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Revista de Educação Pública

versión impresa ISSN 0104-5962versión On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.27 no.66 Cuiabá set.-dic 2018  Epub 07-Mayo-2019

https://doi.org/10.29286/rep.v27i66.3755 

Educação e Psicologia

A Presença do jogo na infância de octogenários e nonagenários

The presence of the play in octogenarians childhood and nonagenarians

Kleber Tuxen CARNEIRO1 

Eliasaf Rodrigues de ASSIS2 

Maurício BRONZATTO3 

Ricardo Leite de CAMARGO4 

1Doutor em Educação Escolar, no momento desenvolve Estágio de Pós-Doutoramento junto a Faculdade de Educação da Unicamp. Professor Adjunto na Universidade Federal de Lavras/MG e membro/pesquisador do GEFORDEF (Grupo de Estudo/Pesquisa em Formação Docente sobre Educação Física). Endereço: Universidade Federal de Lavras Campus Universitário - Caixa Postal 3037 Lavras/MG - CEP 37200-000 - Fone: (35)38295270 - E-mail:<kleber2910@gmail.com>.

2Doutor em Educação Escolar, pela Unesp/Fclar. Participa como pesquisador colaborador no GEFORDEF (Grupo de Estudo/Pesquisa em Formação Docente sobre Educação Física). E-mail:<eliasafassis@hotmail.com>.

3Doutor em Educação Escolar. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Campus Salto. Endereço: Rua Rio Branco, 1780 - Vila Teixeira - Salto/SP - CEP 13320-271 Fone: (11)4602-9191 - E-mail:<maub1970@ig.com.br>.

4Professor Livre Docente em Educação. Docente no Departamento de Economia, Administração e Sociologia na ESALQ/USP. Endereço: Av. Pádua Dias, 11, - Vila Independência - Piracicaba/SP - CEP 13418900 - Caixa-postal: 9 Fone: (19)34294376 - E-mail:<ricardocamargo@usp.br>.


Resumo

Este artigo apresenta os resultados de um estudo de doutoramento cujo objetivo foi conhecer diferentes manifestações da cultura lúdica na infância de octogenários e nonagenários, vivida nas décadas de 20 e 30. Considerou-se que as distintas configurações assumidas pela infância produzem diferentes cenários que podem influenciar a forma e o conteúdo da constituição da cultura lúdica. Com base no método História Oral, que resgatou a infância rememorada dos 32 guardiões da memória, procurou-se escavar o substrato do lúdico daquele momento histórico. Discutiu-se, ainda, a importância de preservar a memória lúdica, afetada por vários fatores, podendo sofrer perdas, desapegos e esquecimentos.

Palavras-chave: Jogo; Memória; Cultura Lúdica

Abstract

This article show off the results of a doctoral study whose objective was to better understand the different manifestations of ludic culture in childhood the octogenarians and nonagenarians, borns in the decades of 20 and 30. He took into account the different configurations assumed by childhood produce different scenarios that may influence the form and content of the constitution of ludic culture. Based on the method of oral history, which rescued the childhood remembered the 32 guardians of memory, tried to delve this ludic substrate that historic moment. Also it discussed the importance of preserving the ludic memory, which is directly affected by various factors, which may suffer losses, detachments and forgetfulness.

Keywords: Play; Memory; Ludic culture

Introdução

Foi o interesse em recuperar fragmentos de uma infância adormecida que engendrou esta pesquisa. Esse interesse teve um alvo específico. Não se pretendeu encontrar qualquer elemento, dentre tantos que compõem a construção social da infância, mas um em especial: o jogo, personificado no ato de brincar, para o qual, segundo Bastide (apud FERNANDES, 1979), os adultos, vez ou outra, olham com alguma desconfiança.

Propusemos esta investigação com o objetivo principal de conhecer as diferentes manifestações da cultura lúdica (jogo) na infância de octogenários e nonagenários. Procuramos, portanto, resgatar o conteúdo lúdico dentro de um período histórico bem peculiar, as décadas de 20 e 30. Para isso, procuramos dar voz aos 32 anciãos participantes do trabalho, a fim de que narrassem a forma e as diferentes personificações da cultura lúdica (do jogo) em sua infância.

Ao optarmos por entrevistar sujeitos na faixa etária dos 80 e 90 anos, levamos em consideração a urgência de preservar um tesouro prestes a finar-se com seus possuidores, necessidade não tão premente se se tratasse de uma amostra com média de idade entre 50 e 60 anos. A legitimidade de nossa preocupação logo se verificou: em menos de três anos depois da coleta de dados, 12 dos 32 entrevistados já não estavam mais vivos.

Além desse interesse central, a pesquisa objetivou também conhecer as características da cultura lúdica quanto: a) ao espaço e principais tipologias do jogo e brinquedos das décadas de 20 e 30; b) às particularidades historicamente construídas para a infância da época, as quais produziram diferentes cenários para as manifestações do jogo; c) às organizações, ou relações sociais, engendradas pelo ambiente do jogo; e d) a um possível crepúsculo das particularidades do jogo/folclore (tradicional) em relação a outras formas de expressão do jogo na atualidade.

