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Revista de Educação Pública

versão impressa ISSN 0104-5962versão On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.28 no.68 Cuiabá maio/ago 2019  Epub 21-Jan-2020

https://doi.org/10.29286/rep.v28i68.8394 

Artigos

Permanecer na luta, para uma democracia radical e plural nas políticas de currículo

Stay in the fight, for a radical and plural democracy in curriculum policies

Érika Virgílio Rodrigues da CUNHA1 

1Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPED) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Pós-doutora também pela UERJ com Bolsa PDJ pelo CNPq. Professora Adjunta no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) da Universidade Federal de Mato Grosso, Campus de Rondonópolis (CUR). Professora do Departamento de Educação, do Instituto de Ciências Humanas e Sociais, do Campus Universitário de Rondonópolis da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: erikavrcunha@ufmt.br


Resumo

O artigo problematiza a normatividade que anima a pretensão democrática da política de Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de realizar a formação de um sujeito universal abstrato. A partir de uma pesquisa mais ampla de matriz pós-estrutural, foca o texto da BNCC divulgado pelo Ministério da Educação em dezembro de 2017 para discutir a inconsistência e os limites dessa pretensão e defender a potência política da noção de democracia radical e plural no pensamento pós-fundacional e pós-estrutural da teoria do discurso para a luta por educação.

Palavras-chave: Política Curricular; Base Nacional Comum Curricular; Normatividade; Democracia radical e plural

Abstract

The article problematizes a normativity that animates a democratic pretension of the National Curricular Common Base Policy (BNCC) to realize a formation of an abstract universal subject. From a broader post-structural survey, the information was released by the Ministry of Education in December 2017 to reduce the inconsistency and limits of this claim and defend the political power of the notion of radical and post-foundational plural post of the theory of discourse for the struggle for education.

Keywords: Curricular Policy; National Common Curricular Base; Normativity; Radical and plural democracy

Por visar o desconforto

A democracia é algo incerto e improvável e nunca deve ser tida como garantida. É sempre uma conquista frágil, que precisa ser defendida e aprofundada. Não existe nenhum limiar de democracia que, uma vez alcançado, possa garantir a continuidade de sua existência. A democracia encontra-se em perigo não apenas quando o consenso e a fidelidade aos valores que ela encarna são insuficientes, mas também quando a sua dinâmica combativa é travada por um aparente excesso de consenso que, normalmente, mascara uma apatia inquietante. (Chantal Mouffe, 1996, p. 17)

Boa parte dos esforços teóricos e institucionais no Brasil a orientar políticas educacionais nos últimos 30 anos concorreu para a produção de uma normatividade curricular, cuja expressão mais contundente foi a homologação de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em 2017. A problematização de diferentes aspectos da política de BNCC vem sendo feita há algum tempo por autores do campo (LOPES, 2015a; MACEDO, 2016; 2017; 2018; PEREIRA, CUNHA, COSTA, 2016; CUNHA, LOPES, 2017; FRANGELLA, DIAS; 2018, apenas para citar alguns) e minha opção por reiterá-la neste momento de assunção da extrema direita no Brasil é tanto um modo de afirmar sua importância como hiperpolitização do debate sobre democracia, como pontuam Mouffe (1996; 2006) e Lopes (2013), como também é uma recusa de que as forças conservadoras em ascensão passem a nos pautar. Além disso, a produção de uma base comum para os currículos foi afirmada com a definição de estratégias para as metas 1 e 72 no Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014) e ainda que mudanças sejam feitas nesta política a partir de 2019, há inúmeras razões para suspeitar que elas não ampliarão o escopo democrático da política curricular.

Frente a esse cenário, neste texto problematizo a normatividade a dar corpo à pretensão democrática de realizar a formação de um sujeito universal abstrato na política de Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Faço essa discussão como parte de uma pesquisa mais ampla de matriz pós-estrutural, aqui com destaque central do texto da BNCC divulgado pelo Ministério da Educação em dezembro de 2017. Tenciono interpor um pensamento sobre democracia radical e plural informado pelo registro pós-fundacional da teoria do discurso na direção de reivindicar a educação como espaço-tempo político e de produzir agendas em torno de currículos plurais. Isso implica desconstruir a edificação da normatividade instrumental, crítica e neoliberal: o fato de que operam com uma noção abstrata de sujeito, o sujeito universal, núcleo fundante da noção de democracia moderna. Perseguindo a noção abstrata de sujeito, a normatividade curricular se vale do caráter teleológico que enfoques racionalistas dispõem para o social - na teorização e na política -, sendo sua função, grosso modo, performatizar um pensamento desejoso por controlar (escolas, professores, práticas, comportamentos, desempenhos etc.). Quero pensar esse lugar de um aparente conforto no qual a normatividade curricular se ancora como um assento não democrático em termos de currículo. Por isso mesmo, minha opção é perseguir o desconforto que admite à educação ver-se como espaço-tempo em que o inesperado, o diferir e a abertura radical ao imprevisto emergem.

Lançando mão da Teoria do Discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe e do pensamento da desconstrução de Jacques Derrida, em discussão recente confrontamos (CUNHA, COSTA, BORGES, 2018) a normatividade que coordena as políticas de currículo como políticas de reconhecimento, em que os sujeitos a serem formados pela escola são ignorados pela interposição de idealidades de sujeito. Ao mesmo tempo, destacamos com Derrida e Bennington (1996) a nomeação na política (o nome BNCC) como o trabalho de tentar a unificação do que não se apresenta (a experiência de conhecer, a subjetividade, a consciência) mas se supõe como transparente e comum. Operadores derridianos como tradução (DERRIDA, 2006) e disseminação (DERRIDA, 1991) têm sido importantes para pensar os limites da racionalidade normativa na política curricular, como os bloqueios que ela produz ao significar educar e ser educado por quadros de leitura finitos, baseados em determinados reconhecimentos ou, em outras palavras, orientados para um dever ser.

