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Revista Educação e Cultura Contemporânea

versión impresa ISSN 1807-2194versión On-line ISSN 2238-1279

Rev. Educ. e Cult. Contemp. vol.15 no.41 Rio de Janeiro oct./dic 2018  Epub 15-Oct-2018

https://doi.org/10.5935/2238-1279.20180079 

Artigos

Formação de professoras, tradicionalismo e a feminização do magistério no Brasil: um estudo da obra de Aparecida Joly Gouveia

Teacher training, traditionalism and the feminization of teaching in Brazil: a study of the work of Aparecida Joly Gouveia

Renata Porcher SchererI 

1Unisinos


Resumo

O presente artigo, ao investigar as temáticas da formação de professoras e da feminização do magistério na literatura pedagógica brasileira da década de 1960, identifica que a questão do tradicionalismo se constituía como uma importante variável para a escolha do magistério pelas moças daquele período. A partir da análise documental da produção acadêmica da pesquisadora Aparecida Joly Gouveia é possível identificar que, na época analisada, uma das críticas das normalistas a sua formação era pautada pela falta de um caráter prático nos cursos de magistério, que estariam aquém do desejado para o futuro exercício profissional. Assim, pode-se afirmar que o debate entre uma formação baseada nos conteúdos, ou teórica, e uma formação baseada nos saberes didáticos, ou prática, constituiu-se como uma questão importante no período analisado em que a educação brasileira passava por um amplo processo de democratização. Outro destaque refere-se a investigação pioneira da pesquisadora acerca das decisões vocacionais da mulher em um Brasil que vivenciava um processo de rápida industrialização, inaugurando o debate sobre a feminização do magistério e o papel da mulher nessa sociedade. Sob tal perspectiva, entende-se que uma retomada dos escritos de Gouveia poderá contribuir para reenquadrar o debate acerca da história da formação de professores no Brasil.

Palavras-Chave: Formação de professores; História da educação; Feminização do magistério; Brasil

Abstract

This article, when investigating the themes of teacher training and the feminization of teaching in the Brazilian pedagogical literature of the 1960s, identifies that the question of traditionalism constituted an important variable for the choice of teaching by the girls of that period. From the documentary analysis of the academic production of the researcher Aparecida Joly Gouveia it is possible to identify that at the time analyzed, one of the criticisms of the normalists was that their formation was based on the lack of a practical nature in the teaching courses, which would be below the desired for the future professional practice. Thus, it can be affirmed that the debate between, on the one hand, a content-based or theoretical formation and a formation based on didactic knowledge, or practice, was an important issue in the analyzed period in which Brazilian education went through a broad process of democratization. Another highlight is the pioneer investigation of the researcher about women's vocational decisions in a Brazil that was experiencing a process of rapid industrialization inaugurating the debate about the feminization of the teaching profession and the role of women in this society. From this perspective, it is understood that a resumption of Gouveia's writings may contribute to reframing the debate about the history of teacher education in Brazil.

Key words: Teacher training; History of education; Feminization of teaching; Brazil

Introdução

O presente estudo deriva-se de uma investigação que examina os diferentes significados atribuídos à docência na literatura pedagógica brasileira publicada na segunda metade do século XX. Ao verificarmos, a partir de extensa e criteriosa revisão nos bancos de dados brasileiros, que a literatura pedagógica brasileira tem sido alvo de poucas pesquisas acadêmicas, contatou-se a importância de olhar para essa produção como importante material empírico de futuras investigações. Nosso desejo estava em retomar pensadores clássicos do campo da formação de professores no Brasil para, a partir de seus direcionamentos, reenquadrar nossas investigações rumo a novas perspectivas.

Neste artigo apresentamos a análise da produção acadêmica da pesquisadora Aparecida Joly Gouveia, olhando com atenção para os significados acerca dos processos de formação de professoras e de feminização do magistério. Importa primeiramente justificar o porquê da escolha da produção da pesquisadora para após apresentar como a argumentação do presente texto se organizará. Assim sendo, visamos produzir uma contribuição ao campo da formação de professores no Brasil, valendo-nos de uma perspectiva histórica. Tal enquadramento teórico permitirá problematizar uma questão emblemática na contemporaneidade; todavia, buscaremos compor este exercício investigativo valendo-nos de uma das mais relevantes pesquisadoras sobre a temática em nosso país. Retomar os estudos de Gouveia, mais que um exercício hermenêutico, trata-se de um gesto político de engendrar novas compreensões para a docência feminina no Brasil.

De acordo com estudo recente sobre a formação profissional dos professores, desenvolvido por Marafelli, Rodrigues e Brandão (2017, p. 985), a obra "Professoras de Amanhã" escrita por Gouveia é fundadora da "abordagem sociológica do magistério como profissão feminina e do ensino primário (anos iniciais do ensino fundamental) no Brasil". Ainda sobre a obra de Gouveia, Silke Weber (1996), importante socióloga brasileira, corrobora com tal assertiva ao apontar que o reconhecimento da docência como trabalho e objeto de estudo teria como marco o início da urbanização brasileira e, certamente, os estudos desenvolvidos por Gouveia foram pioneiros na abordagem sociológica sobre a educação e o trabalho docente. De acordo com a socióloga, a obra de Gouveia (1965) teve como foco a escolha ocupacional das mulheres, apontando para uma compreensão do magistério ligada a atitudes e valores tradicionais, mostrando a importância do tradicionalismo para a escolha vocacional pelo magistério. Isto nos permite afirmar que, ao lançar um olhar aos estudos de Gouveia, estamos diante de um debate considerado como pioneiro sobre a feminização do magistério brasileiro.

Vale registrar ainda que o livro de Gouveia (1965), "Professoras do amanhã", integra a importante obra organizada por Maria do Carmo Xavier (2010, p.10) - "Clássicos da educação brasileira" - que reúne resenhas de obras publicadas entre as décadas de 1930 e 1960. Neste período, de acordo com a autora, "a nossa intelectualidade esteve especialmente envolvida em disputas políticas sobre a construção da sociedade democrática, com o concurso de uma escola pública de qualidade". A pesquisadora também recebeu um verbete na obra "Dicionários de educadores no Brasil: da colônia aos dias atuais" organizado por Maria de Lourdes Fávero e Jader de Medeiros Britto (1999), devido a sua importância no contexto educacional brasileiro. Nesse verbete destaca-se que Gouveia era, além de uma importante pesquisadora do campo educacional, uma profissional consciente da gravidade dos problemas da educação em nosso país estando "sempre atenta às possibilidades de contribuir como pesquisadora para a busca de possíveis soluções para eles, especialmente no que se referia à sua área de estudo, a sociologia" (LÜDKE, 1999, p. 151-152).

Lüdke (2010), ao retomar a trajetória acadêmica da pesquisadora Aparecida Joly Gouveia2, ainda destaca que para realizar o estudo sobre as normalistas, que seria a sua base para a tese de doutorado, Gouveia precisou insistir bastante com os professores Anísio Teixeira, diretor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), e Darcy Ribeiro, coordenador do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) vinculado ao INEP. De acordo com o relato, tanto Anísio Teixeira quanto Darcy Ribeiro estavam dedicados a fundação da Universidade de Brasília e focados na formação de professores. Nas palavras de Gouveia, em entrevista concedia a Niuvenius Paoli (1995) para sua tese de doutorado, "Dr. Anísio era uma pessoa muito interessante, muito inteligente, mas não era muito consequente nas decisões, então a gente tinha que brigar um pouco" (PAOLI, 1995, p. 188).

