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Revista de Educação Pública

versión impresa ISSN 0104-5962versión On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.28 no.68 Cuiabá mayo/agosto 2019  Epub 21-Ene-2020

https://doi.org/10.29286/rep.v28i68.8403 

Artigos

Peter Pan e infância eterna: sob o signo da criança heroica

Peter Pan and Eternal Childhood: under the sign of the heroic child

Alberto Filipe ARAÚJO1 

Joaquim Machado de ARAÚJO2 

Iduína MONT’ALVERNE3 

1Professor Catedrático do Instituto de Educação da Universidade do Minho (Braga - Portugal). Membro interno do Centro de Investigação em Educação (CIEd) do Instituto de Educação da Universidade do Minho. Este trabalho é financiado pelo Centro de Investigação em Educação (CIEd), projeto UID/CED/01661/2019, Instituto de Educação, Universidade do Minho, com fundos nacionais da FCT/MCTES-PT.

2Professor Auxiliar Convidado da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa (Porto - Portugal).

3Professora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense (Niterói - Brasil).


Resumo

Este artigo traça o retrato de Peter Pan como criança que persiste em manter o estado de infância e apresenta a sua natureza mítica e arquetipal. Ancora-se nos contributos de Jung, da história da mitologia e da hermenêutica simbólica de Gilbert Durand. Das lições advindas da leitura e análise da obra de Barrie, é preciso recordar que as pessoas crescidas se esquecem de alçar voos, pois se afastam da imaginação, recalcam-na, recusam-na mesmo em nome da razão, do lado diurno, solar, patriarcal da vida, em detrimento do lado noturno, místico, lunar, matriarcal da vida.

Palavras-chave: Mitocrítica; Peter Pan; Infância Eterna; Simbolismo

Abstract

This article traces Peter Pan´s portrait as a child who maintains the state of childhood and analyses Peter Pan as a mythical and archetypal creature. The analysis is based on Jung’s contributions, on myths and on the symbolic hermeneutics of Gilbert Durand. Analyzing Barrie’s work, one must remember that grown people are afraid of taking risks, depart from the imagination, repress it, refuse it even in the name of reason on the diurnal, solar, patriarchal life, to the detriment of the nocturnal, mystical, lunar, matriarchal side of life.

Keywords: Mytocritics; Peter Pan; Eternal Childhod; Symbolism

Introdução

“Todas as crianças, excepto uma, acabam por crescer.”

(BARRIE, 2005, p. 5)

“- Que é isso de ser alegre, inocente e desprendido? Quem me dera poder ser todas essas coisas.”

(BARRIE, 2005, p. 215)

Peter Pan é a personagem criada por James Matthew Barrie (1860-1937) e dá o título à essa obra infanto-juvenil, datada de 1911, que teve a sua origem numa peça de teatro estreada no dia 27 de dezembro, no Duke of York’s Theatre de Londres, e narra a história de Peter, que não queria crescer, refugiando-se, por isso, na Terra do Nunca - o domínio da utopia concebido como o território fértil da imaginação, ainda que tantas vezes patológica ou totalitária (RICOEUR, s. d., 373-385; RUYER, 1988, p. 3-125; SERVIER, 1985; WUNENBURGERr, 1979, p. 118-137) -, e lá é possível viver na condição de criança (e viver aventuras intermináveis, numa espécie de presente eterno).

Essa sua condição de Criança arquetipal (JUNG, 1993, p. 105-144) carateriza-se pela rejeição do crescimento e pela consequente perpetuação do estado da infância e remete para o arquétipo da Eterna Juventude ou do Puer Aeternus (YEOMAN, 1998; VON FRANZ, 1992; HILLMAN, 2004, p. 49-156), que tantas vezes se diz por um comportamento ingênuo (a faceta inocente, alegre, desprendida da infância…), e outras, por meio de comportamentos desconcertantes (a faceta narcísica, vaidosa da infância…). Trata-se de um arquétipo complexo que aborda a criança que não quer crescer ou do adulto que cresceu; entretanto, que mantém ainda traços pueris, no que tange à formação da sua personalidade e relação com o Outro. As suas caraterísticas arquetípicas podem ser encontradas nos mitos gregos dos deuses Pã, Hermes e Dioniso e da figura mítica de Ícaro.

