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Revista de Educação Pública

Print version ISSN 0104-5962On-line version ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.28 no.67 Cuiabá Jan.-Apr 2019  Epub May 15, 2019

https://doi.org/10.29286/rep.v28i67.7038 

Cultura Escolar e Formação de Professores

Sentidos de qualidade: vozes de professores e estudantes egressos da EJA no Ensino Superior

Senses of quality: the voices of teachers and students coming from YAE in Higher Education

Caroline de Moura ROSA1 

Sita Mara Lopes SANT’ ANNA2 

Odilon Antônio STRAMARE3 

1Universidade Estadual do Rio Grande do Sul. Licenciada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, em São Francisco de Paula. E-mail: <carolinerosa1996@hotmail.com>.

2Doutora em Educação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS (2009). Professora adjunta da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS, atuando nos cursos de Licenciatura em Pedagogia e Licenciatura em Letras na graduação e, também, no Mestrado Profissional em Educação. Líder do grupo de pesquisa do CNPq « Educação de Jovens e Adultos: docência, formação e processos pedagógicos da EJA”, desde 2014. Reitoria: Endereço profissional: Rua Sete de Setembro, nº 1156 - Centro - Porto Alegre, Centro 90010191 - Porto Alegre, RS - Brasil. Telefone: (51) 32889034 URL da Homepage: http://www.uergs.edu.br E-mail: <sita-santanna@uergs.edu.br>.

3Prof. Assistente da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, em Cruz Alta e São Francisco de Paula. E-mail: <straodin@yahoo.com.br>.


Resumo

O artigo apresenta concepções de qualidade presentes nos dizeres de professores e egressos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no ensino superior. Para tanto, partindo dos estudos de Gadotti (2003), Gentili (1999) e Marques (2000) sobre a perspectiva neoliberal e social, promove-se pesquisa qualitativa, mediante pesquisa de campo, desenvolvendo entrevista semiestruturada com os participantes. Falas foram analisadas com base na Análise de Conteúdo, conforme (BARDIN, 2011). Como resultados, sobressaem-se nas falas dos professores a qualidade na perspectiva neoliberal voltada ao ingresso no mercado de trabalho. O discurso de qualidade social predomina nas falas das acadêmicas egressas da EJA.

Palavras Chave: Educação de Jovens e Adultos; Conceitos de Qualidade; Análise de Discurso

Abstract

The article presents concepts of quality present in the words of teachers and graduates of Youth and Adult Education (known as YAE) in higher education. To do so, starting from the studies of Gadotti (2003), Gentili (1999) and Marques (2000) on the neoliberal and social perspective, qualitative research is promoted through field research, developing a semi-structured interview with the participants. Lines were analyzed based on the Content Analysis, according to (BARDIN, 2011). As a result, the teachers’ speeches emphasize the quality of the neoliberal perspective aimed at entering the labor market. The discourse of social quality predominates in the speeches of the academic graduates of the YAE.

Keywords: Youth and Adult Education; Quality Concepts; Content Analysis

Introdução

O presente artigo trata das concepções de qualidade presentes nos dizeres de professores do Ensino Médio, estudantes egressos da EJA que frequentam o ensino superior, bem como de professores-coordenadores de cursos que recebem alunos oriundos dessa modalidade, na universidade pública. Nessa perspectiva, busca-se investigar se a abrangência do conceito de qualidade veiculado nesses espaços contribui com os desejos e a permanência desses estudantes na universidade, visando saber também como esses acadêmicos, oriundos da EJA se percebem nesse contexto. Ao interpretar o conceito de qualidade na perspectiva da composição de melhorias no sentido de atender as necessidades, considerando a satisfação de todos os participantes do processo educativo e pela responsabilização de suas partes, entende-se que esse é um tema a ser discutido, ampliado e refletido de forma constante. Embora sejam encontradas inúmeras citações do termo “qualidade” em múltiplos documentos - desde a própria legislação educacional vigente no Brasil - suas concepções e contextos de realidades se diferem significativamente.

Visando compreender esse quadro, a metodologia aplicada parte dos pressupostos da pesquisa qualitativa e de cunho descritivo. Para tanto, efetivou-se levantamento bibliográfico, tendo por foco estudos sobre o conceito de qualidade e suas bases legais e, ainda, no que tange às políticas educacionais e as implicações da influência do Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional para as políticas públicas, reforçando concepções de qualidade neoliberal em confronto com as de qualidade social em educação, também presentes nesses cenários. Esta investigação tem como instrumento de coleta de dados entrevistas registradas em áudio e realizadas mediante agendamento com os participantes, nas dependências da universidade pública localizada no Rio Grande do Sul. Em seguida, foram feitas análises das falas coletadas a partir de orientações da Análise de Conteúdo, com base nos estudos de Bardin (2011), considerando que as trajetórias desse processo foram se constituindo na medida em que a interpretação possível de seu conteúdo foi sendo mobilizada.

O conceito de qualidade e algumas bases legais em educação

Qualidade é um termo dinâmico e está sempre se remodelando. Advinda do latim qualitate, em concordância com o Novo Dicionário Aurélio (FERREIRA, 1999, p. 1675), significa: “Numa escala de valores, qualidade que permite avaliar e, consequentemente, aprovar, aceitar, ou recusar qualquer coisa [...] Categoria fundamental do pensamento que designa os modos diversos como as coisas são”. Considerando na conformidade generalizada, se perfaz no posicionamento de quesitos e critérios que auxiliam na melhoria de um ideal ou situação, que não esteja resultando da maneira correta ou, minimamente, propícia. Segundo Garvin (2002, p. 57), esta palavra é sinônima do conceito de “desenvolver, projetar, produzir e ‘comercializar’ um produto ou ideologia que seja mais econômico e facilitador para a população que irá usufruir deste recurso, sendo mais útil e sempre satisfatório”. Também se definem como características essenciais, a propriedade, o traço pessoal, o caráter, a natureza, a espécie, o tipo, e a excelência. Para Marques (2000, p. 116), a qualidade da educação pode ser vista no sentido técnico-instrumental referindo-se “as características ou fatores que contribuem para a eficácia do ensino, ou seja, para levar a bom termo a missão e os objetivos da organização”. No sentido axiológico, conforme o autor, estar-se-ia referindo-se ao “valor intrínseco e à essência do ensino”.

