos de inclusão escolar dessa população, colaborando na superação da ideia, ainda firmemente presente entre nós, de que as pessoas com deficiência e/ou transtornos globais do desenvolvimento precisam de uma escola específica: uma escola "[...] para eles".

Durante as entrevistas, também propomo-nos a olhar as considerações dos professores sobre os conhecimentos apreendidos por eles pela via dos encontros de formação e a incidência desses conhecimentos no contexto educacional. A percepção desse processo é encontrada, por exemplo, na narrativa do Prof. 10. Ao ser entrevistado, ele nos diz que, após os encontros de formação, passou a ser um incômodo para ele não conseguir desenvolver plenamente a sua função profissional, que é ensinar. Assim, esclarece que "[...] o aluno especial frequenta as minhas aulas desde o começo, mas ficava na dele" (ENTREVISTA, 05 out. 2015, Prof. 10).

Um novo posicionamento do Prof. 10 com os estudantes pode ser apreciado quando ele registra que, após ter participado dos encontros de formação, passou a procurar ensinar a todos na sala de aula. Assim, narra: "[...] agora coloco ele na roda também [...] E aquele conhecimento dos alunos que irão fazer o Enem, eu tenho uma mesma preocupação de trabalhar com aquele aluno especial" (ENTREVISTA, 05 out. 2015, Prof. 10).

Essa narrativa evidencia que, em nosso contexto social, muitos professores têm um compromisso ético de possibilitar o acesso aos conhecimentos escolar aos estudantes que se encontram sob sua responsabilidade. Em suas declarações, o Prof. 10 admite que não é fácil desenvolver um trabalho que envolva a todos, porém ele evidencia satisfação quando consegue realizar essa sua expectativa pessoal (e profissional). Disse-nos: "[...] é bom, sabe, prazeroso, me satisfaz como pessoa, mesmo. Eu procuro trabalhar com as potencialidades dele, vejo onde ele consegue chegar" (ENTREVISTA, 05 out. 2015, Prof. 10).

Compreender que os estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e indícios de altas habilidades e/ou superdotação "[...] têm direitos e deveres [...]", conforme anuncia a Prof.ª 1 durante as entrevistas, também direciona nossa análise para o desencadeamento de pequenos movimentos que são potentes no sentido de dar outra significação ao processo de inclusão social e de escolarização do estudante público-alvo da Educação Especial. Referindo-se aos conhecimentos apropriados durante os encontros de formação, essa professora destacou: "[...] ajudou muito, na busca de ajuda da escola e de estratégias para trabalhar com o aluno especial" (ENTREVISTA, Prof.ª 1, 6 out. 2015). Nessa linha, a Prof.ª 4 também registra-nos: "[...] então estou mais preparada para receber o estudante da Educação Especial "[...] antes ficava perdida, achava que eu tinha que me virar sozinha, me sentia pressionada" (ENTREVISTA, Prof.ª 4, 7 out. 2015).

Entre outras importantes questões, as narrativas desses professores nos levam a evidenciar os desafios relativos à apropriação do saber escolar pelo aluno com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e indícios de altas habilidades e/ou superdotação matriculados em classe de ensino comum. Ora, sendo a escola uma importante instituição social com destacada centralidade no processo de transmissão e assimilação dos conhecimentos sociais, ocupar-nos do debate em torno da apropriação do saber escolar por esse grupo específico de estudantes implica referirmo-nos à consecução das práticas pedagógicas.

Apoiados nos construtos eliasianos, observamos que a prática pedagógica se expressa e se justifica na teia das interdependências que envolvem, direta ou indiretamente, professores, alunos, pais, gestores escolares, gestores públicos. Em associação, consideramos que os sentidos que significam e delineiam as práticas pedagógicas na escola universalizada também mantêm vínculos estreitos com outras transformações sociais em curso, às vezes, de longa duração.

Desse modo, nas reflexões relativas ao trabalho e à formação docente, faz-se relevante considerar o fato de que a história "das possibilidades educativas" de alunos/pessoas com deficiência conta com mais de dois séculos e, em grande parte desse período, as explicações para os modos de atuação com essas pessoas foram produzidas e disseminadas em conformidade à produçao do conhecimento na área das ciências fisicas e naturais. Em regra, esses conhecimentos estiveram fundamentados numa abordagem epistemológica que compreende o indivíduo como o produto das estruturas sociais, concebendo a deficiência em si mesma, ou no próprio indivíduo que a porta, um homo clausus, que existe antes e independente das inter-relações.