Gouveia foi descrita, nos relatos compilados por Lüdke (2010), como uma pesquisadora a qual lhe foram atribuídas características como clareza, perspicácia, capacidade de apreender e analisar situações complexas da educação e expressá-las de forma clara, além de outras características pessoais como simpatia, simplicidade, modéstia e senso de humor as quais nas palavras de Lüdke (2010, p. 17) "granjearam para ela relações que ultrapassam de muito o âmbito meramente profissional".

Os trabalhos acadêmicos desenvolvidos por Gouveia podem ser divididos em duas matrizes de pensamento (PAOLI, 1995). Uma primeira com foco em investigar as opiniões dos pais e professores sobre a escola e uma segunda com foco maior sobre a formação de professores e utilizando de forma mais contundente os recursos das análises estatísticas.

Nesse artigo, por nos debruçarmos sobre a temática da formação de professores no Brasil, olharemos com especial atenção para a segunda fase de investigação de Gouveia. Selecionamos como material empírico duas importantes, e ainda pouco conhecidas, produções de Gouveia da década de 1960. O primeiro material consiste no polêmico (e atual?) artigo, publicado no ano de 1961, intitulado "Milhares de Normalistas, Milhões de Analfabetos", em que a pesquisadora evidencia sua preocupação acerca do quadro complexo que compreende pensar a formação de professores para o atendimento da educação básica, dentro de um contexto de democratização do acesso a escolarização. O segundo material consiste no livro "Professoras de amanhã: um estudo de escolha ocupacional", onde além de discutir questões concernentes à formação de professoras, Gouveia ao investigar as decisões vocacionais da mulher em um Brasil que vivenciava um processo de rápida industrialização, ao nosso entender, inaugura o debate sobre a feminização do magistério e o papel da mulher nessa sociedade. Nesse período, destacase as contribuições dos estudos realizados pela socióloga na Universidade de Chicago que fizeram com que ela se sentisse mais preparada para trabalhar com os dados advindos da pesquisa a partir de tratamentos estatísticos.

Diante deste quadro contextual, buscaremos examinar as contribuições da obra de Gouveia para uma reconstrução crítica dos estudos sobre formação de professores no Brasil, tomando a história da educação como perspectiva privilegiada. Assim sendo, organizamos o presente artigo em duas partes. Em um primeiro momento traçaremos um diagnóstico, de caráter preliminar, sobre a feminização do magistério e a democratização da educação na segunda metade do século XX no contexto brasileiro. Posteriormente, na segunda parte, revisaremos as publicações da autora sobre as escalas de tradicionalismo e sua importância para pensar a constituição das normalistas.

Feminização do magistério e democratização da educação: um breve diagnóstico

A fim de tecer um breve diagnóstico histórico sobre os processos de feminização do magistério, articulados a democratização do acesso à educação básica, nesta seção realizaremos uma revisão dos estudos desenvolvidos sobre os processos de feminização e feminilização do magistério no Brasil, apontando para importantes distinções conceituais.

É possível identificar que os estudos sobre feminização do magistério no Brasil se dividiram em dois momentos. Um primeiro ao olhar para o aumento significativo das mulheres a partir de uma análise mais quantitativa e estatística que poderíamos nomear como análises sobre o processo de feminilização. E um segundo grupo que privilegiava as modificações internas no processo de trabalho docente, a partir da entrada das mulheres que podemos nomear como feminização. Tal distinção foi proposta pela pesquisadora Silvia Yannoulas (2011) que mapeou, a partir de análise da literatura especializada sobre trabalho e gênero, dois significados diferentes acerca da categoria feminização das profissões e ocupações. Tais concepções corresponderiam a metodologias e técnicas distintas para coleta e análise da informação. Assim, a autora defende a utilização do termo feminilização para o aumento do peso relativo do sexo feminino na composição de uma profissão através de análises quantitativas e dados estatísticos e do termo feminização para análises qualitativas das transformações de significado e valor social de uma profissão ou ocupação que seriam originadas do processo de feminilização. A autora ainda destaca duas importantes observações sobre esses dois significados atribuídos frequentemente aos processos de feminização:

1) O segundo significado inclui e expande o primeiro significado, sendo ambos diferentes, porém, complementares. O segundo significado alude a uma compreensão mais ampla e sofisticada dos processos de incorporação de mulheres em uma determinada profissão ou ocupação, porque além de descrever a entrada delas no campo profissional ou ocupacional tenta explicar as razões que permitiram essa entrada. 2) Inclusive na literatura especializada, a categoria feminização é utilizada sem ser definida especificamente, ou seja: a feminização é usualmente naturalizada, até mesmo nos estudos feministas (YANNOULAS, 2011, p. 283).

O que Yannoulas (2011) busca nos chamar atenção com essa distinção é que poderíamos estabelecer uma relação entre feminilização e a utilização da categoria sexo e da feminização e a categoria gênero. Enquanto sexo remete à uma categoria orgânica a partir da distinção macho e fêmea, tendo uma longa história, a categoria gênero teria relação com um código de conduta estabelecido que organiza as relações sociais entre homens e mulheres. Nas palavras de Yannoulas (2011, p. 284), "gênero é o modo como as culturas interpretam e organizam a diferença sexual entre homens e mulheres".

Elomar Tambara (1998), em estudo desenvolvido sobre a profissionalização e a feminilização do magistério sul-rio-grandense no século XIX, irá operar com uma compressão oposta a proposta por Yannoulas (2011; 2013). Para o historiador, o processo de feminização teria antecedido ao de feminilização, o que teria produzido a compreensão do magistério como coisa de mulher. Para Tambara (1998, p. 36) teria ocorrido um processo de fetichização da atividade docente que a fez incorporar a compreensão da improdutividade do trabalho doméstico. Assim, de acordo com as análises propostas pelo pesquisador, "mais importante que a feminização do ensino primário foi o processo de feminilização do exercício de sua docência quando consolidou-se o processo de identificação entre a natureza feminil e a prática docente no ensino primário" (TAMBARA, 1998, p. 45).

Mesmo compreendendo que as análises dos pesquisadores (YANNOULAS, 2011; TAMBARA, 1998) convergem com relação aos contornos adquiridos pelo docência com o aumento significativo de mulheres no magistério, torna-se importante optar por uma das formas de compreender cada um desses processos neste estudo. Assim, considerando o grande número de investigações, anteriores e posteriores (LOURO, 1986; VIANNA, 1999; ROSEMBERG; SAPAROLLI, 1996) ao realizado por Tambara (1998), que utilizam a expressão feminização como o processo que inclui para além da entrada maciça das mulheres as novas características assumidas pela docência a partir dessa entrada e nos filiando a uma escolha política e teórica ao campo dos Estudos de Gênero assumimos a compreensão de feminização utilizada por essas autoras. Portanto, utilizaremos o significado atribuído por Yannoulas (2011; 2013) para as expressões feminilização e feminização.

De acordo com Yannoulas (2013), podemos identificar duas concepções distintas com relação aos primeiros trabalhos realizado no Brasil sobre o processo de feminização do magistério. Uma primeira concepção seria derivada dos Estudos da mulher para após serem desenvolvidas análises sustentadas pelos Estudos de Gênero. O avanço destacado pela pesquisadora consiste em novas possibilidades de interpretação do fenômeno que ajudavam a "entender as causas e não apenas constatar o aumento numérico da participação feminina na composição da profissão" (YANNOULAS, 2013, p. 41).