No esforço por controle que remete ao mito de Sísifo3, a crença no sujeito universal nas políticas em curso não apenas revisita o pensamento em educação, como o mantém preso à normatividade como promessa de uma educação “para a formação humana integral e para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.” (BRASIL, 2017a, p. 08). O que a normatividade reitera é a ideia de que haveria uma substância a preencher o sujeito e ela consistiria nos “conhecimentos e competências que se espera que todos os estudantes desenvolvam ao longo da escolaridade.” (p. 07). Para Lopes (2015b), a normatividade responde a interpelações da tradição curricular mais ampla, que se move na busca de tentar hegemonizar o que é currículo, por se supor ser ético anunciar a identidade a ser formada como expressão de um dado projeto de sociedade. A autora defende (2015b, p. 118) em aproximação à Teoria do Discurso de Ernesto Laclau, a produtividade política do déficit normativo. Para o pós-fundacionalismo laclauniano, o déficit normativo se constitui pela impossibilidade de plenitude - e não pela ausência - de qualquer fundamento para o social. Por isso mesmo. Lopes (2015b) pontua que tal déficit perfaz um vazio normativo. Explicita, ainda, como para Laclau, um quadro analítico que associe o normativo e descritivo, teoria e prática, ser e dever ser, desvia-se da experiência do ético, que “é a experiência da ausência de uma totalidade, de uma incompletude identitária do ser, é a experiência da distância, do vazio e da radical distinção entre o ser e o dever ser” (LOPES, 2015b, p. 121) (Grifos da autora). A ausência de plenitude para tudo o que há compreende um vazio que é, ele mesmo, a condição de emersão de todo objeto no social, o que faz desse vazio o terreno semântico e ontológico no qual, frente a falta de algo (não sabido, inatingível) que nos complete, “nos mobilizamos em nome de uma ética [...] com o dever ser estando associado tanto ao que se deseja consciente e inconscientemente quanto àquilo pelo que se luta” (Idem).

Pensando com Laclau a impossibilidade de manter uma distinção entre razão prática e razão teórica, uma vez que não existem tais ordens como dissociações entre os fatos e sua significação ou descrições sem valores, Lopes (2015b) assevera que “não há um dever ser que possa ser almejado - como utopia, como projeto, como futuro - de forma desconectada da dimensão do ser.” (p. 123). Não há também, nesse sentido, uma teoria que se constitua como descrição imparcial do mundo ou qualquer ordem normativa particular que seja ética por si. Ela (LOPES, 2015b), então, afirma com Laclau que o ético é “o momento da loucura no qual a plenitude da sociedade se mostra tanto impossível quanto necessária (Laclau, 2004: 88)”. Por isso entende que a experiência do momento ético guarda aproximações com a experiência mítica, uma vez que aquilo que se supõe conferir plenitude a uma falta que ameaça a nossa existência, que a produz como lacuna entre dever ser e o ser, aquilo que é interpretado como o objeto capaz de nos salvar, não tem conteúdo próprio, e sua emersão pode se dar apenas como tentativa de representar o que não pode ser representado. Lopes (2015b) sinaliza, com isso, para o fato de que um bloqueio no estabelecimento de algo como compromissos morais indeléveis, pautados por imperativos definitivos ou categóricos, nos insere na condição de sempre pautar pela razoabilidade a escolha entre distintos conteúdos configurados contextualmente. Porquanto, se tomamos as políticas de currículo como via de pensar a educação, “O fato de decidirmos nos faz agirmos como se fôssemos deuses, mas não implica desconsiderarmos a precariedade da experiência do como se fôssemos” (LOPES, 2015b, p. 124).

Cabe, neste sentido, sempre duvidar da ação compulsória do que se toma como norma na educação no sentido de buscar tensionar, como assinala Butler (2018), os enquadramentos para os quais os sujeitos já existem e, por isso mesmo, se tornam impossíveis. É nesse terreno que se faz premente perguntar se a educação na lógica da BNCC amplia ou não o caráter democrático da educação.

BNCC: ampliação ou não da democracia na educação?

Inúmeras críticas à centralização curricular têm sido produzidas no campo há pelo menos quarenta anos, no sentido de contestar a homogeneidade de currículos nacionais. Pela centralização curricular se instaura o controle sobre o conhecimento a ser ensinado e tende-se a apagar manifestações da diferença em distintos contextos educativos. Na versão aprovada da base, a noção de contextualização foi utilizada visando, de certa forma, rebater as críticas de centralização e controle, ao funcionar como certo compromisso com a diferença nas escolas e salas de aula. Costa e Lopes (2018) analisam como a noção de contexto na política curricular de base para o ensino médio assume uma positividade pelo que seria a definição de fronteiras, mas também pelo que seria uma melhor condição de aprendizagem, o reconhecimento de certa singularidade nas condições de aprender etc.. Essa positividade confere à contextualização do conhecimento a ilusão de se formar a todos, igualmente, sem exclusões. Por isso mesmo, a força constitutiva da política de BNCC tem assento na ideia de que se pode indicar de modo transparente os conhecimentos fundamentais à formação de todos os estudantes da educação básica no país, de tal maneira que a base se arroga em ser “o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica” (BRASIL, 2017a, p. 11), um universalismo pensado como essencial “para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.” (p. 08).

