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Revista de Educação Pública

Print version ISSN 0104-5962On-line version ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.28 no.67 Cuiabá Jan.-Apr 2019  Epub May 15, 2019

https://doi.org/10.29286/rep.v28i67.7111 

Educação, Poder e Cidadania

Aquarela brasileira: fantasmas melaninos, venenos melanômicos

Brazilian Watercolor: melanin ghosts, melanomic poisons

Armando de Melo LISBOA1  *

1Doutor em Sociologia Econômica pela Universidade Técnica de Lisboa (2004). Professor Associado I do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina. Tem atuado principalmente nas áreas de América Latina, economia solidária, ecológica, popular, filosofia e sociologia econômica, desenvolvimento e ciências da religião. Endereço: CNM/CSE - Campus Universitário - Florianópolis (SC - 88040-900. E-mail: <amelolisboa@gmail.com>.


Resumo

A luta antirracista vê-se envolvida cada vez mais em armadilhas decorrentes da traiçoeira e fatal linguagem racializada por ela utilizada, cujas categorias e ontologia, por entorpecer valores éticos e engendrar desumanização, acabam por comprometer a própria luta. Assim, este ensaio discute a ideia duma identidade racial e aponta para a importância crucial da desracialização da práxis política emancipatória para que ela possa alcançar êxito.

Palavras-chave: Racismo; Negritude; Branquitude; Identidade; Fanon

Abstract

The anti-racist struggle finds itself increasingly involved in traps resulting from the treacherous and fatal racialized language used by it. The categories and the ontology of this language, by hindering ethical values and engendering dehumanization, end up compromising the struggle itself. Thus, this essay questions the idea of a racial identity and points to the crucial importance of the deracialization of emancipatory political praxis so that it can succeed.

Keywords: Racism; Blackness; Whiteness; Identity; Fanon

“Essa obrigação histórica em que se acham os homens de cultura africanos de racializar suas reivindicações ... vai conduzi-los a um beco sem saída.” (FANON)

1. “Respeitem meu lado negro”

“A minha cor é pálida e o meu cabelo, quando deixo crescer, dá para pentear.

Da Bahia prá cima e da classe média prá baixo, posso dizer que sou branco.”

(CLÁUDIO DA SILVA)

“Por dentro sou cheio de cores.”

(ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO).

Recentemente, Fabiana Cozza foi vilipendiada por ser escolhida para interpretar Ivone Lara em um musical. Afrodescendente (filha de pai negro e mãe branca), Cozza sempre se reconheceu como negra e, como tal, notoriamente professa absoluta identificação com a cultura afro2. Ela manteve sólida amizade com Ivone, com quem gravou e também se apresentou em vários espetáculos. Nei Lopes (2018, p. 75) ousou dizer que desconhecia “cantora brasileira mais capacitada” para personificar Ivone Lara. Contudo, por não ser negra retinta, ela não teria legitimidade para encarnar tal papel. Não se trata, infelizmente, de um caso isolado. Mas serve para ilustrar os dilemas políticos do movimento de construção de identidades raciais que, a pretexto de lutar contra a discriminação, acabam por alimentar proselitismos e perfazer formas de racismo invertido.

Na verdade, algumas vozes relevantes e comprometidas com o movimento negro tomaram posição contrária à hostilização que atingiu Cozza advinda da intolerância que desabrocha, de forma cada vez mais aguda, dentro do próprio movimento negro. Merece destaque o registro de Emicida: “atacar/desrespeitar a Fabiana Cozza é um tiro no pé são tiros no espelho. Tristes tempos esses nossos.”3

De fato, o tempo em que a cor da pele é mais importante que o talento é triste e dista cada vez mais daquele sonhado por Luther King, onde pessoas seriam julgadas por sua personalidade, não pela cor de sua pele. O antológico linchamento sofrido por Fabiana Cozza desvela um deprimente cenário, pois, de uma forma surpreendente e inusitada, repõe o racismo, cujo núcleo reside na afirmação de que características físicas determinam não apenas as capacidades humanas mas também o agir moral e psicológico de indivíduos e grupos sociais.

Em outros tempos, Vinicius de Moraes - que com Baden Powell tornou-se pioneiro do afro-samba - queria que “os brancos fossem pretos, e que os pretos fossem brancos.” Chico Buarque também admite que Vinicius não teria lugar na sociedade atual, marcada pelo dinheiro e ostentação, na qual tudo é super-programado e nada é feito sem a intenção de obter um ganho pré-determinado.4

Realmente, nosso poeta/diplomata ficaria sem lugar, mas não pelos motivos que Chico aponta. O politicamente correto hoje torna inimaginável um branco apresentar-se como o branco mais preto do Brasil. Os constrangimentos e perseguições que Vinicius sofreria por assim se apresentar - mesmo professando profundo envolvimento com a identidade afro - impossibilitariam que Vinicius se tornasse a figura que conhecemos. Assim como Cozza, a cobrança do lugar de fala de Vinicius impediria-o de entoar ser “negro demais no coração”, ou o tornaria inaudível exatamente com setores enegrecidos da sociedade.

O atual posicionamento da militância e do pensamento negro reflete o surgimento de novas formas de se compreender as relações raciais no Brasil: estamos saindo do extremo assimilicionista, onde imperava a ideologia não existe racismo, rumo à afirmação radical da ideia de raça e da ideologia do separatismo racial. Com uma ampla mobilização indígena, ele é contemporâneo de um profundo e continental movimento de desconstrução da identidade latina que desde o pós-guerra denomina toda a região ao sul do Rio Grande, a qual oculta o fato maior dos grupos populacionais não latinos serem majoritários. Parte da ideologia latinista é afirmar que a mestiçagem é uma tendência inexorável cuja resultante é uma população cada vez mais homogênea e predominantemente latina, capturando a todos numa perspectiva epistêmica eurocentrada.