Em nosso entendimento, no espaço da cultura lúdica (ou do jogo), a criança se relaciona com conteúdos culturais que ela reproduz e transforma. Também deles se apropria, atribuindo-lhes significações e ressignificações. Desse modo, de alguma forma, as diferentes personificações do jogo constituem-se como um ingresso na cultura, uma vez que tal fenômeno é também uma construção social. É preciso esclarecer que não estamos nos referindo a qualquer forma de expressão cultural, mas a uma forma e a um conteúdo muito particulares, que existem num dado momento, dentro de um contexto histórico (BROUGÈRE, 1997).

Podemos assumir, assim, que a cultura lúdica se caracteriza como um patrimônio cultural, ou seja, conjuntos de conhecimentos e realizações de uma sociedade. Esses conjuntos são acumulados ao longo da história de uma dada sociedade e conferem traços de singularidade em relação a outras sociedades. Portanto, ao adotarmos essa forma de conceber a cultura lúdica, reconhecemos também a importância de preservar e transmitir, de geração em geração, seu conteúdo, reconhecidamente um tesouro, às vezes escondido, que se esculpiu ao longo da história.

Desse modo, ao considerarmos o cenário atual, que apresenta uma diminuição significativa de determinados artefatos e expressões lúdicas, entendemos ser necessário salvaguardar tais elementos, por meio da perpetuação da memória lúdica, pois essa é a alternativa que nos resta para a preservação desse patrimônio cultural e afetivo da humanidade. No entanto, reconhecendo a dinâmica do tecido que compõe as tramas lúdicas, também reconhecemos suas ressignificações, ou seja, as novas configurações e formatos. Ao olharmos para a história do jogo e seus múltiplos cenários, notamos o quanto o quadro contemporâneo se difere e distancia daquele engendrado em épocas passadas, o que, de algum modo, justifica esforços para se pensar caminhos (metodológicos e epistemológicos) que dialoguem com as novas expressões de jogo (por exemplo, os eletrônico-digitais) e, concomitantemente, preservem o legado de algumas personificações singulares da cultura lúdica, como o jogo/folclore (tradicional).

Cabe destacar que a realização desta pesquisa não se deveu a um impulso saudosista, pois, no espaço da cultura lúdica, a criança se relaciona com conteúdos culturais que ela reproduz e transforma, ou seja, há uma dinâmica de significações e ressignificações no interior da cultura lúdica própria da vida social.

Propusemos esta investigação com o objetivo de contribuir para a preservação da memória lúdica, em geral afetada por fatores como a transitoriedade grupal e as transformações gerais (arquitetônicas, simbólicas, entre outras) que podem produzir perdas, desapegos e esquecimentos da memória coletiva. Atuamos, portanto, como arqueólogos a escavar as narrativas de nossos Guardiões da Memória em busca de sua cultura lúdica.

Referencial teórico

O trabalho assenta-se em três grandes bases epistemológicas. A primeira e mais extensa é composta pelos fundamentos da teoria do jogo. A complexidade que envolve a teoria do jogo pode ser facilmente percebida quando se observam as diferentes áreas, sejam das ciências humanas, sejam das ciências exatas, que se propuseram a desenvolver investigações tomando-o como objeto de conhecimento: na Psicologia do desenvolvimento, temos Rosamilha (1979), Vygotsky (2000), Piaget (1994), Macedo (2000), Winnicott (1975), Elkonin (1998), Buytendijk (1974); nas Ciências Exatas/Matemática, Eigen e Wincker (1989), que se preocuparam em estudar as leis naturais que regulam o acaso; ou ainda os estudos dos matemáticos Neumane Morgenstern (1990) e John Nash (NASAR, 2002), esse último ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1994.

O jogo também está presente na Filosofia, com os estudos de Pascal (2003), Schiller (2002), Rousseau (1974), Leibniz (apud DUFLO, 1999), Gadamer (2002), Wittgenstein (1999), entre outros; igualmente na História: Ariès (1981) e o clássico Homo Ludens, de Huizinga (1999); também na Sociologia, nos estudos de Brougère (1997, 1998), Caillois (1990) e Benjamin (1984). Já na Pedagogia, tivemos importantes investigações, dentre as quais destacamos os estudos de Kishimoto (2003, 2006), Château (1987), Friedmann (1996), Leif e Brunelle (1978), Miranda (2001), Duarte Jr. (1988), Lebovicie Diatkine (1988) e Maturana e Verden-Zöller (2004).

Por último, enfatizamos as importantes contribuições da Educação Física para a investigação do jogo nos estudos de Paes (1992), Mello (1989), Bruhns (1989, 1993), Marcelino (1987, 1989), Freire (2001), Freire e Scaglia (2003), Scaglia (2003), Scaglia, Carneiro e Camargo (2014), Carneiro (2009, 2012, 2015, 2017), Retondar (2007), dentre outros. A extensa lista de pesquisadores da teoria do jogo e das áreas que dele se ocuparam dá mostras de sua complexidade e abrangência.