Dessa forma, o pensamento sobre a palavra qualidade passa a remeter a um cuidado e traz à tona críticas acerca da educação e de seus indicadores de qualidade, estes tão veiculados na atualidade e que seriam responsáveis por avaliar o sistema em conformidade com o que se exige para que a educação tenha um valor equalizado, ou seja, de igual proporção ou dimensão a todos que dela participam, reforçando, ainda, epistemologias que englobam este grande círculo: o da qualidade única e geral do ensino de um país, externalizando-a por conta de comparações com os demais sistemas educacionais. Essa concepção de qualidade insiste no ideal de que, não simplesmente são frutos de pseudo-ditaduras na medida em que um ou mais governos promovem para que os envolvidos as sigam, mas sim, veladamente, estipulam uma série de fatores que, regrados e organizados de modo transparente, trabalham pelas melhorias, que em muitos casos, ficam apenas no papel.

O Brasil da atualidade remete-se, sempre, à lógica de comparação com os países mais desenvolvidos, visto que há um investimento na área, advindo de órgãos externos; tendo como título exemplar o Banco Mundial. Neste entendimento é imprescindível que sejam avaliadas as instituições de ensino com intuito de obtenção de melhores índices e resultados, criando padrões que devem ser seguidos por todas. Tais padrões, como indicadores, se encontram distribuídos entre as leis do país, de forma explícita, na tentativa de que sejam reconhecidos.

Especificamente, na modalidade de Educação Básica, como se confere a Educação de Jovens e Adultos, os principais precedentes do significado da palavra em questão, estão promulgados em muitas leis e pareceres estabelecidos para a educação em geral e, também, para essa em particular. As políticas de estado e governos têm evidenciado a exigência de um padrão de qualidade a ser alcançado e claro, o mesmo segue instituído por ideais, trazendo consigo os mecanismos de “aferição” deste nível que são difusos na perspectiva de contribuir com o acesso e permanência dos estudantes, estejam eles em qualquer um dos níveis de ensino.

Na década de 80 ressurge o debate beneficiando o direito à educação. Esse movimento, ocorrido no fim da ditadura militar, principalmente caraterizado pela falta de democracia, supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos que eram contra esse regime, desencadeou, na segunda metade da década, a luta que buscava acesso e, posteriormente, a ampliação da escola pública com qualidade para atendimento em todas as instâncias educacionais formais. De acordo com os debates, houve circundantes modificações nas leis brasileiras, a se observar pela Constituição Federal de1988, que trouxe avanços significativos em termos jurídicos, introduzindo o ponto de vista de direito público e social. No sentido educativo, há alta gama de concepções sobre a educação, tratando-a como dever fundamental do estado e da família para o exercício da cidadania. Já na Constituição consta o primeiro indício do termo qualidade para a implantação de padrões determinados e, da mesma forma, de efetiva realização de um Plano Nacional de Educação, principiando melhorias. Dispondo como base a própria Constituição Federal de 1988, intercepta-se no inciso sétimo do Artigo 206, a afirmação de que o ensino será ministrado com garantia de padrão de qualidade. E cabendo no mesmo segmento a explicitação de como o procedimento deve ser efetuado perante a prática, do mesmo modo como incita e assegura “oportunidades educacionais igualitárias” mediante assessoria de recursos provenientes dos regentes. A esse respeito, assim se manifesta a referida Constituição em seu Artigo 211, § 1º:

A União [...]financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. (BRASIL. Constituição Federal, 1988).

Nesta perspectiva tem-se um indicativo de que o Brasil mantém pressupostos regidos por lei de melhorias constantes na educação, tendo apenas a progredir com os alunos mediante normas vigentes regularizadas. Ainda, dentro das especificações pertinentes do bloco educacional, a implantação da EJA como modalidade de Ensino da Educação Básica faz com que a qualidade se mantenha presente como quesito de suma importância. Estas reformas propositam padrões mínimos de qualidade conferidos, conforme Carreira (2013, p. 22-23), como ambiente escolar em boas condições de utilização, com recursos disponíveis aos professores e alunos; a própria docência; promoção do acesso à informação; apoio educacional; alimentação; saúde e higiene; promoção da convivência; suporte pedagógico à docência; administração; manutenção, conservação e segurança, bem como a integração com a sociedade, quesitos estes, retirados de um manual característico do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, que os específica como insumos mínimos.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n° 9.394 (BRASIL, 1996) refere-se à qualidade de modo que:

Art. 3o O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: [...] IX - garantia de padrão de qualidade; [...] Art. 4o O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: [...] IX - padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem. (BRASIL, Lei de Diretrizes e Bases, nº 9394/96).

Em segmentos educativos, esta lei especifica que os padrões de qualidade existem, não esclarecendo quais são, pois, eles dependem da governabilidade imposta, entretanto, foram propostos inicialmente, a partir de longas discussões acerca do tema. Desde que a EJA foi anunciada como uma das modalidades da Educação Básica, encontra-se submersa nos discursos de que há padrões educacionais gerais que devem ser seguidos, assim como farão os níveis e demais modalidades expressas pela legislação.

Os indicadores4 que a própria LDB menciona em vários de seus artigos pressupõem buscas sobre o que acontece, de fato, no cotidiano escolar, como atenção às quantidades de alunos atendidos; insumos necessários ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem (com referência nos citados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE, 2013, publicados no site oficial); avaliação do processo nacional de rendimento escolar; cálculo sobre o custo do aluno, enquanto estudante de escola pública; etc. Saber o que todas essas demandas significam passa a ser uma questão essencial. Havendo entendimento sobre qualidade, como uma série de intervenções que servem para promoção de uma melhoria significativa, existe a necessidade básica de mecanismos que defendam e garantam esse pressuposto de extrema importância para o ensino congruente com o que se deseja ofertar.

Conforme as dimensões ainda tratadas no livro de Usos dos Indicadores de Qualidade, dispõe-se a parte de processos, que é uma atenção voltada às ações continuadas em questão de formação para professores, gestão democrática na qual toda a comunidade escolar possa participar, de forma democrática, das políticas curriculares que regem os conteúdos, metodologias e avaliações de aprendizagem totalmente transparente e acessível, buscando, inclusive, parcerias como sistema de ação conjunta, auxiliando umas às outras a se readequarem conforme os padrões/indicadores mínimos de qualidade. Como último advento deste é possível encontrar o trabalho que seria desenvolvido com equidade, que cumpre com a premissa de superar todas as discriminações e desigualdades, incluindo e integrando pessoas de quaisquer gêneros, renda, etnia, raça, religião, entre outros meandros pertinentes da sociedade. Propositando ser essa a escola de qualidade, são necessárias muitas transições que atravessarão a realidade que se encontra nessa instituição.

