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Revista de Educação Pública

Print version ISSN 0104-5962On-line version ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.28 no.67 Cuiabá Jan.-Apr 2019  Epub May 15, 2019

https://doi.org/10.29286/rep.v28i67.4170 

Educação e Psicologia

A presença dos jogos de papéis na Educação Infantil

The presence of role games in Early Childhood Education

Maria Lidia Sica SZYMANSKI1 

Lisiane Gruhn COLUSSI2 

1Doutora em Psicologia (USP). Docente do Mestrado em Educação (UNIOESTE). Líder do GPAAD - Grupo de Pesquisa Aprendizagem e Ação Docente.UNIOESTE - Campus Cascavel - PR.

2Mestre em Educação (UNIOESTE). Membro do GPAAD - Grupo de Pesquisa Aprendizagem e Ação Docente. UNIOESTE, Cascavel, PR. E-mail: <lisianegcolussi@gmail.com>.


Resumo

Investiga-se se os jogos protagonizados ocorrem na Educação Infantil, pesquisando-se o Estado do Conhecimento, e apresenta-se um Estudo de Caso, referente a uma escola municipal, organizado em duas etapas: uma documental, envolvendo a análise do Projeto Pedagógico, e a outra envolvendo observação e anotações em caderno de campo das atividades lúdicas de crianças de 5 a 6 anos, durante 14 horas. Constatou-se que a Educação Infantil não resolveu o falso dilema entre escolarizar e brincar, e não propicia tempo e espaço para jogos protagonizados. Conclusivamente, ressalta-se a importância de que a escola possibilite tais jogos, os quais são fundamentais para o desenvolvimento afetivo, social e cognitivo.

Palavras-chave: Educação Infantil; Jogos protagonizados; Psicologia Histórico-Cultural

Abstract

We investigate whether role playing games occur in the kindergarten by researching the Knowledge State, and we present a Case Study concerning a Municipal School, involving two steps: one is documental, analyzing its Pedagogical Plan, and another, involving observation, which was registered in a field notebook, about role playing activities from children aged 5 to 6 years, during 14 hours. It was found that early childhood education no longer solved the false dilemma between schooling and playing, and did not provide time and space for role playing games. It was concluded, emphasizing the importance that the school allows the occurrence of such games, which are fundamental to emotional, social and cognitive development.

Keywords: Childhood Education; Role playing games; Historical-CulturalPsychology

Introdução

A Psicologia Histórico-Cultural, ao estudar o papel da Atividade no desenvolvimento psíquico, ressalta a importância dos jogos de papéis3, na faixa etária dos 3 a 6 anos.Várias pesquisas, voltadas à Educação Infantil, têm discutido a questão lúdica no cotidiano pedagógico,entretanto, poucas se voltam especificamente aos jogos protagonizados. Assim, o presente artigo objetiva discutir se esses jogos ocorrem no cotidiano pedagógico, e de que forma eles se manifestam.

Para compreender essa questão, inicia-se apresentando os principais conceitos que envolvem a discussão sobre o desenvolvimento do psiquismo humano na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, ressaltando a relação entre a atividade humana e a formação da consciência. A seguir, volta-se essa análise para o desenvolvimento do psiquismo infantil, ressaltando o papel do jogo protagonizado, atividade principal nesse processo, na faixa etária ora abordada. E reflete-se sobre a importância e o compromisso das escolas que promovem Educação Infantil, como responsáveis por desenvolver atividades mediadoras que promovam esse desenvolvimento.

Com o objetivo de situar as pesquisas nessa área, retoma-se a produção acadêmica acervada na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações entre os anos de 2004 e 2014, referentes à periodização do desenvolvimento psíquico na faixa etária dos 3 aos 6 anos, voltadas ao estudo de Daniil Borisovich Elkonin (1904-1984), utilizando-se como busca as palavras-chaves “Elkonin” e “jogos protagonizados”.

A seguir, direciona-se essa análise a uma escola municipal, buscando os jogos protagonizados em sua proposta pedagógica e no cotidiano escolar de crianças de 5 a 6 anos. Finaliza-se ressaltando a importância de um processo de formação docente, que possibilite à escola compreender a relevância dos jogos protagonizados para o desenvolvimento emocional, social e cognitivo da criança, de forma a ofertar tempo e espaço, bem como disponibilizar materiais para que esses jogos de papéis possam ocorrer.

O desenvolvimento do psiquismo humano na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural

O trabalho social, modificando as condições de existência, propiciou ao homem o surgimento da consciência, presidido pelas leis do desenvolvimento sócio-histórico, em detrimento das leis da evolução biológica (LEONTIEV, 1978). Nessa direção, a consciência

[...] é a expressão ideal do psiquismo, desenvolvendo-se graças à complexificação evolutiva do sistema nervoso central pela decisiva influência do trabalho e da linguagem, inaugurando a transformação do ser orgânico em ser social. Com o advento da consciência, a realidade - e tudo o que a constitui - adquire outra forma de existência representada pela imagem psíquica, pela ideia que dela se constrói. (MARTINS, 2013, p. 28).

Portanto, a dimensão qualitativa do desenvolvimento humano, na perspectiva filogenética, deve-se à superação da adaptação natural do homem ao meio, na medida em que estabelece coletivamente uma relação de troca com a natureza por meio das atividades que constituem o trabalho social, produzindo e modificando suas condições biológicas iniciais ou originais.