Tendo assumido centralidade no campo educacional, essas produções legitimaram o prevalecimento do terapêutico em detrimento do pedagógico, uma vez que se orientavam sob a expectativa de que o aluno com deficiência é antes um doente e, apenas depois de deixar de ser doente, pode ser estudante (JANNUZZI, 2004). Não sem razão, em muitas realidades, recentemente as baixas expectativas relativas às potencialidades dos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, em regra, fundamentam a materialização das politicas educacionais que anunciam a inclusão escolar.

Considerando que as práticas pedagógicas na escola universalizada se inscrevem nos movimentos sócio-históricos mais amplos delineados por uma correlação de forças num grande jogo social, romper com práticas e políticas segregacionistas de cunho biologizante constitui um significativo desafio no campo de estudos que tematizam o trabalho e a formação docente no campo da Educação Especial. As narrativas dos profissionais que participaram dos encontros de formação que realizamos no início de 2015 revelam pistas que apontam a existência de movimentos alternativos às lógicas inclusivas escolares que, anunciadas em termos de políticas públicas, ainda se encontram fortemente assentadas na dicotomia indivíduo e sociedade.

Considerações finais

Compreendendo a absoluta pertinência que o delineamento teórico-metodológico assume nos trabalhos investigativos desenvolvidos no campo educacional, particularmente nas pesquisas que tematizam a "formação de professores", no curso deste texto nos esforçamos em trazer conceitos e noções eliasianas que vêm se constituindo como aporte teórico-metodológico nos estudos realizados no âmbito do nosso grupo de pesquisa.

Ao sustentarem a compreensão de que indivíduo e sociedade são interdependentes (ELIAS, 2005), as teses eliasianas nos oferecem a peculiar possibilidade de estudar os acontecimentos sociais pressupondo o próprio pesquisador como ente do fenômeno que se pretende problematizar. Essa inextricável imbricação "objeto" e "sujeito do conhecimento" afirma-se especialmente na compreensão de que "[…] o conceito de indivíduo se refere a pessoas interdependentes, e o conceito de sociedade a pessoas interdependentes no plural […]" (ELIAS, 2005, p. 136). Nesse sentido, as elaborações eliasianas impõem-nos uma reorientação teórico-metodológica no campo das ciências sociais e humanas, permitindo-nos escapar a uma perspectiva de conhecimento que toma o sujeito num vácuo de "eu" sem "nós", "você" ou "eles".

Cumpre destacar que definitivamente tanto as teses quanto o trabalho investigativo de cunho eliasiano não partem da ideia de homem como tábula rasa ou um papel em branco em que um conjunto de crenças e de valores pode ser depositado no curso do desenvolvimento individual (LOYAL; QUILLEY, 2004). Afinal, em Elias, "[...] não existe um superego dado e fixo. Ele é desenvolvido ao longo do tempo e nas relações que emergem da estrutura das interdependências sociais" (LOYAL; QUILLEY, 2004, p. 5). Perspectivando compreender a processualidade das emoções humanas, Elias (1994, 1998, 2001) buscou um nexo entre passado, presente e futuro, problematizando e contrastando as preocupações humanas que impulsionaram a produção de conhecimento em diferentes direções. Conforme destacamos no primeiro item deste texto, não nos pode escapar que os "[…] diferentes tipos de conhecimento estão correlacionados às diferenças específicas na situação das sociedades em que são produzidos e usados […]" (ELIAS, 1998, p. 33).

Provocados e instigados por esses apontamentos teóricos e metodológicos, estudamos o trabalho e a formação docente no campo da Educação Especial, envidando esforços para superar os modismos sociomidiáticos. Esforçamo-nos em atribuir pertinência absoluta à adoção de uma abordagem teórico-metodológica que considera os rostos e as vozes humanas que delineiam as relações sociais reais, sem perder de vista a dinâmica histórica constitutiva das emoções individuais e coletivas. Complementarmente, compreendendo que o trabalho investigativo é também compromisso epistemológico e político, vimos assumindo uma perspectiva interdisciplinar com marcas da Política, da História, da Economia. Afinal, "[...] as inter-relações não se dão num vazio histórico e social. Em grande medida, elas são delineadas pelo conhecimento produzido pelo conjunto dos homens no curso de várias gerações" (MILANEZI, 2016, p. 28).

Por essa via, buscamos escapar ao ecletismo epistemológico que, além de fragilizar a construção argumentativa e a análise de dados, consubstancia as tendências políticas que, em regra, atuam no intuito de invisibilizar o antagonismo de interesses que envolve e constitui a produção do conhecimento (SILVA, JACOMINI, 2016).

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Recebido: 14 de Junho de 2018; Aceito: 12 de Novembro de 2018

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