Ultrapassando esse discurso de miscigenação embranquecedora e seu correlato mito da democracia racial dissimuladora das formas de racismo brasileiro, luta-se para valorizar as origens africanas e as culturas negras como tão legítimas para a formação nacional quanto as raízes europeias. Ocorre que nesse processo adota-se um modelo advindo das conquistas históricas dos negros estadunidenses, e que tem por base a fratura binarista negro-branco praticada nos Estados Unidos, onde a pessoa é branca ou é preta, sem gradações intermediárias. Mas sabemos que no Brasil a linha de cor é ambígua e fluída, tornando a aquarela brasileira uma das mais confusas e complexas do planeta. Nesse cenário, transpor estereótipos raciais exógenos, como estamos a fazer, é excludente, divisionista e deletério. Caetano, aliás, chamou a atenção para essa nossa colorida carnavalização: “Gil é um mulato escuro o suficiente para, mesmo na Bahia, ser chamado de preto. Eu sou um mulato claro o suficiente para, mesmo em São Paulo, ser chamado de branco” (VELOSO, 1997, p. 287).

A tendência de fortalecimento da polarização entre duas essências puras, a negra e a branca, também é amplificada pelo paradigma historiográfico brasileiro que reduz as relações sociais ao antagonismo entre senhores e escravos, como se o Brasil tivesse apenas duas partes, a casa-grande e a senzala. Distorce-se que há muito mais além da relação escravocrata. Uma renovada interpretação da nossa história embasada em ampla documentação demonstra que, apesar do grande número de escravos, a sociedade colonial brasileira não era essencialmente escravista, como esclarece Jorge Caldeira (2009, p. 237). Mesmo sem computar a presença indígena, a população livre compunha a maioria da população brasileira no período. Comparando os dados censitários brasileiros e norte-americanos, Francisco Luna e Samuel Klein constatam que, diferentemente dos Estados Unidos, onde “mais de 95% da população livre era branca, na maior parte do Brasil os brancos tendiam a compor menos da metade da população livre” (apud CALDEIRA, 2009, p. 233).5

Essa população majoritária livre e de cor não era formada apenas por desclassificados, como explicitou Caio Prado Jr. Ao contrário: com grande parte dela “constituída por pessoas de ascendência africana”, ela formava a base para um pujante mercado interno6, indo muito além de uma desprezível economia de subsistência. Chegou, inclusive, a gerar algumas das maiores fortunas do planeta naquela época. Conclui Caldeira (2017, p. 100) que a escravidão africana deixa de ser considerada como “a clivagem central para entender a estratificação social e as disputas de classes”, pois “não há sustentação empírica para a ideia de um corte radical na sociedade a partir da propriedade de escravos - ou para um papel primordial do ‘latifúndio agrário-exportador’” (CALDEIRA, 2009, p. 269).

Em grande parte, aqueles posicionamentos pretensamente antirracistas se embasam na filosofia do lugar de fala, a qual pressupõe que a melhor estratégia para enfrentar o racismo é desvelar a identidade racial implícita em cada um dos sujeitos sociais. O “lugar de fala” impõe que os brancos “se racializem, entendam o que significa ser branco”, ressalta Djamila Ribeiro (2017, p. 69). A perspectiva do lugar de fala não visa simplesmente abrir espaços para que o subalterno fale e defenda seu direito à humanidade, mas aspira enquadrar a todos numa máscara melanímica. Mais do que localização social, trata-se de localização racial:

Numa sociedade como a brasileira, de herança escravocrata, pessoas negras vão experenciar racismo do lugar de quem é objeto dessa opressão [...] Pessoas brancas vão experenciar do lugar de quem se beneficia dessa mesma opressão. (RIBEIRO, 2017, p. 86, grifo nosso).

Na busca por desconstruir um universalismo coercitivo, a conceituação/prática do lugar de fala faz ecoar um erro primário, o da autoridade existencial, já denunciado por Edward Said: “somente mulheres podem compreender a experiência feminina, somente judeus podem compreender o sofrimento judaico, somente ex-colonizados podem compreender a experiência do colonialismo.” (apud HOOKS, 2017, p. 112). Portanto, eles estão fora do lugar e, ou não estão autorizados a falar, ou seus argumentos, aprioristicamente, são descartados ou reduzidos a um significado marginal, uma vez que, singelamente, se nega a legitimidade de outrem, mesmo quando esse outrem partilhe e participe integralmente da vida do subalterno.

Nessa teoria, para aprender a não ser racista, é necessário, primeiramente, assumir seu lugar racial na estrutura racialista da sociedade, sua identidade racial, inclusive por parte do cidadão que critica e rejeita o racismo. Isso estimula a identificação racial conforme a diversidade das aparências físicas dos indivíduos. Essa perspectiva classifica o lugar de cada um segundo um padrão colorista bipolar, dividindo todos em dois conjuntos sem intersecção: brancos e não brancos. Pressupondo-se que conformam grupos homogêneos, outras categorias são simplesmente ignoradas. Dilui-se, assim, a aquarela brasileira, tão admirada em todas as latitudes.

Assim, a luta antirracista privilegia a categoria raça, a qual ajudaria a reconhecer o modus operandi da discriminação racial. Ora, foi o fenômeno do racismo que produziu esse conceito. De forma recursiva, ele reitera e reproduz o próprio racismo. A linguagem nunca é inócua: a língua sempre foi a companheira do império, admitia Nebrija, autor da primeira gramática de uma língua moderna, o espanhol, em 1492. Como se desvencilhar do racismo usando a mesma categoria que o torna possível? Esse dilema epistêmico é incontornável, como veremos no tópico 4, exigindo o máximo de precauções para não se tropeçar numa armadilha e assim almejar algum êxito.

Todavia, a questão maior aqui não é a de assumir o risco, praticamente inevitável, de usar a linguagem racializada, mas de fazer cada cidadão adotar explicitamente uma identidade racial. E isso se alcança por meio duma postura vigilante e combativa por parte da militância e suas organizações. Eliminando todo o amplo espectro das cores tupiniquins, afunda-se numa pantanosa e acirrada disputa sobre o quão branco ou preto cada um é (vide caso de Fabiana Cozza), em que a entidade raça opera plenamente, incendiando relações e gerando ainda mais ressentimentos. Não se trata apenas do uso genérico - que dista de ser inóxio - de categorias raciais, mas de enquadrar cada um nessa poderosa camisa de força.