Este estudo ancora-se nos contributos junguianos e neojunguianos, de Marie-Louise Von Franz e James Hillman, da história da mitologia e da hermenêutica simbólica de Gilbert Durand. Na primeira parte, é apresentada a natureza arquetipal e mítica de Peter Pan como criança que receia tornar-se adulto e persiste em manter o estado de infância. Na segunda parte, é apresentado o olhar mítico, destacando os contributos da mitocrítica de Gilbert Durand. Na terceira, a figura central é a de Peter Pan, a criança heroica voadora, sob a sombra de Pã, Hermes e Ícaro. Finalizamos, na quarta parte, com algumas reflexões sobre os voos e as rasantes das experiências cotidianas.

Da natureza arquetipal e mítica de Peter Pan

Peter Pan é descrito como uma criança arrogante, que vive com as fadas e acompanha as crianças quando morrem “durante parte do percurso, para que elas não sentissem medo” (BARRIE, 2005, p. 14). Ele não havia crescido, disse Wendy confidencialmente à mãe (Sr.ª Darling), era física e mentalmente do seu tamanho; no entanto, era um “rapaz endiabrado [...]e desajeitado (…) [e, quando vinha ao quarto das crianças], tocava a sua flauta de Pã. (…) [e possuía um] pequeno corpo.” (idem, p. 15).

Na perspetiva junguiana, a Criança arquetipal aparece ligada ao pensamento mítico arcaico, ao arquétipo da mãe e, de algum modo, à felicidade paradisíaca. Podemos afirmar que esse tipo de Criança representa o “aspeto infantil pré-consciente da alma coletiva” (JUNG, 1993, p. 118), que corresponde ao estádio urobórico (condição paradisíaca do desenvolvimento da criança) de Erich Neumann: esse caracteriza-se por um “mínimo de desconforto e tensão e um máximo de segurança, e também pela unidade entre o eu e o tu, entre o Self e o mundo.” (NEUMANN, 1991, p. 14). Identificamos essa unidade com a realidade unitária do paraíso, cujos símbolos mais marcantes são o refúgio, o lar original, o círculo, a esfera, o oceano, o lago e por todas as imagens associadas ao mito do Paraíso, tais como as do andrógino, da vegetação luxuriante e dos frutos variados que lhes estão associados, das águas correntes, etc. “Infância é símbolo de inocência: é o estado anterior ao pecado, portanto, o estado edênico, simbolizado em diversas tradições pelo regresso ao estado embrionário, de que a infância está próxima. A infância é símbolo de simplicidade natural, de espontaneidade” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994, p. 240), e, na qualidade de “um verdadeiro arquétipo, o arquétipo da felicidade simples” (BACHELARD, 1984, p. 106).

Jung descreve as facetas da Criança arquetipal em estreita relação com as narrativas mitológicas sobre a infância dos deuses e heróis da mitologia universal, nomeadamente da grega. Também não é menos verdade que a riqueza dessas figuras míticas pode com rigor ser estudada e compreendida à luz do par fundador “senex-puer”, como sugere Hillman (2004, p. 49-156). Na verdade, as qualidades arquetípicas da Criança revelam-se pelas infâncias de vários deuses, como, por exemplo, de Hermes e de Dioniso, entre outros (ARAÚJO, 2004, p. 22-27; ARAUJO; ARAÚJO, 2008), não pelo seu carácter biográfico, mas pela expressão da sua “essência”, que, como lembra Homero, não envelhece, não morre, porque é eterna (KERÉNYI, 1993, p. 44).