A segunda base epistemológica deste trabalho diz respeito aos constructos da memória e é subsidiada por estudiosos como: Halbwachs (1990), Bergson (1999), Bosi (1987), Connerton (1999), Santos (2002), Olick e Robbins (1998), Fentress e Wickham (1992), Lowenthal (1998), entre outros, cujo entendimento sobre memória fornece sentido ao tempo presente de um grupo ou de um indivíduo, sentido esse que deve ser continuamente construído, uma vez que a memória não é estática, pois na base da sua formação encontram-se os aferentes (a negociação) entre as lembranças do sujeito ou grupo e as dos outros grupos ou sujeitos. Halbwachs (1990) destaca essa característica como a condição fundamental para que as lembranças sobrevivam: quando lembramos, mesmo que nos achemos sozinhos, tal ato implica a inserção em um meio social que o possibilita. Mais do que contexto, lembrar implica partilhar lembranças.

E, por fim, a terceira base deste estudo ocupou-se da apresentação de um esboço a respeito dos diferentes olhares e entendimentos sobre a infância e, por conseguinte, sobre a criança. Discutiu-se a imprecisão que perpassa o conceito e o quanto uma hermenêutica da infância se coloca como um desafio a quem intente compreendê-la. Os principais autores com quem dialogamos foram: Lira (2009), Narodowski (2001), Becchi (1998), Steinberg e Kincheloe (2001), Veiga (2004), Kuhlmann Jr. e Fernandes (2004), Ariès (1981), Postman (1999), Dornelles (2005), Bujes (2005), entre outros.

Percurso metodológico

Os procedimentos metodológicos de que nos servimos para alcançar os objetivos propostos para esta investigação assentam-se sobre o fundamento das disposições gerais da abordagem qualitativa, que, de acordo com Chizzotti (2003), conferem a possibilidade de observar/compreender os valores, crenças, hábitos, atitudes, representações, opiniões sobre fatos e processos particulares e específicos dos indivíduos e grupos em que estão inseridos.

Para os fins de nossa investigação, elegemos o método denominado História Oral, que se reporta à narrativa para buscar o significado das vivências, experiências pessoais, familiares, profissionais, comunitárias e sociais dos indivíduos. Essa técnica torna possível aprofundar o conhecimento da realidade a partir da concepção que o pesquisado lhe atribui (MARTINELLI, 2003).

Optou-se, nesta pesquisa, pelo uso da entrevista semiestruturada. Este procedimento, comumente empregado na metodologia História Oral, possibilita a utilização de um roteiro com questões previamente definidas e o acréscimo de novas perguntas, caso haja necessidade (BONI; QUARESMA, 2005).

Atendendo a nosso roteiro, os entrevistados responderam inicialmente a perguntas relativas a dados pessoais (idade, nome, composição familiar, religião, etc.) e, a seguir, ao histórico familiar (origem, descrição da família e dos relacionamentos familiares, descrição da escola da época, etc.).

O último bloco constituiu-se de perguntas que abordavam as especificidades da infância (como era, principais jogos/brincadeiras, o espaço do jogo/brincadeiras na escola, intervalo, a confecção de brinquedos, a aquisição de brinquedos industrializados, etc.).

Na maior parte das vezes, para a realização de uma única entrevista, foram necessários vários encontros, em decorrência de algumas especificidades de nossos sujeitos (baixa resistência, interferências dos familiares, tratamento e cuidados com a manutenção da saúde, entre outros), o que desencadeou um extenso período de coleta de dados. Sendo assim, o tempo total para a realização de todas as entrevistas, registrado em nossas gravações, somou vinte horas, dezessete minutos e vinte e três segundos (20:17’23”), com uma média de dezoito minutos e quarenta e oito segundos por entrevistado.

Lócus da pesquisa, participantes e materiais

Os locais para o desenvolvimento da pesquisa corresponderam ao da moradia dos entrevistados. A dificuldade em encontrar pessoas na faixa entre 80 e 90 anos em condições de integrar nossa amostra fez com que tivéssemos que procurá-las na capital paulista e em diferentes municípios do interior desse Estado. Mogi das Cruzes, Campinas, Paulínia, Sumaré, Nova Odessa, Americana, Santa Bárbara D’Oeste e Piracicaba completam a lista das cidades onde residiam nossos entrevistados.

O grupo amostral contou com 32 voluntários, com idades variando entre 80 e 90 anos, sendo 20 mulheres e 12 homens. Quanto aos critérios para definição da quantidade de sujeitos a serem pesquisados, considera-se que tal decisão adveio da própria metodologia adotada. A História Oral, tomada como um método de pesquisa, defende a não exigência de quantidade, pois parte da compreensão de que os pesquisados não devem ser considerados como unidades estatísticas (ALBERTI, 2004), mas sim como pessoas de valor inestimável, as quais representam um referencial qualitativo “em função de sua relação com o tema estudado” (ALBERTI, 2004, p. 32).

Para a coleta dos dados, foram usados uma câmera fotográfica digital e, em alguns momentos, concomitantemente, um gravador digital, para que se garantisse a qualidade do registro e contássemos com um backup de segurança.

Descrição e análise dos dados encontrados

Os dados encontrados estão agrupados em três categorias, as quais obedecem à organização interna do roteiro semiestruturado de entrevista: I - Quem são nossos Guardiões da Memória; II - A constituição (familiar e escolar) de nossos Guardiões; e III - O tesouro escondido - a cultura lúdica do período.