Diante do conceito substancial de qualidade, percebe-se esta como medidas de aprimoramento de determinada situação ou ambiente que esteja precisando passar por uma transformação, para que seus envolvidos fiquem satisfeitos e, como na situação da educação, obtenham um bom ensino que os permitam prosseguir com suas carreiras, dando-lhes oportunidades igualitárias e acesso aos que dela precisam.

Qualidade: educação neoliberal e educação social

Permeada por um processo característico e num discurso igualitário e “para todos”, a educação neoliberal, desde os primórdios da sociedade, é excludente; compreende os sujeitos como produtos da construção da livre concorrência, da ação dos mais hábeis, eficientes e eficazes, cujas credenciais, na verdade, são decorrentes da mercadologia a qual estão inseridos. Em processos educacionais esta concepção neoliberalista transforma as pessoas em instrumentos das lógicas de mercado e do trabalho. A estratégia utilizada em “cursos” neoliberais se embasa na manipulação do afetivo, sentimentos e desejos individuais, através do convencimento publicitário, não permitindo que circulem visões alternativas às lógicas estabelecidas. Isso significa que, permeando a noção de igualdade, a proposta dá espaço para a redefinição de produtividade, qualidade e modernidade, não existindo aberturas para novas ideias. O que permanece, de fato, é a utilização de uma metodologia indutiva que auxilia o processo de dar regalias a quem se sobressai e muitos planos de carreira de docentes que atuam nessa lógica, operam com a meritocracia que gera individuais avanços progressivos e pecuniários.

Na construção da educação social proposta por Gadotti (2003) cada pessoa tem seu potencial. No intuito de explorar esses quesitos e aprimorá-los a fim de trazer uma contribuição socioeducativa, Gadotti (2003, p. 9) enuncia que, em um tempo, “a escola pública era para poucos” sendo boa para esses “poucos”. Hoje, essa escola é para todos e especialmente, para os pobres e, como tal, deve ser de qualidade sociocultural. Isso significa “investir nas condições que possibilitam essa nova qualidade que inclui transporte, saúde, alimentação, vestuário, cultura, esporte e lazer”.

Com essa perspectiva, Gadotti (2003, p. 9) demanda o que seria uma nova qualidade, enfatizando:

Não basta matricular os pobres na escola (inclusão). É preciso matricular com eles, também, a sua cultura, os seus desejos, seus sonhos, a vontade de ‘ser mais’. É preciso matricular o projeto de vida desses novos alunos numa perspectiva ética, estética e eco pedagógica. A educação integral precisa visar à qualidade sociocultural da educação, que é sinônimo de qualidade integral.

Em constante confronto com a teoria neoliberal, a concepção de escola para todos - incluindo seus aspectos sociais, e de qualidade sociocultural - traz consigo a orientação de que não é necessária somente a oferta de ensino para a sociedade, mas sim um investimento que estimule as áreas que precisam de atenção, o que significa que a instituição em si tem que abranger as pessoas como um todo. Porém, há uma inconformidade com o entorno e como ele é gerido. A partir da concepção que é trazida por Gadotti em sua fala, a proposta de uma Nova Qualidade compreende partir dos desejos de seus educandos, ministrando conhecimentos que queiram saber, propícios para suas vidas e muito significativos para seu aprendizado.

A qualidade em si entra como uma questão avaliativa do que está sendo ofertado, comparando com o que se possui na realidade. A participação do neoliberalismo nessa demanda educativa permite a imposição de padrões em suas metodologias. Na educação social, a adjacência gira acerca do indivíduo, constituindo o seu ensino de maneira que ele se sinta deveras confortável e agente de ações transformadoras, já que, aprimorando seu olhar crítico, pode expor seus pensamentos e suas análises, exprimindo quais e porque as mudanças podem ser feitas. Esse aspecto, controverso ao neoliberalismo, em que se encontram pessoas quietas e acomodadas com a situação cuja qualidade lhes impõe, faz com que permaneçam sem questionar os porquês de existirem essas padronizações; o costume da maioria é o de aceitar as regras, sem indagá-las, tendo-se nesse ciclo muito clara a objetivação dessa proposta, que fornece um sentimento de bem estar, em um discurso de participação e qualidade estendida, conforme aponta Gentili (1995, p. 244):

O neoliberalismo ataca a escola pública a partir de uma série de estratégias privatizantes, mediante a aplicação de uma política de descentralização autoritária e, ao mesmo tempo, mediante uma política de reforma cultural que pretende apagar do horizonte ideológico de nossas sociedades a possibilidade mesma de uma educação democrática, pública e de qualidade para as maiorias.

Cabe ressaltar que, dentro de toda a lógica educativa, os pressupostos que guiam os indicadores de qualidade que buscam ser alcançados em quaisquer instituições de ensino, em parte, são orientados pelo Banco Mundial, importante “investidor”, posicionando as demandas. Este delimita o que se deve alcançar e em qual período, com o fundamento de regularizar os gastos e apontar quais regiões e áreas precisam de maior atenção. O Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI)5 demandam à política pública educacional brasileira que descentralize a gestão educacional, otimizando recursos e, como estratégia de controle de qualidade, centralize a avaliação a fim de que seja constituído um sistema nacional, o qual todas as escolas devem submeter-se. Com base em Junior e Maués (2014, p. 1140):

A descentralização da gestão em seus aspectos administrativos e financeiros significou a responsabilização crescente das instituições escolares pelo rendimento escolar de seus alunos, a partir de parâmetros de avaliação definidos externamente e maior racionalização de nos gastos, incluindo incentivo à captação de recursos via parcerias público-privadas e via projetos de voluntariado, como o Amigos da Escola. E a centralização dos sistemas de avaliação como forma de fixar padrões de desempenho e induzir aos resultados esperados pelas escolas e pelos alunos.

Estes sistemas de avaliação advindos de propostas governamentais trazem consigo a concepção de descentralização ocorrido nas instituições de ensino. Conforme Junior e Maués (1999, p. 1140) “É nesse contexto que são implantados o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), de 1990, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), de 1998, e o Exame Nacional de Cursos (ENC), criado em 1995”. Conforme Cury (1996), a LDBEN nº 9394 Brasil (1996) reflete essa perspectiva de descentralização em termos da flexibilidade do planejamento e da gestão administrativa e financeira que ‘são repassadas à escola e a forte centralização na avaliação, entendida como controle de resultados e fixação de padrões de desempenho”. Assim, o controle não estaria mais diretamente relacionado ao currículo e aos processos pedagógicos, mas sim na saída, mediante avaliação.