Da mesma forma, na perspectiva ontogenética, as condições de existência determinam as atividades da vida material, principalmente laborativas, e geram mudanças no comportamento e na consciência das pessoas. Conforme os estágios de desenvolvimento se sucedem, formam-se novas necessidades específicas no campo psíquico, envolvendo novas atividades. O desenvolvimento dessas atividades é condição para as mudanças mais relevantes nos processos psíquicos e nas singularidades psicológicas da personalidade. Esse processo é permeado pela historicidade, pois cada cultura envolve diferentes atividades, as quais terão papel mediador nos processos de apropriação e objetivação que constituem o funcionamento psicológico.

No conjunto de atividades, aquela que predomina e envolve o modo/meio pelo qual o sujeito estabelece suas principais relações com a realidade externa, buscando satisfazer suas necessidades, é denominada atividade principal, que é provocada por um motivo e envolve ações e operações. Portanto, considera-se que o desenvolvimento da natureza social-humana se alicerça no trabalho, principal atividade por meio da qual o ser humano relaciona-se com o mundo.

Com o desenvolvimento histórico, cultural e tecnológico humano, as necessidades biológicas, ainda que vitais, quando garantidas, tornam-se secundárias, e o homem privilegia as complexas necessidades sociais. São essas necessidades sociais que motivam a atividade humana e propiciam o surgimento da consciência. Elas estão originalmente submetidas a relações sociais e condicionam a gênese da imagem psíquica, possibilitando às estruturas neuronais tornarem-se cada vez mais complexas (LEONTIEV, 1978; LURIA, 1991).

Nesse processo, a partir do entrecruzamento orgânico e cultural, desenvolvem-se as funções psíquicas superiores (FPS), envolvendo ações conscientes e controladas, como o pensamento abstrato, raciocínio, atenção voluntária, percepção, sentimentos, memória mediada, linguagem e vontade, dentre outras. Trata-se de um processo constante, consequência da participação do sujeito em atividades compartilhadas. Antes de se constituírem como psicológicas, essas funções tipicamente humanas perpassam pelas relações entre as pessoas, em um processo interpessoal que se transforma em intrapessoal.

Destaca-se, portanto, que a consciência não resulta unicamente do mundo subjetivo, nem tampouco é resultado de um processo unicamente biológico, uma vez que ela se forma nas relações do sujeito com o mundo à sua volta. Trata-se de um movimento dialético, no qual, ao mesmo tempo em que a consciência vai se ampliando, isso é, ao se ampliar a representação interna do mundo externo, apropriação que depende da atividade do sujeito, essa consciência regula a forma como o sujeito realiza a própria atividade.

A apropriação do mundo objetivo pelo homem por meio da atividade não é mera cópia, mas produto da reelaboração das suas apreensões pessoais. Quanto mais esse processo de apropriação amplia-se, maior facilidade para novas apropriações.

Em síntese, para a Psicologia Histórico-Cultural, no estudo do psiquismo, a consciência e a atividade são categorias centrais e entre elas há uma relação recíproca. A forma como o sujeito relaciona-se com a realidade, isso é, como ele funciona, envolve os processos funcionais tipicamente humanos, tais como atenção, percepção, memória ou pensamento. Desenvolver-se psiquicamente significa, principalmente, desenvolver essas funções, o que ocorre por meio das atividades, dentre as quais uma se destaca como mais importante em cada época do desenvolvimento. Portanto, o estudo do desenvolvimento psicológico acontece pela identificação e análise dessa atividade principal, e de sua relação com a consciência, isso é, com as ações e operações por ela mobilizadas, que compõem dialeticamente o processo integral do psiquismo.

Com base nesses pressupostos, na próxima seção, discute-se mais especificamente o desenvolvimento do psiquismo da criança.

O desenvolvimento do psiquismo infantil e o jogo protagonizado

Na verdade, os fenômenos objetivos já estão dados no contexto social, antecipadamente à consciência, porém cabe a ela captá-los e reconstituí-los. Desse modo, o desenvolvimento psicológico inicia-se à medida que a criança se apodera dos modos de fazer e dizer, construídos coletivamente pela humanidade. Não se trata apenas de um processo biológico de crescimento, mas de uma evolução, na qual novas reorganizações integram a dimensão cultural à biológica, ainda que um aspecto não possa ser reduzido ao outro.

Conforme vai se tornando membro da sociedade, a criança passa a ter obrigações por ela impostas e os estágios sucessivos do seu desenvolvimento são de fato graus diferentes dessa transformação. Processos anteriores preparam processos posteriores, em uma relação dialética de transformação e mudança, não linear, guiada principalmente pela atividade principal, por isso também denominada atividade-guia. Entretanto, nem sempre a atividade-guia é a mais frequente; assim, para identificá-la, Leontiev propõe três aspectos:

Primeiramente é a atividade dentro da qual [surgem e] se diferenciam outros tipos de atividades. [...] [Por exemplo,] a criança começa a estudar, brincando. Em segundo lugar, na atividade-guia [...] se formam ou se reestruturam processos psíquicos particulares. [...] [mas que se manifestam em outras atividades infantis]. Em terceiro, a atividade-guia é uma atividade da qual depende intimamente, num determinado período de desenvolvimento, as principais mudanças psicológicas observáveis da personalidade da criança. (LEONTIEV, 1981 apud PRESTES, 2010, p.162).

Já em 1933, referindo-se à brincadeira, Vigotski estabelecia a diferença entre atividade predominante, isto é, a mais frequente, e atividade principal, ou seja, a que estabelece “a linha principal do desenvolvimento na idade pré-escolar” (VIGOTSKI, 2008, p.24).