A pesquisadora, então, apresenta duas classificações para compreendermos como o processo de feminização do magistério ocorreu. Uma primeira classificação corresponderia a processos conflitivos em que a obrigatoriedade escolar e a profissionalização da tarefa de educar junto com a formação de um corpo docente masculino antecedeu o processo de feminização. E uma segunda classificação cujo processo ocorreu sem conflitos quando a obrigatoriedade escolar e a profissionalização da tarefa educativa aconteceram de forma paralela. Para Yannoulas (2013, p. 43), sob seu prisma, "a necessidade de expandir o ensino das primeiras letra e de repassar os valores cívicos no contexto de recursos escassos foi a chave mestra que permitiu criar consenso em torno do acesso massivo de mulheres ao magistério na América Latina pós- colonial". Nesse contexto, podemos identificar que no caso do magistério brasileiro a feminização foi rápida e estimulada; mas, seguiu controlada por autoridades públicas masculinas.

Será dentro dessa mesma compreensão que a pesquisadora Cláudia Vianna (2013) irá apontar em seu estudo que o sentido social do magistério como atividade feminina "ultrapassa o fato de sua maioria ser deste sexo" (VIANNA, 2013, p. 174). Assim, a utilização do termo "feminino", nesse contexto, refere-se "as visões apriorísticas divulgadas na sociedade e não somente ao sexo e/ou às mulheres" (VIANNA, 2013, p. 174).

Para Guacira Louro, por sua vez, será o fortalecimento de variadas teorias, advindas de diferentes campos de saber, como psicologia e biologia, sobre uma suposta natureza feminina que vai ser reforçada para ligar o papel da mulher ao exercício da docência como um destino natural das mulheres que desejassem exercer uma carreira fora do espaço privado da casa e da dedicação exclusiva ao lar (LOURO, 1986). Nas palavras da pesquisadora:

O destino das mulheres ainda é, sem dúvida, a maternidade e o lar; a esfera de atuação feminina é doméstica. Mas começa-se a admitir mais amplamente a atividade profissional fora do lar para as que precisavam trabalhar e nessa atividade ganha realce o magistério primário, atingindo a classe média (LOURO, 1986, p. 30, grifos da autora).

Esse processo descrito por Louro, possui uma longa história, como nos mostram os estudos desenvolvidos por Heloisa Villela (2000). De acordo com a historiadora, em um "espaço de cinco décadas, uma profissão quase que exclusivamente masculina tornar-seia prioritariamente feminina" (VILLELA, 2000, p. 119). A historiadora ainda destaca que a formação profissional das mulheres a partir da criação das escolas normais teve um "papel fundamental na luta das mulheres pelo acesso a um trabalho digno e remunerado" (VILLELA, 2000, p. 119). A escolarização das mulheres e a necessidade das professoras assumirem o trabalho em escolas femininas teria atribuído as mulheres um novo papel que desconstruiu uma visão que ligava a mulher à sedução e ao pecado3 para "o papel de regeneradoras morais da sociedade".

Será importante compreender a feminização do magistério a partir de um processo ambivalente; pois, se um novo estatuto feminino relacionado ao magistério atuou na emergência de "mecanismos de controle e discriminação contra as mulheres e enraizou as ideologias de domesticidade e maternagem (reforçadas pelo discurso positivista e higienista)" (VILLELA, 2000, p. 120); por outro lado, essa ideologia "foi utilizada como um elemento de resistência, pois, acatando tal discurso, as mulheres desimpediam o caminho para sua rápida inserção profissional" (VILLELA, 2000, p. 120).

As pesquisas realizadas por Jane Soares Almeida (1998; 2006) ao chamar nossa atenção para uma complexidade de fatores envolvidos no processo de feminização do magistério, acaba questionando um suposto lugar de passividade das professoras nesse processo. Para a pesquisadora, a oportunidade de deixar os limites da esfera doméstica para uma esfera social, pode ter sido um fator determinante para a escolha pela docência de muitas mulheres. Segundo a autora, o magistério e a enfermagem constituíram-se como as profissões de maior prestígio ocupadas pelas mulheres, assim: "o fato de não terem amplo acesso às demais profissões fez do magistério a opção mais adequada para o sexo feminino, o que foi reforçado pelos atributos de missão e vocação, além da continuidade do trabalho do lar" (ALMEIDA, 2006, p. 77). A autora também aponta que uma reestruturação da sociedade do século XX, inclusive ligada a alterações nas relações patriarcais, configurou a necessidade da mulher trabalhar para auxiliar no sustento da casa: "o maior motivo de as mulheres terem buscado o magistério estava no fato de realmente precisarem trabalhar" (ALMEIDA, 1998, p. 71).

Olhando para o contexto brasileiro no final do século XIX, Louro (2001) irá destacar que com a intensificação dos debates em torno da educação inicia-se uma discussão sobre a criação e ampliação das escolas, e o quanto a instrução poderia ser ou não dirigida às mulheres. De um lado, era possível identificar um grupo que defendia a ideia de que "não havia porque mobiliar a cabeça da mulher com informações ou conhecimentos, já que seu destino primordial – como esposa e mãe – exigiria, acima de tudo, uma moral sólida e bons princípios" (LOURO, 2001, p. 446). De outro lado, um grupo propunha uma discussão sobre a importância da instrução da mulher e, consequentemente, sua participação no mercado de trabalho.

A pesquisadora mostra, ainda, que a ocupação do espaço escolar pelas mulheres ocorreu de forma lenta e gradual e que, em determinado período histórico, o espaço escolar era marcadamente masculino, resultando na docência como um trabalho realizado exclusivamente por homens. Se em outros países, como demonstra a pesquisadora Maria Teresa Freitas (2000), após a Revolução Francesa, a mulher é chamada para assumir sua suposta função social na educação dos filhos, no Brasil, essa caracterização da mulher como educadora dos filhos não ocorreu de forma imediata a essa revolução. Aqui, durante o período de colonização portuguesa, a organização da sociedade patriarcal que havia se estabelecido era muito forte e conferia determinados sentidos às experiências de vida das mulheres, as quais não ocuparam, por certo período, essa centralidade na educação das crianças.

Segundo Cristina Bruschini e Tina Amado (1988), até a Independência não era possível pensar em educação popular no Brasil, mas, após esse evento, pelo menos nos termos da legislação, identificamos alguns movimentos iniciais e investimentos no sentido de tornar a educação gratuita e pública, inclusive para mulheres. Vale destacar que os conteúdos destinados para as mulheres eram diferentes dos destinados aos homens; as moças dedicavam-se à costura, ao bordado e à cozinha, enquanto aos homens cabia aprender sobre geometria e outros assuntos considerados masculinos. Outro destaque é que as professoras-mulheres eram isentas de ensinar geometria, porém essa era uma das matérias que era utilizada como critério para o estabelecimento dos valores dos salários, reforçando-se a diferença salarial entre homens e mulheres.

Assim, no Brasil, o magistério em um primeiro momento se tornou uma atividade permitida para as mulheres e, posteriormente, uma atividade indicada para elas. Porém, para que esse movimento ocorresse, a atividade docente precisou passar por um processo de ressignificação, isto é, "o magistério será representado de um modo novo na medida em que se feminiza e para que possa, de fato, se feminizar" (LOURO, 1997, p. 95).

Diversos fatores contribuíram para o assim chamado "movimento de feminização do magistério": se o casamento e a maternidade eram tarefas fundamentais para as mulheres, para que a profissão não se tornasse um desvio dessas tarefas, o magistério passou a assumir atributos, tais como amor, cuidado, paciência e atenção, tradicionalmente associados às mulheres. Dessa forma, o magistério pode ser reconhecido como uma profissão que as mulheres poderiam exercer sem se desviar do seu suposto destino.