Do exposto, aquilo que importa ressaltar, lembrando a figura de Peter Pan, é que Peter, simbólica e arquetipicamente, é uma criança heroica, abandonada e invencível:

  • Peter Pan é uma criança heroica: Peter é mais uma criança heroica do que divina, embora o herói esteja sempre muito próximo do divino, porque aquilo que é comum entre o “deus-criança” e “criança-herói” é o “nascimento milagroso e os destinos da primeira infância, o abandono e os perigos que os perseguidores lhes fazem passar. […] O herói compreende no seu aspeto sobrenatural a essência humana e representa portanto uma síntese do inconsciente (‘divino’, quer dizer ainda não humanizado) e do consciente humano.” (JUNG, 1993, p. 124-125). Assim como há um outro traço clássico evidenciado por Jung, que afirma que “o principal trabalho do herói é o de vencer o monstro da e na obscuridade: é a vitória esperada e aguardada da consciência sobre o inconsciente. Dia e luz são sinônimos da consciência; noite e trevas são sinônimos do inconsciente.” (idem p. 126);

  • Peter Pan é uma criança abandonada: a solidão, o abandono, a exposição, as ameaças e os perigos a que é sujeito por inimigos poderosos (no caso de Peter Pan, o Capitão Gancho), o isolamento, a ameaça de morte, o sentimento de orfandade, a insignificância, a rejeição da mãe são aspectos típicos do estado de abandono da criança: “o abandono, a exposição, as ameaças etc. pertencem, por um lado, ao desenvolvimento ulterior do princípio insignificante; por outro, ao nascimento misterioso e miraculoso.” (JUNG, 1993, p. 126);

  • Peter Pan é uma criança invencível: se por um lado Peter, na qualidade de criança “insignificante”, vive sob ameaças numerosas, nomeadamente a de ser morto pelo seu grande inimigo, o Capitão James Gancho, por outro lado, ele também comunga do divino, dispõe “milagrosamente” de forças e de trunfos que ultrapassam a simples natureza humana, fazendo dele uma criança-herói: pelo contrário, a criança dispõe de forças superiores e que, de uma maneira insuspeita e apesar de todos os perigos sofridos, ela terminará por impor-se. Ela representa o impulso mais forte e o mais inevitável do ser, aquele que consiste em realizar-se a si mesmo (idem, p. 130).

O olhar mítico: o contributo da mitocrítica de Gilber Durand

Para melhor compreendermos quem é Peter Pan, necessitaremos seguidamente de interrogarmo-nos sobre as figuras míticas, deuses ou não, que melhor dão conta da sua natureza arquetipal, porque os arquétipos, para se fazerem ver e ouvir, necessitam do mito, que já é uma racionalização do semantismo arquetipal que está na gênese da ideia (DURAND, 1984, p. 64).

É graças à mitocrítica durandiana (DURAND, 1979a, 2000) que procuraremos detectar o conjunto de orientações mítico-simbólicas passíveis de serem encontradas na obra de J. M. Barrie. Como nos lembra Durand (2000, p. 198):

A mitocrítica permite-nos, por conseguinte, incidir o nosso olhar no olhar do texto até às últimas confrontações com o gesto dos heróis imemoriais e dos deuses. […] O parentesco de todo o texto literário - oral ou escrito - com o mito parece-me, portanto, evidente, e legitima toda a tentativa de mitocrítica.

Peter Pan filia-se ao deus Pã (plano denotativo), que, por sua vez, achou graça e proteção de dois deuses maiores da mitologia grega: Hermes e Dioniso (plano conotativo). Se a esse conjunto de deuses juntarmos uma outra figura mítica grega, ainda que menor, a de Ícaro (filho do engenhoso arquiteto Dédalo) (FRONTISI-DUCROUX, 2000; DANCOURT, 2002; CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994, p. 372), podemos certamente ficar com um retrato mitológico satisfatório de Peter Pan. Desse modo, explica-se que compreenda primeiramente alguns traços principais do deus Pã e caraterísticas tanto de Hermes como de Dioniso, assim como sugere a figura de Ícaro. Nesse contexto, podemos compreender melhor a personalidade e o comportamento mitológicos de Peter Pan se o filiarmos, do ponto de vista denotativo, diretamente a Pã, que é o “deus-bode da natureza” (HILLMAN, 2015, p. 31-38), e, do ponto de vista conotativo, com Hermes, Dioniso e Ícaro. Foi abandonado à nascença pela sua mãe - que era uma ninfa - devido à sua forma, ao olhar terrível e barba espessa, depois de Hermes, seu pai, pô-lo ao colo rejubilante e conduzi-lo ao Olimpo, ocultando cuidadosamente o filho na pele aveludada de uma lebre.

