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Revista Educação e Cultura Contemporânea

versão impressa ISSN 1807-2194versão On-line ISSN 2238-1279

Rev. Educ. e Cult. Contemp. vol.15 no.41 Rio de Janeiro out./dez 2018  Epub 15-Out-2018

https://doi.org/10.5935/2238-1279.20180080 

Artigos

Formação de Professores para a Educação de Jovens e Adultos: desafios, propostas curriculares e considerações sobre o direito à educação

Formation of Teachers for the Education of Youths and Adults: challenges curriculares and considerations on the right to the education

Carlos Soares Barbosa1 

José Carlos Lima de Souza2 

Lucilia Augusta Lino3 

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro

2Universidade do Estado do Rio de Janeiro

3Universidade do Estado do Rio de Janeiro


Resumo

O artigo visa a analisar a formação inicial dos professores para a Educação de Jovens e Adultos (EJA) no curso de Licenciatura em Pedagogia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), campus Maracanã, bem como as mediações objetivas e subjetivas que determinam as disputas internas no atual momento em que as Instituições de Ensino Superior estão reformulando seus cursos de licenciaturas no intuito de atender as normatizações estabelecidas pela atual política de formação docente - Resolução CNE n. 02/2015. Trata-se de pesquisa histórico-documental, com vista a analisar o processo de consolidação dos estudos da EJA no desenho curricular do referido curso, reconhecendo a educação de qualidade um direito de todos, inclusive de pessoas jovens, adultas e idosas. Face ao atual contexto de desmonte de políticas sociais, retirada de direitos e retrocessos no campo educacional com a retomada da agenda neoliberal no país, o estudo ressalta a importância das entidades educacionais na defesa da formação docente de qualidade. Fundamenta-se em autores de matriz freireana e crítico-emancipatória, e conclui que a UERJ tem buscado formar pedagogos que não se limitem ao ofício do magistério na Educação Infantil ou nas séries iniciais do Ensino Fundamental, mas capazes de formular, gestionar, monitorar e avaliar projetos de educação de jovens e adultos, na dimensão do significado da aprendizagem ao longo da vida. Isso se materializa em uma matriz curricular com disciplinas que abordam os aprendizados construídos tanto nos espaços escolares, quanto em demais contextos de formação humana, com base na articulação teoria-prática.

Palavras-Chave: Educação de Jovens e Adultos; Formação de Professores; Pedagogia; Currículo

ABSTRACT

The article aims to analyze the teachers initial formation for the Education of Young and Adults (EJA) in the course of Degree in Pedagogy of m University of the State of Rio de Janeiro (UERJ), Campus Maracanã, as well as the mediations that determine the internal disputes in the current moment in which the Institutions of Higher Education are reformulating their courses of degrees in order to comply with the norms established by current politics of teacher education - Resolution CNE n. 02/2015. It is a historical-documentary research that aims to analyze the process of consolidation of the studies of the EJA in the curricular design of the referred course, recognizing the quality education a right of all, including young people, adults and seniors. Given the current context of dismantling social policies, withdrawal of rights and setbacks in the educational field with the resumption of the neoliberal agenda in the country, the study highlights the importance of educational institutions in the defense of the quality teacher formation. It is based on authors of Freirean and critical-emancipatory matrix, and concludes that the UERJ has sought to train pedagogues that are not limited to the office of teaching in Early Childhood Education or in the initial grades of Elementary Education, but able to formulate, to manage, to monitor and to evaluate youth and adult education projects of the meaning of the learning along the life. This materializes in a curricular matrix with disciplines that approach the learning built both in school spaces and in other contexts of human formation, based on the theory-practice articulation.

Key words: Youth and Adult Education; Teacher training; Pedagogy; Curriculum

Introdução

O Brasil, marcado por extrema desigualdade socioeconômica e pela exclusão histórica de amplas parcelas da população no acesso à escolarização, apenas em 1988 assegurou constitucionalmente o direito à educação para todos. A partir de então, assistimos a ampliação e a consolidação do campo da educação de jovens e adultos (EJA), atendendo a crescente demanda dos sujeitos individuais e coletivos. Tal movimento impactou as políticas públicas, as Universidades e as redes de ensino, além de aprofundar o debate sobre a formação de professores para a EJA, um campo marcado por ‘indefinição, voluntarismo, campanhas emergenciais e soluções conjunturais (ARROYO, 2011).

Assim como seu público, a EJA cresceu as margens do instituído, com espaços, educadores e materiais ‘improvisados’ diante da desresponsabilização do poder público com sua oferta, embora tenha conquistado espaço nas pautas das políticas públicas durante os governos Lula da Silva e Dilma Roussef, adquirindo significativos avanços nos modos de pensar e fazer a EJA. Na concepção de Haddad (2007, p. 15),

Avançar numa nova concepção de EJA significa reconhecer o direito a uma escolarização para todas as pessoas, independentemente de sua idade. Significa reconhecer que não se pode privar parte da população dos conteúdos e bens simbólicos acumulados historicamente e que são transmitidos pelos processos escolares. Significa reconhecer que a garantia do direito humano à educação passa pela elevação da escolaridade média de toda a população e pela eliminação do analfabetismo.

Nesse sentido, a formação de professores para a EJA também é ressignificada, pois a constituição da EJA como um campo pedagógico específico contribuiu para o movimento de profissionalização dos educadores da área, a par do reconhecimento da especificidade da atuação desse profissional. Entretanto, se os avanços no que tange à legislação educacional e à produção de conhecimento sobre a modalidade são evidentes, persistem os entraves na efetivação do direito à educação para o público alvo da EJA, demonstrando que essas conquistas ainda não foram consolidadas na materialidade.