Ora, para aqueles que já são críticos do racismo, essa assunção não altera nada. Contribui apenas para rotulá-los e gerar um certo efeito de distanciamento. E quanto aos racistas, é inverossímil que essa perspectiva faça alguma diferença. A única mudança é que agora afirma-se explicitamente a identificação racial, fomentando-a e reforçando-a, estereotipando ainda mais as pessoas. Ao contrário da questão anterior, de ordem semiótica, essa estratégia identitária é muito mais perigosa, desnecessária e errática.

O lugar de um branco é definido e congelado como o da branquitude, de modo que ele não deva pretensamente falar do lugar de um negro, impedindo-o de obter uma identidade distinta da epidérmica. Como se fosse possível desprovê-lo de um sentimento inato de empatia - o que seria muito mais grave. Isso gera uma suspeição e interdição que inibe a possibilidade de falarem juntos, podendo levá-lo a calar sua voz. Por construir o outro de modo essencializado e estereotipado - o lugar cromático de enunciação é o que rege e define a validade do discurso - o lugar de fala não se encontra sob uma perspectiva dialógica, a qual parte da disposição de deixar-se afetar pelo outro. Deslegitima, assim, sua voz e capacidades e, no limite, o excomunga, eliminando um amplo leque de convergências possíveis.

Assim como a capacidade de falar, nascemos dotados do fenômeno da empatia, que nos possibilita entrar na pele do outro, nos abre para o mundo do outro. Ele não brota da razão e sim da aproximação sensível, opera por contágio e se amplifica com a convivência, gerando um profundo comprometimento moral e político - o que me comove, me move, diz o ditado. Ao invés de partir e acentuar esse natural e precioso sentir-pensar, grotescamente o lugar de fala afasta-nos dessa pertença empática, apartando os atores sociais pela racionalização que decreta teu lugar não é aqui e faz com que muitos se sintam fora do lugar. Reversamente, Fanon (2008, p. 86), em seu trabalho de graduação em psiquiatria, expõe que “uma experiência subjetiva pode ser compartilhada por outra pessoa que não a viva; e não pretendo jamais sair dizendo que o problema negro é meu problema, só meu.”

Quando o lugar da fala “interrompe o diálogo”, adverte Marcia Tiburi (2017), “então ele corre o sério risco de estar contra si mesmo, de ter regredido a um momento que podemos chamar de anti-político. Se, de dentro da minha dor, eu elimino o diálogo, posso já ter deixado de lado a luta. Posso estar perdido em um exercício de puro ressentimento.”

Por isso, em um recente Congresso de Pesquisadores Negros, Ivo Pereira de Queiroz7 afirmou: “quando matam um negro que está em mim, matam todos os humanos que estão em mim. Exijo que respeitem meu lado negro”. Por sua vez, a crítica do lugar de fala de Antonio Engelke enfatiza que ela nos leva a pensar que “somente os puros podem falar” (2017, p. 42) - no caso, “somente negros retintos poderiam interpretar Ivone Lara”. Ora, jogando-nos na cilada de hierarquizar opressões, a busca por pureza “não cessa de mover as fronteiras que demarcam a construção do inimigo, trazendo-as cada vez mais para o interior do próprio campo progressista.” (p. 43).

Com uma postura autofágica e fraticida, incidimos em inacreditáveis práticas essencialistas de pureza de sangue, estimulando, literalmente, a regressão das lutas e do imaginário utópico e emancipatório. Bloqueamos, assim, o surgimento de uma sociedade mais igualitária e substantivamente democrática. Se estamos em lugares diferenciados (e alguns de privilégio), há que combater aquilo que produz esses lugares diferenciados em que estamos em conjunto com todos os que se dispõem para tal luta.

Do ponto de vista libertário, ninguém deve dispor de monopólio exegético, muito menos quando essa posição de autoridade é definida por critérios raciais. Trata-se de uma prerrogativa inaceitável, pois inepta e regressiva, ou seja, incongruente com as promessas emancipatórias. Em outras palavras, mesmo sendo reconhecido como aguerrido, politizado e até erudito na aparência, esse “radicalismo” revela-se estreitador e incompatível com as esperanças e mudanças postas pelas lutas sociais de hoje, castrando a multiplicação de lugares de potência transformadora.

A luta do movimento negro tem inúmeros méritos e logros, sendo talvez o maior o de ter colocado o racismo na agenda pública brasileira. Mas a radicalização de seus setores acaba levando-o a cair na armadilha do isolacionismo étnico e, paradoxalmente, a prolongar a herança colonial - o que seria ainda pior. Pois a raça é a mais central e maléfica categoria do processo colonial. Numa incrível inversão de polarizações, usa-se da mesma régua colonial-racista, mas com sinais contrários, para medir, classificar e discriminar pessoas conforme a cor de sua pele, com os próprios vitimados combatendo “não contra a pertença do Negro a uma raça distinta”, esclarece Achile Mbembe (2014, p. 159), mas contra a inferioridade justaposta à sua “raça”.

A melanina e condições de nascimento continuam a aprisionar e danar as pessoas. Este pecado original - que estigma todos ao simplesmente nascer - se renova, agora não mais como imposição senhorial, e sim como uma condição inalienável afirmada pela militância social negra - imbuída de teorias que, pretensamente, querem corrigir uma iniquidade histórica. O “racismo antirracista” (FANON, 1968, p. 114) é uma forma insidiosa - e aqui reside sua periculosidade - que se impregna na vida democrática, contaminando-a.

Se queremos estar à altura do nosso tempo, há que sair desse atoleiro. A superação da redoma míope e sectária que reveste atualmente o movimento negro passa pela desracialização da linguagem por ele adotada, inclusive pelo abandono da ideia duma identidade racial negra, como discutiremos nos próximos tópicos. Não é uma tarefa simples, mas sem independência de espírito, autocrítica e coragem, a aventura do permanente combate pela dignidade humana ficará cada vez mais distante.