Mas agradou mais a Dioniso, que depressa se reviu na figura do recém-chegado. Entre ambos os deuses depressa se estabeleceu uma afinidade e uma cumplicidade naturais, devido ao seu gosto pelos excessos: desejo sexual insaciável, gosto pela festa e pela noite, pelas sombras e pelo consumo de vinho, etc. O facto de o seu pai ter sido Hermes parece explicar a natureza hermesiana de Pã (tem a ver com aquele deus que comunica, que anuncia, que transporta mensagens, etc.). Tudo indica que Hermes, por meio de Pã, na sua qualidade de intermediário ou mediador, pretendesse estabelecer a transição entre os deuses de forma humana e os de forma animal.

Nesse contexto, Peter Pan aparece, do ponto de vista mítico, filho do deus Pã, com fortes influências dos deuses Hermes e Dioniso. Nunca será demais salientar que de Hermes terá herdado o seu lado mais pastoril e de Dioniso o seu gosto pelo sombrio, pelo úmido, pelo ctônico e pelo culto do excesso polimórfico e instintivo, assim como o gosto pela música e gritos estridentes. Indiretamente, por ser filho de Hermes, que é um deus alado, terá supostamente como herança a qualidade da rapidez e da agilidade e, pelo menos em potência como uma possibilidade, a qualidade do voo. Também seria injusto esquecer que Peter Pan está ligado à figura mítica de Ícaro, que foi um dos primeiros homens, conjuntamente com seu pai Dédalo, que viveu a experiência sublime e estimulante de voar. Assim, Peter Pan, à semelhança de Ícaro, possui a qualidade mítica do voo com todas as implicações simbólicas e psicológicas que tal qualidade implica.

Entretanto, das muitas facetas de Peter Pan que poderíamos aprofundar, privilegiamos neste estudo a faceta heroica e voadora.

Peter Pan, uma criança heroica voadora: sob a sombra de Pã, de Hermes e de Ícaro

Uma das marcas distintivas de Peter Pan é que possui a qualidade de voar, que é, como sabemos, um atributo divino, nomeadamente de Hermes. Também convém não esquecer que Peter tem um outro atributo hermesiano - o de guia. Se Peter herdou a qualidade de voar do deus Hermes, não é igualmente errôneo salientar que essa qualidade aparenta-o com Ícaro. A afinidade entre Peter Pan e Ícaro é que ambos são humanos e ambos voam, ainda que de modo diferente.

Essa sua qualidade é confirmada no capítulo IV, intitulado O Voo (BARRIE, 2005, p. 51-63), em que Wendy, John e Michael viajam para a ilha da Terra do Nunca, conduzidos por Peter Pan. Mesmo antes, no capítulo I, intitulado O Peter, escapa e aparece pela primeira vez (idem, 5-17). Lê-se que sobre ele “contavam-se estranhas histórias e que, quando as crianças morriam, ele as acompanhava durante parte do percurso, para que elas não sentissem medo.” (ibidem, p. 14). Essa função de acompanhar as almas é tipicamente uma das funções do deus Hermes na sua qualidade de psicopompo (aquele que guia a alma dos mortos entre os diferentes níveis) e é, nesse sentido, que Peter Pan é devedor do deus Hermes. Além desse atributo, que não é pequeno, Peter voa, sendo mesmo uma das suas maneiras preferidas de deslocar-se4, e esse atributo foi-lhe concedido muito provavelmente pelas fadas, visto que era na companhia delas que Peter vivia. Graças a esse pó mágico, proveniente das fadas, que Wendy e seus irmãos puderam voar (ibidem, p. 46-54):

Em vez de se dar ao incômodo de lhe responder, Peter pôs-se a voar em torno do quarto, atirando ao chão, de caminho, tudo o que estava em cima da prateleira do fogão de sala. […] ninguém pode voar a não ser que lhe tenham soprado o pó das fadas. Felizmente, uma das suas mãos [de Peter] ainda estava coberta com esse pó, de modo que ele soprou algum sobre cada um deles, obtendo os resultados mais surpreendentes. […] - Venham - disse ele, imperativamente, e começou a voar pela noite, seguido por John, por Michael e por Wendy. […] Por fim, Peter dava um mergulho pelos ares para apanhar Michael, mesmo antes que ele pudesse estatelar-se no mar, e era bela a forma como o fazia. […] Ele (Peter) podia voar bastante mais depressa do que eles, de modo que desaparecia com a velocidade de um tiro ao encontro de uma aventura qualquer que eles não iriam compartilhar com ele.