Considerando a formação docente uma variável importante para a promoção da qualidade da educação, neste artigo buscamos analisar os desafios presentes na formação inicial e continuada dos professores da EJA, no atual contexto políticoeducacional. Hoje, o país atravessa grave crise política, econômica e institucional que se caracteriza pelo desmonte de políticas públicas, retiradas de direitos sociais e retrocessos no campo educacional. O conjunto das reflexões aqui tecidas fundamenta-se teoricamente em autores de matriz freireana, em consonância com teóricos afinados com a concepção crítica-emancipatória. Este trabalho é fruto da pesquisa histórico-documental e das análises das experiências acumuladas nos processos de reforma curricular empreendidas no curso de Licenciatura em Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Campus Maracanã, ao longo dos últimos 30 anos. A opção por focalizar a análise neste curso e instituição deve-se ao seu pioneirismo com a formação de professores para atuar junto às pessoas jovens, adultas e idosas. O presente trabalho visa a contribuir para uma melhor compreensão das mediações objetivas/subjetivas que determinam as disputas internas no atual momento em que as Instituições de Ensino Superior (IES) voltam a reformular seus cursos de licenciaturas, buscando atender as normatizações determinadas pela atual política de formação docente - a Resolução CNE n. 02/2015, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial e para a formação continuada, em nível superior, de Profissionais do Magistério para a Educação Básica, definindo princípios, fundamentos, dinâmicas formativas e procedimentos a serem observados nas políticas, na gestão, nos programas e cursos de formação.

Para o cumprimento dos objetivos aqui traçados, inicialmente realizaremos uma breve retrospectiva histórica da constituição do campo da EJA no Brasil, com o propósito de contextualizar a problemática abordada e identificar as mediações que dificultam o reconhecimento da modalidade e da formação docente como direito. Em seguida, apresentaremos as recentes reformulações curriculares do curso de Licenciatura em Pedagogia da UERJ nas ultimas três décadas, contextualizando a reforma ora em andamento à luz da Resolução CNE n. 02/2015 e suas concepções de docência e formação, assim como os princípios defendidos pela Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE). Destaca-se na parte final deste trabalho, mas não menos importante, a compreensão dos movimentos sociais do campo da educação como importantes instâncias formativas para o(a) pedagogo(a), cuja participação deve ser incentivada desde a formação inicial, a exemplo das entidades acadêmicas e sindicais. Entretanto, para os propósitos do presente trabalho privilegiaremos a atuação do Fórum de Educação de Jovens e Adultos (FORUM EJA) enquanto importante espaço de discussão e formação continuada.

A Educação de Jovens e Adultos: um direito

Historicamente, no Brasil, a educação daqueles que não tiveram acesso à escolarização na idade própria não foi alvo de maior preocupação governamental ou objeto de políticas educacionais, até meados do século XX. A intervenção padrão visou tão somente o combate ao analfabetismo por meio de campanhas esporádicas, emergenciais e aligeiradas restritas à alfabetização, a cargo de educadores voluntários que não possuíam necessariamente formação específica para o ofício do magistério. Afinadas com uma concepção de educação compensatória, as ações para esse público traziam como marcas, além do voluntariado e do aligeiramento, ‘a precariedade, a improvisação e a ideia de que educar é preparar para o trabalho’, o que ainda hoje perduram. (SOARES, 2016, p. 252)

O descaso governamental com a educação destinada à jovens e adultos, a par da imposição de propostas alienadoras e descontextualizadas, propiciou por parte da sociedade civil organizada uma série de ações educativas que, como relata Soares (2016, p. 252), se configuraram como ‘estratégias de enfrentamento à negação do direito à educação’, se constituindo em ‘experiências que, ao longo dos anos, foram se configurando com o que conhecemos hoje como educação popular’, gestada por iniciativa ‘de grupos populares, de associações comunitárias, de igrejas e sindicatos’. A mobilização da sociedade civil, em especial no processo de redemocratização da sociedade brasileira, na década de 1980, foi fundamental para a conquista de direitos sociais, em especial o direito à educação dos jovens e adultos, como explicitam Di Pierro e Haddad (2015, p. 198-199):

No Brasil, o reconhecimento do direito dos jovens e adultos à educação foi consequência do processo de democratização na transição dos anos 1980 e 1990, após 20 anos de ditadura militar, que produziu em 1988 uma Constituição avançada na garantia dos direitos sociais. Como em outras partes do mundo, a realização desses direitos foi limitada pelas políticas de ajuste macroeconômico e redefinição do papel do Estado.

Nos anos 1990, portanto, quando o Estado brasileiro esteve sob a égide do neoliberalismo durante os dois governos de Fernando Henrique Cardoso, a EJA foi secundarizada na agenda governamental. Destacamos neste momento político, a redução de financiamento destinado à modalidade após o veto presidencial da participação da EJA no Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental (FUNDEF), sob o pretexto de se priorizar a universalização do acesso ao ensino obrigatório às crianças e adolescentes.

Todavia, com a mudança nos rumos políticos a partir da eleição do presidente Lula da Silva, em 2002, este cenário começou a ser alterado:

No primeiro momento, a alfabetização de jovens e adultos foi reconhecida como dívida social e prioridade nacional, compondo o rol de medidas de combate à pobreza agrupadas sob o título Fome Zero, cujo carro-chefe foi o programa de transferência de renda Bolsa-Família, e que previu também estratégias de participação popular. (DI PIERRO; HADDAD, 2015, p. 206-207).