Posteriormente, Elkonin (1987), embasado nos estudos de Vigotski e Leontiev, buscou esclarecer essa relação e investigou qual a atividade dominante, isso é, atividade-guia, em cada um dos diferentes períodos da vida. Definiu características e forças motrizes que possibilitam a passagem da atividade dominante de uma etapa à outra, estruturando esse processo em três grandes períodos, cada um dos quais subdivididos em dois conjuntos, um relativo à esfera motivacional e das necessidades, e o outro à esfera das possibilidades técnicas e operacionais:

  1. Na primeira infância, do ponto de vista motivacional, a criança apresenta a necessidade de comunicação emocional direta (1º grupo). Por exemplo, ela chora, grita para se comunicar e suas atividades objetais são essencialmente manipulatórias. Gradativamente, a criança vai se apropriando dos objetivos, motivos e normas que constituem suas relações sociais. E, do ponto de vista de suas possibilidades operacionais, vai passando de atividades meramente manipulatórias àquelas observadas em seu contexto social, apropriando-se desses procedimentos socialmente elaborados de ação com os objetos (2º grupo);

  2. Na infância, a necessidade na esfera motivacional refere-se à vivência dos papéis adultos, sem o ônus da realidade, o que a criança faz por meio dos jogos de papéis (1º grupo). Do ponto de vista técnico-operacional, a criança vivencia esses jogos e inicia o desenvolvimento de atividades de estudo (2º grupo);

  3. Na adolescência, na esfera motivacional, a necessidade é de uma comunicação íntima pessoal (1º grupo), sendo que suas possibilidades técnicas e operacionais envolvem atividades de estudo e formação profissional (2º grupo).

Considerando-se o objeto de reflexão proposto no presente estudo, destaca-se, a seguir, o jogo protagonizado, também denominado jogo de papéis. Utiliza-se esse termo para designar a brincadeira infantil não estruturada, com regras subentendidas, papéis definidos, por meio das quais as crianças reproduzem os papéis sociais adultos com o intuito de inserção na sociedade.

No jogo de papéis, a criança não tem como preocupação central aprender a usar os objetos humanos ou conseguir realizar as operações genuínas dos adultos. O motivo desses jogos está no processo em si. A criança não representa um adulto com determinada profissão ou ações/operações próprias do mundo dos adultos, como cozinhar/cortar os temperos. Na verdade, essas ações/operações são meios para que ela possa vivenciar, nas relações que estabelece com outras crianças, aquelas observadas entre os adultos ou entre os adultos e as crianças.

[...] no jogo protagonizado influi, sobretudo, a esfera da atividade humana, do trabalho e das relações entre as pessoas e [...], por conseguinte, o conteúdo fundamental do papel assumido pela criança é, precisamente, a reconstituição desse aspecto da realidade. (ELKONIN, 2009, p.31).

Por isso, o jogo protagonizado não se configura como atividade espontânea, uma vez que se trata de uma produção das crianças com base nas relações que elas observam/estabelecem com os adultos, e entre os adultos e as crianças, o que confere grande importância a essas relações (ELKONIN, 2009). Portanto, a reconstrução do papel de adulto, escolhido pela criança nos jogos de papéis, está atrelada às suas condições e relações concretas de vida. É necessário que a criança realize as diversas ações que esse papel demanda socialmente e, em decorrência, desenvolva as operações que envolvem essas ações.

A conversão da menina em mãe, e da boneca em filha, dá lugar a que os atos de dar banho, dar de comer e preparar a comida se transformem em responsabilidades da criança. Nessas ações [estão implícitas diversas operações, como preparar a água do banho, esfriar a papinha do bebê, etc.] manifesta-se então a atividade da mãe com o filho, seu amor e sua ternura, ou até o contrário: isso depende das condições concretas de vida da criança, das relações concretas que a circundam. (ELKONIN, 2009, p. 404-405).

Ainda, para o autor, o conteúdo fundamental dos jogos de papéis são as normas de conduta que permeiam as relações entre os adultos, e são vivenciadas pela criança ao interpretar e submeter-se às regras que o papel de adulto exige. As relações baseadas nas regras são fonte do desenvolvimento da moral infantil. A criança tem uma liberdade relativa nesse momento porque precisa adequar sua conduta ao papel que interpretará, seguindo as regras que dele decorrem.

Ao perceber as limitações produzidas pelo que quer e pelo que não pode realizar, a criança avança em seu desenvolvimento, criando um mundo fictício no qual realiza suas necessidades por meio da imaginação em seus jogos de papéis. Surgem oportunidades para desvincular o pensamento das situações concretas. O jogo de papéis oportuniza “[...] uma situação de transição entre a ação da criança com objetos concretos e suas ações com significados.” (OLIVEIRA, 2011, p. 69).

A capacidade da criança de dominar seu próprio comportamento, controlando-o para alcançar determinado fim nas situações de jogos de papéis, tem uma importância fundamental no desenvolvimento cognitivo infantil, por produzir uma zona de desenvolvimento iminente4.

[...] a criança sempre se comporta muito além do comportamento habitual para sua idade. Ela age como se fosse mais velha, maior, mais forte, mais capaz do que é na realidade. Ela age ou tenta agir como um adulto em relação aos objetos e conceitos do mundo adulto, do universo humano. Assim, tendo como referência o comportamento do adulto, [...] [o jogo de papéis] contém, de forma condensada, todas as tendências do desenvolvimento posterior da criança. (ROSSLER, 2006, p. 60-61).

Dessa forma, a brincadeira liberta a criança de suas limitações situacionais, ainda que exija o respeito às regras de funcionamento de cada papel, e lhe possibilita experiências que, ao serem vividas sem os entraves da realidade, abrem caminho para futuras aprendizagens.