A noção de contextualização do conhecimento entra na política para suplantar essa crença de se garantir tudo e a todos, sem exclusões, e manter o que seria seu caráter democrático. A contextualização é uma das demandas críticas em educação caras ao campo, sobretudo para perspectivas de integração curricular defensoras da ideia de que um maior caráter democrático nos currículos se viabiliza em atenção a complexidade das realidades as quais encontram-se inseridas as escolas. Assim, “a explicitação de competências - a indicação clara do que os alunos devem saber, e, sobretudo, do que devem saber fazer como resultado de sua aprendizagem” (BRASIL, 2017a, p. 16) toma corpo na política como “referências para o fortalecimento de ações que assegurem esses direitos.” (Idem), enquanto a indicação de contextualização com “a inclusão, a valorização das diferenças e o atendimento à pluralidade e à diversidade cultural, resgatando e respeitando as várias manifestações de cada comunidade” (BRASIL, 2017a)4, encena uma perspectiva democrática que não pode ser sustentada. Isto porque a necessária contextualização do conhecimento na BNCC é orientada como uma forma de lidar com a diferença como algo externo ao sujeito sob a ótica do que precisa ser respeitado. Essa ótica nos coloca a obrigação de bem discernir conhecimento e diferença, num jogo hierárquico que se produz como desprezo da dimensão ontológica do social.

Teríamos, então, que lidar com os conhecimentos que a BNCC elenca como o essencial na formação e tomá-los sempre como que incontaminados pela diferença imprevista que constitui ativamente os sujeitos (crianças, jovens e adultos). A diferença seria assessória à formação, pois não a comporia fundamentalmente, ao passo que é apenas preciso respeitá-la. A contextualização do conhecimento, por isso, neste caso trabalha na redução da diferença como diversidade, em seu rebaixamento a uma variação menos valorosa do que é a regra (o conhecimento) para o que os alunos devem não apenas saber mas também devem saber fazer como resultado de sua aprendizagem (BRASIL, 2017a), como destaquei acima. Como uma segunda ordem das coisas no mundo, a diferença se torna análoga ao instrumento frágil da tolerância, como bem esclarece Wendy Brown (2015), pois seu trato “pressupõe um desprezo por aqueles a quem é direcionada” (BUTLER, 2018). Esse desprezo certamente atinge mais duramente a alguns, embora seja um desprezo, em geral, às imprevistas possibilidades de ser. Portanto, se há uma recomendação de se considerar as diferenças via contextualização, é porque diferença está sendo lida dentro de um quadro interpretativo fixo, a partir de esquemas pré-dados do que podemos ser como pessoas, como futuros trabalhadores etc.. Essas fixações resultam, comumente, de uma perspectiva de cultura como repertório estabilizado de formas de ser e pensar, que só funciona como ato de poder.

Num quadro distinto de leitura, mobilizando a noção de cultura como fluxos de sentidos (APPADURAI, 2011) tenho me servido da noção de différance (DERRIDA, 1991) para pensar como os processos culturais (e neles a formação dos sujeitos) prescindem de estabilidade, não comportam fixações. Por isso, julgo que há uma dimensão ativa e subjetiva do ato de conhecer desprezada nessa recomendação de se considerar a diferença via contextualização do conhecimento, que faz cair por terra qualquer pretensão de nomeação da diferença e qualquer recomendação de visitá-la vez em quando, ainda que por respeito.

De tal modo, a presunção de elencar conhecimentos vistos como pertencentes a um primeiro plano das coisas no mundo opera a “redução da política curricular à política do conhecimento a ser ensinado/aprendido nas escolas” (LOPES, 2015a, p. 118). Por essa via, a BNCC exclui a diferença nos currículos e, como Macedo (2017; 2018) avalia, trabalha para a eliminação do caráter democrático da educação, processando-se como uma normatividade curricular. A autora insere a leitura da normatividade num quadro de análise pós-estrutural para explicitar como o seu funcionamento - até a produção da primeira versão preliminar publicizada da BNCC - se deu pela articulação entre cadeias comumente antagônicas de reivindicações do campo educacional. Ela explicita como demandas tipicamente neoliberais por accountability (pautadas pela dinâmica da avaliação externa, prestação de contas e responsabilização) são articuladas a demandas críticas por justiça social (reivindicando equidade, oportunidades e justiça) (MACEDO, 2015; 2016). A partir da segunda versão preliminar publicizada, Macedo (2017) focaliza a assunção do Escola Sem Partido para explicar como discursos conservadores (contra o pensamento progressista) articulam-se com a agenda pró-base.

A política de base coloca em curso, então, uma normatividade curricular neoliberal, ou seja, “uma forma peculiar de razão que configura todos os aspectos da existência em termos econômicos (BROWN, 2015, p. 17)” (MACEDO, 2017, p. 509-510), que passa a atuar como uma economização de todas as coisas na vida ao dela expulsar a dimensão do político. A crença em um sujeito universal a ser formado por um dado conhecimento essencial e a expulsão do político na educação são ambos, por isso mesmo, uma mesma coisa: o desprezo pelo caráter político da educação como imprevisibilidade, como possibilidade do encontro com um Outro, com uma alteridade que não se pode antecipar. Macedo ainda considera que a política de currículo comum não é mais que uma nova arquitetura de regulação que atua na hegemonização de sentidos de educação de qualidade ao processar uma leitura de que se pode controlar o que será ensinado e aprendido, ao legitimar a qualidade como o que pode ser avaliado. Como ela bem explica, o imaginário neoliberal processa uma inteligibilidade para a educação em que “A evidência de qualidade se torna a própria qualidade que se está advogando.” (MACEDO, 2014, p. 1549), uma vez que estabilizar o que significa qualidade passa a ser excluir da educação o imprevisto, o imponderável.

Há, portanto, um investimento na fantasia de controle da “boa” qualidade pelo ideário neoliberal que, prometendo as melhores práticas, as práticas avaliáveis, aquelas que ofereceriam aos professores um quadro estável do que eles deveriam fazer para formar sujeitos requisitados pela sociedade, oferecem padrões que também podem servir aos professores para que se reconheçam. De algum modo, tais padrões enunciam um saber e um fazer especializado, que permite aos professores se verem como capazes, eliminando frustrações e vergonhas pelo fracasso (do qual têm sido acusados) frente as irrealizáveis tarefas encomendadas à educação na atualidade. Macedo (2014) adverte, ainda, que “Se o imponderável tem sempre que ser expelido para que a hegemonia da cultura da avaliação [do que está sendo significado como uma educação de qualidade] seja mantida e se não se pode [ainda] eliminar o professor desse processo, é preciso torná-lo cúmplice5.” (p. 1551).