Reformulações ocorridas no MEC, a partir de 2004, reuniram as ações de alfabetização e da EJA em uma única diretoria na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), dedicada às políticas de equidade dirigidas a grupos desfavorecidos no acesso à educação, o que possibilitou maior interlocução com os movimentos sociais, em especial os Fóruns de EJA. Entretanto, o principal programa federal de alfabetização de adultos do novo governo - Programa Brasil Alfabetizado – foi alvo de duras críticas por parte dos estudiosos da área, sobretudo, por se manter ‘nos moldes das campanhas de alfabetização de massa do passado, com curta duração e baixo custo’ e se estruturar em paralelo aos sistemas de ensino, gerenciado de forma descentralizada, com alfabetizadores ‘improvisados’, com parca orientação e supervisão, precariamente remunerados, e ainda ‘responsáveis por recrutar os candidatos a compor as turmas’. (DI PIERRO; HADDAD, 2015, p. 207)

A despeito das críticas feitas ao Programa Brasil Alfabetizado, outras ações voltadas para o público jovem e adulto foram criadas em diferentes órgãos e secretarias, mantendo o escopo setorial, a exemplo do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem Urbano), e o Programa Nacional de Integração da Educação Básica com a Educação Profissional na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA).

De certo, a EJA conheceu avanços durante os governos Lula da Silva. Isso se deve, em parte, a inclusão da modalidade no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), criado em 2006, em substituição ao fundo anterior – Fundef - que vigorou de 1998 a 2006. Entretanto, a ampliação do raio de alcance das políticas voltadas para a EJA não se fez acompanhar de resultados satisfatórios, tendo em vista que o número de analfabetos jovens e adultos diminui lentamente e o aumento da escolaridade deste grupo ainda é tímido, fruto do aprofundamento das desigualdades sociais que acompanha a implementação de políticas neoliberais (DI PIERRO; HADDAD, 2015, p. 199). Aliás, as adversas condições de existência dos jovens e adultos impactam negativamente os resultados esperados para as ações da EJA e se constituem em mais um desafio posto para a formação dos professores para a EJA, demonstrando que as ações educativas para esse grupo não podem ser isoladas, mas intersetorializadas, e associadas a ações que garantam o acesso e a permanência como condição de assegurar a aprendizagem dos sujeitos. Nesse sentido, reafirma-se a concepção de que a EJA precisa de uma política integrada que supere a setorialização de programas e ações.

A formação de professores para a EJA

Nos últimos anos, os avanços acadêmicos no campo da EJA foram reconhecidos pela legislação educacional, que atualizou a questão da formação do educador e demarcou as especificidades exigidas desse profissional. A partir do reconhecimento na Constituição de 1988 da educação escolar como direito de todos, "assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria", observase em algumas IES movimentos de reformulação dos desenhos curriculares dos cursos de formação de professores, tendo por base a perspectiva da inclusão.

Outras bases legais também contribuíram para esse movimento, como, por exemplo, a LDB (1996), ao enfatizar a necessidade de formação adequada para o professor da modalidade. As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a EJA, instituídas por meio da Resolução n. 01/2000 e do Parecer CNE/CEB n.11/2000, assim como a Resolução n. 03/2010, que instituiu as Diretrizes Operacionais para a EJA, também ressaltam a importância da formação docente. Esta ultima resolução, além de determinar os parâmetros para a idade mínima de ingresso, a certificação dos exames nacionais, a duração dos cursos e o funcionamento na modalidade de Educação à Distância (EaD), mantêm os princípios, objetivos e as diretrizes contidas no Parecer CNE/CEB n.11/2000. Reafirma em seu Art. 2º que:

Para o melhor desenvolvimento da EJA, cabe a institucionalização de um sistema educacional público de Educação Básica de jovens e adultos, como política pública de Estado e não apenas de governo, assumindo a gestão democrática, contemplando a diversidade de sujeitos aprendizes, proporcionando a conjugação de políticas públicas setoriais e fortalecendo sua vocação como instrumento para a educação ao longo da vida (BRASIL, 2000).

Todavia, ainda persiste entre a maioria dos professores da EJA a falta de formação específica para atuar na modalidade, constituindo-se em ‘um dos fatores que dificultam a efetivação da EJA com qualidade’ (SOARES, 2016, p. 256-257). Essa realidade se mantém, em parte, devido à própria configuração histórica da EJA – secundarizada no campo das políticas públicas e marcada, como já mencionamos, pelo paradigma de suplência e de educação compensatória e aligeirada. Nessa configuração, não é demandado aos seus educadores uma preparação específica e aprofundada, que apesar de desejável, não tem sido considerada nas políticas de formação docente como essencial. Contudo, o momento atual, em que as IES brasileiras estão em processo de reformulação curricular dos cursos de licenciaturas para atender a Resolução CNE n. 02/2015, favorece o debate sobre os projetos formativos para o magistério da educação básica, inclusive para a EJA.