I - Quem são nossos Guardiões da Memória

Procurando conhecer a organização familiar dos entrevistados, esta pesquisa observou uma significativa diferença entre o número de integrantes nas famílias das quais os participantes são oriundos e o número de integrantes nas famílias que eles posteriormente vieram a formar. Os pesquisados, em sua maioria, procedem de famílias numerosas (com grande quantidade de irmãos). No entanto, quando constituem nova formação familiar, o número de filhos diminui significativamente comparado ao do núcleo familiar no qual tiveram origem (cf. Gráfico 1, a seguir).

Fonte: Carneiro (2015).

Gráfico 1 Média comparativa do número de integrantes das famílias 

Qual seria a relação ou o desdobramento desse dado para se pensar a constituição da cultura lúdica? Em nosso entendimento, há muitas variáveis que exercem influências sobre o ambiente do jogo e que podem ser determinantes para a existência e mesmo para algumas das diferentes manifestações do fenômeno, dentre elas o espaço físico (geográfico), ou seja, o espaço livre disponível para brincar (com suas dimensões e componentes), o espaço temporal (o tempo disponível e dedicado à brincadeira), a trajetória do indivíduo com suas experiências pessoais e familiares, seus recursos, suas motivações, as pressões e condições sociais que o cercam, as atitudes dos pais diante do jogo.

Muitos fatores podem influenciar a forma como as crianças brincam. Para que haja o jogo, no sentido mais pleno do fenômeno, devem-se observar tanto os elementos extrínsecos como os intrínsecos. Esse equilíbrio seria o que Morais e Otta (2003, p. 127) denominam “zona lúdica”. Emprestando o conceito das autoras, diríamos que zona lúdica seria o espaço no qual o jogo se manifesta e que concatena suas diferentes dimensões (internas e externas): espaço físico, espaço temporal, trajetória e experiências do indivíduo, disponibilidade de objetos, disponibilidade de parceiros (irmãos e amigos, coetâneos ou não) com quem brincar, bem como a subjetividade, ou seja, as motivações diante de pressões e condições sociais que configuram essa conjuntura, que é a zona lúdica.

Desse modo, a diminuição de parceiros (irmãos), somada às abruptas transformações arquitetônicas (espaço físico) e à escassez de objetos (recursos naturais ou matérias-primas), podem ter repercussões consideráveis sobre determinadas expressões do jogo, notadamente o jogo/folclore (tradicional), que, dada a não observância das particularidades de sua concretização, acaba sendo descaracterizado (CARNEIRO, 2017). Tais modificações podem enfraquecer cenários em que a construção da infância pudesse se valer para ancorar seus substratos, bem como as manifestações da dinâmica lúdica.

Buscando conhecer melhor nossos entrevistados (Guardiões da Memória), também perguntamos a eles: “O que o senhor (a senhora) mais gosta de fazer (algo que lhe dê muita satisfação) em seu tempo livre?” Procuramos, assim, compreender quais são as atividades de lazer (aqui entendidas como passatempo), desenvolvidas atualmente, que lhes conferem alguma satisfação. Esse dado nos auxiliou no delineamento do perfil lúdico atual dos sujeitos da pesquisa e, de alguma forma, pôde indicar se eles guardam legados da experiência extraída da infância. Nesse levantamento encontramos seis núcleos principais de atividades mencionadas pelos pesquisados: atividades de natureza religiosa; jogos e atividades da cultura lúdica; atividades de natureza manual (confecção ou cultivo); práticas corporais (exercício físico); leitura; e interação midiática. Há, ainda, aqueles que disseram que não cultivam nenhuma atividade.

E, fechando a primeira categoria de análise, quisemos também saber se nossos entrevistados observavam mudanças na sociedade atual, quando comparada à da época em que viveram a infância. A questão foi assim formulada: “O senhor (a senhora) acredita que aconteceram muitas mudanças em nossa sociedade desde a época de sua infância até o presente momento? Poderia citar algumas de que se recorda?”

Todos os 32 foram unânimes e categóricos em afirmar que houve muitas mudanças. Com base nas respostas, reunimos 22 núcleos de elementos, fatos ou fenômenos em que os entrevistados observaram mudanças. Para melhor visualizarmos esses dados, apresentamos um gráfico a seguir.

Fonte: Carneiro (2015).

Gráfico 2 A percepção quanto às mudanças 

Reunimos as respostas em quatro grupos, assim designados: natureza relacional, natureza tecnológica, fenômenos da natureza e natureza social. O núcleo natureza relacional (Educação Familiar [21]; Educação Escolar [10]; Amizades [9]; Comunicação [1]) soma um total de 41 menções e é, de longe, o cenário em que os entrevistados mais observam transformações, em especial no que diz respeito à composição familiar, à formação fornecida por ela e aos diferentes vínculos afetivos que envolvem as relações interpessoais.

De um modo geral, ao observarmos o conteúdo narrativo apresentado por nossos entrevistados, podemos dizer que a família, hoje, é vista, por eles com muita inquietação, sobretudo quando consideram as dificuldades na construção dos seus referenciais de autoridade, razão pela qual a família se torna, em sua opinião, frequentemente incapaz de cumprir as funções de cuidar, educar e socializar seus membros.