Nessa perspectiva, o Banco Mundial vê na educação, “um filão em possibilidades de parceria com setores privados, comercialização de recursos tecnológicos, etc.” Conforme aponta o relatório do FMI, o intuito da padronização de conteúdos programáticos será a nova orientação ao Brasil, o que já ocorreu com a produção da Base Nacional Comum Curricular - BNCC. Nesse contexto, a qualidade da educação é a condição da eficiência econômica.

Em contraposição, Gadotti (2003) defende muito uma educação social e sustentável que traz à tona uma nova perspectiva de vida e, consequentemente, de qualidade. Para Gadotti (2003, p. 17), precisamos escolher uma “construção de maior valor social, a partir da sustentabilidade: pois introduzir uma cultura da sustentabilidade e da paz nas comunidades escolares é essencial para que elas sejam mais cooperativas e menos insolidárias. Necessitamos de outros paradigmas, fundados numa visão sustentável do planeta Terra (GADOTTI, 2003).

Em paralelo a estas posições indiciadas e em defesa da educação sustentável6, há uma crítica que envolve o estilo de vida adquirido na atualidade que interessa muito aos que vivem da lógica de mercado. Nesta, as pessoas têm desenvolvidas as capacidades de intervir, de terem um olhar mais amplo sob as perspectivas que regem as suas próprias realidades. Essa concepção relacionada à educação social opõe-se da abordagem neoliberal, em que os indivíduos estão atrelados a prognósticos e modelos de vida que envolvem o individualismo e o consumo, como exemplos.

No Parecer n° 11/00, percepções sobre qualidade na EJA

Atribuindo uma harmonia a essa concepção deveras sustentável, trazida pelas concepções de Gadotti (2003), aborda-se como questão normativa o Parecer n° 11, Brasil (2000), que apresenta as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação de Jovens e Adultos, que compreende a EJA como modalidade com suas peculiaridades.

Embora o texto não negue a formação para o trabalho, colocando-a como necessidade, tendo em vista “os tempos de grandes mudanças e inovações nos processos produtivos” (BRASIL, 2000) enuncia que o jovem e o adulto, através da EJA “pode retomar seu potencial, desenvolver suas habilidades e confirmar suas competências adquiridas na educação extraescolar e na própria vida” (BRASIL, 2000). Essa forma de olhar não nega a influência da lógica de mercado e dos processos neoliberais presentes na educação, mas os reconfigura na medida em que inverte essa lógica na perspectiva dos sujeitos. Assim, do ponto de vista deste parecer, a EJA deve ser pensada para o seu público, reforçando, de fato, o que uma modalidade é; constituindo-se num jeito, um modo diferenciado de ser, com base no seu público. A partir disso, o documento passa a afirmar que uma educação de qualidade influencia “como fator preponderante na qualidade de vida das pessoas” (BRASIL, 2000). O parecer deixa claro que as características da modalidade devem ser respeitadas e consideradas com a formação de um professor que seja um profissional na área, e que a reconheça como tal. Não bastam, apenas, demandas e números que mostrem o que vem acontecendo nas instituições de ensino. É congruente que exista capacitação para os docentes atuarem e que este seja um fator relevante a esta qualidade esperada. Neste, a palavra “qualidade” aparece articulada ao direito à educação e atrelada às funções da própria EJA como benefício para os estudantes. Para que a contextualização destes pressupostos que regem a modalidade em questão, se apresentem de forma clara, o relator elenca as funções da EJA, que se constituem como reparadora, equalizadora e qualificadora, que proporcionam um olhar criterioso sobre a oferta desta educação, a fim de compreender a sua própria existência, enquanto modalidade EJA.

Em princípio, após as lutas para fazer desta a modalidade de ensino que oferta oportunidade aos adultos que não puderam, por múltiplos fatores, estudar em outros tempos, tem-se a função reparadora como intenção de regularizar uma situação histórica. Perante o olhar deste parecer, que alerta que reparação não é suprimento, a função reparadora “[...] Significa não só a entrada no circuito dos direitos civis pela restauração de um direito negado: o direito de uma escola de qualidade, mas também o reconhecimento daquela igualdade ontológica de todo e qualquer ser humano”.

Assim, desta “negação, resulta uma perda: o acesso a um bem real, social e simbolicamente importante. Logo, não se deve confundir a noção de reparação com a de suprimento”. Neste sentido, a função reparadora deve ser vista como uma oferta mais concreta da presença de jovens e adultos na escola, resgatando a conquista da cidadania antes perdida, e agora, com garantia de qualidade, bem como a inserção no mundo de trabalho, através de aquisição de competências necessárias e exigidas para tanto. Inserindo neste contexto tem-se a ideia de que a EJA toma a forma de integrar, qualificando mais a cidadania na sociedade.

A função equalizadora se exprime em ser uma alternativa viável, propondo que a EJA seja pensada e constituída por processos pedagógicos que satisfaçam as necessidades de aprendizagens, de seus estudantes. Sobre essa função, o texto manifesta que a reentrada no sistema educacional “deve ser saudada como uma reparação corretiva, ainda que tardia, possibilitando aos indivíduos novas inserções no mundo do trabalho, na vida social, nos espaços da estética e da abertura dos canais de participação”.

Essas “novas inserções dos sujeitos” impõem mudanças e inovações na proposta a ser desenvolvida na EJA para que o estudante consiga retomar seu potencial, explorando suas habilidades e competências, participando, de forma construtiva com sua experiência de vida, a fim de qualificar-se ainda mais. Deste modo, chega-se a função qualificadora, que chama a atenção no sentido de que os conhecimentos dos jovens e adultos se articulem aos universalmente construídos de forma adequada e mediante valores universais. A esse respeito, o documento diz: “Mais do que uma função, ela é o próprio sentido da EJA”. Ela tem como base o caráter incompleto do ser humano cujo potencial de desenvolvimento e de adequação pode se atualizar em quadros escolares ou não escolares. Desta forma, “mais do que nunca, ela é um apelo para a educação permanente e a criação de uma sociedade educada para o universalismo, a solidariedade, a igualdade e a diversidade”.

Esta função, tem como sinônimo a “função permanente”, induzida pela relação com o conceito de qualidade. Embora, numa perspectiva de qualidade social, a função qualificadora dialoga e cumpre a promessa de conquistar os conhecimentos requeridos pela sociedade que impõe, além da competição como ponto de sobrevivência. Isso significa que, onde existe desemprego ou avanço tecnológico, os jovens e adultos que desejam ocupar-se disso, devem, portanto, minimamente estarem capazes para assumir tais papéis. Ainda assim, é possível à modalidade EJA reificar que existe a possibilidade de, em qualquer época, obter-se formação, melhor empregabilidade, desenvolver e aprimorar os já estabelecidos conhecimentos.