Arroyo (2006, p. 17-18) ressalta que não existem parâmetros para definir o perfil e a formação do profissional de EJA, uma vez que seus fundamentos ainda estão em discussão, embora a dinâmica emancipatória originária da EJA deva nortear a formação de seus professores. Entretanto, apesar de tal indefinição (e talvez devido a ela), persiste a necessidade de reconhecer as especificidades da EJA e a urgência da formação de seus educadores. O compromisso social dessa formação com a peculiaridade/diversidade dos sujeitos da EJA é um primeiro e essencial pressuposto: são sujeitos com voz, com experiências, com valores, com cultura que devem ser acolhidas e respeitadas no processo educativo. Ainda em diálogo com o referido autor, a pluralidade dos sujeitos da EJA aponta para as múltiplas identidades dos estudantes, que possuem histórias de vida e experiências singulares, consistindo em um grupo ‘heterogêneo’ que tem em comum a situação de exclusão, de trajetória de escolarização inexistente ou interrompida, de estigma e de menoridade social.

Entre os diversos teóricos que contribuem para o avanço no campo da EJA, Paulo Freire continua a ser a referência para discutir o papel emancipador da educação, por ter apresentado as bases epistemológicas da educação para a autonomia e para a libertação, que se contrapõem às concepções tecnicistas da educação ‘bancária’, antidialógica e acrítica. Trata-se, portanto, em diálogo com Freire (1978, 1979, 1996), de se construir uma pedagogia que conduza os educandos para a autonomia e a transformação da consciência ingênua em consciência crítica, mobilizando-os para uma atitude ativa de luta coletiva e solidária em prol de sua própria libertação e da transformação social.

De certo, a produção no campo da EJA ampliou-se consideravelmente nas últimas décadas, fato que contribuiu para sua consolidação teórica. Estudos e pesquisas sobre os sujeitos da EJA – antes invisibilizados - têm se intensificado ‘na proporção do lugar que esses sujeitos vêm ocupando nas ações e políticas educacionais’ (SOARES, 2016, p. 261). Diversas áreas do conhecimento têm contribuído para a compreensão da complexidade da modalidade, entre elas a Sociologia, a Antropologia, a História, a Filosofia e a Psicologia da Educação, conjugadas com os estudos sobre linguagem, letramento/alfabetização, apropriação da leitura e as investigações no campo da didática, do currículo e das práticas pedagógicas.

Ao longo desse processo o campo da EJA vem se fortalecendo no interior das Universidades, seja nas Faculdades de Educação e/ou em Programas de PósGraduação. Especificamente, na Faculdade de Educação da UERJ-Maracanã, nos últimos três anos a área da EJA ampliou seu quadro de docentes e seu campo de atuação no curso de Pedagogia. Apesar das distinções teóricas e epistemológicas, os referidos docentes consideram que a luta pela formação de educadores se dá concomitantemente à luta política pelo reconhecimento da EJA na sociedade brasileira (BARBOSA; SILVA; SOUZA, 2017). Esses profissionais partem da compreensão de que a ação do(a) pedagogo(a) extrapola a ação docente na sala de aula e/ou na escola para assumir-se nos múltiplos espaços educativos presentes na sociedade, materializada na matriz curricular que contempla - em caráter obrigatório - disciplinas que valorizam o processo de aprendizagem escolar, a formação que ocorre nos espaços não formais e a necessária articulação teoria-prática.

Não se trata de um movimento recente, uma vez que desde o início da década de 1990 a UERJ tem apresentado propostas curriculares que procuram assegurar a formação para a docência, de forma a ‘garantir o direito de todos ao ensino fundamental, independentemente da idade’, numa concepção inclusiva (PAIVA, 2006, p. 48). Um breve histórico dessas reformulações curriculares nos permite mapear, ainda que de forma sucinta, esse movimento de luta pela formação do educador da EJA na referida instituição.

O pioneirismo da UERJ na formação de professores da EJA

O reconhecimento da educação escolar como direito de todos provocou a necessidade dos cursos de formação de professores repensarem o seu desenho curricular, a fim de atender esta prerrogativa garantida na Constituição de 1988. Foi com base nesse movimento que, em 1991, após três anos de debates produzidos por um coletivo de professores, um novo desenho curricular foi implantado no curso de Licenciatura em Pedagogia da Faculdade de Educação da UERJ, tendo sido esta matriz uma das pioneiras na inclusão da EJA como um dos eixos estruturantes da oferta de formação em Pedagogia (PAIVA, 2006).

Nesse desenho curricular, reconhecido pelo MEC através da Portaria n. 366/95, o curso de Pedagogia possuía uma base comum constituída por seis períodos. Nos dois períodos finais (7º e 8º períodos) eram reservados para a escolha e aprofundamento em uma das quatro habilitações, a saber: Magistério em Educação Infantil (EI); Magistério em Educação de Jovens e Adultos (EJA); Magistério em Educação Especial (EE) e Magistério das Matérias Pedagógicas dos cursos de formação de professores, no então 2º Grau. O projeto curricular admitia cursar de forma concomitante até duas habilitações, desde que uma dessas fosse o Magistério das Matérias Pedagógicas. Durante os seis primeiros períodos comuns a todos eram oferecidas disciplinas especificas de Educação Infantil, Educação de Jovens e Adultos e Educação Especial. A única disciplina obrigatória de EJA era denominada "Iniciação de Jovens e Adultos". Outrossim, os estudantes que optavam pela habilitação em Magistério em EJA deveriam cumprir 26 créditos e 510 horas/aula, integralizada por meio das seguintes disciplinas: Processo de Desenvolvimento e Aprendizagem de Jovens e Adultos;Tópicos Especiais em EJA (I e II); Alternativas Metodológicas em EJA (I e II); Prática de Ensino-Estágio Supervisionado em EJA (I e II) e Monografia em Educação de Jovens e Adultos (I e II) (UERJ, 1991).