2. Crítica fanoniana à negritude

“No campo de batalha, limitado nos quatro cantos por vintenas de negros pendurados pelos testículos, ergue-se pouco a pouco um monumento que promete ser grandioso. E, no cume deste monumento, percebo um branco e um negro que se apertam as mãos.” (FANON)

Assombrosamente, aquelas posturas sectárias vão na contramão do que afirmam alguns dos mais célebres e iminentes pensadores comprometidos com a emancipação dos negros. É o caso de Frantz Fanon, uma relevante e radical figura da luta anticolonial africana. Tendo lutado contra o nazismo na Segunda Guerra Mundial e contra o imperialismo francês na guerra Franco-Argelina, proclamou, como transparece na epígrafe acima, que não se pode agir politicamente com rancor e ressentimento: “o racismo, o ódio, o ressentimento, ‘o desejo legítimo de vingança’ não podem alimentar uma guerra de libertação.” (1968, p. 114). Ele fincou esclarecimentos valiosíssimos contrários a essa radicalização (ou melhor, racialização) estreitadora, estereotipada e retrógrada sobre a cor da pele para demarcar posicionamentos políticos. Esse afro-franco-argelino-caribenho não cansou de alertar sobre a contraproducente deformação maniqueísta presente na ideologia da negritude, como o fez, por exemplo, quando ela penetrou nas Antilhas: “Parece-me que os antilhanos, depois de viver o grande erro branco, estão agora vivendo a grande miragem negra.” (apud ORTIZ, 2014, p. 433).

Sua dura crítica do racismo às avessas e dos maniqueísmos esterilizadores ficou transparente tanto nos “Condenados da terra” (FANON, 1961, 1ª edição), quanto em “Pele negra, máscara branca” (1952, 1ª edição). Essa última obra adverte que o negro, sendo “uma construção do branco”, “se joga no grande buraco negro” no qual “rejeita a atualidade e o devir em nome de um passado místico” (2008, p. 30-31). Prognostica que, enquanto os negros compreenderem sua condição humana a partir da assunção da epidermização em que foram enquadrados e lhes inferiorizou, enquanto assumirem que sua pele negra os identifica e continuarem a se ver racializados, permanecerão capturados pelo olhar racial europeu e prosseguirão vendo-se a si mesmos pelos olhos brancos, ou melhor, das máscaras brancas desse deformante olhar.

Animalizados pelo colonialismo, Fanon insistirá que a existência dos condenados se encontra abaixo da linha do humano, que o negro é um não-ser: “o negro não é um homem” (2008, p. 26). A luta de libertação da condição colonial visa “passar do estado animal ao humano”, desvesti-lo da pseudo pele ontológica que o branco lhe impôs e reintegrá-lo simplesmente como homem, processo que reabilitará também, se possível, o próprio “carrasco” (1968, p. 103, 255).

Nessa direção, contesta vigorosamente um prefácio de Sartre a uma pioneira antologia da poesia negra, onde ele, citando Césaire, saúda “o grande grito negro que abalará os assentamentos do mundo” (FANON, 2008). A essa afirmação, Fanon contrapõe que o seu grito “não será nada negro”, pois “o erro de Sartre” é querer helenizar, orfeizar “a este negro que procura o universal” (2008, p. 121, 43, 158). Afirma ainda que “Sartre mostrou que o passado [...] ‘aprisiona’”. Todavia,

[...] não é o mundo negro que dita minha conduta. Minha pele negra não é depositária de valores específicos. [...] Não sou prisioneiro da História. [...] Não sou escravo da escravidão que desumanizou meus pais. [...] Sou um homem e é todo o passado do mundo que devo recuperar. (2008, p. 187-190).

Sem se deixar aprisionar pela ilusão do destino, ele não se conformou à tirania da fatalidade. Como Todorov (2005, p. 212), “o homem pode superar-se; é nisso que ele é humano” - entendeu que viver é fazer escolhas, é devir; já que nada está pré-fixado, cada um pode se reinventar “a todo instante”. Todos podemos, portanto, invocar uma identidade distinta da que nos foi outorgada ao nascer, como demonstra hoje a teoria de gênero. Assim, enfatizou que

[...] o verdadeiro salto consiste em introduzir a invenção na existência. No mundo em que me encaminho, eu me recrio continuamente. (...) Não se deve tentar fixar o homem, pois o seu destino é ser solto. A densidade da História não determina nenhum de meus atos. (FANON, 2008, p. 189-190).

Em “Condenados da Terra” descreve que os intelectuais colonizados, em sua luta “para escapar da supremacia da cultura branca”, sentem “a necessidade de regressar a raízes ignoradas” e, privilegiando costumes e tradições, perfazem uma “banal busca de exotismo” para “reencontrar o povo”: querer “reencontrar o povo é (...) querer ser negro (...) um verdadeiro negro” (1968, p. 181, 183).

Ora, o colonizado teima em proclamar a existência de uma cultura africana, mas essa é uma invenção colonial. O “Negro”, esclarece, é uma categoria genérica criada pelo colonialismo para rotular um “vasto continente” e condená-lo como “uma toca de selvagens, uma região infestada de superstições e fanatismo”. Buscando “escapar da dentada colonial”, os “esforços do colonizado (...) inscrevem-se logicamente numa perspectiva que é a mesma do colonialismo”. O negro “jamais foi tão negro como a partir do instante em que esteve sob o domínio do branco” (1968, p. 176). Fanon sabe que o “Negro” espelha e inverte o racismo europeu, sendo sua antítese:

[...] à afirmação incondicional da cultura europeia sucedeu a afirmação incondicional da cultura africana. (...) O conceito de negritude era a antítese afetiva senão lógica desse insulto que o homem branco fazia à humanidade. Essa negritude exacerbada contra o desprezo do branco revelou-se em certos setores apenas capaz de suspender interdições e maldições. (1968, p. 177; 176).