A pesquisa

Do ponto de vista metodológico, realizou-se pesquisa qualitativa em educação, efetivando-se, de acordo com os procedimentos, pesquisa bibliográfica e pesquisa de campo. Segundo Minayo (1994, p. 21), a pesquisa qualitativa: “trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes”, cujas relações, processos e fenômenos “não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”. Nessa perspectiva, a coleta de dados ocorreu mediante a realização de entrevistas semiestruturadas, que foram efetivadas e registradas em áudio, com a autorização dos participantes. As entrevistas foram transcritas na forma como foram relatadas. A identidade dos participantes foi preservada, conforme prerrogativas e termo de consentimento informado da universidade. Segundo Gil (2010, p. 50), o uso de questionários e entrevistas tem importante papel, pois estes instrumentos “caracterizam-se pela interrogação direta das pessoas, cujo comportamento se deseja conhecer, em papel ou pessoalmente, por questionamento direto”.

Para tanto, na Escola que oferta Educação Básica de EJA, buscou-se, como sujeitos a serem entrevistados, primeiramente, um ex-coordenador da modalidade, por sua inserção e conhecimento na realidade da escola pública estadual e, também, ouviu-se um professor de EJA da mesma instituição. Na universidade buscou-se, de igual forma, os coordenadores dos cursos de Licenciatura em Pedagogia e Administração Rural e Gestão Agroindustrial, que também atuam como docentes nessas graduações. A escolha destes profissionais ocorreu por acumularem saberes de gestão, com a docência de graduação. Na perspectiva de ouvir as vozes dos estudantes, três egressas da Educação Básica de EJA foram entrevistadas. Entre elas, duas estudantes cursam Licenciatura em Pedagogia e uma, bacharelado em Administração Rural e Gestão Agroindustrial. A análise destas falas foi conduzida de acordo com a Análise de Conteúdo proposta por Bardin (2011, p. 38). Trata-se de uma técnica de investigação que “através de descrição objetiva, sistemática e qualitativa do conteúdo manifesto das comunicações tem por finalidade a interpretação das mesmas”.

Sobre as vozes dos professores e estudantes

Por intermédio das entrevistas realizadas com os professores e alunos, sejam eles da modalidade EJA ou do Ensino Superior, têm-se aspectos de suma importância para a compreensão do termo ”qualidade” e quais seriam estes insumos tão almejados pela legislação.

O primeiro grupo de falas refere-se a manifestações dos docentes da EJA. As entrevistadas, agora denominadas: Coordenadora - EJA e Professora - EJA, possuem 55 e 69 anos, ambas de sexo feminino e atuantes na mesma escola estadual que oferta modalidade EJA no turno da noite. No sentido de verificar como conceituam qualidade, as professoras da escola dizem que:

- Qualidade é um trabalho bem feito, é a oferta de subsídio para que tudo que tu ‘vá’ propor tenha, da maneira mais ampla possível, um objetivo maior e que dê resultados positivos, pois você pode fazer qualquer tipo de serviço e relaxar, ou seja, sem qualidade nenhuma, da mesma forma que pode fazer um serviço com qualidade, por isso deve-se haver capacitação. (Coordenadora- EJA)

- Qualidade é tudo de importante, pois, se a possuímos, temos a certeza de ir bem no mercado de trabalho e até na educação. Comparo ela à expressão ‘8 ou 80’: temos ela para que seja algo bom, ou não temos e o resultado será ruim. (Professora - EJA)

As duas entrevistadas atendem ao solicitado e apresentam os seus conceitos de qualidade. Esses conceitos representam concepções adquiridas histórica e socialmente, mesmo que inconscientemente. Essas abordagens incorporam expressões que as identificam, bem próximas de uma concepção neoliberal de qualidade. Entre elas destacam-se “a oferta de subsídio”, “objetivo” “o resultado”. Esse resultado, presente no discurso de ambas é valorado como “positivo”, “bom” ou “ruim”. De uma forma direta, na fala da professora de EJA “a qualidade é tudo de importante” relacionada à “certeza de ir bem no mercado de trabalho e até na educação”. Ao que parece, essas vozes que falam no dizer da professora valorizam mais a qualidade para a inserção no mercado de trabalho em si, do que para a educação, que fica em segundo plano. Essa qualidade tem valor de exatidão, conteúdo numérico como o expresso em “8 ou 80”. Interessante que esta voz da qualidade em seu sentido técnico - instrumental como especifica Marques (2000) - apaga no dizer das professoras qualquer relação de conhecimento ou experiência, tão reproduzidos em discursos educacionais ou de EJA.

Nessa mesma direção, buscou-se saber o conceito de qualidade para as professoras do ensino superior público.

-Qualidade é possuir uma boa infraestrutura em termos de universidade, um horário para que os professores tenham preparação para as aulas, terem como se aperfeiçoar, não ter uma carga horária tão excessiva, possuir uma sede própria, acesso à rede de internet e recursos, biblioteca adequada, formação dos professores, etc. (Coordenadora/professora - Pedagogia)

-Qualidade me lembra algumas palavras, tem a ver com melhorias, talvez uma evolução durante o tempo, o que daria para contrapor com quantidade e números, no sentido de melhorias, indicadores, ‘melhorar’ ... (Coordenadora/professora - Administração Rural e Agroindustrial)

A primeira entrevistada, ao responder à questão, apresenta respostas a partir da realidade em que vive na universidade, ou seja, fala no que não tem ou não ocorre a contento. Os itens apresentados pela mesma são os almejados pelos indicadores de qualidade preconizados para a educação, desde a LDB (BRASIL, 1996).

A fala da segunda entrevistada, de forma direta, apresenta e lembra termos que também são referidos pela legislação educacional geral conforme padrões. Estes constituem indicadores que podem expressar “melhorias” e “evolução” “durante o tempo”. Mais uma vez, o conteúdo presente nas vozes das professoras está relacionado às concepções neoliberais de qualidade. Em relação ao significado da qualidade na demanda específica da educação, a Coordenadora da EJA respondeu:

- Tu ‘oferece’ qualidade na educação quando sabe o que está fazendo, e tu só ‘sabe’ o que tu faz se tu ‘correr’ atrás de atualizações, de pesquisas, de estudo, tá sempre, o tempo todo buscando, sempre inovando, propostas, pensadores, outras formas de trabalhar, estratégias, metodologias, ou seja, qualidade na educação é a busca de conhecimento para que tu sempre ‘atualize’ tuas propostas pedagógicas na realidade a qual esteja sendo inserida. (Coordenadora - EJA)

O conteúdo presente na fala dessa professora lembra as palavras de Gentili (1999, p. 47) que por conta da estatização malsucedida há “um sistema escolar rígido e incapaz”, de garantir “a eficácia e a eficiência dos serviços oferecidos”. Por conta disso, produz-se a competição interna e o desenvolvimento de um sistema de prêmios e castigos com base no mérito e no esforço individual dos atores envolvidos na atividade educacional. Imbuída por essa concepção, a professora, sem refletir sobre o que diz, remete a si o que a política de estado e gestão educacional em suas esferas deveriam se ocupar. A formação de professores, conforme o que aponta a atual LDB e o Parecer 11/2000, é dever de política de estado.