Butler (2018) também pode nos ajudar na indagação do caráter democrático da BNCC, ainda que suas investidas teóricas recaiam noutros interesses e objetos de estudo. Ela elucida como uma certa ignorância sobre os sujeitos permite o enquadramento normativo que, não contraditoriamente, “racionaliza essa ignorância como necessária à possibilidade de se fazerem julgamentos normativos contundentes” (p. 205). Sua preocupação se faz em termos de entender os enquadramentos normativos predominantes como instituição de corpos supostos como passíveis ou não de luto, na obra Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Ela se pergunta de que maneira enquadramentos em curso têm atuado como um não pensamento que naturaliza tal condição. Butler (2018) recorre ao sociólogo britânico Chetan Bhatt para destacar como enormes transformações nos mundos da vida para além da Euro-américa produziram o desembaralhamento do que se tinha por identidade. De certo modo, as reflexões de Bhatt sobre os acontecimentos da primeira década dos anos 2000 em torno das discussões sobre liberdades e violências sexuais, tortura e terrorismo, não se distanciam das discussões do sociólogo jamaicano Stuart Hall, uma década antes. Num quadro de leitura pós-estrutural, Hall (2003) sinalizou para mudanças no mundo “deslocando estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo” (p. 07). Como Butler (2018) bem explicita ao se guiar por Bhatt, esses deslocamentos abalam todo um campo de verdades, de inteligibilidade teórica (contestadas, é verdade) para descrever o Outro, a cultura. Grosso modo, abala os enquadramentos do multiculturalismo ou dos direitos humanos em suas tipificações de sujeitos “que podem ou não corresponder aos modos de vida que se dão no tempo presente.” (BUTLER, 2018, p. 08). Seguindo essas discussões, ela explica que é a ignorância acerca dos sujeitos que dá forma a normatividade como um mecanismo, como um diferencial de poder existente (e por que não dizer um dispositivo de poder?) que elege os que serão reconhecidos como tal e os que não se valerão de tal sorte para que ganhem estofo reconhecimentos e normatizações. Por isso mesmo, a filósofa questiona “qual a norma segundo a qual o sujeito é produzido e se converte depois no suposto fundamento da discussão normativa” (p. 199). Butler explicita, nessa via, determinadas operações de poder que atuam no estabelecimento de “um conjunto de pressupostos ontológicos” (p. 213) que incluem “noções de sujeito, cultura, identidade e religião cujas versões permanecem incontestadas e incontestáveis em determinados enquadramentos normativos” (Idem).

Se tomamos este ponto para a política de currículo, veremos que todas as demandas [tipicamente antagônicas] destacadas por Macedo (2017; 2018) na articulação que dá vida à BNCC (demandas críticas, por accountability e conservadoras) positivam o ideal de um sujeito universal ao se equivalerem numa articulação discursiva contra o imponderável. De diferentes formas, essas demandas diferenciais oferecem reconhecimentos ao campo educativo e pedagógico por intermédio de enquadramentos instrumentais, passando pelo pensamento crítico e pós-crítico. São reconhecimentos diferenciais esteados por expectativas de um saber fazer adequado para o mercado de trabalho, de uma participação crítica na sociedade, de emancipação social, formação para a cidadania, para a justiça social, para o accountability, uma vez que essas concepções fantasiam uma identidade necessária à sociedade. Butler (2018, p. 214) adverte que enquadramentos não derivam “simplesmente de perspectivas teóricas que trazemos para a análise de política”, porque também constituem práticas de poder sempre que extrapolam o âmbito de definições do Estado e passam a definir o seu funcionamento. Não toa que a reivindicação de um currículo unitário, entendido como uma base, tenha tanta força também como um senso comum no campo educacional. Como tratei noutro lugar (CUNHA, 2015), as indicações apriorísticas de uma identidade a ser formada são produções/respostas à incompletude da própria vida/da linguagem, sempre em função daquilo que é interpretado como ameaça/impedimento a essa plenitude. No campo educativo, elas confortam o ideal de uma sociedade democrática como formas de validar um sujeito universal capaz de harmonizar o social, de conciliar a sociedade. É por essa via que distintas demandas pedagógicas hegemonizam o postulado de uma educação democrática pela reiteração “[d]o sujeito cartesiano-kantiano humanista, ou seja, o sujeito autônomo, livre e transparente autoconsciente, que é tradicionalmente visto como a fonte de todo o conhecimento e da ação moral e política.” (PETERS, 2000, p. 32; grifo do autor), o resultado de conhecimentos considerados essenciais supostos capazes de forjar identidades almejadas. Mesmo que tal sujeito jamais compareça entre nós, a reiteração que o convoca sedimenta a ilusão de sua possibilidade enquanto naturaliza a norma que inferioriza a diferença.

De tal modo, entendo com Mouffe (1996) que a manutenção de um fundamento racional para a democracia atua como o mito de uma sociedade transparente, conciliada consigo mesma, um tipo de fantasia que conduz ao totalitarismo. Como um desvio a esse quadro de leitura restritivo da democracia na política de BNCC, passo então a discutir alguns aspectos de um projeto de democracia radical, entendido por Mouffe (1996, p. 33) como possibilidade de uma multiplicação de práticas democráticas, que exige o reconhecimento do conflito e da diferença e “vê neles a raison d’être da política”.