Ele entende que a racialização com as cores branca e preta é uma fantasmagoria insana que aprisiona duplamente tanto o branco quanto o preto8, dilacerando a sociedade, pois impede reconhecerem-se em sua comum condição humana:

[...] existem dois campos: o branco e o negro. Tenazmente, questionaremos as duas metafisicas e veremos que elas são frequentemente muito destrutivas. [...] O negro [...] fica enclausurado no próprio corpo. [...] O branco está fechado na sua brancura. O negro na sua negrura. [...] Trabalhamos para a dissolução total desse universo mórbido, [...] [para] afastar estes dois termos que são igualmente inaceitáveis e, através de uma particularidade humana, tender ao universal. (2008, p. 26-27; 186; 166, grifos nossos).

Portanto, ciente da unicidade da condição humana e da “potência extraordinária” da linguagem, a qual define o modo de ser e aprisiona implacavelmente o olhar num “círculo infernal”, Fanon recusa essa amputação (2008, p. 34; 39; 109; 126) que a cissiparidade da cor engendra. Contestando dessa forma o apelo ao colorismo racial, grita repetidamente: “não existe problema negro [...], não existe fardo branco [...], pretendemos, nada mais nada menos, liberar o homem de cor de si próprio [...], trata-se de deixar o homem livre” (2008, p. 43; 189; 26).

Como psiquiatra, Fanon entendeu claramente que o problema do racismo não é de caráter étnico, mas semiótico e espiritual, que a “desalienação dos negros” para levá-los “a não serem mais escravos dos seus arquetípicos” passa pela transformação da linguagem racializada que sustenta e fixa o olhar que lhe faz sentir “o peso da melanina” (2008, p. 49; 47; 133). Propôs, na conclusão dos “Condenados”, romper com o narcisismo europeu, em que “palavras, agregados variados de palavras, as tensões nascidas dos significados contidos nas palavras” produzem realidades obscenas e delirantes (1968, p. 273). Nesse sentido, no limite, a conhecida afirmação de Morgan Freeman, em uma entrevista - “o que é preciso para sair do racismo? Parar de falar sobre ele!”, é rigorosamente fanoniana.

“Aprisionados no calabouço das aparências” - observa agudamente Mbembe (2014, p. 12) - o único modo de “brancos” e “negros” saírem da doentia “enorme jaula” do racismo, onde estão indesatavelmente enclausurados e da qual surgem como versões do mesmo distúrbio patológico, é erradicando a crença em raças e renunciar a usar do venenoso léxico cromatológico para se autoidentificarem. Por isso, Fanon, sabedor que “a neurose não é constitutiva da realidade humana” (2008, p. 134), clinicamente recomenda: “A liberação dos complexos de ódio só será obtida se a humanidade souber renunciar ao complexo de bode expiatório.” (2008, p. 156).

Em sua luta para “simplesmente ser um homem entre outros homens” - “não tenho o direito de ser um negro” (2008, p. 106; 189), bradou - Fanon não se cansou de apelar ao seu mestre Aimé Césaire e proclamar que a cor não amputa a tomada de consciência da humanidade comum: “minha negritude não é torre nem catedral. Ela mergulha na carne vermelha do solo. Ela mergulha na carne ardente do céu.”

Foi com essa postura de alcançar um mundo desembaraçado do “fardo da raça”9 que Fanon, em sua obra derradeira, “Damnés”, advertiu que “a elaboração do conceito de negritude” conduzirá os africanos “a um beco sem saída” e degradará ainda mais sua sociedade, que esse conceito, com o “processo de descolonização” e “libertação dos povos” deixaria de fazer sentido pois “não haverá cultura negra” uma vez que “os negros estão desaparecendo”. Nessa mesma linha, ao contestar esse conceito, discordou também da adoção do mesmo por Léopold Senghor, um dos seus apóstolos criadores e então Presidente do Senegal, como programa de estudo nas escolas, caso a preocupação não seja de ordem histórica, mas visando “fabricar consciências negras” (1968, p. 178-179; 26; 195-196).

Enfatizará, ainda, que a negritude esbarra no limite de que “a cultura negro-africana se fragmentou” (1968, p. 180). Por não haver uma essência ontológica, as dinâmicas contingentes da história e as interdependências econômicas são “mais fortes que o passado” que se quer reviver. Como “a experiência negra é ambígua”, e tendo se dispersado ainda mais com a diáspora, inexiste uma unidade da “raça negra” (2008, p. 123; 149): os problemas que se colocam aos negros americanos “não se assemelhavam aqueles com que se defrontavam os negros africanos”. No caso do mundo norte-africano, os Estados árabes hoje são tão “organicamente ligados às sociedades mediterrâneas de cultura”, e a tal ponto “estranhos uns aos outros, que um encontro mesmo cultural entre esses Estados se revela um disparate” (1968, p. 179-180).

A inexistência duma comunidade homogênea de interesses - “não há um preto, há pretos” (2008, p. 123); “há negros que são mais brancos que os brancos” - se apresenta quando os colonizados declaram que falam como “senegalês e francês”; “argelino e francês”; “nigeriano e inglês” (1968, p. 118; 181). O próprio Fanon, ao questionar “que história é essa de povo negro, de nacionalidade negra?”, autodeclarou-se: “sou francês” (2008, p. 170)10. Assim, a unidade africana, se for possível, deve ser buscada em termos políticos, e não culturais, pois ela ganha densidade é em torno da “luta de libertação dos povos” (1968, p. 196).

Apesar do clássico embate crítico de Fanon com o movimento/conceito da negritude, quando do auge da difusão desse nas lutas anticoloniais na África durante a Guerra Fria, tais posturas ressurgem como sinal dos tristes tempos atuais.

3. Dilemas da racialização identitária

“El sistema de construcción binario de identidades ha operado en detrimento de la posibilidad de opción de las personas, en detrimento de la necesidad de búsqueda y construcción de subjetividades distintas, múltiples. (...) La constitución de las identidades de género, raza, etnia, etc., se convierte en un verdadero ejercicio de represión, de regulación y sujeción de los sujetos.” (YUDERKYS ESPINOSA)

Colorir e racializar os seres humanos é um modo de essencializar o outro - estereotipando-o com uma cor e identificando-o de forma monolítica e homogênea em torno de um único aspecto da vida, o das aparências - o que permite objetificá-los, torna-los coisa, mercadoria. Ou seja, a ontologia da raça reifica a diferença como parte da nossa natureza, como se os genes pudessem transmitir cultura.