A segunda entrevistada sobre a qualidade na educação, diz:

-Eu acho até que a gente tem muita qualidade na educação, só que ‘tá’ difícil a educação em si, porque talvez o próprio governo não dá exemplo, e porque as famílias estejam cada vez mais trabalhando fora, os filhos ficam por conta, outras já não estão nem aí com o que acontece com seus filhos, e eles vêm muito carentes de casa, entrando na conversa do colega, não prestando atenção e a educação fica a desejar. A gente se esforça e até os pressiona para que eles participem, porém é bem complicado. Ou seja, a qualidade na educação é uma aula bem preparada, com propostas que os alunos se interessem, que sejam motivados em casa, em questão dos horários, disciplina, tenham materiais básicos, enfim, tudo. (Professora - EJA)

A fala realizada pela professora envolve o que falta e dificuldades enfrentadas pelos professores, fazendo críticas ao governo, às famílias e aos alunos. O governo não cumpre seu dever, então, as famílias “cada vez mais” têm que trabalhar “fora” e “os filhos ficam por conta”. Isso gera, de forma cíclica, uma série de consequências, como denuncia a professora. Para que haja qualidade na educação, pensando a “aula”, as “propostas” que considerem “os interesses” tem que haver organização e motivação “em casa”, “horários, “disciplina”, “materiais básicos”, “enfim, tudo” o que não se tem. Ela reforça “a gente se esforça, porém, é bem complicado”.

Para a professora qualidade é “tudo”. Em sua fala, demanda por qualidade sociocultural, como apresenta Gadotti (2003). Do questionamento sobre qualidade na educação, assim se manifestaram as professoras:

-A qualidade na educação passa pela formação dos professores, que talvez não seja correta para o curso em questão, tampouco para comportar alunos com necessidades especiais. (Coordenadora/professora - Administração Rural e Agroindustrial)

-A qualidade pra mim tem a ver com indicadores. Talvez a qualidade na educação possa ser medida, analisada, através de alguns indicadores. Qualidade na educação, eu acho que, tem a ver com muitos (ressalta na fala) fatores, por exemplo: professores com uma boa formação, capacitação, uma boa infraestrutura, incentivo ao aluno em termos de buscar a informação, conhecimento, dentro dos seus estudos, são fatores que devem ser levados em consideração pra que se tenha uma evolução, uma qualidade dentro da educação. (Coordenadora/professora - Pedagogia)

As duas responderam no sentido de aprimorar o ensino que já existe e ambas ressaltam a qualidade relacionada à formação de professores. A fala da primeira corresponde ao que falta, questionando a qualidade da formação oferecida pelo próprio curso que, segundo ela, “talvez não seja correta”. A segunda, apresenta “fatores” no sentido de “fixar padrões de desempenho e indução de resultados”, como falam Junior e Maués (2014).

Na tentativa de levantar quais seriam os parâmetros que regeriam um ensino mais satisfatório, em comparação com o que se possui atualmente, a professora da escola falou:

- Pra ‘ti’ oferecer qualidade na EJA, tem que se trabalhar motivação, pois o público de EJA, em sua maioria, são pessoas que estão vindo do seu trabalho, cansadas, muitas vezes sem jantar ou conseguir tomar um banho, aí se não se oferece um trabalho de qualidade em sala de aula, como você espera que ele retorne no outro dia, ou mesmo, que fique até o fim da aula? Outra coisa que é fundamental para qualificar o ensino da EJA, é a não infantilização dos alunos, deve-se trabalhar com um assunto que eles realmente queiram aprender, que vá render pra eles. (Coordenadora - EJA)

Ao referir sobre parâmetros de qualidade a professora elenca o que falta, apresenta problemas e dificuldades. Caracteriza o público da EJA e o que essa demanda. Qualidade aprece articulada a não infantilização, a aprendizagem significativa e desejos, a manutenção, frequência e permanência dos estudantes. Como contraponto da realidade desta escola, a professora entrevistada traz fatores diferenciados, elencando aspectos positivos da qualidade na EJA:

-A qualidade na EJA, acho muito boa, a iniciar pelos livros deles, se quiserem ou interessarem em ler, adquirem um conhecimento muito amplo, já que o conteúdo que passamos tem de ser de forma bem sucinta, por isso este esclarece bastante as coisas. Percebo uma grande evolução dos alunos a partir das aulas. Eu trabalho de maneira clara, com linguagem compreensiva, não me distancio deles, fico próxima, sociável com eles, pra que possuam abertura pra questionamentos, para aqueles que têm interesse, se torna valioso. (Professora - EJA)

A professora afirma, ainda, que a qualidade na EJA é muito boa e justifica sua afirmação apresentando fatores que potencializam essa qualidade como livros, conduta de proximidade com os alunos, trabalho de maneira clara, linguagem compreensiva, proximidade, sociabilidade, abertura para questionamentos e interesse.

Em perspectiva semelhante, as Coordenadoras de Cursos da universidade também apresentam fatores de qualidade, conforme as falas que seguem:

-Eu acho que uma das questões da qualidade que nós temos é um quadro de professores qualificados, a maioria já doutores e os demais se formando em doutores e pós-doutores. Já a qualidade na minha prática, é tentar trazer novas abordagens, estimular que o aluno seja crítico e participe das aulas com as suas construções. Com o advento do WhatsApp criamos um link entre aluno e professor que antes não existia, e isso facilita bastante em termos de organização, esclarecimentos, etc. (Coordenadora/professora - Pedagogia).

- Nós enquanto docentes, se reconhecer, tendo que buscar novas metodologias, novos espaços, para que possamos passar o conteúdo de forma diferente, chamando mais atenção do aluno, e que esses pontos, possam se tornar a qualidade na educação ministrada. Como ponto de discussão durante este ano, tem-se o agravante de infraestrutura, que, com o advento da universidade ser pequena, necessita-se buscar algo melhor, pois já estamos crescendo bastante e isso facilita na permanência e no interesse acerca das aulas. (Coordenadora/professora - Administração Rural e Agroindustrial).