É necessário, logo, observar que a constituição dos laços depende de uma legitimação consistente das referências que deverão oferecer à criança as condições para seu amadurecimento psíquico. Surgem aqui alguns problemas, assinalados por diferentes críticos da sociedade. Bauman (2004), preocupado com essas evidências, sugere que hoje os laços já nascem fragilizados, uma vez que se constroem em uma sociedade individualista na qual são privilegiadas as demandas de consumo de cada sujeito, isoladamente.

O debate que aponta os impasses vividos nas transformações dos laços contemporâneos é amplo, entretanto, é preciso levar em conta que tais transformações respondem às solicitações inerentes à mutabilidade natural das diferentes redes de sociabilidades. Nessa direção, Lipovetsky (2007, p. 80) afirma que “A sociedade contemporânea é uma sociedade de desorganização psicológica que se reflete no processo de revigoramento subjetivo permanente, mediante uma pluralidade de ‘propostas’ que permitem reviver a esperança da felicidade.” Assim, é preciso observar ― sem prejulgamentos ― em que medida essa flexibilidade e fluidez dos laços repercutem nos processos de subjetivação que têm origem na família, associando-as, ou não, às formas contemporâneas de sofrimentos psíquicos.

Os outros fatos ou fenômenos, citados por nossos entrevistados relativos às mudanças, poderiam ser abordados dentro de suas particularidades, todavia, dados os limites do presente texto, bem como a especificidade de nosso objeto de investigação, vamos nos deter nos impactos (diretos ou indiretos) sobre a infância e a cultura lúdica, se ponderarmos que a cultura lúdica não emerge isolada da cultura geral, ou seja, elas estão intimamente ligadas à organização e aos conteúdos da infância. No entanto, alguns desses desdobramentos acabam repercutindo de maneira mais direta, como é caso da violência, do estímulo à sexualidade precoce, das condições econômicas, do próprio estilo de vida, do exacerbado apelo ao consumo, entre outros.

Ao materializar o jogo por meio do brincar, a criança não apenas expressa e comunica suas experiências, mas as reelabora, reconhecendo-se como sujeito pertencente a um grupo social e a um contexto cultural que aprende sobre si mesmo e sobre os homens e suas relações no mundo e também sobre os significados culturais do meio em que está inserido. Trata-se, portanto, de uma experiência de cultura, por meio da qual valores, habilidades, conhecimentos e formas de participação social são constituídos e reinventados pela ação coletiva das crianças (CARNEIRO, 2015).

Desse modo, a oferta de espaço físico, a violência, os recursos (naturais ou não), o espaço temporal, a trajetória e as experiências do indivíduo, a disponibilidade de objetos, a disponibilidade de parceiros (consanguíneos ou não), as representações sociais que ancoram as brincadeiras, bem como a subjetividade ou motivações desse indivíduo diante das pressões e condições sociais afetam a cultura lúdica infantil.

Tal conjuntura pode, então, ser um indicativo ou revelar, ainda que parcialmente, a considerável diminuição de algumas expressões e/ou manifestações do jogo (notadamente o jogo/folclore) em decorrência do surgimento de outras. Assim, aqueles jogos tradicionalmente observados, que outrora eram realizados nas ruas e terrenos vazios (que faziam parte da cultura infantil), são menos encontrados: seja pela falta de espaço, devido ao processo de urbanização e industrialização dos jogos, seja pela falta de segurança e aumento da violência, como apontam os estudos de Carneiro (2009, 2012, 2017).

Embora observemos na cultura lúdica um caráter dinâmico, que acaba por incidir sobre ressignificações e novas configurações, entendemos que determinadas materializações (e manifestações do jogo como categoria maior) guardam particularidades cuja não observância resultaria na impossibilidade de sua concretização, como é o caso do jogo/folclore (tradicional). Atividade antes prestigiada, vem perdendo espaço em decorrência das diferentes formas de furto da infância, do crescente aumento da violência e também de tantas outras questões sociais que afetam o comportamento infantil.

Acentua-se, assim, a importância da preservação da cultura lúdica (jogo) enquanto patrimônio cultural, o que ocasionaria a própria preservação e evolução da memória social, que é “[...] o legado de um povo, ligada diretamente à constituição da identidade nacional e cultural desse povo.” (UNESCO, 2007). A memória ocupa, desde bem cedo, um papel importante na construção da identidade da criança, além de simultaneamente assumir a sua missão de guardiã dos saberes infantis e das suas tradições culturais tão bem refletidas nas festas (como rituais sagrados ou de cunho folclórico, que implicam a perpetuação de uma herança cultural) e em diferentes revelações do jogo. Esses âmbitos se misturam completamente nas suas vidas.

A cultura lúdica é, portanto, um patrimônio humano. Ou melhor, um legado que influencia o modo de ser e a identidade dos indivíduos (de maneira especial, do universo infantil) e grupos sociais, cujas tramas foram se tecendo historicamente e sendo transmitidas ao longo das diferentes sociedades. Passemos para a segunda categoria de análise dos dados.