A relação do jogo com o desenvolvimento é a da aprendizagem para o desenvolvimento. Por trás do jogo estão as mudanças de necessidades e as mudanças de consciência de caráter mais geral. O jogo é uma fonte de desenvolvimento e cria zonas de evolução imediata. (ELKONIN, 2009, p.424).

Assim como a aprendizagem orienta e estimula processos internos de desenvolvimento, o jogo de papéis também o propicia, por provocar novas necessidades que impulsionam mudanças evolutivas. Portanto, é importante que se propiciem condições para que a brincadeira de papéis sociais, isso é, o jogo protagonizado, seja vivenciada pelas crianças dos três aos seis anos. As possibilidades de engendrar o desenvolvimento infantil por meio dos jogos protagonizados se abrem, uma vez que esse brincar já é um contexto de aprendizagem, pois propicia generalizações de conceitos e permite que a criança viva as relações que observa no seu entorno,atribuindo significados do mundo dos adultos aos objetos (ELKONIN, 1998).

O papel da escola

A ação pedagógica na Educação Infantil, com base na Psicologia Histórico-Cultural, exige a apropriação dos conhecimentos teóricos que a fundamentam, e consequentemente a valorização dos jogos protagonizados, como formas de experimentação infantis essenciais para o desenvolvimento das funções psíquicas superiores.

Esses jogos exercem grande influência em todas as facetas do desenvolvimento, pois, neles também se formam níveis mais elevados de percepção, memória, imaginação, processos psicomotores, processos verbais, elaboração de ideias e de sentimentos, etc., auxiliando a passagem do pensamento empírico concreto para formas mais abstratas de pensamento, premissa básica da complexa aprendizagem sistematizada. (MARTINS, 2007, p. 74).

As funções psíquicas superiores que se manifestam concretamente nas relações sociais não se desenvolvem espontaneamente, exigem a interação social. As situações que promovem seu desenvolvimento precisam ser oportunizadas ao indivíduo, e a escola tem grande responsabilidade nesse processo, pois, compreendendo-o, legitima a importância de focalizar esses processos funcionais ao desenvolver suas práticas pedagógicas.

Portanto, o grau de complexidade requerido nas ações dos indivíduos e a qualidade das mediações disponibilizadas para sua execução representam os condicionantes primários de todo o desenvolvimento psíquico. Em suma, funções complexas não se desenvolvem na base de atividades que não as exijam e as possibilitem. (MARTINS, 2013, p. 276).

É importante observar que não é possível estabelecer uma correspondência linear entre as ações pedagógicas e o desenvolvimento dos processos funcionais.

Ou seja, do ponto de vista pedagógico, não se trata do planejamento de ações que visem ora ao desenvolvimento de dada função ora ao de outra - uma vez que as mesmas operam em unidade, orquestrando a atividade em curso. Trata-se, então, da promoção de atividades ricas em possibilidades de aprendizagens que promovam desenvolvimento [...] (MARTINS, 2013, p. 307).

Destaca-se, assim, não só a importância do professor como mediador, mas a necessidade de compreender o desenvolvimento humano como objeto central para a organização dos processos educativos que realmente promovam e efetivem o desenvolvimento da criança.

Nesse sentido, os jogos de papéis, atividade-guia na faixa etária dos 3 aos 6 anos, constituem-se em necessidade para o desenvolvimento psíquico infantil. Assim, abrir espaços para que essa atividade ocorra e compreender sua importância é fundamental nessa faixa etária.

Mas, o que dizem as pesquisas sobre a apropriação dos pressupostos de Elkonin na prática pedagógica da criança pequena?

O Estado do conhecimento

As pesquisas sobre o Estado do conhecimento verificam os aspectos destacados na produção acadêmica em dado campo do conhecimento. Com esse intuito, buscaram-se as pesquisas acervadas na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações, entre os anos de 2004 a 2014, referentes à periodização do desenvolvimento psíquico, na faixa etária dos 3 aos 6 anos, que abordam os estudos de Daniil Borisovich Elkonin (1904-1984). Ao utilizar-se como busca as palavras-chaves “Elkonin” e “jogos protagonizados”, foram selecionados oito trabalhos, dos 23 referentes a Elkonin. As dissertações de mestrado foram publicizadas nos anos de 2005, 2006, 2007, 2008, 2010 e 2011 e as teses de doutorado em 2003 e 2009. Apresentam-se, a seguir, suas principais considerações.

Sobre o brincar: O brincar é importante e significativo para as crianças de 4 a 5 anos. Existem diferenças entre o brincar em casa e na instituição (LEAL, 2003). No contexto escolar, o faz-de-conta constitui-se na principal brincadeira (ARAUJO, 2008). Entretanto, o docente valoriza a brincadeira por ele planejada e dirigida, a qual objetive a aprendizagem e o treino de habilidades. A brincadeira livre é compreendida como “bagunça” apenas tolerada, nunca estimulada no ambiente da sala de aula (MARTINS, 2009)5.

A análise sobre como os professores compreendem a maneira das crianças se apropriarem do brinquedo para criar situações lúdicas, revela que pais e professoras atribuem um papel fundamental ao brinquedo e à brincadeira, como facilitadores do ensino e promotores do desenvolvimento infantil. No entanto, ambos foram eximidos dos seus aspectos lúdicos e utilizados para atingir objetivos relativos a conteúdos escolares e não escolares, com caráter instrumental por colaborar na formação da criança como futuro trabalhador (ÁLVARES, 2011). Assim, é indispensável que família, escola e criança redescubram a magia do brinquedo e da brincadeira (ÁLVARES, 2011).