O simbolismo do voo é-nos dado pela asa que, por sua vez, reenvia ao verbo voar, que é sempre símbolo de levitação, de mobilidade, de elasticidade, instinto de ligeireza, de energia fácil, de desejo de verticalização, de ascensão, de purificação, de sublimação, o fálico em potência, de angelismo (DURAND, 1984, p. 144-145; CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994, p. 92-93):

[...] a asa é já um meio simbólico de purificação racional. […] A asa é o atributo de voar, não do pássaro ou do inseto. […] As imagens ornitológicas reenviam todas ao desejo dinâmico de elevação, de sublimação. […] O devaneio da asa, do voo, é a experiência imaginária da matéria aérea, do ar - ou do éter - substância celeste por excelência.

O voo também simboliza os desejos voluptuosos, assim como pode exprimir a voluptuosidade purificada, e por isso pode ser belo (BACHELARD, 2004, p. 29-48; CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994, 92-93):

O sonho do voo é o sonho de um sedutor seduzindo. […] no mundo do sonho não se voa por que se tem asas, acredita-se nelas porque se voou. […] O voo onírico é uma síntese da queda e da elevação. […] O sonho do voo é o símbolo da volúpia. […] Para certas almas que têm uma vida noturna intensa, amar é voar; a levitação onírica é uma realidade psíquica mais profunda, mais essencial, mais simples que o próprio amor. Esta necessidade de aligeirar-se, esta necessidade de libertar-se, esta necessidade de absorver da noite a sua vasta liberdade, aparece como um destino psíquico, como a própria função da vida noturna normal, da noite repousante.

Peter Pan, por estas qualidades e por outras caraterísticas, vive sob a influência do arquétipo da Criança (especialmente da faceta invencível ou heroica), do puer aeternus e dos deuses já referidos, nomeadamente de Hermes, além da figura mítica de Ícaro (BARRIE, 2005, p. 14-17, p. 36-38, p. 53, p. 145).

- Sim, ele é muito arrogante - […] - Oh, não, ele não cresceu - assegurou-lhe Wendy, confidencialmente. - Ela queria dizer que ele era física e mentalmente do seu tamanho. […] Era um rapazinho encantador, vestido com nervuras de folhas e coberto pela seiva que escorre das árvores, mas a coisa mais intrigante acerca dele é que ainda tinha os dentes de leite. Quando ele reparou que ela era uma adulta, rangeu essas pequenas pérolas. […] - Que esperto que eu sou! - exclamou, muito convencido. - Oh, a esperteza que eu tenho!” É humilhante ter de confessar que esta presunção de Peter era uma das suas qualidades mais fascinantes. Para falar com toda a franqueza, nunca existiu um rapaz tão cheio de vaidade própria. […] És um grande gabarola [disse Wendy a Peter] […] Wendy, eu fugi no dia em que nasci. […] - Foi porque ouvi o meu pai e a minha mãe - explicou ele, em voz baixa - a falarem acerca do que eu iria a ser quando fosse grande - disse ele, com muita emoção. - Quero ser sempre um menino e divertir-me. De modo que fugi para os Kensington Gardens e vivi muito tempo entre as fadas. […] adorava a variedade e a brincadeira que num momento o pudesse interessar e que já não lhe interessaria tanto no momento seguinte. […] Para lhe dar a entender que a sua (a de Wendy) partida em nada o afectava (Peter), começou a saltitar pelo local, brincando alegremente com a sua flauta de Pã. Ela teve de correr atrás dele, o que se tornou ridículo. […] - Talvez ela (a mãe de Wendy) fosse dizer que eu estava mais velho e eu quero ser sempre um menino, para me divertir.