Para o fortalecimento do magistério como uma profissão feminina, associada à mulher e à maternidade, podem-se destacar teorias da Psicologia que criaram condições para a elaboração de teorias pedagógicas. Ao afirmarem que um ambiente que favoreça as trocas afetivas e o interesse dos alunos seria mais propício para construção de aprendizagens, tais teorias produzem uma ligação cada vez mais estreita entre mulheres, profissão magistério, e as crianças. Atributos tidos como naturalmente femininos tais como a docilidade, a submissão, a sensibilidade, a intuição e a paciência, vão fortalecer o espaço escolar como espaço cada vez mais feminino. Seria nesse espaço que as professoras mulheres, rodeadas por crianças, poderiam exercitar suas características naturais, como mulheres.

Segundo Michael Apple (1995), marcas como cuidar e servir instituiram-se como características do magistério, especialmente nos anos iniciais e operaram como um fator de segregação sexual e salarial. Assim, de acordo com o autor, a profissionalização feminina precisa ser analisada juntamente com os processos de industrialização e o surgimento de uma nova categoria: os assalariados. Em busca de mão de obra especializada, torna-se necessário investir em Educação, porém como os professoreshomens recebiam maiores salários, como tática político-econômica, investe-se na ampliação do trabalho feminino no magistério. Ao mesmo tempo, essa representação do magistério que associava naturalmente mulheres à profissão em razão de seus supostos atributos femininos, tais como a docilidade, a submissão, a sensibilidade, a intuição e a paciência, irá afastar os homens da profissão, e isso refletirá, ainda, em uma queda nos valores dos salários.

Louro (2014) destaca que essa representação feminizada do magistério também se configura culturalmente, sendo constituída por discursos políticos, religiosos, e, reiterada por músicos e poetas, por exemplo. Ao observar como essa representação feminizada do magistério constituiu uma "forma de ser mulher e professora", Louro (2014) mostra, também, que essa representação foi produzida quase que exclusivamente por narrativas de homens, que descreveram as professoras, ao longo do tempo, de muitas maneiras. "Desse modo, se o magistério foi, lenta e fortemente, se feminizando, observaremos que a representação da atividade também foi se transformando" (LOURO, 2014, p. 107).

Será importante ainda consideramos que o processo de feminização do trabalho docente teve uma forte ligação com a divisão sexual do trabalho. Esse processo de divisão operou com base em uma contraposição de dois grupos: homens e mulheres. Essa divisão era organizada a partir da diferenciação de atividades a serem desenvolvidas por cada grupo tomando como base construções históricas e culturais e tais relações tinham como base uma relação social hierárquica entre homens e mulheres (KERGOAT, 1989; YANNOULAS, 2013). Portanto, se a industrialização e a urbanização tiveram como base essa divisão sexual do trabalho construindo novos sentidos para os conceitos de trabalho produtivo e trabalho reprodutivo, bem como para o espaço público e privado, acabou por separar as esferas feminina e masculina, as quais nas palavras de Yannoulas (2013, p. 276), "se materializaram em: não trabalho: doméstico, reprodutivo, gratuito, privado e feminino, por seus aspectos, contrastando com o trabalho: industrial, produtivo, remunerado, público e masculino".

Será nesse contexto que o exercício do magistério se constituirá como uma "grande exceção" (YANNOULAS, 2013, p. 277) - que não "apenas foi tolerado, mas promovido pelas autoridades públicas" (YANNOULAS, 2013, p. 277). A explicação apresentada por Yannoulas (2013) para esse fenômeno teria relação com dois fatores: o primeiro a partir de argumentos naturalistas que justificavam para a identidade feminina uma maior facilidade para o desempenho dessa profissão, e um segundo de caráter mais social que justificava a limitação da remuneração das professoras, visto que as mulheres apenas precisavam de um salário complementar. Serão essas características do magistério que o sociólogo Luiz Pereira (1969) nomeará como "capacidades integrativas do magistério". Serão justamente essas capacidades integrativas do magistério que irão conferir o caráter idealizado da profissão docente para as mulheres, pois como explica Yannoulas (2013, p. 219) ela "outorgava uma formação específica para duas funções: professora e mãe".

Com a necessidade de constituição de fundamentos para os novos sistemas educacionais nacionais começou um processo de recrutamento e formação de um corpo docente qualificado. Assim, o desempenho da prática pedagógica não estaria mais liberado a partir das idiossincrasias de quem exercia a docência e passava a ter uma formação comum e específica. A certificação das professoras, para Yannoulas (2013, p. 280), "significava a possibilidade de modificar os indivíduos, porém, sem alterações na função social desempenhada ou na prática pedagógica".

Será com a implementação da formação e do diploma docente que a discussão sobre competência para exercer o magistério entrará em pauta. Em um primeiro momento o diploma passou a se constituir como garantia de competência e permitir a intercambiabilidade das professoras entre diferentes instituições. Uma das problemáticas identificadas nesse processo consiste no fato de que a formação de professores ao estabelecer quais seriam os limites e as maneiras adequadas para a circulação dos saberes docentes pode ter produzido uma exclusão da escola e das professoras "da produção de saberes válidos socialmente" (YANNOULAS, 2013).

O que desejamos mostrar com esse breve diagnóstico é que os processos de formação de professoras, feminização do magistério e democratização do acesso à educação básica encontram-se intrinsicamente interligados, produzindo importantes contribuições para pensarmos o campo da formação de professores. Após esse breve diagnóstico, passamos para a análise do material empírico propriamente dito, apontando para as principais contribuições da pesquisadora Aparecida Joly Gouveia para esse campo de estudos.

Docência, tradicionalismo e formação de professoras: os escritos de Gouveia

Conforme já anunciamos anteriormente, nesse artigo iremos analisar de forma mais central as produções acadêmicas da pesquisadora Aparecida Joly Gouveia sobre a formação de professoras e a escolha vocacional das mulheres na década de 1960 no Brasil. Esta produção é identificada como a segunda fase de pensamento da autora.

Esses trabalhos apresentam os resultados de pesquisas realizadas nos Centros Regionais de Pesquisas Educacionais, que tinham sede em diferentes capitais do país. Tais centros eram ligados ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) instituição na qual Gouveia trabalhava como pesquisadora. Essa foi a segunda pesquisa coordenada por ela e realizada com recursos e equipe do CBPE. Os dados obtidos nessa pesquisa consistiram na base para elaboração de sua tese de doutorado intitulada "Professoras de amanhã" e defendida na Universidade de Chicago no ano de 1962 e também para um artigo intitulado "Milhares de Normalistas e Milhares de analfabetos" publicado um ano antes (em 1961). (LÜDKE, 2010).

O primeiro trabalho publicado, da segunda fase do pensamento da autora, consiste no artigo "Milhares de Normalistas e Milhares de Analfabetos" no qual ela debate um tema que segue atual para a educação, qual seja: a preparação de professores para o trabalho na educação básica para todos, olhando com especial atenção para os processos de alfabetização. Segundo Lüdke (2010, p. 43), o título desse artigo anunciava "o nascimento da grande pesquisadora, que já começava a colocar seus talentos, então em pleno desenvolvimento, a serviço do estudo de nossos problemas educacionais, o que faria ao longo de toda sua carreira como uma estrela".