Compreensão sobre o brincar e a prática pedagógica: As interações durante o jogo protagonizado são essenciais para a expressão e o desenvolvimento da singularidade da criança entre 4 e 6 anos. Durante o jogo emergem importantes elementos observados pelo modo como as crianças se conduzem nos momentos de negociação, suas posturas diante dos colegas nas atitudes de afastamento e de aproximação, no convite para mudar de lugar com o parceiro, nas relações de poder, no modo como realizam suas protagonizações, bem como nos processos criativos na elaboração de argumentos e na reconstrução das relações sociais (SOUZA, 2010).

É interessante que se ofereça à criança uma atividade lúdica na qual ela seja livre para experimentar, criar e singularizar-se por meio de suas interações (SOUZA, 2010). Assim, por exemplo, a brincadeira de faz-de-conta de escolinha, com crianças em torno de 6 anos, favorece o uso de regras quando o papel pretendido é legitimado pelos demais participantes. Nesses casos, há interação e a brincadeira prospera predominando regras do tipo reproduzidas, quando o papel de aluno e/ou de figuras de autoridade retrata o vivido pelas crianças e as regras construídas, as quais exigem negociação de sentidos e significados para que acordos sejam feitos e embates resolvidos (AMBRA, 2005). Portanto, brincar de faz-de-conta propicia uma oportunidade para que as crianças se preparem para o futuro, aprendendo a conviver (AMBRA, 2005).

Por não compreenderem a importância do brincar como atividade principal, por meio da qual se desenvolvem processos psicológicos que promovem a transição para um novo e mais elevado nível de desenvolvimento, as professoras deixam de oportunizar preciosos momentos para o brincar e de mediar situações que desafiem as crianças a verbalizar durante as brincadeiras (MOCHIUTTI, 2007).

Maior investimento na formação inicial e continuada docente: Martins (2009) aponta o comprometimento da qualidade do trabalho docente por razões como a ausência de uma reflexão crítica sobre o conceito de criança e sobre a postura adultocêntrica da escola e da sociedade, bem como a inexistência de formação em serviço para a superação das dificuldades. Comprova, portanto, a necessidade da formação inicial reflexiva e crítica sobre esses aspectos, ratificando a posição de outros autores (LEAL, 2003; ARAUJO, 2008). Os processos de formação precisam do apoio dos dirigentes públicos, valorizando e propiciando condições para a participação docente em eventos científicos, publicações, intercâmbios, grupos de estudo e cursos de graduação e pós-graduação (LEAL, 2003).

Há necessidade de um programa de formação que redefina o papel da Educação Infantil e propicie a elaboração coletiva da proposta educativa, instrumentalizando professoras e professores para o trabalho e, consequentemente, elevando a qualidade do atendimento às crianças. A valorização do brincar, assim como as necessidades e o desenvolvimento das crianças devem ser objeto de discussão coletiva, orientando as reflexões sobre os caminhos pedagógicos que promoverão o desenvolvimento e a aprendizagem nessa faixa etária (LEAL, 2003; AZEVEDO, 2006).

Mochiutti (2007) sugere aprofundar o debate sobre as ações político-pedagógicas viabilizadas no interior dos cursos de formação em nível superior dos professores que atuam ou atuarão na Educação Infantil. Azevedo (2006) ressalta ainda a importância de que a Educação Infantil seja um fim, e não uma mera preparação para o Ensino Fundamental. Propõe que o professor seja instruído de forma a considerar a criança como sujeito cultural, social e histórico.

O brincar como estratégia escolar: Verifica-se que os docentes utilizam o jogo na Educação Infantil como momento de recreação e ocupação do tempo ou como atividade pedagógica para atingir objetivos escolares, desconhecendo o jogo protagonizado em si, como fator importante para o desenvolvimento psicológico da criança pequena (SOUZA, 2010; MOCHIUTTI, 2007; ÁLVARES, 2011).

Ao prevalecer o tempo institucionalizado em detrimento do tempo da e para a criança, reduzem-se as possibilidades de vivência plena de atos de criação e imaginação, reproduzindo as práticas educativas uniformes que ocorrem no Ensino Fundamental (MOCHIUTTI, 2007).

Mesmo quando a escola se organiza de modo a potencializar aspectos do imaginário, do lúdico, do artístico e do criativo, em tarefas que os privilegiam, esses aparecem em segundo plano, priorizando-se o aspecto escolar, em razão da homogeneização no formato e na dinâmica dos trabalhos, engessando o tempo e o espaço (MOCHIUTTI, 2007). Ao conceber o jogo protagonizado como uma estratégia de ensino de conteúdos escolares verifica-se a perda das principais características do lúdico, tais como imprevisibilidade, ausência de seriedade e de consequências (SOUZA, 2010).

Portanto, é importante repensar a prática que prioriza as atividades mais escolarizantes, legitimando o que é mais e o que é menos importante à criança aprender, e que coloca em segundo plano as experiências que focalizam a ação lúdica e criativa, uma vez que nesse modelo a Educação Infantil não é pensada pelos saberes próprios da infância (MOCHIUTTI, 2007).

O cenário aqui delineado demonstra a relevância de ampliar o número de pesquisas sobre o papel do brincar, assim como revela a ausência de trabalhos que visem analisar a presença de jogos protagonizados como atividade estruturante do psiquismo infantil.