A negra-lesbiana Yuderkys Espinosa, partindo das teorias de gênero, afirma que o sistema de repressão dos corpos se reproduz enquadrando-os em pares binários e polarizados, fixando-se num deles como central e dominante. Esse binarismo estereotipante e mutilador “perpetua a crença na coerência interna e casualidade entre sexo-gênero e fisionomia-raça” (2007, p. 32). Segundo essa lógica, o sujeito assujeitado não tem outra opção a não ser confinar-se no lugar identitário que lhe foi determinado. Portanto, a imutabilidade dessa identidade atribuída não está a serviço das causas emancipatórias, mas desse poder binário de dominação. Transgredi-lo e superá-lo exige optar pelo tertium datur e adotar uma perspectiva trans, ou seja, ir além das antinomias constitutivas da modernidade ocidental.

Não há uma identidade verdadeira e estática. Ao invés de um único atributo identitário, todos temos múltiplos pertencimentos e lugares (orientação sexual; religião; etnia; classe; idade, etc.). “Cada indivíduo é portador de múltiplas culturas”, esclarece Todorov (2010, p. 106). Também Said (2011, p. 510, grifo nosso):

Hoje em dia ninguém é uma coisa só. Rótulos como indiano, mulher, muçulmano ou americano não passam de pontos de partida que, seguindo-se uma experiência concreta, mesmo que breve, logo ficam para trás. O imperialismo consolidou a mescla de cultura e identidades numa escala global. Mas, seu pior e mais paradoxal legado foi permitir que as pessoas acreditassem que eram apenas, sobretudo, exclusivamente brancas, pretas, ocidentais ou orientais.

A identificação é um processo multidirecionado, contingente e indeterminado, que não é fruto de uma imaginária essência embasada numa natureza primordial. A militância negra ainda não aprendeu com o “vasto acervo de lições” advindas da “história do Atlântico negro” sobre a “mutação” e “instabilidade” das identidades, levando em conta que elas “estão sempre inacabadas, sempre sendo refeitas”, agrega Paul Gilroy (2012, p. 30). Aliás, o mesmo autor, em sua obra clássica, procura “repudiar as perigosas obsessões com a pureza ‘racial’ que se encontram em circulação dentro e fora da política negra” (ibid., ibid.). Assim como Fanon, ele preocupou-se em “resistir à disciplina marcial de todos os projetos de libertação nacional” (2012, p. 22).

Fanon denunciou que o “beco sem saída” da obrigação histórica dos intelectuais africanos em “racializar suas reivindicações” decorre da “procura apaixonada de uma cultura nacional anterior à era colonial”. Acreditar que se possa restituir “à cultura nacional seu valor e seus contornos antigos” seria uma mistificação e um erro. Pois “não há hibernação da cultura”, não é possível “juntar-se ao povo nesse passado em que ele já não está mais”. Como “a tradição muda de significação” e “a cultura foge de toda simplificação”, os “estoques de particularismos” são apenas “farrapos mumificados”, revestimentos e reflexos “de uma vida subterrânea densa, em perpétua renovação”. Apenas um “populismo abstrato” pode julgar “descobrir a verdade do povo” (1968, p. 174; 205; 195; 188; 186; 185; 194).

Querer apegar-se à tradição ou reatualizar as tradições abandonadas é ir não somente contra a história, mas contra seu próprio povo. [...] Os homens de cultura africanos que se batem ainda em nome da cultura negro-africana, que multiplicaram os congressos em consideração à unidade dessa cultura, devem hoje perceber que sua atividade se reduz a confrontar fragmentos ou comparar sarcófagos. (FANON, 1968, p. 186; 194).

Por sua vez, no que tange à questão identitária, Walter Mignolo adota uma sofisticada posição onde perfaz sutis distinções entre “política de identidade” - da qual “ações afirmativas e multiculturalismo” são expressões - e “identidade em política”, sendo essa de importância “crucial para a opção decolonial”. Quanto à primeira tese, registre-se, argumentou sobre o “perigo” da “política identitária” do “ser negro ou branco, mulher ou homem” quando esta adota “posições fundamentalistas” baseando-se “na suposição de que as identidades são aspectos essenciais dos indivíduos”, o que pode “levar à intolerância”. As dicotomias, afirma, “não são ontológicas, mas hermenêuticas” (2008, p. 323; 289; 308).

Nesse sentido, ao discutir sobre a identidade africana, Appiah (1997, p. 250) concluiu que “a concepção racializada da própria identidade é um retrocesso”. Todavia, essas objeções, ou mesmo argumentar o dado biológico de que raças não existem, não alteram em nada a percepção cotidiana da sua presença física. Infelizmente, “a existência do racismo não requer a existência de raças”, lembra Todorov (apud APPIAH, 1997, p. 243).

Com efeito, africanidade não pressupõe necessariamente racialidade. Mas isso pouco importa. O secular processo de exploração das pessoas de origem africanas racialmente escravizadas conectou de tal modo os termos África e negro que é praticamente impossível aceitar que existam africanos não negros. A construção da identidade negra se reporta, necessariamente, a essa história, ao mito da origem africana. Ser negro expressa uma consciência afrocêntrica, uma história primordial. A alma africana é o suporte da essência do ser negro. No entanto, esclarece Gilroy (2012, p. 24),

[...] a África atual é substituída por significantes icônicos de um passado africano genérico e ideal [...]. Isto pode ter sido uma fantasia desculpável durante o período do Black Power, do funk e do soul, mas é uma opção profundamente repulsiva na era da globalização do hip-hop e da multicultura corporativa.