Este desenho curricular (que denominaremos de versão 1) vigorou entre os anos de 1991 e 2002, substituído a partir de 2003 por um novo modelo, concebido após quase três anos de discussões (PAIVA, 2006). Além desta, outra proposta formativa era oferecida pela Faculdade de Educação no início da década de 1990, fruto de convênio de cooperação mútua firmado em 1991entre a UERJ e a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, no qual a UERJ oferecia aos professores da rede municipal cursos de extensão e a graduação em Licenciatura Plena de Magistério das Séries Iniciais do 1º Grau (versão 2). Mesmo após a extinção do convênio, em 1995, o curso continuou funcionando, passando a ser aberto à comunidade em geral. A partir de então, coexistiram dois cursos distintos de formação para o magistério, o que perdurou até 2003, quando uma nova proposta curricular (versão 3) foi implementada, integrando as duas propostas existentes (PAIVA, 2006, p. 50).

O novo desenho curricular visava a formar não só o professor para os anos iniciais do ensino fundamental para crianças, jovens e adultos, e o professor apto a lidar com crianças e jovens portadores de necessidades educativas especiais, mas também o pedagogo capaz de desenvolver projetos pedagógicos em instituições educativas, ações coletivas e culturais com jovens e meninos/as em situação de rua (Ongs, conselhos tutelares, igrejas) e em instituições governamentais diversas (UERJ, 2002). Entre outras bases legais, a concepção de formação dessa nova proposta fundamentava-se na LDB, que dispõe sobre a formação dos profissionais do magistério nos Artigos 61 a 67 e no Artigo 87, bem como nas resoluções editadas pelo Conselho Nacional de Educação - a Resolução n. 01/2002 e a Resolução n. 02/2002, que instituem, respectivamente, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores da Educação Básica, em nível superior, e a duração e a carga horária dos cursos.

Nesta proposta curricular (versão 3), a EJA passou a ser compreendida conforme a concepção consolidada na V Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA), realizada em 1997, em Hamburgo, Alemanha, isto é, como um processo contínuo que ocorre para além dos processos escolares, em todos os processos formativos que jovens, adultos e idosos vivenciam ao longo da vida. Neste sentido, como a escola é apenas um dos múltiplos espaços de formação, a atuação do(a) pedagogo(a) também se ampliou e passou a abarcar novas possibilidades e as múltiplas instituições, cabendo ao pedagogo(a) compreender, ler criticamente e interferir nessas variadas possibilidades. Para o cumprimento de tal objetivo, a proposta de formação se estruturava em torno de quatro eixos, a saber: pedagogia nas instituições, pedagogia nos movimentos sociais, educação escolar e educação inclusiva.

De 2003 a 2011 o referido desenho sofreu algumas alterações; fruto das discussões coletivas no interior da Faculdade de Educação, se consolidando, em 2012, a última versão curricular (versão 4), ainda vigente. Nesta, reafirma-se a compreensão de que a ação do(a) pedagogo(a) extrapola a ação docente na sala de aula e/ou na escola para assumir-se nos múltiplos espaços educativos presentes na sociedade. Assim, com base em uma concepção ampliada da docência, mais do que um professor da Educação Infantil e/ou do 1º segmento do Ensino Fundamental, o curso de Pedagogia da Faculdade de Educação visa a formar um(a) pedagogo(a) capaz de formular, gerir, monitorar e avaliar projetos de educação de jovens e adultos, na dimensão do significado da aprendizagem ao longo da vida.

Os professores-pesquisadores da área de EJA aproveitaram o processo de reformulação curricular para reafirmar a concepção da EJA na perspectiva de aprendizagem ao longo da vida, consolidada na VI CONFINTEA, realizada na cidade brasileira de Belém do Pará, em 2009. Desde então, os estudos sobre a complexidade da modalidade se fazem presentes na matriz curricular por meio de disciplinas obrigatórias que abordam os aprendizados ocorridos nos espaços escolares, a exemplo das disciplinas "Educação de Jovens e Adultos" e "Abordagens Pedagógicas na EJA", quanto em demais contextos de formação humana, a exemplo das disciplinas "Educação e Movimentos Sociais: aspectos históricos e políticos"; "Educação para a Gestão de Projetos Socioambientais", "Educação Continuada e Perspectiva em Redes do Conhecimento" e "Pedagogia nas Instituições e nos Movimentos Sociais: estágio supervisionado". Cabe ressaltar, que não se trata de um estágio curricular que se destina à preparação do estudante para a docência, mas que o possibilite a vivenciar como observador, e depois, como co-autor e participante ativo nos processos de preparação e de integração com o trabalho ou de desenvolvimento participativo e comunitário, podendo incluir também a participação dos estudantes em programas de formação profissional (UERJ, 2002).

Verifica-se, portanto, que a concepção de EJA e da formação docente presente no referido currículo reconhece e valoriza a pluralidade de processos, tempos e espaços formadores, com base em uma concepção de educação pautada nos princípios de humanização, libertação e emancipação humana, enfatizada por Arroyo (2006), Freire (1996) e demais teóricos do pensamento crítico. Entretanto, por ser o currículo uma "arena contestada", um campo de disputa (MOREIRA; SILVA, 2006), a concepção ampliada de EJA aqui exposta continua sendo defendida pelos professorespesquisadores da área durante todo o processo de gestação do novo currículo do curso de Pedagogia da UERJ-Maracanã, iniciado em 2016 e ainda não finalizado.