Democracia radical e plural na política de currículo

Claude Lefort (1981) avalia que o diferencial da sociedade democrática consiste no fato de o poder se tornar um lugar vazio. A ausência de sinalizadores de certeza faz com que nada mais se sustente como transcendental pela figura de uma autoridade, de um saber, de uma lei (Deus, a Natureza ou ainda o Homem e a sua Razão). Nada mais há de garantia final e a impossibilidade de um fundamento último para o social, capaz de ordená-lo é substituído por uma indeterminação radical (MOUFFE, 1996, p. 24). Com este quadro de referência, Laclau e Mouffe (2011, p. 234) passam a advogar que a emergência da sociedade moderna perfaz o terreno para uma democracia radical e plural, sensível e aberta a um infindável processo de questionamento. Laclau (2011) entende que essa indeterminação multiplica os espaços de poder como lócus de novos antagonismos no social e torna possível a destituição do sujeito unitário e abstrato como núcleo central da compreensão da realidade nas Ciências Sociais contemporâneas (LACLAU, 2000). Esse movimento teórico processa a substituição da noção de sujeito unitário (racional, centrado, autoconsciente) por certa noção de subjetivação, uma vez que atenta-se para uma multiplicidade infinita de estruturas. Para o estudioso argentino, tais estruturas compreendem discursos, uma superfície ou terreno primário de inscrição de todos os objetos no social, ao mesmo tempo o campo de uma contingência radical (LACLAU, 1993).

Considerando este terreno instável Laclau e Mouffe (2011) ponderam que nenhuma identidade pode ser apresentada no social como positividade. Isso significa afirmar que não positividade em nada, que nada há no interior da identidade que permita sua totalização ou realização ou, com outras palavras, que a identidade não se constitui de qualquer essência, pressupõe uma exterioridade - um antagonismo - que é sua condição de possibilidade e, simultaneamente, de impossibilidade. Neste caso, a identidade e sua condição de existência formam um todo inseparável e essa relação é absolutamente necessária: a contingência é ela mesma necessária (MARCHART, 2009). Aproximando-se da desconstrução derridiana, Laclau (2000) considera que o antagonismo que torna possível qualquer identidade introduz a indecidibilidade em sua estrutura, na medida em que, simultaneamente, tanto a bloqueia quanto a afirma. Ele adverte, contudo, que sem a coexistência destes dois momentos (plenitude e impossibilidade, bloqueio e afirmação) não existiria ameaça alguma e, portanto, se há esse duplo movimento ou paradoxo, é porque não se processa a negação do caráter necessário de uma identidade, senão que esse caráter necessário é subvertido, pois não é possível ameaçar a existência de algo sem afirmar, neste mesmo gesto, sua existência. Por isso mesmo, como um elemento de impureza, a contingência “deforma e impede a constituição plena” de toda necessidade (LACLAU, 2000, p. 44) mostrando que nenhuma necessidade pode se realizar.

Assim, Laclau (2000) nos lembra que a questão da instituição do social diz respeito ao modo como qualquer identidade (qualquer emergência de todo objeto no social, da objetividade, para melhor dizer) é atravessa por uma indecidibilidade, porque constituída por um antagonismo (sua condição de [im]possibilidade, como já disse). Na mesma esteira, Laclau pontua que o problema do político é o problema da instituição do social, que passa pelo modo como a objetividade é tomada como tal e constitui privilégios para as formas de vida em diferentes campos. A indecidibilidade, por isso, é um operador teórico importante para pensar como se constitui o limite da significação em ancorar definitivamente qualquer fundamento para o social, ao mesmo tempo em que a significação, de algum modo, torna possível o social. O que a indecidibilidade assinala na emergência do social (de qualquer objetividade) é que o social é constituído por uma infundabilidade. Marchart (2009, p. 47) explica que a infundabilidade, como impossibilidade de um fundamento último ou definitivo para o social, impede permanentemente a constituição plena de qualquer identidade (objetividade). Se toda identidade é não mais que o efeito de sua negação, de um antagonismo que a torna (im)possível, não há o que se poderia chamar de “uma objetividade básica dentro da qual ‘flui’ a história”, senão que “essa estrutura mesma é histórica”, como é histórico o ser de todo objeto, na medida em que “é socialmente construído e estruturado em sistemas de significação”6 (LACLAU, 2000. p. 52).

Essa dimensão negativa compreende, por isso, a ontologia do social. Ela é a dimensão do político, porque permite a emergência de tudo. Igualmente, ela credencia a política como um desejo de ordenar o social ininterruptamente afetado pela crise de sua incompletude. A política é possível, há a política, agendas são apresentadas e negociadas como um ensejo de plenitude e universalização dos objetos. Do mesmo modo, a assunção de demandas (reivindicações por educação de qualidade etc.) empenhadas a solucionar os problemas educacionais, sem qualquer positividade a priori não constituem soluções inexoráveis aos problemas educacionais, são, antes, interpretações de tais problemas (e sua invenção mesma) que a falha estrutural (a impossibilidade de um fundamento último) a desestabilizar o social torna possível. Como explica Lopes (2013), sem que haja essa positividade, “a negociação, a tradução e a disputa de sentidos e significados, em maior ou menor medida constituem a expressão dos processos políticos” (p. 709), caracterizam tais processos por conflitos menos ou mais duradouros, frequentemente deslocados para outras questões e interesses imprevistos.

Este registro aposta, por isso, na inerradicabilidade dos antagonismos como condição da democracia. Contrário ao que buscam os enfoques racionalistas7, que propõem a eliminação dos antagonismos (dos conflitos, da divergência) com o objetivo de harmonizar o social, de elevá-lo ao que seria um mundo melhor, temos que não há como superá-los se eles é que permitem a tudo emergir no social. Os desacordos que provocam constituem a possibilidade da diferença emergir e, não obstante, dizem respeito à especificidade da linguagem como constitutiva da ontologia social. É neste sentido que a questão dos enquadramentos normativos (BUTLER, 2018) que coordenam a política curricular nos interessam demasiadamente, pois neles o desejo de eliminar a diferença na educação, via controle curricular, têm constituído limites consideráveis para a democracia no campo educacional. Pondero, neste prisma, que a igualdade defendida na definição de uma BNCC não realizará uma educação democrática por se supor oferecer o mesmo conteúdo, perseguir a constituição das mesmas competências para todos os alunos, uma vez que tais investimentos não os forma como iguais. Isso tende a ser vivido com tal desejo, o que oculta as exclusões infinitas de saberes ditos essenciais, de formas de ser concebidas como melhores e necessárias.