Após situar brevemente o percurso acadêmico e profissional que permitiu com que Gouveia realizasse as pesquisas analisadas nesse artigo, torna-se importante situar o pano de fundo que inspirou a investigação realizada por ela. Assim, importa registrar que o estudo de Gouveia (1965) foi realizado em um período de intensa urbanização do território nacional, no qual torna-se central investir na educação com foco no progresso e desenvolvimento da nação. A situação-problema que dispara os questionamentos da pesquisadora, de acordo com Lüdke (2010), consiste no grande número de analfabetos, em torno de 15 milhões enquanto o Brasil não chegava a ter 50 milhões de habitantes, frente a um elevado número de professoras formadas pelos cursos normais, cerca de 90.000. Outro aspecto que preocupava Gouveia nesse estudo referia-se ao dado de que, para cada 1.000 crianças matriculadas na escola primária, apenas 16 chegavam à última série desses cursos.

Ainda consideramos importante destacar, acerca do contexto em que a pesquisa de Gouveia foi produzida, alguns dados relativos ao magistério primário. Na década de 1960, o magistério primário já era uma profissão predominantemente feminina. Dados apresentados por Gouveia (1961) sobre o período mostram que 96% das matrículas femininas eram realizadas no curso normal, 35 % no curso clássico, 31 % no comercial e 22 % no científico. O crescimento da procura pelo curso normal teria sido maior do que os outros cursos tanto pela ampliação das escolas já existentes, mas principalmente pela criação de novas escolas. O problema do ensino normal era visto por Gouveia em uma perspectiva mais ampla do que apenas pela adequação às necessidades de formação pessoal docente, como podemos observar nas palavras de Gouveia (1961, p.120):

O ensino normal, tal como se tem desenvolvido no Brasil, constitui uma forma de conciliação entre as crescentes aspirações educacionais de certas camadas da população e os ideais de dependência econômica da mulher, tradicionalmente cultivados na sociedade brasileira.

Para a pesquisadora brasileira, então, essa hipótese explicativa envolveria três noções básicas: 1) manutenção de valores tradicionais da sociedade patriarcal brasileira relativos aos papeis da mulher; 2) o fato de que o nível de aspirações com relação à educação escolar estava crescendo no Brasil daquele período; 3) as escolas normais representaram uma solução para de um lado manter o papel esperado pela mulher nas sociedades patriarcais e de outro ampliar a mão de obra feminina e a oferta de escolarização para a população. Tais questões eram extremamente importantes considerando o contexto de urbanização em que o Brasil se encontrava e Gouveia se debruçou sobre algumas delas na obra "Professoras de Amanhã" a qual voltaremos nossas análises de forma mais central.

O estudo desenvolvido por Gouveia tinha como foco as decisões vocacionais das mulheres, em uma sociedade que se encontrava em processo de urbanização. Para tanto a partir de um olhar sociológico, a autora analisa a influência de dois fatores na escolha das moças pela profissão na década de 1960. O primeiro fator considerado foi a origem social e o segundo referia-se ao grau de tradicionalismo.

Na obra temos vários apontamentos importantes realizados por Gouveia que nos ajudam a compreender alguns dilemas sobre o trabalho docente e a formação de professores na década de 1960. Para iniciar essa análise optamos por realizar três destaques mais gerais da obra, para após entrar na questão mais específica da escala de tradicionalismo. O primeiro destaque que desejamos realizar refere-se à constatação do crescimento das matrículas nos vários ramos do Ensino Médio, mas especialmente no curso normal. De acordo com a autora (1965, p. 15), é importante observar que o crescimento de matrículas no curso normal "resultou muito mais da criação de novas escolas do que da expansão da população estudantil das escolas antigas". O segundo está relacionado ao currículo do curso normal que, como podemos observar nas análises de Gouveia, oferecia poucas oportunidades de prática do magistério durante o curso.

Os regulamentos oficiais sobre o ensino normal atribuem grande importância no processo de formação do professor, à observação e à prática nas escolas primárias, mas, na realidade, as oportunidades de prática durante o magistério durante o curso normal parecem estar muito aquém do que seria desejável. De fato, os dados desta pesquisa nos indicam que as próprias normalistas sentem que carecem de maiores oportunidades de prática: ‘mais prática de ensino’ foi a resposta mais frequentemente dada ao item do questionário destinado a suscitar ‘críticas e sugestões sobre o curso normal’. O dia escolar da normalista é, em geral, de 4 ou 5 horas e a semana é constituída de seis dias letivos. Durante o tempo em que permanece na escola, a estudante se ocupa principalmente em ‘assistir’ a aulas expositivas, os deveres extraclasses são realizados em casa; bibliotecas escolares, quando existem, funcionam em geral para empréstimos, isto é, como bibliotecas circulantes (GOUVEIA, 1965, p.17).

Muito se discute sobre a questão da prática nos cursos de formação de professores no Brasil. Demerval Saviani (2009), por exemplo, apresenta um importante estudo para compreendermos como historicamente essa discussão tem ocorrido nos últimos dois séculos. Neste sentido, torna-se importante compreender a falta de atividades práticas apontada por Gouveia e pelas alunas participantes de seu estudo olhando para a constituição histórica desse debate. De acordo com Saviani (2009), o padrão de organização e funcionamento das Escolas Normais foi fixado a partir da reforma da instrução pública do estado de São Paulo que entrou em vigor no ano de 1890. Tal reforma teria sido marcada por dois aspectos centrais: enriquecimento dos conteúdos curriculares e exercícios práticos de ensino.

Nesse período também ocorreu a fundação dos institutos de educação que impulsionou a formação de professores "rumo a consolidação do modelo pedagógico didático de formação de professores que permitia corrigir insuficiências e distorções das velhas Escolas Normais" (SAVIANI, 2009, p. 146) que eram caracterizadas como uma proposta hibrida que apresentava pouca composição curricular com foco na formação de profissional e em contrapartida um ensino de ciências e humanidades mais significativo.

Para concluir sua análise histórica de dois séculos sobre a formação de professores no Brasil, Saviani (2009, p. 148) alerta que existe "um quadro de descontinuidade, embora sem rupturas". Para o pesquisador, a questão pedagógica que inicialmente era ausente, vai aos poucos penetrando as propostas até ocupar lugar central nas reformas da década de 1930. Mesmo apontando para tais mudanças, o autor (2009, p. 148) destaca:

ao fim e ao cabo, o que se revela permanente no decorrer dos seis períodos analisados é a precariedade das políticas formativas, cujas sucessivas mudanças não logram estabelecer um padrão minimamente consistente da preparação docente para fazer face aos problemas enfrentados pela educação escolar em nosso país.

Como apontado no estudo histórico desenvolvido por Saviani (2009) e no diagnóstico preliminar apontado por Gouveia (1965), a questão da formação de professores parece se situar historicamente entre a disputa dos dois modelos identificados por Saviani (2009), quais sejam: de um lado posicionam-se os defensores de um modelo pautado na defesa dos conteúdos, que o pesquisador denominou como "modelo dos conteúdos culturais-cognitivos", de outro aqueles que acreditam na importância do preparo didático–pedagógico da professora, nomeado como "modelo pedagógico-didático".