Convencido da “inevitabilidade” e do “valor legítimo da mutação, hibridez e mistura em marcha”, as quais propiciarão “memórias do racismo e da cultura política negra melhores do que aquelas até agora oferecidas por absolutistas culturais de vários matizes fenotípicos”, Gilroy repudia tanto a “indiferença” e “ignorância” da “concepção eurocêntrica de modernidade”, quanto a deprimente “nulidade” e “banalidade” do “pensamento ‘afrocêntrico’”. Ele entende assim que o conflito político do novo século terá por eixo central não mais “a linha da cor, mas o desafio do desenvolvimento justo e sustentável” (2012, p. 415; 398).

“Correntes ideológicas que se dizem progressistas e radicais” estabelecem uma “quase-equivalência entre raça e geografia”, territorializando a identidade e racializando a geografia, reconhece Mbembe. Com o nome “África” assemelhando-se mais a “uma máscara”, observa também que o continente se tornou um “poço de alucinação”, de “fantasias”. Todavia, já que em qualquer identidade inexiste autenticidade, pragmaticamente, Mbembe não recusa a identidade negra, mas defende que ela “só pode ser problematizada enquanto identidade em devir”, inscrita no “devir-negro do mundo”. Dessa forma, permitiria ao negro “redescobrir-se como fonte autônoma de criação, avaliar-se como humano, encontrar sentido e fundamento naquilo que é e faz.” (2014, p. 160-161; 96; 75; 127; 166; 21; 165). Propõe, então, abraçar “o significante negro [...] para melhor o turvar e assim melhor nos afastarmos, para melhor o desviar e para melhor afirmar a dignidade inata de cada ser humano.” (289).

Identidades são inventadas e não refletem essências. Assim como o gênero - “não se nasce mulher, torna-se mulher”, desvelou Simone de Beauvoir - identidades são construções sociais, ainda que, no caso da raça, um lamentável construto. A identidade negra, moldada pelas experiências da discriminação racista e da solidariedade negra - forças reais e poderosas - é palpável e sentida, literalmente, na pele, e se constata diariamente nas entrevistas de emprego, abordagens policiais, prisões ou nos teatros, restaurantes e clubes de luxo.

É quase impossível não se referir a esse fenômeno sem utilizar o popular léxico das cores, “linguagem totalmente imperfeita, dúbia, desadequada”11, pois o próprio linguajar faz reviver diariamente a fantasmagoria das raças, gerando ainda mais mal12. Todavia, insulto ainda maior seria simplesmente silenciar e ocultar a existência diária do racismo. “Tornar pronunciável o segredo culposo da raça [...] permite sua explicitação”, defende Liv Sovik (2009, p. 83). A racialização coloca-nos, portanto, num delicado impasse epistêmico.

As palavras nunca são unívocas: admitem distintos significados, para além do enunciado primário que o signo quer designar. A ambiguidade dos seus significados, e a materialização daquele que será apropriado, depende do contexto, das intersubjetividades dos sujeitos envolvidos, da entonação e do olhar de quem as pronuncia. Assim como um uso não sexista da expressão mulher aos poucos se generaliza, do mesmo modo as categorias coloristas para se referir ao ser humano podem ter - e têm - um uso corriqueiro isento de conotações raciais e racistas13. Nesse sentido, o uso pragmático da alegoria das cores, utilizado não de forma identitária, mas metaforicamente, como uma metonímia, para se referir ao ser humano considerando um dos seus aspectos, sem aviltá-lo e diminuí-lo, é uma prática usual e perfeitamente admissível. A representação de um ser humano nunca deve inferiorizá-lo perante outrem. E isso se define não necessariamente com o uso desse ou daquele termo genérico, mas com o olhar, o sentido com o qual se está a usar aquele termo.

Se a ideia da negritude permite tomar consciência do sofrimento de um povo, há que ter algumas precauções, pois o uso acrítico do linguajar racialista nos leva a “reificar a diferença social” (GILROY, 2012, p. 24), a hipostasiar a raça e a “tornar reais as identidades imaginárias a que a Europa nos submeteu” (APPIAH, 1997, p. 96). Quando estigmas raciais são utilizados de forma ampla e generalizante, uma pele ontológica nos desgraça e devora, e o mundo como um todo permanecerá invertido. Diante disso, o próprio Césaire, um dos pais desse conceito, ressalvou: “estou a favor da negritude desde um ponto de vista literário e como ética pessoal, porém estou contra uma ideologia fundada na negritude.” (apud OLLÉ-LAPRUNE, 2008, p. 22).

Como vimos, Appiah (1997, p. 244-246) é um crítico da visão de que os africanos devam “unir-se em torno da Pessoa Negra” - concepção “perigosa na prática e enganosa na teoria: a unidade africana e a identidade africana precisam de bases mais seguras do que a raça.” Contudo, defende que não é o caso de “jogarmos fora a falsidade” de uma solidariedade fundada na raça, a qual pode ter valor com a condição de se reconhecer que “a raça, a história e a metafísica não impõem uma identidade: que podemos escolher”.

Considerações finais

“Fanon aponta, por um lado, para a defesa de uma dialética crítica que rejeita o essencialismo implícito no coletivismo forçado da raça e da nação e, por outro lado, recusa o universalismo abstrato próprio ao humanismo europeu para afirmar um novo humanismo, voltado à desracialização da experiência.”

(DEIVISON FAUSTINO)

A crítica a um suposto essencialismo (ou ao risco de) sob o qual gravitam os conceitos negro e negritude não é agenciada aqui para desqualificar os sujeitos colonizados em luta contra o silenciamento e a inferiorização que lhes é imposto. Para romper com as síndromes de colonialidade e subordinação ainda vigentes na cultura moderna, o ponto de partida são as experiências humanas desperdiçadas. Não podemos continuar cegos a elas. Cabe-nos reconhecê-las e com elas dialogar. A descolonização também é epistêmica, ou seja, descansa em projetos políticos epistemicamente pluriversais, enfatiza a perspectiva decolonial, fazendo-se, portanto, com diversidade epistêmica. Epistemologias etno-raciais e feministas desafiam a hegemonia do discurso epistêmico ocidental, que se apresenta como neutro, objetivo e desinteressado, encobrindo que fazem do seu lugar de enunciação um privilégio epistêmico e inviabilizando todos os demais.