Ouso pensar que nossa tradição educativa (moderna) se vale dessa pretensão para postular que as demandas por educação que a hospedam - e que seguem disponíveis (dispersas) no terreno educacional mais amplo - emergem de sedimentações várias, dadas pela pulsão de formar tal sujeito universal. Nisso há também um racionalismo e uma calculabilidade que transformam a educação em conformação, como discuti noutro lugar (CUNHA, 2016). Nas políticas em curso, essas demandas se apresentam como leituras aptas a superar as problemáticas educacionais, na medida em que certa estabilidade do significante qualidade da educação passa a constituir o horizonte dos projetos no campo. A estabilidade desse significante tem sido sustentada mais recentemente com a produção de “mecanismos de mensuração” da educação (estatísticas, desempenhos, índices, avaliações), que operam a homogeneização das escolas como fracassadas em sua função social, ao correlacionarem abstrações relativas a formas de ser e de fazer as coisas no mundo, a práticas educativas. Como explica Popkewitz (2013), o que é real em educação depende do que dispositivos como esses legitimam. Nos termos de Laclau (2000), trata-se de sedimentações no campo que fazem com que o que é necessário seja percebido pelo ocultamento da contingência. A fé em uma identidade ideal (o sujeito abstrato, ilustrado, consequente aos conhecimentos que lhe serão ensinados/mensurados), manejada como transparente, alimenta uma crença exacerbada na educação. Ela promete a formação de todas as maneiras que se possa e se venha anunciar, quando se fala da BNCC. Talvez a subsunção de diferentes perspectivas de formação (para o protagonismo e para a justiça social, para o direito a aprendizagem, dentre outras) à lógica das competências viva dessa crença, dessa fé que anima a ideia de que “se esclarece como as aprendizagens estão organizadas em cada uma dessas etapas e se explica a composição dos códigos alfanuméricos criados para identificar tais aprendizagens.” (BRASIL, 2017a, p. 23) e, não obstante, que autoriza a usar isso para a avaliar se houve educação.

Com a adoção de competências na BNCC não é demais lembrar como esse enquadramento (de base cognitivista e comportamental, mas que também assume um caráter instrumental) é conformado por outros dispositivos institucionais, outras políticas, que fazem a noção mesma de competência parecer lógica e melhor, do ponto de vista de uma definição das expectativas de formação, de uma resposta pedagógica à interpelação por qualidade (CUNHA, 2018). A Resolução CNE/CP Nº 2, de 22 de dezembro de 2017 (BRASIL, 2017b), que “Institui e orienta a implantação da Base Nacional Comum Curricular, a ser respeitada obrigatoriamente ao longo das etapas e respectivas modalidades no âmbito da Educação Básica.” determina no Art. 16 que, “Em relação à Educação Básica, as matrizes de referência das avaliações e dos exames, em larga escala, devem ser alinhadas à BNCC, no prazo de 1 (um) ano a partir da sua publicação.”. A costura de uma gramática para a linguagem das competências, e de uma lógica (tranquilizadora) considerada melhor com o trabalho baseado em desempenhos, se instala na afirmação (na BNCC) de que se espera o bom resultado dos alunos na Educação Básica e em cada etapa da escolaridade, de modo que se possa aperfeiçoar, inclusive, as avaliações em larga escala. Como as tais competências para ser e para fazer não significam nada à margem de sujeitos plurais que as encarnem, ou fora de contextos (impossíveis, se pensados como padrões), esse sistema somente serve a si, não se refere a nada que possa ser vivido como uma fixidez tal e uma idealidade tal.

O termo qualidade, para Macedo (2016), é um significante aparentemente esvaziado de sentido, que na BNCC exerce a função de um ponto nodal. Ninguém é contra qualidade na educação, todos querem qualidade. Como um significante nodal, esse termo é capaz de condensar, por contiguidade, diferentes demandas na leitura da crise educacional, neste caso de uma ausência de qualidade interpretada como falta de conhecimento. A solução é oferecer (e cobrar das escolas que elas assegurem) os conhecimentos listados na BNCC. Se isso é feito como articulação de demandas tão distintas (à primeira vista inarticuláveis) na tradição educacional, que associam o ensino por competências, a crítica “[d]A superação da fragmentação radicalmente disciplinar do conhecimento, o estímulo à sua aplicação na vida real, o protagonismo do aluno em sua aprendizagem e a importância do contexto para dar sentido ao que se aprende são alguns dos princípios subjacentes à BNCC.” (BRASIL, 2017a, p. 19), é tão somente porque a fantasia de crise educacional prevalece como um exterior a tornar possível a equivalência entre tantas diferenças como formas de sua resolução. Embora essas demandas encenem concepções pedagógicas particulares, modos específicos de pensar a educação, elas participam desse enquadramento normativo por arrogarem-se a validar o que são os problemas nas escolas e nas salas de aula, a delinear o que é a realidade da educação. Apresentam soluções diferentes, formas de pensar o trabalho docente as atividades em classe distintas, coordenam-se por noções distintas de conhecimento, constituem, portanto, “uma série de demandas absolutamente heterogêneas e o que as leva a seu ponto de unidade é simplesmente a presença do nome” (LACLAU, 2006, p. 27) base. Sem a presença do nome, como esclarece Laclau (2006), essas reivindicações heterogêneas se dissolveriam simplesmente em elementos desarticulados. O nome BNCC constitui a ilusão de uma unidade que não pode sequer ser pensada sem a sua presença e que atua na subversão das diferenças ao torná-las equivalentes (não iguais) no campo educativo. Compreender a política, nesta chave de leitura, passa por entender as relações analógicas processadas na articulação de formas de pensar tão distintas como as que se dão na base.