Dialogando com a política educacional e rediscutindo propostas curriculares

Não pretendemos neste texto descrever o processo de reformulação curricular que se encontra em andamento na Faculdade de Educação, embora seja importante registrar que este se insere no movimento de reestruturação dos cursos de formação de professores provocado pela Res. n° 02 de 01 de julho de 2015 (8), que previa, inicialmente, o prazo de 2 (dois) anos, a contar da data da sua publicação, para que os cursos em funcionamento se adaptassem ao estabelecido pela Resolução.

É importante destacar a riqueza do processo de elaboração e discussão das Diretrizes, com a realização de audiências públicas e a colaboração propositiva e dialógica, tanto de órgãos governamentais ? MEC e suas Secretarias, Capes, Inep ? como das associações acadêmico-científicas , sindicatos, instituições de educação superior e representantes de setores educacionais, fóruns, especialistas, pesquisadores e estudantes vinculados à temática, como explicita o Parecer da Comissão. Segundo o documento, essa rodada de discussões, ao longo do ano de 2014, propiciou críticas e sugestões, por meio de debates no Conselho Nacional de Educação (CNE) e em outros espaços.

Os estudos e debates realizados no CNE, envolvendo professores, gestores, pesquisadores e estudantes, tanto no contexto da Câmara de Educação Básica, quanto na Câmara de Educação Superior, não deixam margem a dúvidas quando o tema é a formação inicial e continuada e seus resultados no cotidiano da escola brasileira. (BRASIL, 2015).

A Resolução CNE n. 02/2015, incorpora os princípios que norteiam a base comum nacional para a formação dos professores, construída historicamente pelo movimento dos educadores, defendida pela ANFOPE, e assim explicitada em seus ‘considerandos’:

a) sólida formação teórica e interdisciplinar; b) unidade teoria-prática; c) trabalho coletivo e interdisciplinar; d) compromisso social e valorização do profissional da educação; e) gestão democrática; f) avaliação e regulação dos cursos de formação. (BRASIL, 2015).

O ideário anfopiano, defendido desde 1983, afirma os princípios da Base Comum Nacional que definem a identidade do profissional da educação. Entende que:

a base comum nacional dos Cursos de Formação de Educadores não deve ser concebida como um currículo mínimo ou um elenco de disciplinas, e sim como uma concepção básica de formação do educador e a definição de um corpo de conhecimento fundamental. Todas as licenciaturas (pedagogia e demais licenciaturas) deverão ter uma base comum: são todos professores. A docência constitui a base da identidade profissional de todo educador. (CONARCFE, 1983, p. 4).

Nesse sentido, outro considerando afirma o papel central e estratégico das instituições de educação básica, ‘seus processos de organização e gestão e projetos pedagógicos na formação requerida nas diferentes etapas (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) e modalidades da educação básica’, bem como a importância do profissional do magistério e de sua valorização profissional, ‘assegurada pela garantia de formação inicial e continuada, plano de carreira, salário e condições dignas de trabalho’ (BRASIL, 2015).

No momento atual marcado por amplo retrocesso nos direitos sociais, no campo educacional destacamos as críticas feitas reiteradamente pelas entidades nacionais às medidas implementadas pelo MEC, que impactam negativamente a política educacional e a formação de professores, a exemplo da Reforma do Ensino Médio (Lei n. 13.415/2017) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), assim como a reconfiguração do Conselho Nacional de Educação, entre outras. Nota conjunta, de 20 de outubro de 2017, assinada pelas entidades educacionais - ANFOPE, ANPAE, ANPED, ABdC, CEDES, FINEDUCA e FORUMDIR - denuncia o risco da formação de professores, com base nas políticas anuncias pelo MEC, vir ‘assumir um viés praticista, caso não se articule a uma formação teórica sólida’; e o temor de ‘um aligeiramento ainda maior da formação, com o achatamento da docência entendida como uma atividade técnica desprovida de saberes próprios que articulam práticateoriaprática’. Criticam e repudiam como descaracterizadoras da formação, ‘compreensões e propostas’ que não atendem as demandas formativas da escola e aos desafios postos à carreira e à atuação docente, além de comprometerem ‘a extensão e a solidez da formação em nível superior, abrindo novas possibilidades para o aligeiramento da formação’, desconsiderando a necessária ‘articulação entre formação inicial e continuada, carreira, salários e condições de trabalho’ (ANFOPE et AL., 2017).

De certo, a Resolução CNE n.02/2015 constitui um avanço significativo no campo da formação de professores, face à sua qualidade social, teórica e epistemológica, e incitada por ela, as instituições de ensino superior iniciaram a reformulação de seus cursos de licenciaturas. Na UERJ, esta discussão ocorre em um contexto de grave crise institucional, marcado pelo descaso do executivo estadual ao longo de 2016 e 2017 que impactou profundamente as atividades acadêmicas, incidindo na paralisação das atividades por falta de condições materiais, atraso dos salários, das bolsas e o repasse de recursos para fins de custeio e manutenção da Universidade, o que acarretou o atraso dos pagamentos de empresas terceirizadas e a suspensão dos serviços prestados. Um momento conturbado que não impede a qualidade do debate acerca da nova matriz curricular, mas dificulta a participação efetiva de muitos sujeitos e torna o processo mais demorado.