II - A constituição (familiar e escolar) de nossos Guardiões

No intento de mapearmos as características e cenários da infância dos octogenários e nonagenários entrevistados, solicitamos que descrevessem o local de nascimento. De acordo com Bosi (1987, p. 356), “Há sempre uma casa privilegiada que podemos descrever bem, em geral a casa da infância ou [...] onde começou uma nova vida.”

Dos 32 entrevistados, 26 desfrutaram de uma infância tipicamente rural, enquanto que 6 desfrutaram sua infância num ambiente mais urbano. Há uma forte predominância do ambiente campestre que envolveu a infância da maioria de nossos octogenários e nonagenários. Em dimensões amplas ou macro, observamos um Brasil marcado por características agrícola e rural, cujo cenário foi um atrativo para imigrantes no começo do século, retirantes dos desdobramentos da Primeira Guerra Mundial e ansiosos por reconstruir a vida.

As recordações da infância são caras para nossos anciãos, impregnadas de afetos. A casa materna é uma presença constante nas autobiografias (BOSI, 1987). E o interessante é que, por vezes, nem sempre é de fato a primeira casa que se conheceu, mas aquela cujas lembranças nos conduzem aos momentos mais importantes da infância.

A casa com a descrição das suas paisagens, dos seus cenários tão preciosos, revela estados de alma, como lembra Bachelard (1998), referindo-se às contribuições dos psicólogos sobre a importância dos desenhos da casa feitos pelas crianças. “A casa e o universo não são simplesmente dois espaços justapostos.” (p. 197). As lembranças das casas que habitamos, dos seus aposentos, numa revisita aos espaços oníricos da infância e da experiência humana, transportam-nos para o contato conosco, com nossa própria intimidade: “aprendemos a morar em nós mesmos.” (BACHELARD, 1998, p. 197).

Ainda nessa categoria, procuramos conhecer a realidade econômica da qual desfrutava o núcleo familiar de nossos entrevistados, quando eram crianças. A partir das respostas fornecidas, obtivemos: Condições precárias e falta de elementos básicos (16%); Condições precárias sem a falta de elementos básicos (53%); e Condições favoráveis com abundância (31%).

Ao apreciarmos os elementos da realidade socioeconômica da família de nossos entrevistados, é preciso destacar que a infância é influenciada por fatores materiais e ideológicos da sociedade, bem como por valores hegemônicos estabelecidos em cada época, de modo que sobre ela atuam forças sociais, culturais, políticas e econômicas (CARNEIRO, 2015).

Em alguma medida, então, podemos inferir que cada agrupamento de sujeitos teria desfrutado de uma infância com elementos diferentes e, portanto, com características e sabores diferenciados.

Assim, tais condições reverberam nas variáveis que exercem influências sobre o ambiente do jogo, podendo, inclusive, ser determinantes para algumas das diferentes manifestações do fenômeno ou da composição da vasta cultura lúdica. Ou seja, a trajetória do indivíduo, com suas experiências pessoais e familiares, seus recursos, suas motivações, as pressões e condições sociais que o cercam, as atitudes dos pais diante do jogo são variáveis importantes para o surgimento de determinadas expressões ou manifestações da cultura lúdica infantil.

Procuramos, por fim, nessa categoria, levantar informações a respeito de como acontecia o acesso e de como era organizado o deslocamento para a escola. As respostas obtidas foram de três tipos: Todos Frequentaram; Alguns Frequentaram; Nenhum Frequentou a escola. É o que demonstra o gráfico a seguir:

Fonte: Carneiro (2015).

Gráfico 3 Acesso à escola 

Somando o agrupamento dos que nunca frequentaram a escola com aquele em que apenas parte dos integrantes da família frequentou, temos exatos 50% de alunos que, por diversas razões, foram impossibilitados de participar do processo de escolarização. Em alguma medida, tal constatação corrobora o epíteto de a grande chaga nacional aplicado por alguns à educação brasileira do período (RODRIGUES, 1997), numa alusão à precariedade de oferta de espaços escolares que teve como produto o alarmante índice de 75% de analfabetismo na população brasileira em 1920 (GHIRALDELLI JR, 1991). Tal conjuntura engendrou reformas educacionais em âmbito nacional nas décadas de 20 e 30, com o intuito de equacionar essa defasagem e adequar a escola e a educação ao contexto de modernidade pelo qual o país emergia.

III - O tesouro escondido - a cultura lúdica do período

Nossa última categoria de análise se propôs a descrever os principais componentes da cultura lúdica (manifestações do jogo) vivenciada por nossos entrevistados.

Por que razão escolhemos denominar esse agrupamento de respostas como o tesouro escondido? Trata-se de alusão nossa ao conteúdo de que se valia a cultura lúdica nas décadas de 20 e 30. Julgamos que a compreensão desse momento histórico bem como seu arcabouço lúdico particular produzem o registro de práticas e vivências, objetivas e subjetivas, que estão escondidas e são trazidas à luz e à apreciação apenas quando prospectadas por meio de uma pesquisa, à semelhança da descoberta que faz um garimpeiro.