Não é o fato de defenderem a mesma coisa que autoriza tais demandas diferenciais estarem na política, mas o fato de que combatem algo em comum: as representações do anti-conhecimento desde suas interpretações particulares. Essas representações são possíveis porque significantes vazios, como qualidade, surgem da impossibilidade de significação em dado discurso a partir de um ponto nodal, um ponto no qual o deslizamento é detido. Pontos nodais e significantes vazios compreendem duas dimensões do mesmo processo: o ponto nodal refere-se ao momento da prática articulatória em que entra em curso a operação de elevar um particular à expressão do universal, enquanto os significantes vazios compreendem o caráter vazio dessa significação universal (LOPES, 2012). Os pontos nodais perfazem significantes cujo privilégio em um discurso coordena a sensação de detenção do fluxo da significação, ou a percepção provisória de estabilidade, como se o deslizamento incessante de sentidos sobre os significantes fosse detido. Lopes (2012) destaca que os pontos nodais configuram o momento em que algo detém “o livre fluxo dos significados e permite falar em leituras e interpretações privilegiadas. Ou seja, [...] permite[m] a comunicação e algum nível de consenso, ainda que contextual e provisório, em relação aos significados nas políticas” (p. 06). Eles possibilitam, em alguma medida, o fechamento da cadeia de significação pela equivalência entre elementos diferentes que fixam provisória e contingencialmente sentidos para a política. A política não constitui um corpo mais elevado de conhecimentos, é, antes, resultante da contiguidade contingente de formas de pensar a educação.

É a pressuposição da totalidade que autoriza a reivindicação de um universal como o elemento que vai garantir o fecho da estrutura, a estabilização permanente como condição de eliminação de toda disjunção em uma objetividade (LACLAU, 2000). O(s) jogo(s) de linguagem(s) que se instaura(m) com a construção do antagonismo consiste(m), nestes termos, na própria produção dos conteúdos que dão corpo às representações do nós e do eles, implicando a demarcação da fronteira de significação. Neste caso, impele-se às políticas em estados e municípios a responderem na forma de uma implementação da BNCC na via de uma relação lógica (racional, teórica, calculada), porque se entende que essa dimensão do já sabido precisa ser não apenas reconhecida, mas aplicada. A política, como terreno de instituição do social, constitui o espaço-tempo dessa realização, se apresenta como técnica que a tudo nivela e neutraliza, pois “descansa sobre o desconhecimento mesmo do singular” (DERRIDA, 2006, p. 47). O discurso de uma nova ordem é aceito (hegemonizado) por numerosos setores “não porque eles se sentem particularmente atraídos por seu conteúdo concreto, senão porque é o discurso de uma nova ordem, de algo que se apresenta como alternativa crível frente a crise e o deslocamento generalizados” (LACLAU, 2000, p. 82). A hegemonização de um discurso de uma nova ordem depende de sua disponibilidade e eloquência como um princípio de leitura à instabilidade social, embora não haja vinculação alguma entre os deslocamentos sociais como temporalidades e o espaço discursivo constituído como leitura possível da crise social, como pondera Laclau (2000). Por isso mesmo, alguns enquadramentos são naturalizados e a complexa tarefa de educar é simplificada como consequente a adoção de uma base comum.

Destarte, somente serão democráticos aqueles processos que permitirem a disputa por significação do que seja educar, educação de qualidade etc. na “perspectiva de uma luta agonística e de uma multiplicação de espaços de poder que procurem garantir a possibilidade de tradução” (Idem). O registro discursivo sinaliza para como a redução das possibilidades de ser em uma única tende a ser violenta, seja em termos de uma identidade a ser formada seja em termos do que significa educar. A crença no sujeito unitário que institui uma política curricular normativa opera na contramão da possibilidade democrática ao reduzir a uma as possibilidades sobre educar, por obrigar ou por fazer crer que se resguarda o que é educar num universalismo curricular. A democracia pluralista, diferentemente, implica em ter aquele ou aquilo que me antagoniza como um adversário que não pode ser eliminado sob o risco de ser eliminada a dimensão do conflito ou o conflito entre diferentes projetos e visões. Como Lopes (2013, p. 10) adverte, projetos de saberes comuns, de finalidades comuns baseados na universalização, em nome da equidade, do cientificismo, da igualdade, projetos emanados de um “ponto de vista absoluto”, não corroboram o processo democrático. Antes, pondera, “Essa pode ser apenas uma das formas de ocultar a contingência das opções curriculares defendidas, ocultar o caráter particular desses universais e sua busca por hegemonização, de forma a atender certas demandas.” (Idem).

A título de conclusão, faço coro com a autora ao pensar que “No que concerne às políticas de currículo, a democracia pressupõe manter aberta a possibilidade de negociação de sentidos com diferentes demandas, considerando o lugar do poder (o universal) como vazio.” Como Mouffe (1996, p. 16-17) pondera, “A ilusão do consenso e da unanimidade, bem como os apelos ao ‘antipolítico’”, na base da política racionalista de normatividade curricular como solução inexorável para a educação “precisam ser reconhecidos como nocivos à democracia”. Como a autora adverte, o consenso se baseia necessariamente em atos de exclusão (MOUFFE, 1996, p. 37). Essa exclusão não é ocultada na BNCC em relação as bandeiras da diferença que têm constituído lutas históricas de movimentos sociais representativos das minorias no campo, também em relação a uma infinidade de formas de conhecer. Além disso, reivindicações históricas dos trabalhadores da educação como melhores condições para que os professores façam o que sabem não são admitidas como investimentos da política, tampouco reconhecidas. Ilustrá-los como aqueles que não sabem ensinar é tudo o que a política tem feito e não entendo em que medida seja possível a uma política garantir as condições para educar se ela deixa de fora os professores como formuladores da educação.