O terceiro e último aspecto mais geral da obra de Gouveia que desejamos dar visibilidade nesse estudo refere-se ao magistério primário como carreira. De acordo com a pesquisadora, mesmo que oficialmente as escolas normais se dirijam para formação de professores primários, metade das estudantes que completam o curso normal não conseguem lecionar, seja em escola pública ou privada, no ano seguinte a sua formatura. Porém, o número de professores leigos (ou sem diplomas) em exercício no magistério primário no Brasil estava em crescimento, de 38% em 1940 para 47% em 1958. Gouveia traz ainda importantes apontamentos sobre o ingresso na carreira e os salários dos professores que transcrevemos no excerto a seguir:

Os honorários do professor primário variam de Estado para Estado, não apenas em termos absolutos como, também, em relação ao custo de vida e aos níveis de salários para outras ocupações. Em todos os Estados, os salários mais altos são os dos professores que pertencem à rede estadual de ensino, equivalendo, em geral, a remuneração nas escolas municipais à das escolas particulares. O acesso as escolas da rede oficial (estadual) é, em vários Estados, restrito aos candidatos diplomados por escolas (públicas ou particulares) localizadas dentro das fronteiras estaduais. Em alguns Estados, particularmente em São Paulo, a admissão ao sistema oficial é feita à base de critérios ‘universalistas’, tais como notas obtidas no curso normal, tempo de exercício como professora substituta e cursos de especialização. Entretanto, em muitos Estados as ‘boas relações’ da família e o ‘pistolão’ ou influência política constituem ainda os meios mais eficazes para a obtenção de uma ‘cadeira’ e para a promoção, inclusive a postos de direção. Contudo, uma vez que o professor tenha conseguido ingressar no sistema estadual a título efetivo, a regra é aí permanecer durante o resto da vida. A maioria dos Estados concede a aposentadoria, com remuneração integral, após trinta anos de serviço. Os professores que lecionam em escolas particulares são amparados pela legislação trabalhista e, consequentemente, se credenciam a benefícios menos generosos do que os atribuídos aos professores estaduais (GOUVEIA, 1965, p.18)

Os elementos identificados por Gouveia apontados no excerto acima destacado mostram como as questões relativas ao magistério, especialmente aquelas referentes à entrada na carreira, apresentavam no período analisado, uma visão paternalista de Estado, como já apontado em outros estudos do mesmo período (PEREIRA, 1967). Tais questões referentes tanto à entrada na carreira, como a promoção para o cargo de diretor, a partir de contatos pessoais ou ainda a entrada na carreira de professoras sem formação específica para atuar no cargo apontam para uma tensão entre a concepção paternalista e burocrática referente à docência, que é explorada em uma análise sociológica do mesmo período (PEREIRA, 1967). Outras características e benefícios ligados à carreira do magistério listados por Gouveia como: período de trabalho de quatro horas (que em muitos Estados devido ao crescimento da população infantil e a falta de prédio escolares apresentou uma diminuição para três horas diárias de trabalho de classe) e dois períodos de férias que totalizavam três meses, serão diagnosticados por Luiz Pereira (1969) como características integradoras que facilitariam o exercício do magistério pelas mulheres por facilitar a conciliação entre papeis domésticos e as exigências do trabalho. Importa registrar que, por diferentes motivos, o magistério se fortalecia como uma ocupação feminina no período analisado.

Para concluir nossas análises da obra, nos dirigimos a um dos pontos centrais dos estudos desenvolvidos por Gouveia, que consiste na escala de tradicionalismo criada pela pesquisadora para sustentar sua hipótese de que existia uma relação entre o grau de tradicionalismo das participantes e suas escolhas ocupacionais. Além do grau de tradicionalismo, Gouveia irá explorar em seu estudo outras variáveis como nível socioeconômico e até o fato de as mães das participantes já terem exercido atividades remuneradas, mostrando que essas questões também influenciavam as escolhas das moças pelo magistério ou não. Seguimos a composição argumentativa tecida por Gouveia, para mostrar como a hipótese da feminização do magistério no Brasil, pode ser complexificada a partir da escala de tradicionalismo criada pela autora e dos resultados obtidos em sua investigação.

Para explorar no campo empírico a questão da escolha vocacional, Gouveia irá propor três níveis de perguntas: o primeiro referente com relação aos objetivos das normalistas na entrada do curso, o segundo referente as aspirações profissionais no momento da pesquisa e o terceiro relativo as expectativas ou prováveis cursos de ação após a conclusão do curso, como podemos observar nos quadros extraídos da obra que apresentamos a seguir:

Tabela 1 Objetivos que as moças têm em vista ao entrar no curso normal 

PERCENTAGEM DE MOÇAS QUE ASPIRAM PRINCIPALMENTE A:
Boa cultura geral Convivência com colegas de bom nível social Preparação para o lar e vida de família Preparação para o magistério primário Um diploma que permite o ingresso em carreira de remuneração certa Um diploma que permite o encaminhamento para outras profissões Total
35 1 27 24 3 10 100 (1435)

Tabela 1 – Objetivos que as moças têm em vista ao entrar no curso normal: Fonte: Gouveia (1970, p. 28)

Tabela 2 Aspirações Ocupacionais 

PERCENTAGEM DE NORMALISTAS QUE ASPIRAM A:
Total Magistério Primário Magistério secundário Outras ocupações Exclusivamente ao lar “Não sei” Total
30 12 30 24 4 100 (1.435)

Tabela 2 – Aspirações Ocupacionais Fonte: Gouveia (1965, p. 29)

Tabela  Expectativas para o ano seguinte da formatura 

PERCENTAGEM DE NORMALISTAS QUE ESPERAVAM:
Lecionar Continuar os estudos Lecionar e continuar os estudos Dedicar-se exclusivamente ao lar Seguir outra profissão, e seguir outra profissão simultaneamente com o prosseguimento dos estudos “Não sei” Total
38 29 12 7 6 8 100 (1.435)

Tabela 3 – Expectativas para o ano seguinte da formatura: Fonte: Gouveia (1965, p. 31)

Nas tabelas acima apresentadas, e transcritas o mais fielmente possível da obra original, é possível observar vários elementos importantes no que concerne ao exercício da docência e as aspirações das mulheres no período analisado. A primeira tabela ao perguntar sobre os desejos das normalistas ao entrarem no curso Normal aponta que em sua maioria as moças ao optarem por essa modalidade tinham como principais objetivos obter uma boa cultura geral em primeiro lugar, e a preparação para o lar e a vida em família em segundo lugar. A preparação para o magistério ocupa o terceiro lugar nas pretensões das jovens normalistas. O segundo quadro apresenta resultados semelhantes e "outras ocupações" e "dedicação exclusiva ao lar" figuram junto com o exercício do magistério primário como as três principais aspirações das normalistas ao longo do curso.

Cabe registrar uma pequena curiosidade relativa a opção "outras ocupações", em que, segundo Gouveia (1965, p. 29), foram apresentadas quarenta e três possibilidades de profissões ou situações pelas participantes da pesquisa. Nas palavras da socióloga, as opções foram "de dentista, a diplomata, de modelo a missionária; não se falando das profissões mais frequentemente mencionadas, tais como, secretária, médica e advogada". Para Gouveia, torna-se importante registrar que nesse período o magistério primário como uma opção de profissão a ser escolhida pelas mulheres competia não apenas com posições que poderíamos caracterizar como altruístas tais como assistente social ou enfermagem, mas também com opções mais glamorosas ou inclusive o fascínio pela tecnologia, onde apareceram aspirações na área de Química, Engenharia e Arquitetura.