A pesquisa de campo

Com base no referencial apresentado, realizou-se uma pesquisa de campo, envolvendo crianças de 5 a 6 anos de idade, que frequentavam a Educação Infantil, com o objetivo de verificar se e como os jogos de papéis acontecem no processo pedagógico desenvolvido em uma escola municipal de uma cidade da região sudoeste do Estado do Paraná.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) (Parecer 898.472, processo CAAE nº 34228314.9.0000.0107). Considera a subjetividade dos sujeitos, a percepção do pesquisador, os acontecimentos do ambiente que os cerca, e os fenômenos estudados não são reduzidos a simples variáveis, mas sim representados em sua totalidade, dentro de seus contextos (FLICK, 2009), não se apoiando em situações artificiais criadas em laboratório, mas sim em práticas e interações dos sujeitos na vida cotidiana. Assim, pode ser considerada pesquisa qualitativa, envolvendo um Estudo de Caso, organizado em duas etapas: na etapa documental, foi analisado o Projeto Pedagógico da escola; na segunda etapa, os dados foram coletados por meio de observações e anotações em caderno de campo, durante 11 dias, totalizando 11 encontros, num total aproximado de 14 horas-relógio, para posterior análise.

A instituição pública de ensino envolvida foi sugerida pela Secretária Municipal de Educação, quando feita a solicitação para o desenvolvimento da pesquisa, por sua disponibilidade e por apresentar características comuns a qualquer outra escola do município. Desse modo, considera-se que uma escola e um grupo de crianças “[...] contém a totalidade social e a expressa nas suas ações, pensamentos e sentimentos. Assim, o processo apreendido [...] pode revelar algo constitutivo de outros sujeitos que vivem em condições semelhantes.” (AGUIAR, 2001, p. 140).

Na Escola Municipal de Educação Infantil, a diretora informou professora, turma e turno para a realização das observações, por ser a única turma de pré-escolar no período da tarde, frequentada por crianças entre 5 e 6 anos. Objetivava-se verificar como eram desenvolvidas e de que forma as atividades lúdicas inseriam-se no Projeto Pedagógico da escola. Buscavam-se respostas às perguntas:

  • Na interação escolar entre as crianças aparecem jogos de papéis?

  • Na rotina escolar estão previstas e/ou organizadas intencionalmente situações em que se vivenciam jogos de papéis?

  • Quais brincadeiras e/ou atividades compõem o lúdico no espaço escolar?

O lúdico na proposta pedagógica da escola investigada6

A análise da Proposta Pedagógica da escola revelou um texto fragmentado e com ênfase no Ensino Fundamental, quando, na verdade, deveria estar voltada à Educação Infantil. Não esclarece as concepções de criança, de infância, de brincadeira e de ensino-aprendizagem que apoiam o trabalho pedagógico da escola. Refere-se apenas a que as crianças aprendem e desenvolvem nas relações de trocas e do brincar. A opção pelos conteúdos escolares não é justificada, bem como sua importância para a aprendizagem e para o desenvolvimento infantil.

As citações, a seguir, foram extraídas do Projeto Pedagógico da escola pesquisada. O texto cita Vygotsky, entendendo a criança “[...] como ser social inserido em uma cultura, e [afirma que] consequentemente será através da interação com o outro que a criança potencializa sua capacidade de se desenvolver e de aprender.” Entretanto, observa-se uma incoerência ao colocar, em outro trecho, que “a criança é capaz de expressar-se ‘desde sempre’ (sic) através dos pensamentos, sentimentos e da imaginação”, não contemplando a questão da historicidade na constituição do sujeito, que parece ser compreendido como pronto e acabado.

Quanto aos encaminhamentos metodológicos, o projeto orienta que os limites de cada criança sejam respeitados e, “[...] que cada uma tenha seu desenvolvimento, interesses e necessidades peculiares satisfeitos, uma vez que vive num contexto ‘sócio-cultural’ que precisa ser considerado.” Sugere, ainda, para

[...] observar a criança nas atividades que realiza (jogos, condutas espontâneas, etc.); propor situações significativas às crianças, onde elas se utilizem do seu conjunto de ideias, relacionando e garantindo um novo significado; valorizar as manifestações espontâneas da criança (o “faz-de-conta”, as imitações, os desenhos, as histórias, as narrativas, a fala, etc.); criar espaços onde possa ocorrer um planejamento coletivo que possibilite decidir em grupo as atividades a serem realizadas; contribuir para ampliar a leitura de mundo de cada criança.

Esse é o único trecho em que o faz-de-conta é citado com a indicação de que seja valorizado, porém não como uma atividade promovedora do desenvolvimento infantil e de essencial importância na rotina da sala de aula.

As atividades lúdicas no cotidiano escolar

No primeiro dia de observação, permaneceu-se na escola durante todo o período vespertino. Verificou-se, então, que além do intervalo para o recreio, a escola só permitia que as crianças brincassem no Dia do Brinquedo, que ocorria às sextas-feiras na última hora-relógio do período da tarde, horário em que as observações passaram a se concentrar. Pode-se constatar a não manifestação desses episódios na escola, em outros momentos diferentes do cotidiano pedagógico. A ênfase do trabalho pedagógico concentrava-se nas atividades ditas escolares, fato amplamente ratificado na literatura por Leal (2003), Azevedo (2006), Mochiutti (2007), Martins (2009) e Álvares (2011).

Constatou-se ainda que, no Dia do Brinquedo, cada criança limitava-se a levar um brinquedo para a escola, permanecendo na própria sala de aula. Essa limitação de tempo e espaço refletia-se no brincar, cerceando a evolução para jogos de papéis. Assim, nas 14 horas de observação do brincar nessa escola, as crianças empurravam carrinhos, utilizavam jogos eletrônicos trazidos de casa, montavam quebra-cabeças da escola, imitavam animais ou brincavam de pega-pega. Nas dez semanas de observação, podem-se registrar, em caderno de campo, apenas duas brincadeiras que envolviam jogo de papéis, descritas a seguir:

A menina A.M (5 anos) brinca de vendedora e de atendente de caixa com o brinquedo caixa registradora, oferecendo um kit de maquiagem às amigas: “ - Quem quer comprar?” Em seguida, uma colega senta-se perto dela no sofá e adquire o kit de maquiagem. Imitam papéis de adultos que conversam enquanto pintam suas unhas. O jogo se encerra.