Como um corretivo com prazo de validade, a construção e a afirmação da diferença identitária e epistêmica é um passo necessário na reconstrução da humanidade destruída pelo processo colonizador e mercantil. Elas fazem sentido, todavia, na perspectiva da solidariedade com a humanidade como um todo. Essa é a conclusão da crítica de Mbembe à razão negra:

Enquanto não se puser fim à funesta ideia da desigualdade das raças e da seleção entre diferentes espécies humanas, a luta das gentes de origem africana por aquilo a que poderemos chamar ‘igualdade de partes’ - e portanto, de direitos e responsabilidades - continuará a ser uma luta legítima. Para tal, no entanto, tem de ser conduzida não com o objetivo de se separar de outros seres humanos, mas em solidariedade com a própria Humanidade - esforçando-se, através da luta, por reconciliar os múltiplos rostos da Humanidade. (MBEMBE, 2014, p. 295).

Ler isso é praticamente ouvir o eco de Fanon (1968, p. 26; 205), que discerniu que o “desaparecimento do colonizado” com o “processo de descolonização” inaugura uma “nova humanidade, para si e para os outros”, “um novo humanismo” com “dimensão universal”. Inserida no permanente processo do devir humano, a “reivindicação nacional” é uma etapa necessária - pois somente se alcança o universal a partir das singularidades - e, se for “verdadeira, isto é, se traduz o querer manifesto do povo [...] então a construção nacional acompanha-se necessariamente da descoberta e da promoção de valores universalizantes.” (1968, p. 206).

Já é “tarde demais para escaparmos uns dos outros” (APPIAH, 1997, p. 110). Enquanto não chegarmos a um “mundo para-lá-das-raças”, e para lá chegar, celebrar a alteridade exige “resistir às sereias da insularidade” e abrir-se para a humanidade comum, para nosso único mundo, “para um futuro comum, com dignidade para todos” (MBEMBE, 2014, p. 269; 296). Inspirado em Fanon, e lhe dando continuidade, Mbembe declara que a proclamação da diferença hoje necessária “é apenas um momento de um projeto mais vasto, de um mundo que virá [...] no qual o destino é universal, um mundo livre do peso da raça e do ressentimento.” (2014, p. 306).

Na perspectiva fanoniana, uma práxis negra apenas cumprirá sua missão antirracista caso rompa com fechados identitarismos, se reinvente, se conecte com o vir-a-ser humano e marche “em companhia do homem, de todos os homens” (FANON, 1968, p. 274). Caso contrário, as máscaras melanínicas morbidamente incubarão destrutivos melanomas.

Referências

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2Todos seus seis discos fazem referência à cultura afro-brasileira, inclusive expressando sua fé no candomblé. O convite para Fabiana interpretar Ivone adveio da produção do espetáculo, e contou também com o aval da família de Lara, falecida em abril de 2018, aos 96 anos. Como a peça foi concebida há uma década, a própria Ivone já tinha sugerido Cozza para esse papel. Na carta que divulgou reagindo à agressividade sofrida, desistindo então do papel, assinalou: “Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio de meu nome como protagonista do musical, acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e meu lugar de existência. Ficar oca por dentro”.

3Disponível em: <https://twitter.com/emicida/status/1003373919322234883?lang=pt>

4Depoimentos de Gilberto Gil e Chico Buarque sobre Vinicius, no filme-documentário “Vinicius”, de Miguel Faria Jr. (2005).

5O já clássico e pioneiro estudo sobre os homens livres na ordem escravocrata, de Maria Sylvia de Carvalho Franco, indicava que estes eram “mais numerosos que os escravos existentes”, sendo expressivos a ponto dela apontar que a escravidão não deva designar o modo de produção, reduzindo-a a uma “instituição” (1997, p. 35, 13). Do mesmo modo, a obra não menos clássica de John Monteiro informa que no período colonial “a camada mais numerosa da sociedade paulista” era composta de “lavradores pobres e agregados livres, os precursores da ‘sociedade caipira’”, aos quais se agregavam os índios alforriados que contribuíam “para a expansão de uma população de condição incerta, entre a escravidão e a liberdade”, formando “uma sociedade fortemente miscigenada” (1995, p. 218, 211-212).

6Esta pujança econômica também é a conclusão dos estudos de João Fragoso e Monolo Florentino, apresentados, por exemplo, na magnífica obra “O arcaísmo como projeto”. A “metade da população livre de todo o Brasil constituída por negros e pardos” (conforme o Censo de 1872) - alguns deles também proprietários de escravos - indicaria haver “possibilidades concretas de mobilidade”, comprometendo e minando a luta abolicionista (2001, p. 154, 186, 237), o que em parte explica ela ter tardado tanto por aqui.

7Palestra no III Copene-Sul (UFSC, julho/2017).

8“Negrura” e “brancura” são um “drama narcisista, [onde] cada um [fica] enclausurado na sua particularidade” (2008, p. 166; 56).

9 Mbembe (2014, p. 282).

10Não hesitou, entretanto, em lutar contra a França no contexto da guerra pela independência da Argélia.

11 Mbembe (2014, p. 25).

12 Appiah (1997, p. 75).

13Apesar do espantoso gradiente de possibilidades melaninas da espécie humana, a ótica da identidade racial, como se estivéssemos prisioneiros da história, nos deixa apenas duas máscaras. Ao contrário, nossas possiblidades sexuais não dispõem de tamanho gradiente, em que pese sua multiplicidade. Mas a teoria de gênero não tolhe, pelo contrário, busca ampliar ao máximo o jogo do possível, enriquecendo as possibilidades colocadas à disposição da humanidade. A dicotomia cromática é uma camisa de força maniqueísta. Querer impô-la é operar uma vivissecção no complexo e multicolorido corpo social.

*Grato pelas sábias observações e sugestões feitas pelos colegas Paulo Freire Vieira, Gilson Geraldino da Silva Jr. e Márcia Regina Ferreira numa versão preliminar.

Recebido: 15 de Agosto de 2018; Aceito: 17 de Outubro de 2018

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