Todavia, no processo em curso de construção do novo desenho curricular o corpo docente da Faculdade de Educação reafirma o objetivo de formar profissionais comprometidos com a escola pública, gratuita, laica e de qualidade, uma vez que o magistério tem sido a principal atividade exercida pelo(a) pedagogo(a), sobretudo, nas redes púbicas de ensino. E por reconhecer ser esta uma escola plural, diversa e para todos, implica garantir a sua oferta não só para crianças e adolescentes, mas também as pessoas jovens, adultas e idosas, atentando para as diferenças de ritmos de aprendizagens, expectativas, modos de ver, sentir e estar no mundo dos diferentes sujeitos. Em outras palavras, significa atentar para as especificidades da EJA, conforme salienta o Parecer n.11/2000.

É nesta perspectiva que no novo desenho curricular os professores-pesquisadores da área da EJA defendem que parte da carga horária de estágio supervisionado seja reservada a EJA, a fim de provocar os futuros professores, com base na unidade teoria-prática, a refletirem as práticas pedagógicas implementadas no chão das salas de aulas da referida modalidade e a buscarem construir projetos político-pedagógicos que venham minimizar os improvisos que a tem caracterizado. Nessa linha metodológica, concebe-se o estágio como um campo de investigação e de pesquisa da prática educativa, isto é, um momento estratégico político-pedagógico no sentido de recuperar a escola como locus privilegiado na produção de saberes. Para isso, firma-se o modelo colaborativo entre universidade e escolas, no qual os professores da educação básica se constituem em coformadores dos futuros docentes. Em conformidade com a Política de Formação Docente da UERJ (2016) – também em processo de construção -, para que esse modelo colaborativo alcance os resultados pretendidos, ele precisa ser pensado como um projeto ético-político de formação e não como uma mera repartição de horas entre unidades parceiras.

A preocupação com a formação de educadores para a EJA e o fato de a modalidade ainda ter em seu corpo docente professores sem formação inicial específica fortalecem os pesquisadores-professores da área na disputa em torno da proposta curricular pretendida para o curso de Pedagogia. Isto, porque partem do pressuposto de que os improvisos vivenciados na EJA, em parte, decorrem do fato de muitos docentes não terem tido contato com as disciplinas/conteúdos/discussões e experiências que versam sobre o universo da modalidade durante sua formação inicial. Segundo os dados do INEP de 2005, das 612 IES brasileiras que ofertavam o curso de Pedagogia e que foram avaliadas pelo Exame Nacional de Cursos, apenas 15 (2,45%) ofereciam a habilitação de EJA (SOARES, 2008). Tal fato se agrava se considerarmos as demais licenciaturas, em que há quase absoluta ausência da discussão sobre a complexidade da EJA, o que ocorre na própria UERJ-Maracanã, com exceção da Licenciatura em Pedagogia.

Este déficit de formação para atuar junto a jovens e adultos, conjugada a recorrente transposição de profissionais do ensino regular para a EJA ocasionam a pouca atenção dos professores da educação básica às especificidades da modalidade, entendida como ensino supletivo (concepção alicerçada no paradigma da suplência e na reposição de conteúdos); transposição de métodos, materiais e instrumentos de avaliação que realizam com crianças e adolescentes; execução de atividades pedagogicamente pobres sob vários aspectos (MOURA, 2009) e processo de infantilização, principalmente nas classes de alfabetização e do 1° segmento do Ensino Fundamental (OLIVEIRA, 2009).

Face à complexidade dos desafios atuais vividos na educação pública, seja nas condições do trabalho docente e/ou nas condições estruturais da oferta nas escolas, que se agravam em decorrência do projeto político operado pelas classes dominantesdirigentes, na qual a EJA ocupa posição cada vez menos importante, faz-se necessário a formação de profissionais capazes de lidar com o imponderável e com os problemas vividos no cotidiano das salas de aulas, propondo soluções. Isto é, "um educador comprometido com os objetivos pedagógico-sociais da educação, que domine seu campo de conhecimento e seja capaz de formular alternativas metodológicas e administrativas" (UERJ, 2002, p.8/9).

Para isso, além de garantir tempos-espaços de reflexão sobre a EJA nos currículos das licenciaturas, é preciso também garantir novos espaços de formação continuada e fortalecer os já existentes, como os Fóruns de EJA, que têm salientado a importância de trazer os educadores para o debate sobre a sua própria formação, discutindo as diretrizes que devem nortear a formação inicial e continuada desse segmento, enquanto profissionais da educação. Nesta perspectiva, entendemos que a atuação dos professores nos Fóruns de EJA e nos demais movimentos sociais constitui processo formativo importante, especialmente por seu aspecto participativo, político e militante.

Fóruns EJA: da experiência político-organizativa e militante à formação docente continuada

Os Fóruns Estaduais de EJA se organizaram a partir de 1996 com a finalidade de mapear as ações/instituições envolvidas com esta modalidade da educação básica e sistematizar as discussões a serem propostas pelos representantes brasileiros na V CONFINTEA, realizada em Hamburgo, em 1997. Motivado pelos encontros estaduais e regionais de EJA, o Encontro Nacional foi realizado naquele mesmo ano na cidade de Natal, quando se elaborou coletivamente um retrato da modalidade no Brasil, cujos dados foram organizados em três aspectos: atendimento, segmentos envolvidos e metas.

Apesar da síntese elaborada não ter recebido na época a merecida atenção por parte do MEC, tratou-se de uma importante referência norteadora para as etapas preparatórias da referida Conferência, seja por possibilitar um conhecimento da realidade brasileira na EJA naquele momento, seja por aproximar e articular os segmentos envolvidos com a modalidade nos níveis estadual, regional e nacional. A partir de então, constrói-se um movimento nacional que culminaria não só na criação dos Fóruns Estaduais e na realização de encontros anuais de educação de jovens e adultos, como também no I Encontro Nacional de EJA, em 1999, no Rio de Janeiro.