O que estamos afirmando é a existência, em alguma medida, de um legado cultural, advindo das particularidades do jogo (cultura lúdica). E esse repertório cultural é dinâmico e mutável por ser transmitido e praticado por diversos grupos e civilizações, sofrendo, em razão disso, inúmeras mudanças de contexto e forma, e sendo adaptado às necessidades de cada grupo e sociedade, sob a influência e característica de seu tempo e contexto. Como bem observou Friedmann (1996, n.p.), “[...] as brincadeiras são uma forma de descobrir o novo no antigo.” E prossegue: “O jogo tradicional infantil é a produção espiritual do povo, acumulada através de um longo período de tempo. Esses jogos mudam no processo do esforço criativo coletivo e anônimo.” (FRIEDMANN, 1996, p. 42).

Nesse movimento de mapearmos a cultura lúdica em busca das diferentes manifestações do jogo, interpelamos nossos anciãos a respeito de como rememoravam sua infância, ou seja, qual era sua percepção sobre ela. Inicialmente, destacamos o quanto a infância é preciosa no ato de rememorar. Na forma de reordenar o tempo das lembranças, ela ocupa lugar de destaque, sempre aparece em larga escala, quase sem margens, como um chão que cede aos nossos pés e nos dá a sensação de que nossos passos se afundam. Como é difícil transpô-la e chegar à juventude! (BOSI, 1987).

Dos 32 entrevistados, 21 identificaram sua infância como sendo boa ou maravilhosa. Segundo as declarações de nossos pesquisados, a infância guardava particularidades do período. Muitas variáveis podem ser observadas na composição da infância, bem como os aspectos da cultura lúdica (ambiente de jogo) por eles descritos, dentre os quais: o espaço arquitetônico, ou seja, o espaço livre e fartura de recursos naturais para brincar, o tempo disponível e dedicado à brincadeira, suas experiências interpessoais (amigos e familiares), as motivações, dentre tantas outras.

Por sua vez, 7 participantes não apresentaram juízo de valor a respeito da infância, deixando de classificá-la como ruim ou boa. Não foi possível compreender as razões dessa neutralidade. E, por fim, 4 participantes descreveram-na como uma experiência ruim.

Ainda, na mesma categoria, foi solicitado aos pesquisados que descrevessem as principais atividades (manifestações da cultura lúdica) vivenciadas ao longo da infância. Ao passearmos pelos conteúdos da cultura lúdica descritos por nossos entrevistados, pudemos nos aperceber da riqueza formativa que tais experiências lhes proporcionaram. Esse dado ganha importância singular quando o examinamos à luz dos escritos de Brougère (1998), que mencionam o papel das experiências vividas, a aprendizagem paulatina e progressiva ao longo da infância, a agregação de elementos heterogêneos provenientes de fontes diversas, a interação grupal com toda a carga simbólica de aporte de novas e cada vez mais complexas competências, a interpretação e aplicação das regras, a importância da criatividade, enfim, todas essas categorias numa panóplia de saberes e fazeres que se assumem como contributos decisivos para a competência do brincante perante o brinquedo e a sua vida cotidiana.

Como encontramos uma grande diversidade na composição das diferentes manifestações da cultura lúdica, resolvemos apresentá-la, a seguir, em formato de gráfico, para, inclusive, identificar as que eram mais frequentes.

Fonte: Carneiro (2015).

Gráfico 4 Brincadeiras mais frequentes 

Pode-se notar que as atividades lúdicas mais mencionadas dependiam exclusivamente dos recursos disponíveis na natureza, bem como revelam uma infância rural própria do momento histórico que o país atravessava. Observa-se, ainda, pouca ou nenhuma aquisição de materiais para sua concretização, um quadro reconhecidamente diferente daquele da configuração da infância nos dias atuais, em que as brincadeiras parecem estar inclinadas ou vinculadas à dependência do consumo.

Essa conjectura nos possibilita afirmar, com relativa segurança, que a cultura lúdica infantil é construída historicamente e se constitui como um legado cultural, um patrimônio da humanidade. E mais: empreendimentos que visem a preservá-la são importantíssimos, uma vez que as características da infância contemporânea se distanciam, e muito, daquelas observadas em outros tempos.

E, fechando a categoria, procuramos avançar no intento de recuperar os fragmentos desse tesouro perdido, numa espécie de arqueologia dessa cultura lúdica. Assim, interpelamos nossos pesquisados acerca dos brinquedos que faziam parte da infância. É interessante observar que a maioria dos brinquedos é produto de confecção própria. Os entrevistados usavam a criatividade e os recursos naturais disponíveis para construírem as brincadeiras ou os objetos que dessem suporte a elas. A aquisição de brinquedos industrializados, como o ioiô, descrito pelo (P 32), aparece nesse rol como uma exceção à artesania dessas crianças das décadas de 20 e 30.

O Gráfico 5 ajuda-nos a compreender que brinquedos eram mais frequentes nas brincadeiras de nossos entrevistados.

Fonte: Carneiro (2015).

Gráfico 5 Brinquedos mais frequentes 

Primeiramente, estão dispostos os brinquedos que mais foram citados, seguidos daqueles que receberam poucas menções. Observemos que os primeiros estão intrinsecamente ligados às condições materiais e geográficas que permearam a infância do período, dada a sua relação de dependência com os recursos naturais. Também se vinculam à forma e representação da infância para ancorar tais confecções ou justificar alguma aquisição. É o que afirma Brougère (1997, p. 52-53): “A cultura lúdica está imersa na cultura geral à qual a criança pertence. Ela retira elementos do repertório de imagens que representa a sociedade no seu conjunto; é preciso que se pense na importância da imitação na brincadeira.”