No segundo episódio, outra criança pega a caixa registradora, passa a imitar uma atendente de lanchonete e anuncia para os demais: “ - Quem quer comprar? Você quer? O que você deseja?” As crianças que participam do jogo compram lanches, comem rapidamente, conversam e saem para brincar de outra coisa.

Nesses jogos, as crianças retratam situações já vivenciadas em seu cotidiano em que adultos realizam atividades profissionais de vendedora e atendente de lanchonete.

[...] isso significa que a criança vê o adulto, sobretudo, pelo lado de suas funções. Quer atuar como o adulto, sente-se totalmente dominada por esse desejo. Precisamente sob a impressão desse desejo muito geral, primeiro mediante as sugestões do adulto (o educador ou os pais), começa atuando como se também ela o fosse. Essa sensação é tão grande, que basta uma pequena alusão para que a criança se converta alegremente, claro que no aspecto puramente emotivo, em adulto. É pela força dessa sensação que se explica a facilidade com que as crianças assumem os papéis dos adultos. (ELKONIN, 2009, p. 404).

A principal característica da atividade lúdica no jogo de papéis é o fato de a criança criar uma situação fictícia para representar um papel de adulto, conforme o sentido que ela lhe atribui. Assim, nos fragmentos relatados, as protagonizações infantis dos papéis de vendedora e compradora/consumidora partem de situações vivenciadas por elas, em que gestos e posturas retratam aspectos relacionais do mundo adulto. Essas relações que os adultos estabelecem entre si, ao utilizarem os objetos, constituem o foco principal e se manifestam nas relações que a criança estabelece com outras crianças, no desenvolvimento do jogo protagonizado.

Porém, não se trata de mera cópia dos elementos da realidade, há um processo de imaginação em atividade que permeia a reelaboração das vivências infantis, e se manifesta nos jogos de papéis. “É uma combinação dessas impressões [vivenciadas] e, baseada nelas, a construção de uma realidade nova que responde às aspirações e aos anseios da criança.” (VIGOTSKI, 2009, p. 17). Assim, embora a criança conheça todos os elementos dessa reconstrução, os rearranja de maneira inusitada, de forma a atender aos seus desejos.

O típico da situação “fictícia” é a transferência das significações de um objeto a outro e as ações reconstitutivas em forma sintética e abreviada das ações reais no papel de adulto adotado pela criança. Isso chega a ser possível quando se baseia na disparidade, que aparece na idade pré-escolar, entre o que se vê e o sentido que se lhe dá. (ELKONIN, 2009, p. 200).

Essa disparidade entre o que a criança vê e o sentido que é atribuído ao objeto tem profundo significado emocional para a criança. O fundamental é compreender que esses jogos envolvem possibilidades de aprendizagem e, embora sejam espontâneos, resultam de processos que se relacionam com as vivências infantis, emocionalmente mais significativas. Considerando que as escolhas dos papéis estão relacionadas aos significados que assumem para a criança, poder-se-ia pensar que esses primeiros papéis de adulto, que apareceram da forma abreviada ora relatada, de alguma forma relacionam-se com suas vivências cotidianas, podendo estar ligados às profissões de seus pais.

Para se manifestarem, os jogos protagonizados requerem alguns elementos mediadores, internos e externos. Um importante “[...] mediador externo à criança são os brinquedos e artefatos (objetos, indumentárias, etc.) e, em especial, a presença de outras crianças.” (OLIVEIRA, 2011, p. 143). Já o elemento mediador interno “[...] são, por exemplo, as memórias de situações, as percepções e sensações, as expectativas e necessidades das crianças, que vão se apresentando ao longo da experiência cotidiana” (OLIVEIRA, 2011, p. 143). Na situação escolar observada, embora não houvesse mediadores externos, os papéis observados decorrem de mediadores internos fundamentais ao revelar memórias de situações vivenciadas pelas crianças.

Quanto mais se consegue propiciar momentos e atividades que permitem interações de pequenos grupos, mais se auxilia a criança a aprender como se conduzir nas relações com diferentes parceiros. Com isso são criadas oportunidades para a construção de conhecimentos e de sentidos pessoais sobre o mundo e sobre si. (OLIVEIRA, 2011, p. 143).

Trata-se, portanto, da vivência das relações que a criança observa nas situações cotidianas, colocando-se na perspectiva do adulto, satisfazendo a necessidade emocional infantil de antecipar esses papéis, situando-se em uma nova zona de desenvolvimento psíquico iminente, e, como tal, profícua e necessária para o desenvolvimento psíquico infantil.

Algumas considerações finais: jogos protagonizados e desenvolvimento psíquico na Educação Infantil

As escolas de Educação Infantil enfatizam o trabalho pedagógico voltado ao saber escolar e deixam de lado o brincar como atividade lúdica e criativa. Quando ocorrem, as atividades lúdicas são utilizadas apenas como estratégias para a apropriação do saber escolar (LEAL, 2003). Na mesma direção, as pesquisas de Azevedo (2006), Mochiutti (2007) e Araújo (2008) apontam para o desconhecimento docente quanto à importância do brincar para o desenvolvimento infantil, assinalam a especificidade das brincadeiras e a importância de que o professor compreenda que a Educação Infantil não é uma etapa preparatória para o Ensino Fundamental. Essas considerações ratificam-se na presente pesquisa.