Apesar de todas as suas qualidades e atributos, mesmo sendo muito esperto e perspicaz, Peter confessava que a sua vida na Terra do Nunca era “muito solitária, pois não temos nenhuma companhia feminina” (idem, p. 40). A esse respeito, no capítulo X, intitulado Casa Feliz (ibidem, p. 127-136), parece-nos haver uma certa ambiguidade, como também é próprio do homem puer, do modo como Peter Pan encara Wendy. Se ela não esconde a sua paixão por ele, à semelhança da fada Sininho, sua rival amorosa, e mesmo a Açucena Alaranjada, já Peter, ao responder à pergunta de Wendy sobre os sentimentos que ele tinha por ela, não poderia ter sido mais desconcertante: “- Os de um filho dedicado, Wendy. - Era isso que eu pensava - disse ela, e foi sentar-se sozinha no lado oposto dessa divisão.” (ibidem, p. 134). Nesse contexto, percebe-se que Peter, mais do que uma apaixonada, mais do que viver um grande amor, ele, exprimindo uma carência extraordinária de Anima (HILLMAN, 1995; JUNG, 1995, p. 75-101, 55-99), deseja uma mãe, procura uma mãe como suplemento da sua alma carente de afeto maternal. Um sentimento mais natural, pois ele contava que, quando quis novamente regressar à casa materna, encontrou a janela fechada com grades e que havia já outro rapaz pequenino dormindo na sua cama. Para ele, essa imagem era a prova de que sua mãe havia se esquecido dele. Por isso, a sua incessante busca por uma nova mãe e não por um mero substituto maternal (outro traço do típico do puer), que, aliás, era partilhada por todos os meninos perdidos5 (BARRIE, 2005, p. 83-92, p. 220):

- Tenho ótimas notícias para vocês, meus rapazes - gritou ele. - Finalmente, pude trazer-vos uma mãe. […] - E nós somos os seus filhos - acrescentaram os gêmeos. Em seguida, todos puseram um joelho em terra e, estendendo os seus braços na direção dela, pediram-lhe: - Oh, Senhora Wendy, queira ser nossa mãe. - Será que deveria? - perguntou a Wendy, muito sensibilizada. - É claro que isso seria muito agradável para mim, mas, tal como podem ver, sou apenas uma criança. Não tenho experiência. - Isso não tem importância - disse Peter, como se ele fosse a única pessoa presente que soubesse tudo acerca do assunto, embora fosse quem, na verdade, soubesse menos. - O que precisamos é apenas de uma pessoa que faça de nossa mãe. - Oh, meu caro! - exclamou Wendy. - É isso mesmo que eu penso ser. - É, é - gritaram todos, ao mesmo tempo. - Nós reparamos logo nisso. - Muito bem - disse ela. - Farei o meu melhor”.

- E a Açucena Alaranjada é a mesma coisa (perguntou-lhe Wendy). Há qualquer coisa que ela quer ser para mim, mas disse-me que não era ser minha mãe. - Não, de fato não é - observou Wendy, já um pouco assustada. […] E então ele teve uma súbita ideia. - Talvez a Sini queira ser minha mãe. - Meu burro estúpido! - exclamou logo a Sininho, muito abespinhada.

- Regressei para vir buscar a minha mãe - explicou ele. - Para a levar para a Terra do Nunca. - Sim, bem sei - disse Jane. - Tenho estado à tua espera. […] enquanto Jane, em camisa de dormir, voava solenemente em volta do quarto, em êxtase. Ela é a minha mãe - explicou o Peter […] - Ele precisa tanto de uma mãe… - observou Jane. - Sim, eu sei - admitiu Wendy, um pouco desolada. - Ninguém o sabe tão bem como eu. - Adeus - disse Peter para Wendy.