Bem adverte Lopes (2018) que não é nem desejável nem necessário que o currículo seja igual em todo país e tampouco é possível que ele seja igual para todas as escolas. Até mesmo porque os sentidos possíveis na produção de um currículo, por mais especificados que sejam os conhecimentos e as atividades, os textos e demais dispositivos pedagógicos, não transportam uma estrutura transparente de significação. Além do mais, a reivindicação de uma democracia radical e plural nas políticas de currículo, como busquei demonstrar nesta discussão, não apenas prescinde da ideia da formação da identidade como um projeto de constituição de uma sociedade plena, livre de conflito. Muito mais que isso, só é possível pensar em uma democracia, nos termos de que seja radical e plural, se o antagonismo/a diferença/a possibilidade de diferir for considerada não apenas como boa, mas como condição mesma de não vivermos totalitarismos. Como pondera Mouffe (1996, p.95), “embora a política vise construir uma comunidade política absoluta e criar uma unidade, nunca será possível concretizar uma comunidade política absoluta nem uma unidade definitiva”, uma vez que “existirá sempre e permanentemente um ‘elemento externo constitutivo’, algo exterior a comunidade que torna possível a sua existência.” (Idem). A democracia é “algo incerto e improvável e nunca deve ser tida como garantida (...) Não existe nenhum limiar de democracia que, uma vez alcançado, possa garantir a continuidade da sua existência (MOUFFE, 1996, p. 17).

Não há democracia como o resultado de uma evolução moral da humanidade. Laclau e Mouffe insistem, portanto, que “a experiência da democracia deve consistir no reconhecimento da multiplicidade de lógicas sociais e da necessidade de sua articulação” (p. 234). Nem somente a lógica de uma identidade total, nem tampouco a lógica de uma diferença pura, mas a articulação sempre recriada e renegociada, sem que se alcance um ponto final de equilíbrio. Mas é importante diferenciar também a concepção pós-moderna de fragmentação do social da concepção pluralista, uma vez que nem no todo nem em qualquer fragmento do social repousa qualquer tipo de identidade fixa (MOUFFE, 1996). O que essa lógica política de democracia radical e plural requer centralmente é a remoção do apriorismo essencialista como um obstáculo fundamental ao pensamento e à luta política, o rompimento com a “convicção de que o social é suturado em algum ponto a partir do qual é possível fixar o sentido de todo evento, independentemente de qualquer prática articulatória” (LACLAU; MOUFFE, 2011, p. 222). Tal essencialismo impede pensar a multiplicidade dos novos antagonismos que se apresentam se ainda nos encontramos agarrados na imagem do sujeito unitário, fonte última de consciência e ação. Impede pensar a educação como algo não replicável, que escapa à norma, ao padrão. Se permanecermos nesta via, estaremos buscando outra coisa, o conforto, talvez, e não educação.

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2A Meta 1 do PNE (BRASIL, 2014) estipula “universalizar, até 2016, a educação infantil na pré-escola para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade e ampliar a oferta de educação infantil em creches, de forma a atender, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das crianças de até 3 (três) anos até o final da vigência deste PNE”; já a Meta 7 se refere a “fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem, de modo a atingir as seguintes médias nacionais para o Ideb: 6,0 nos anos iniciais do ensino fundamental; 5,5 nos anos finais do ensino fundamental; 5,2 no ensino médio.”. (Disponível em: http://pne.mec.gov.br/images/pdf/pne_conhecendo_20_metas.pdf) Acesso em: 01 de outubro de 2018.

3Sísifo, o mais astuto dos deuses na Mitologia grega, foi condenado ao trabalho eterno de rolar uma grande pedra com suas mãos até o cume de uma montanha. Este era um trabalho em vão. Ai chegar ao topo, a pedra, a pedra rolava novamente montanha abaixo, invalidando o esforço e a pretensão de mantê-la no cume.

4A BNCC recupera essa afirmação do Parecer CNE/CEB nº 7/2010.

5É neste aspecto que ela nos lembra que um currículo nacional não vai melhorar a educação tampouco garantir desenvolvimento ou equidade e o fato de o imponderável seguir resistindo a qualquer controle, se não nos abstrai de qualquer discussão, reivindica que sigamos “[n]a tarefa política de desconstruir os discursos que buscam cerceá-lo” (MACEDO, 2014, p. 1553).

6Laclau e Mouffe (2011, p. 146-147) ressaltam que “o fato de que todo objeto se constitua como objeto de discurso não tem nada que ver com a questão acerca de um mundo exterior ao pensamento, nem com a alternativa realismo/ idealismo”, mas com a especificidade de um objeto que, enquanto tal, “depende da estruturação de um campo discursivo”. Pontuam que “o que se nega não é a existência externa ao pensamento, de ditos objetos, senão a afirmação de que eles podem constituir-se como objetos à margem de toda constituição discursiva de emergência” (LACLAU; MOUFFE, 2011, p. 146-147, grifos dos autores).

7O enfoque habermasiano se insere nas chamadas perspectivas racionalistas. Grosso modo, tais enfoques trabalham com a ideia de que é possível eliminar a ambiguidade atinente à linguagem no sentido de se produzir uma comunicação transparente nos processos políticos. O esforço em garantir princípios reguladores das ações e tarefas dos agentes sociais, na análise de Marchart (2009, p. 191), faz da perspectiva racionalista “um enfoque de ciência política que se limita ao domínio empírico da política”.

Recebido: 06 de Fevereiro de 2019; Aceito: 04 de Março de 2019

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