Encontramos muitas informações ao longo das entrevistas: algumas apresentadas de forma explícita, outras subentendidas nas narrativas de nossos Guardiões da Memória. Mesmo o comportamento dos participantes revelou-nos alguns dados, uma vez que “uma pesquisa é um compromisso afetivo, um trabalho ombro a ombro com o sujeito da pesquisa.” (BOSI, 1987, p. 38). Ao vasculharmos a magnitude do ato de rememorar, concordamos com a autora: “a lembrança é como um diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito”. Todo nosso empenho ao longo deste estudo foi direcionado para extrair o mais lindo brilho das maravilhosas narrativas dos sujeitos entrevistados e assegurar a perpetuação de um conteúdo tão caro!

Considerações finais

O estudo em questão possibilitou que os 32 participantes da pesquisa percorressem os mapas afetivos de imagens e sons de sua infância rememorada e revivessem as experiências lúdicas. Sem dúvida, uma oportunidade de continuarem a se abastecer de significados que só a infância é capaz de fornecer.

À maneira de arqueólogos, empreendemos esforços no sentido de desencavar fragmentos de memória com os quais pudéssemos reconstituir uma época, não sem procurar consubstanciar dimensões e sentidos que caracterizaram a infância daqueles que denominamos Guardiões da Memória, notadamente no que diz respeito às diferentes personificações do jogo na composição de suas vidas.

Ao conferir um registro ao vivido, resistindo, assim, ao aniquilamento da memória e à perda peremptória da cultura lúdica dos entrevistados, julgamos ter contribuído para amplificar e perenizar esse tesouro, verdadeiro patrimônio cultural do qual nossos sujeitos eram/são depositários.

Procurou-se, portanto, assegurar a essência de sua cultura, ponto de convergência, segundo Bosi (1987), onde o passado se conserva e o presente se prepara. A propósito, a aproximação entre as gerações contribui com a reflexão sobre a constituição da infância e das diferentes expressões lúdicas do século XXI, tarefa que, segundo Amado (2005), nenhum educador pode se esquivar. Nesse sentido, o diálogo é fundamental para superar o conflito intergeracional, pois permite tanto aprender com as novas expressões lúdicas como conservar um legado historicamente construído, de maneira que uma e outra geração se beneficiem de todo o acervo da vasta cultura lúdica infantil. De acordo com Arendt (1992), a geração anterior pode servir de guia à atual, desde que seja capaz de nomear seus feitos e dar sentido a eles e, assim, poder ofertá-los àqueles que chegam ao mundo. E a estes, por sua vez, cabe a tarefa de ressignificar o legado recebido de acordo com sua maneira própria de ser e estar no mundo.

A transmissão da cultura constituída pelos inúmeros jogos tradicionais demanda vivências lúdicas que não se interiorizam senão por meio da convivência. Conviver, narrar e se fazer entender por símbolos que tenham equivalência são caminhos horizontais possíveis entre as diferentes trajetórias geracionais. É o que ocorre, por exemplo, quando um avô ensina um neto a construir e empinar uma pipa. Ao explicar como fez sua primeira pipa, está mantendo viva a memória. Essa não é uma tarefa fácil, mas necessária. Ainda mais quando se considera que o espaço da cultura lúdica confere à infância sua inserção no mundo adulto.

Ao materializar o jogo por meio do brincar, a criança não apenas expressa e comunica suas experiências, mas as reelabora. Ela se reconhece como sujeito pertencente a um grupo social e a um contexto cultural. Essa é, portanto, uma experiência de cultura, por meio da qual valores, habilidades, conhecimentos e formas de participação social são constituídos e reinventados pela ação coletiva das crianças. Muitas vezes, tal experiência só ocorre quando mediada por um adulto. Ou quando regrada pelo universo do mundo adulto, do qual a escola, por exemplo, é uma representação.

Desse modo, a experiência existencial do homem também se constrói no/pelo jogo. A natureza imanente do jogo evoca transcendentalidade, convida ao rompimento com os interditos e os ditames que separam e distanciam as gerações. Como no convite de Benjamin (1994, p. 25), “eu viajo para conhecer minha geografia”, o jogo é uma jornada até as nossas raízes.

Nessa direção, a escola tem um papel fundamental, que é o de manter-se como favorecedora de experiências com as diferentes possibilidades do jogo. A cultura lúdica é muito vasta, e é preciso aprender as diferentes heranças que ela nos legou. Esse legado, que nos prepara para vivências futuras e experiências mundo afora, é um também abrigo para nossa subjetividade e nos situa como seres aprendentes. Por meio da cultura lúdica, aprendemos a compartilhar espaços, objetos, a abundância ou a escassez. Ela nos dá a chance de aprendermos e ensinarmos a velha e perene arte de ser feliz, atributo essencial do Homo ludens.

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Recebido: 01 de Junho de 2016; Aceito: 21 de Novembro de 2016

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