Tal questão mostra-se importante para compreendermos como as mudanças relativas à urbanização do Brasil, a ampliação da escolarização das mulheres e a sua entrada no mercado de trabalho marcaram mudanças significativas inclusive no que tange suas aspirações profissionais. Mesmo o magistério sendo uma ocupação prioritariamente exercida pelas mulheres essa não era a principal aspiração das normalistas, sendo que o número das que apresentavam inclinações para o magistério não chegou a constituir cinquenta por centro da amostra da pesquisadora. Porém, Gouveia (1965, p. 9) ao apresentar tais dados alerta que "vista de outro prisma, a proporção das moças que aspiram ao magistério pode ser considerada bastante apreciável". Para tanto, ela aponta que as normalistas representam mais de cinquenta por cento do total das matrículas femininas nos cursos médios e que, como podemos observar no quadro 2, mais da metade das entrevistadas gostaria de dedicar-se ao magistério.

Com relação ao terceiro quadro apresentado, parece importante registrar que existe um aumento significativo entre as normalistas que irão lecionar após a formatura (quadro 3) e aquelas que no meio do curso apresentavam como desejo principal as atividades do magistério (quadro 2). Para a análise que estamos construindo esse dado é bastante relevante, pois mostra que mesmo as mulheres apresentando variadas aspirações, especialmente durante seu período formativo, o magistério parece se constituir como a principal opção real para as normalistas ao longo do curso. Mostrando que a feminização do magistério parece se fortalecer por diferentes fatores, para além do desejo das mulheres de atuar nas atividades docentes.

Ao longo das várias análises estatísticas que Gouveia (1965) apresenta de forma detalhada na obra aqui analisada, são exploradas hipóteses relacionadas a escala de tradicionalismo e outras variáveis que, para a pesquisadora, teriam relação com uma maior tendência em optar pelo magistério como profissão ou não. Para explorar as relações entre a escala de tradicionalismo e a feminização do magistério que desejamos evidenciar nesse artigo, primeiramente precisamos apresentar as questões que foram utilizadas pela socióloga para desenvolver a escala de tradicionalismo e a principal hipótese que guiou seu estudo. Apresentamos respectivamente tais questões nos quadros a seguir:

Quadro 1 escala de tradicionalismo 

1. Uma das principais coisas que uma criança deve aprender é a obediência aos pais;
2. A moça não deve casar-se com um rapaz que não é do agrado de seus pais;
3. Mesmo depois de casados, os filhos devem obedecer aos pais;
4. Temos mais obrigação de ajudar a um tio ou primo do que ajudar a um amigo.

Quadro 1 – escala de tradicionalismo Fonte: Gouveia (1965, p. 37)

Quadro 2 hipótese do estudo 

Tal hipótese poderia ser formulada, de maneira mais específica, nos seguintes termos: a posição da mulher em uma escala de tradicionalismo explicaria sua atitude em relação à participação em atividades profissionais, prevendo o esquema que no polo “tradicional se encontrariam as môças propensas ao padrão da mulher “dona de casa”; distante do polo tradicional, mas não ainda no polo oposto, se encontrariam as propensas ao magistério e, finalmente, neste polo – polo moderno – se encontrariam as moças propensas a “outras” profissões.

Quadro 2 – hipótese do estudo Fonte: Gouveia (1965, p. 36)

No primeiro quadro apresentamos os quatro itens utilizados por Gouveia (1965) em sua escala de tradicionalismo. Após as moças responderem ao questionário, se concordavam ou não com tais afirmações, elas eram distribuídas em três categorias: tradicionais, transicionais e modernas. Essa classificação era importante para que Gouveia confirmasse sua hipótese, que apresentamos no segundo quadro. Para a pesquisadora importava mostrar uma relação entre dedicação exclusiva ao lar e tradicionalismo, magistério e uma posição intermediária entre tradicionalismo e modernismo e escolha por outras profissões e modernismo.

Ao final do capítulo em que a pesquisadora articula diferentes variáveis como: nível sócio econômico, profissão paterna, o fato de a mãe já ter trabalhado fora de casa e a posição das moças na escala de tradicionalismo, Gouveia confirma uma de suas principais hipóteses mostrando que existe sim uma clara relação entre o grau de modernismo das moças e sua menor inclinação para o magistério. Porém, com relação ao grau de tradicionalismo a pesquisadora aponta que outras variáveis parecem influenciar as inclinações para o magistério, nas palavras de Gouveia (1965, p. 60): "Desta maneira podese verificar que não apenas o grau de tradicionalismo mas também a origem social (ou profissão paterna), a instrução do pai e a instrução da mãe estão relacionadas com o desenvolvimento das inclinações para o magistério".

A pesquisadora aponta que entre as normalistas que pertenciam a classe social "Alta" a hipótese do estudo se confirmou e estariam mais propensas para as atividades do magistério as moças que se localizavam na escala de tradicionalismo na faixa "transicional’. Já entre as normalistas que se encontravam na classe "Baixa", a pesquisadora verificou que as propensões para cursar o magistério eram maiores nas "tradicionais" do que nas "transicionais". A pesquisadora sugere que este desvio pode ter relação por limitações que as moças da categoria "Baixa"4 apresentavam em função de "fatores da realidade". Para Gouveia, a escolha por uma padrão de dedicação exclusiva ao lar, que se apresentou como principal escolha das moças categorizadas como tradicionais na classe "Alta" não é reproduzida pelas moças categorizadas na classe "Baixa" por essa não ser uma opção viável devido a sua situação econômica. Assim nessa classe o padrão tradicional apresentava-se mais propenso ao magistério, seguido pelas transicionais. Essa questão é descrita por Gouveia nas seguintes palavras:

Não lhes sendo dado, por força das circunstâncias – parcos recursos econômicosalimentar o ideal mais consentâneo com sua maneira geral de encarar a vida, estas moças tradicionais se voltariam para o magistério, pois ir mais longe – pensar em outras profissões- seria impor demasiada violência aos princípios por que se norteiam (GOUVEIA, 1965, p.60).

Também constata-se, a partir do cruzamento entre origem social e grau de tradicionalismo, que se as condições de vida parecem afetar as escolhas ocupacionais das mulheres tradicionais de condições modestas, o mesmo não se constata com as moças que aspiram outras profissões, onde a percentagem de moças inclinadas para outras profissões aumenta na direção prevista pela hipótese estabelecida no início do estudo. Isso leva Gouveia (1965, p. 60) a concluir que "parece que o que perturba a distribuição fazendoa afastar-se do modelo previsto são mesmo as que não poderiam alimentar o ideal exclusivamente doméstico."

De acordo com Villas Boas, Lombardi e Souza (2012, p. 194) será a partir dos anos 1970 que fica perceptível uma busca, especialmente das jovens de classe média, por diferentes escolhas profissionais, ampliando então as condições das mulheres de classes mais baixas de ingressarem na docência e assumirem um emprego público. Para as autoras, será a partir desse momento histórico, que a "docência tem sido socialmente reconhecida como uma profissão em crise em virtude, principalmente, da ampliação do contingente de estudantes em função da universalização da educação fundamental".

O que se mostra significativo para a analítica aqui proposta constitui-se principalmente na criação da escala de tradicionalismo e na confirmação da hipótese estabelecida onde o grau de tradicionalismo das moças possui uma relação com suas escolhas ocupacionais. A criação da escala de tradicionalismo só foi possível porque no período em que ela foi criada já era consolidada uma visão do magistério em que uma noção associada a uma suposta natureza feminina era associada aos papéis desempenhados pela professora. Gouveia destaca como características principais duas questões: a primeira relativa a ser um trabalho desempenhado com crianças e a segunda pela mulher exercer essa ocupação em um espaço onde não estaria exposta "ao contato com estranhos do sexo oposto" (GOUVEIA, 1965, p. 35).