Se pouco se observa quanto à presença do brincar na Educação Infantil, a situação agrava-se com a ausência quase total de jogos protagonizados, os quais envolvem temas trazidos pela própria criança com base nas relações que ela observa entre os adultos. Essa ausência é provocada pela forma como as atividades da escola se organizam, não possibilitando tempo e espaço para que os jogos de papéis ocorram, o que revela o desconhecimento da equipe de ensino quanto à contribuição pedagógica e emocional dessas vivências pela e para a criança.

A Pedagogia Histórico-Crítica propõe que o desenvolvimento seja guiado pela educação, isso é, por uma “[...] sistematização da educação de forma que esta possa dirigir regularmente os ritmos e o conteúdo do desenvolvimento por meio de ações que exercem influência sobre este.” (DAVIDOV; SHUARE, 1987, p. 151). Esse processo concretiza-se pela mediação docente. Ao professor cabe desenvolver tarefas que atuem como mediadoras entre o ponto de partida discente - conhecimento empírico, cotidiano, o que o aluno já traz - e o ponto discente de chegada - apropriação do conhecimento científico.

A Psicologia Histórico-Cultural destaca que atividade e consciência articulam-se reciprocamente. Propõe, ainda, que a atividade-guia que se articula ao desenvolvimento psíquico da criança dos 3 aos 6 anos é o brincar, necessariamente associado à criação de uma situação fictícia, em que a criança tenha oportunidade de vivenciar relações adultas observadas em seu contexto, por meio de papéis em que as protagoniza. Essas vivências referem-se a situações de fundamental importância para a formação de suas neoconexões psíquicas, por ligar-se ao desenvolvimento das funções intelectuais e ao desenvolvimento da esfera afetiva.

O jogo protagonizado é uma oportunidade para realizar as tendências e os desejos irrealizáveis que surgem na criança pré-escolar, os quais são anteriores ao jogo e sem os quais o jogo inexistiria. Vivenciar o lúdico propicia um salto no desenvolvimento da criança, que passa a comportar-se com maior maturidade, procurando resolver a nova situação que protagoniza. Ela precisa solucionar o conflito gerado pelo que quer e pelo que não pode ainda realizar, por isso, cria um mundo imaginário no qual realiza seus desejos.

É justamente nesse mundo imaginário que surge o jogo de papéis e, principalmente, desenvolve-se a imaginação, processo psicológico especificamente humano da consciência e originário na ação da criança. A atividade mental do pré-escolar é decisivamente influenciada pela ludicidade ao realizar uma ação pressupondo outra, ou ainda, ao manipular um objeto pressupondo outro, o que faz a imaginação ser fundamental para o jogo de papéis.

Além da imaginação, os jogos protagonizados permitem o aprimoramento de novos domínios, consequentemente, desenvolvem o psiquismo: atenção, memória ativa e voluntária, vocabulário, raciocínio lógico-causal, exigindo concentração para rememorar vivências anteriores. Possibilitam, ainda, uma conduta arbitrada, ou seja, um maior controle sobre os próprios comportamentos, assegurando, assim, a gênese de aprendizagens sistematizadas mais complexas. Ao brincar de jogo de papéis, a criança reconhece suas capacidades e potencialidades, expõe suas opiniões acerca da sociedade em que vive, demonstra seus sentimentos, revela sua consciência na busca de humanizar-se.

A função social da escola está vinculada à formação do homem para viver em sociedade, sendo que os conhecimentos transmitidos devem servir para o desenvolvimento e o aprimoramento das capacidades humanas. O que requer aprendizagem, que, por sua vez, requer ensino, responsabilidade da escola.

Considerando que as condições históricas são complexas e se articulam ao modo de produção, “não é o homem que transforma as circunstâncias, por si só, mas enquanto as transforma, transforma-se a si próprio.” (BATISTA; LIMA, 2012, p.33). Nesse sentido, a formação da criança pequena mediante a educação escolar é parte de uma totalidade maior, de um projeto político de sociedade, a ser transformada. É função da escola compreender e explorar as necessidades e criar incentivos, abrindo espaços e tempo na organização curricular, propiciando à criança vivências viabilizadas por meio dos jogos de papéis, para que ela avance a estágios de desenvolvimento cada vez mais evoluídos.

Dessa forma, a educação da criança pequena pode reafirmar seu caráter institucional e social, reivindicado pela sociedade, possibilitando o acesso aos conhecimentos historicamente construídos pela humanidade, necessários ao desenvolvimento das novas gerações.

Referências

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3Este trabalho fundamenta-se no conceito de jogo proposto por Vigotski (2008), e posteriormente de jogos protagonizados/jogos de papéis, proposto pela escola soviética (ELKONIN, 2009). Assim, entende-se “jogo de papéis” e “jogos protagonizados” como sinônimos.

4A expressão “zona de desenvolvimento iminente” (ZDI) sustenta o conceito que se refere a “[...] processos que, no curso do desenvolvimento das mesmas funções, ainda não estão amadurecidos, mas já se encontram a caminho, já começam a brotar; amanhã, trarão frutos; amanhã, passarão para o nível de desenvolvimento atual.” (VIGOSTKI, 2004, p. 485 apud PRESTES, 2010, p. 173). ZDI é o que conhecemos por ZDP nas traduções anteriores a de Prestes (2010), especialmente no livro “A formação social da mente” (VIGOTSKI, 1998).

5Trata-se da tese de doutorado de Cristina Amorim Martins.

6Por questões éticas optou-se por omitir o nome da escola e, portanto, por não citar o Projeto Pedagógico da escola investigada, nas referências.

Recebido: 26 de Setembro de 2016; Aceito: 12 de Março de 2017

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