As coordenadoras apresentam fatores ou aspectos de qualidade que reconhecem nos cursos que coordenam. Entre os fatores têm destaque: quadro de docentes, novas abordagens na prática, estimular a criticidade e participação nas aulas, uso de WhatsApp na comunicação, reconhecimento, busca por novas metodologias, infraestrutura, permanência e interesse dos alunos.

Acadêmicas egressas da EJA

As acadêmicas, estudantes egressas da EJA são todas adultas, as três estão em fases finais dos seus cursos, tendo idades entre 26, 41 e 53 anos. Demostram-se felizes por estarem na universidade, empenhando-se para participar da entrevista. Trazem consigo a emoção de saberem buscar, sozinhas, as informações solicitadas pelos professores, e de terem, ao longo do período na universidade, conseguido dominar as tecnologias disponíveis para o que precisarem. Ressaltam a grande importância de práticas realizadas fora da sala de aula. Projetam, com a conclusão dos seus cursos, o aprimoramento de seus conhecimentos, e o proveniente trabalho na área desejada.

As estudantes possuem diferentes argumentos quando se trata das dificuldades que tiveram ou ainda estão enfrentando em seus cursos no Ensino Superior. As variações se perfazem em: “dificuldades nas disciplinas à distância e vespertino, em que as explicações não ficam completas como deveriam; dificuldades para interpretar a ordem dada pelo professor, havendo necessidade de pesquisa na internet para que a intenção fique esclarecida; dificuldades em matemática, por pensar que não conseguiria acompanhar, deixando para os últimos semestres”. As mesmas tentam superar tais dificuldades pedindo ajuda para os colegas, ou ainda, como citado na fala de uma das estudantes, “em buscas na internet”. Alegam possuir bastante contato com seus professores, porém, ainda não há abertura suficiente para que suas dificuldades sejam resolvidas por alternativa da universidade, como parte do currículo.

Como constatado, das três acadêmicas entrevistadas, todas possuem alguma dificuldade que não fora sustada por nenhum dos professores. Isso se deve ao fato de que os mesmos não possuem conhecimento sobre a realidade de egressos da EJA na instituição. As professoras/coordenadoras entrevistadas reagiram com surpresa ao compreenderem estes casos e, ainda, afirmam que esses alunos realmente possuem mais dificuldades em relação aos demais, porém, recebem tratamento igualitário, e se propõem, de forma aberta, “a auxiliar” em quaisquer dúvidas que possam surgir.

Refletindo sobre possíveis faltas em seus cursos, as acadêmicas assim se posicionaram:

-Não, acho que falta algumas coisas. Por exemplo, temos pouca aula de disciplinas importantes, principalmente quando nos é ofertado vespertino. Existem aulas que a gente não consegue acompanhar e as coisas ficam meio a desejar. E em termos de cursos à distância, a gente fica sem apoio ‘pras’ dúvidas. (Acadêmica Pedagogia 1)

- Acho que sim, porque tiramos muito proveito. Quem fez EJA sabe o que se passa de dificuldade, e ‘teve’ momentos que eu pensei que não ia dar conta por causa da falta de um ensino médio regular, por isso o conhecimento obtido na universidade foi muito proveitoso. (Acadêmica Pedagogia 2)

- Acho que é bom, sim, pois é bem amplo, me completa o que faltou na EJA, por exemplo, história é algo que eu ‘tô’ buscando para conseguir compreender bem, visto que vimos as disciplinas de forma rápida demais. (Acadêmica Administração Rural e Agroindustrial)

Diante dessas respostas, encontram-se críticas em torno dos cursos que as alunas desempenham. O conjunto completo das alunas entrevistadas está em fase final de curso na universidade e atribuem papéis positivos e negativos às aulas que receberam ao longo do tempo. Afirmam, ainda, possuírem algum tipo de dificuldade e que, para saná-las, contaram com o auxílio de professores e colegas de forma a compreender melhor os temas até então novos, estes pouco abordados na sala da EJA.

Tendo por base a perspectiva de mudar algo em seus cursos, o que possibilitaria deixar a sua permanência mais “aproveitável” e adequada para sua formação, as alunas fazem as seguintes proposições:

- O curso deveria ter mais práticas nas turmas, ou seja, permitir que a gente possa ter mais oportunidades de atuar em sala de aula. (Acadêmica Pedagogia 1)

- Eu não vejo uma necessidade de mudar a Pedagogia, mas sim, me debruçar mais sobre as disciplinas que não compreendo; (Acadêmica Pedagogia 2)

- Não mudaria nada na Administração Rural, pois acho um curso bem completo, que preenche o que não tive na EJA. (Acadêmica Administração Rural e Agroindustrial)

Conforme as colocações, as entrevistadas demonstram gostar dos cursos escolhidos. Uma delas pede por “mais práticas no seu campo de atuação”, que seria a sala de aula, fora dos estágios supervisionados que o curso oferta. As demais compreendem que o esforço para que as aulas sejam melhores para si é um esforço advindo delas mesmas, visto que sua formação de EJA - Ensino Médio, não forneceu subsídios suficientes para o pleno conhecimento que gostariam de agregar. A universidade também tem sido um complemento para o aprendizado, esforçando-se, da maneira possível. Apesar de apresentarem argumentações sobre seu estado atual, demonstrando fragilidades, consideram alguém egresso de EJA, ter a oportunidade de ser estudante de um curso superior público e gratuito, como algo muito importante e imensurável.

A fim de compreender as relações que esta realidade assegura, as estudantes compartilham seus sentimentos:

-Me sinto outra pessoa. Antes eu não sabia falar, me socializar. Eu cresci bastante em termos de me impor. Percebi que ser acomodada não resolve e, com a faculdade, aprendi a não desistir facilmente dos objetivos. (Acadêmica Pedagogia 1)

Estudante 2 - Me sinto valorizada. Tudo que eu começava, desistia, pois pensava que não era pra mim, que não valia a pena, porém Pedagogia é uma área que eu gosto, algo que me interessa e, por isso, não desisti. (Acadêmica Pedagogia 2)

Estudante 3 - Me sinto muito feliz. Nunca pensei que eu fosse capaz de estar numa universidade, portanto, dou valor à minha estadia aqui e me esforço bastante pra fazer destas aprendizagens, algo válido para a minha vida. (Acadêmica Administração Rural e Agroindustrial)