De forma geral, os Fóruns Estaduais de EJA são constituídos por docentes que atuam na modalidade no nível fundamental e médio, professores-pesquisadores de diferentes IES da área de EJA, estudantes dos cursos das variadas licenciaturas e dos cursos de formação de professores de nível médio, em formação e/ou já formados, assim como estudantes da modalidade (nos níveis Fundamental e Médio) das redes municipal, estadual ou federal de ensino. Contam ainda com a participação de profissionais de educação que atuam como gestores nas unidades escolares ou nos órgãos centrais (municipais e estaduais), além de representantes de instituições e movimentos sociais que oferecem a modalidade, entre eles, os segmentos quilombolas, indígenas e os que atuam na educação das populações em situação de privação de liberdade.

Esta descrição sumária dos participantes dos Fóruns aponta a diversidade das concepções epistemológicas, posições políticas, profissionais e de visões da realidade que fazem parte do cotidiano da EJA, que de algum modo acabam exercendo influência na vivência dos processos de ensino-aprendizagem por parte dos sujeitos da modalidade. Nos encontros, chama-nos atenção o embate de opiniões e as concepções de EJA que atravessam o coletivo e que se materializam no processo de organização, na seleção de temas para discussão, nas avaliações, diagnoses e análises de conjuntura, na produção de eventos, campanhas e ações afirmativas e contundentes em defesa da EJA. Desse modo, entendemos os Fóruns como espaços de militância na perspectiva gramsciana, a saber como um complexo intelectual coletivo organizador de uma vontade coletiva.

Registra-se, portanto, a potencialidade que tais espaços possuem para formar uma intelectualidade orgânica, isto é, intelectuais-militantes que organizam o movimento com base em sua especificidade, trabalham pelo seu fortalecimento expansão e pela formação de novos intelectuais orgânicos (16) que venham disputar¸ como aponta Semeraro (2006), espaços, concepções de mundo e projetos de sociedade em outras esferas organizativas, ampliando os limites de sua própria atuação num movimento molecular. A partir dessa perspectiva, os Fóruns de EJA acabam por se constituir em movimentos sociais à medida que visam garantir direitos historicamente negados/violados a milhares de jovens, adultos e idosos brasileiros. E assim como os demais movimentos sociais, os Fóruns, por oferecer um leque de possibilidades de negociações, articulações, formulações, diálogos, debates, disputas, mobilizações, encontros/desencontros em defesa da EJA, se constituem em uma rede de relações e espaços privilegiados de formação continuada para os educadores da referida modalidade.

A formação docente, nestes termos, adquire uma dimensão de práxis, posto que um conjunto de saberes de caráter teórico-prático é produzido com base na experiência complexa da realidade, que traz consigo um conjunto rico e diverso de questões a serem refletidas de forma única, criativa e original. Como ressalta Arroyo (2003, p. 32), reside aí um processo permanente de agregação e mobilização, que apesar de avanços e recuos, momentos de expansão e de refluxo, revelam a centralidade das lutas em defesa da EJA no processo permanente de formação humana dos sujeitos coletivos e em movimento.

Considerações finais

Por entender o currículo como o conjunto das experiências de aprendizagens que contribuem para a formação das identidades dos educandos e não como um artefato ou uma simples listagem de conteúdos, pensar a reforma curricular impele a refletir, inicialmente, sobre os princípios que fundamentam o currículo a se construir. Esta foi a preocupação dos professores da Faculdade de Educação nas várias reformas curriculares implementadas no curo de Pedagogia e tem sido a preocupação dos que participam da construção da nova proposta em andamento, por entender que muitas são as mediações ideológicas, políticas, econômicas e sociais presentes em toda discussão curricular, tanto da educação básica quanto do ensino superior. Afinal, a discussão sobre o currículo traz em si a discussão sobre o tipo de ser humano, de profissional e de sociedade que se pretende formar.

Especificamente sobre a EJA, a permanência de algumas práticas políticopedagógicas, baseadas na concepção da educação compensatória, reforçam a necessidade de se (re)pensar a formação docente no que concerne às concepções epistemológicas, valores e a própria pesquisa, além de promover a ampliação dos olhares sobre os sujeitos e valorizar as múltiplas experiências, vozes e sentidos presentes no próprio conceito de formação. Essa visão fortalece a defesa da formação de professores segundo os princípios norteadores defendidos pela ANFOPE: valorização do trabalho pedagógico, sólida formação teórica, conhecimento e intervenção na realidade escolar com base em pesquisas, trabalho coletivo e interdisciplinar, unidade entre teoria e prática. Fortalece também a mobilização e organização dos educadores de EJA, tanto em âmbito nacional quanto internacional, por meio de uma perspectiva mais inclusiva e equitativa, como reafirmou os participantes da VI CONFINTEA, realizada no Brasil, em 2009.

Nesse cenário, entendemos que a disseminação da concepção teóricometodológica de Paulo Freire, ainda que não seja consenso na intelectualidade acadêmica, assume papel preponderante e mesmo fundamental da educação destinada aos adultos, não só por desconstruir as práticas utilitaristas e compensatórias que nortearam o denominado "ensino supletivo", mas por se configurar como direito e em uma perspectiva emancipatória.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 26 de Maio de 2018; Aceito: 30 de Novembro de 2018

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