Essa construção de uma "docência-decente" foi examinada em estudo recente desenvolvido por Dayana Santos (2017). Para a pesquisadora, a produção dessa forma de ser docente ligada à questões morais estaria articulada ao controle, a regulação dos corpos e condutas femininas ao longo da história. A partir de uma crítica foucaultiana sobre a moral da docência feminina ocidental, Santos (2017) demonstra que as formas como entendemos o que significa ser professor na atualidade constitui-se em um efeito do funcionamento do poder.

Em análise histórica sobre o processo de formação das escolas normais e os primeiros movimentos relativos à profissionalização do trabalho docente no Brasil, a historiadora Heloisa Villela (2000), mostra que nacionalidade, idade e moral eram critérios utilizados na seleção de quem poderia ingressar nas escolas normais no ano de 1835. Pode-se notar ainda pela documentação analisada por Villela que o peso da exigência de boa conduta moral para os ingressantes a carreira do magistério era muito maior do que a necessidade de saber ler e escrever, visto que a comprovação de boa conduta deveria passar inclusive pelo juiz de paz e despacho do presidente e as competências acadêmicas ficavam a cargo da avaliação do diretor da instituição.

Torna-se então importante retomar algumas das discussões realizadas anteriormente relativas ao processo de feminização do magistério, para explicitar que parece ser esse fenômeno que tornou possível a construção de uma ligação entre grau de tradicionalismo e docência. Como nos lembra Cláudia Vianna (2013), o sentido social do magistério como atividade feminina "ultrapassa o fato de sua maioria ser deste sexo" (VIANNA, 2013, p. 174). Para a pesquisadora, a utilização do termo feminino nesse contexto, refere-se "as visões apriorísticas divulgadas na sociedade e não somente ao sexo e/ou às mulheres" (VIANNA, 2013, p. 174). Em sua perspectiva, podemos observar que a feminização do magistério foi um movimento que produziu à feminização do espaço escolar e das atividades docentes sejam elas exercidas por homens ou mulheres.

Outros estudos produzidos na década de 1990 convergem para tal conclusão. Fúlvia Rosemberg e Eliana Saparolli (1996) descrevem que educadores infantis, independente do sexo biológico, "mais se aproximam do que se diferenciam" (ROSEMBERG; SAPAROLLI, 1996, p. 4). Para as pesquisadoras, o trabalho exercido pelos educadores infantis não constitui um trabalho feminino pelo maior número de mulheres que exercem essa profissão, "mas porque exerce uma função de gênero feminino vinculada à esfera da vida reprodutiva: cuidar e educar crianças pequenas" (ROSEMBERG; SAPAROLLI, 1996, p. 4). Para Vianna (2013, p. 176), a análise do exercício da docência a partir de um olhar de gênero permite observar que sua feminização ocorreu na medida que "significados comumente atribuídos às mulheres são acionados por professores e professoras".

O que desejamos mostrar é que a partir desse processo que conecta funções e características atribuídas como naturais do sexo feminino para atividades docentes que torna-se possível criar e aplicar uma escala de tradicionalismo que converge para um resultado positivo mostrando que quanto maior o grau de tradicionalismo da moça, maior sua tendência para exercer à docência. Será o fortalecimento de variadas teorias, advindas de diferentes campos de saber, como Psicologia e Biologia, para citar apenas dois, sobre uma suposta natureza feminina que vai ser reforçada para ligar o papel da mulher ao exercício da docência como um destino natural das mulheres que desejassem exercer uma carreira fora do espaço privado da casa e da dedicação exclusiva ao lar. A tese de doutorado de Guacira Louro, defendida na década de 1980, alertava também para esta dimensão.

Como nos mostra Louro (1986), o padrão explorado por Gouveia (1965) a partir de uma escala de tradicionalismo parece convergir com o modelo de sociedade e o papel que se esperava das mulheres naquele período. Enquanto Louro (1986) investigou uma escola que recebia especialmente alunas das classes médias da sociedade no estado do Rio Grande do Sul, Gouveia (1965) dirigiu seu olhar para escolas públicas e particulares dos estados de Minas Gerais e São Paulo, mostrando que, nesses estados, o magistério era uma opção também para as mulheres filhas da classe trabalhadora. Ao longo de seu estudo, Louro (1986) vai descrever uma mudança no público da escola investigada. Tal fato, de acordo com a pesquisadora, teria relação com a progressiva desvalorização econômica do magistério, produzindo inclusive uma queda de procura pelo curso normal especialmente pelas jovens de mais recursos.

Outra relação que pode ser estabelecida entre o estudo de Louro (1986) e Gouveia (1965) refere-se a classificação das moças. Enquanto Gouveia descreveu suas participantes como: tradicionais, transicionais e modernas. Louro (1986) usou as categorias: prendas e antiprendas. Seriam as antiprendas descritas por Louro (1986, p. 255) como "metidas" e como as alunas que provocam "contestação, critica e irreverência" a partir da negação do processo de dominação masculina, as modernas que eram descritas por Gouveia como as que aspiravam outras opções de trabalho para além do magistério?

Muitas outras questões poderiam ser exploradas nessa relação entre os estudos desenvolvidos por Louro (1986) e Gouveia (1965). Mesmo que se localizando em temporalidades distintas, Louro publicou seu estudo no final da década de 1980 e Gouveia no final da década de 1960, todavia, como Louro (1986) investigou a constituição de uma escola normal entre os anos de 1930 e 1970 as análises parecem datadas no mesmo período explicando o porquê de tantas aproximações. Porém, vale destacar, Louro ao investigar uma temporalidade maior e em um período posterior nos mostra deslocamentos potentes para compreender o contexto em que o magistério e as mulheres se inserem no estudo realizado por Gouveia.

Outras tantas nuances podem ser exploradas na obra de Gouveia (1965, p. 45) e que são importantes chaves para compreender que o magistério não era apenas uma opção exclusiva das mulheres mas especialmente das mulheres de classe baixa, "a propensão para o magistério aumenta à medida que se desce na escala social, enquanto que a preferência pelo padrão exclusivamente doméstico aumenta em direção oposta". Tal assertiva coaduna-se com a analítica apresentada por Louro (1986), na medida em que aponta o magistério como uma atividade profissional a ser exercida por aquelas moças que precisavam trabalhar.

Encaminhando-nos para a conclusão desse artigo, cumpre reiterar que buscamos estabelecer algumas articulações entre as nossas sistematizações dos escritos de Gouveia e o diagnóstico sobre os processos acerca da feminização do magistério, reiterando a importância de olharmos para a literatura pedagógica brasileira, como uma importante ferramenta para reenquadramos o debate acerca da história da formação de professores que têm sido produzido em nosso país. Uma retomada dos estudos sobre o pensamento pedagógico brasileiro da década de 1960, especialmente das obras de Gouveia, oferece importantes contribuições teóricas e metodológicas na instrumentalização de futuras pesquisas no campo da formação de professores.

Complementarmente, a perspectiva histórica apresentada nesse artigo, potencializa avanços na produção de conhecimento sobre a temática da formação docente no Brasil. Ainda que tenhamos promovido uma intensa democratização da escolarização pública no decorrer do último século, estudos sistemáticos sobre a feminização do magistério em nosso país ainda merecem ser considerados; todavia, a luz das mudanças ocorridas no capitalismo contemporâneo, tal como exploraremos em futuras investigações.

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Recebido: 19 de Junho de 2018; Aceito: 19 de Novembro de 2018

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