Com base nestes dizeres, nota-se que, por mais que haja dificuldades em seus caminhos, as três acadêmicas anunciam estarem obtendo “bons aproveitamentos” nos cursos em que estão matriculadas e frequentam. É importante relatar que, apesar de considerarem o “advento de provirem da Educação de Jovens e Adultos”, relatam, hoje, que esse foi um ensino que pode ser considerado “fraco”, “não abrangente dos conhecimentos necessários para se prestar um vestibular”; elas transpassam felicidade e realização ao encontrarem na universidade o que lhes faltavam. As discentes complementam, ainda, que, para seu total aproveitamento acerca das disciplinas ministradas na universidade em questão, seria interessante “dedicar-se mais, fazendo bastante leitura para tirar dúvidas das teorias”; “escolher uma faixa etária para aprofundamento de materiais e estudos a fim de trabalhar com a mesma” e, ainda, salientam a necessidade de “agrupar mais a administração de empresas não somente rural, pois, assim, teríamos uma oportunidade maior de ingressar direto no mercado de trabalho”. Novamente, elencando as conotações neoliberais de estudo para melhoria na qualidade, a partir do trabalho, as estudantes procuram desempenhar seus papéis com a finalidade de, assim que obterem as formações, iniciarem as atividades com base nos conteúdos estudados, aplicando suas aprendizagens e progredindo mais. A apresentação e análises descriminadas revelam que os discursos sobre qualidade são múltiplos.

Nos dizeres dos professores aparecem concepções de qualidade, em grande parte das vezes, como senso comum instituído de perspectiva neoliberal. Na fala das acadêmicas egressas de EJA, por outro lado, as perspectivas de qualidade social se fazem presentes em grande maioria. Ou seja, elencam os pressupostos conotados por Gadotti (2003) e Gentili (1999) os quais transparecem as concepções que se contrapõem em sentido de exemplificar o dinamismo que procede e educação atual. Em boa parte dos enunciados dos professores, em abordagem sobre qualidade, se sobressaem os problemas e os que lhes falta. Entre esses problemas, o de infraestrutura é bem geral e, no que tange a EJA, a infantilização aparece de forma específica.

Dentro de ambos os casos, são quesitos propostos como inferências do que se deve fazer ou suprir, a fim de que a modalidade obtenha sua própria identidade, em consonância com as práticas que contribuem para estas melhorias. De um modo amplo, embora esse não fosse o foco do trabalho, junto às vozes sobre a qualidade, foram apontados indicadores de qualidade, conforme apresenta o quadro que segue, especificando de modo sucinto, quais são estes ideais:

Quadro Sentidos de qualidade 

Perspectivas Concepções de Qualidade Qualidade como Indicadores
Perspectivas EB- EJA Aprimoramento da metodologia;
Resultados positivos;
Preparo para o trabalho;
Trabalho bem feito;
Consciência do que se faz.
Incentivo à permanência;
Não infantilização;
Insumos básicos para que o aluno não evada;
Aprendizagem
Qualificação das práticas.
Perspectivas Ensino Superior Indicadores para melhoria do ensino;
Infraestrutura adequada;
Formação para o docente.
Acessibilidade;
Formação do professor;
Metodologias novas;
Infraestrutura;
Laboratório de estudos e biblioteca.
Perspectivas das discentes Inserção no mercado de trabalho;
Resgate da aprendizagem não desenvolvida;
Sentimento de felicidade com o que faz ou estuda.
Aprimoramento do conhecimento;
Práticas participativas;
Oferta de atividades diferenciadas;
Superação das dificuldades não abordadas antes.

O que esse quadro revela é o quanto é importante perguntar e ouvir as pessoas. As abordagens de qualidade social, que se sobressaem em boa parte dos indicadores presentes nos dizeres das discentes, revelam essa importância. Ao que se evidencia, as acadêmicas oriundas da EJA se percebem participando, superando dificuldades e aprimorando conhecimentos, nesse contexto.

Reflexões finais

O presente artigo constitui sua importância por conceituar e refletir sobre a qualidade de forma a apresentar seus meandros, significados, e, também, na perspectiva de como os discursos sobre qualidade que veiculam nas escolas de Educação Básica da Modalidade de Educação de Jovens e Adultos e na Universidade, através dos dizeres, em circulação, de professores e estudantes egressos da EJA.

O que se evidencia é que, nas vozes dos participantes da pesquisa, circulam discursos da qualidade diversos, mas, nos dizeres dos professores a vinculação maior relaciona-se às concepções neoliberais bem mais que os relacionados à qualidade social, presente de forma mais ampla nos dizeres das acadêmicas egressas da EJA. Importante destacar que, nas vozes dos professores, abranger o tema da qualidade, de forma geral implica em falar no que sempre falta e a destacar problemas.

Conforme já referido, essa pesquisa não teve a intenção de abordagem nos indicadores de qualidade e tão pouco em seu entendimento como ferramenta de gestão, mas ao final, por conta de ocorrências dos conteúdos nas falas, uso de expressões e palavras sistematizaram-se os indicadores, como efeito da entrevista estabelecida.

O que o presente artigo apresenta ao mundo acadêmico é que, embora essas instituições sigam padrões e indicadores de qualidade externos que têm em si concepções neoliberais, talvez pudessem e devessem ouvir a sua comunidade escolar ou universitária para que, assim, quem sabe, as vozes da qualidade social pudessem ecoar, com maior intensidade.

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4Indicador, de acordo com Marques (p. 57, 2000) significa a análise e avaliação das organizações escolares e das políticas educativas recorrentes à informação estatística, levando em conta um conjunto de características consideradas significativas para medir o impacto da educação.

5Ao fim da 2ª Guerra Mundial os EUA saíram fortalecidos do conflito e criaram o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e outros Agentes para ampliar sua influência no mundo que se reestruturava. Deste lugar de controle é que estes organismos agem para um mundo “pró-neoliberal” e um conservadorismo fiscal.

6Assim, Sustentabilidade é uma ideia para definir ações e atividades humanas que visam suprir as necessidades atuais dos seres humanos, e não comprometer os recursos legados aos futuros, os herdeiros, as próximas gerações que habitarão o planeta Terra. Pensar na produção recorrente da “sociedade de consumo”, que é exatamente o oposto do desenvolvimento sustentável, usar com inteligência os recursos que necessitamos passam a ser focos da Educação para a Sustentabilidade e Educação Social. Para além de constituir um direito humano fundamental, a educação é igualmente um pré-requisito para se atingir o desenvolvimento sustentável e um instrumento essencial à boa governança, às tomadas de decisão informadas e à promoção da democracia (O nosso futuro comum. Comissão mundial sobre o meio ambiente e o desenvolvimento. Organização das Nações Unidas, 1991).

Recebido: 28 de Julho de 2018; Aceito: 14 de Dezembro de 2018

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