Além disso, e é um dos traços do puer, é que Peter, ao contrário dos outros meninos perdidos, não diferenciava a realidade do faz-de-conta: “o faz-de-conta e a verdade eram uma e a mesma coisa. Isso inquietava-os por vezes, como quando tiveram de fazer de conta que já tinham jantado. Se eles não levassem essas brincadeiras a sério, ele batia-lhes nos nós dos dedos.” (BARRIE, 2005, p. 87). No entanto, quando a situação lhe exigia, Peter escolhia, talvez intuitiva e instintivamente, o combate heróico, como foi, por exemplo, o combate com os piratas na Lagoa das Sereias, no capítulo VIII (idem, p. 103-120), além de não tolerar a injustiça, aliás era mesmo um dos pontos sensíveis da sua personalidade (ibidem, p. 117-118). Ferido traiçoeiramente pelo capitão Gancho, exclamou heroicamente: “ - Morrer será, apesar de tudo, uma grande aventura.” (ibidem, p. 120). Peter Pan era naturalmente um herói, nomeadamente quando, imitando o tique-taque do crocodilo, entrou no Jolly Roger (o navio horrível dos piratas) do capitão Ganho para libertar as crianças prisioneiras (ibidem, p. 167-178). Até Peter ficou surpreendido de a sua imitação ter metido tanto medo nos piratas e no próprio Gancho (ibidem, p. 180). E, numa atitude típica de puer, exclamou: “- Como eu sou inteligente! - pensou logo, e fez sinal aos rapazes para que estes não o aplaudissem.” (ibidem, p. 180). Peter escondeu-se na cabine, que “estava negra como um poço” (ibidem, p. 183), do navio e à medida que os piratas entravam na cabine, nomeadamente o Bill Jukes, o Cecco, eram esfaqueados, enquanto o pirata Ed Teynte era atacado no caso da proa, sem piedade, por Peter (muito provavelmente, também esfaqueado) (BARRIE, 2005, p. 180-183). Além disso, quando os piratas se preparavam para deitar, Wendy borda fora, Peter anunciou-se ao capitão Gancho e aos restantes piratas do seguinte modo: “- Peter Pan, o vingador! - foi a terrível resposta e, ao falar, retirou a capa.” (idem, p. 187).

Por outro lado, não fica difícil entender que Peter é um sedutor e usa a sua qualidade de voar, além de outras funções, para seduzir e encantar, especialmente Wendy: “Peter pôs-se a voar em torno do quarto, (…) - Que encantador! - disse Wendy. - Sim, sou encantador, sou mesmo encantador - disse-lhe Peter.” (ibidem, p. 52). No fundo, Peter vive os seus desejos voluptuosos, sublimando-os pela elevação que o próprio voo simboliza e vivendo os seus afetos ambiguamente com a fada Sininho e com Wendy. Desse modo, não obstante Peter Pan possuir a qualidade divina do voo, isso não faz dele necessariamente uma Criança Divina pela razão de que Peter não é filho de nenhum deus ou deusa. Por tudo aquilo que é dito na obra de J. M. Barrie sobre Peter Pan, encaramo-lo, do ponto de vista arquetípico, como uma Criança heroica, estando miticamente sob a influência dos deuses Pã (divindade das regiões montanhosas, que simboliza a natureza selvagem e instintiva6, pastoral e o pânico7), de Hermes (simboliza a fonte da vida masculina e guia das almas) e de Dioniso (simboliza a imagem arquetípica da vida indestrutível).

Sob a influência do arquétipo do puer aeternus, Peter é uma Criança heroica complexa e mesmo desconcertante. Peter Pan, sob o signo do puer, lança-se em aventuras de tipo heroico, mesmo que entre o puer e o herói haja sempre lugar para aspectos comuns e diferentes. Nos aspectos comuns, destacamos a solidão, a hiperatividade e ambos possuírem um espírito ascendente, ativo na procura intensa do transcendente, cujo traço de união é dado pela sua atitude em face da morte, uma espécie de desafio e deslumbramento. A morte aparece como algo que é simultaneamente fascinante e tremendo: “o heroísmo reflete um espírito ascendente, ativo na sua busca e transcendente (para além da vida, quer dizer na morte e na ilha dos Bem-Aventurados). Achamos estas caraterísticas no puer que, por conseguinte, implica facilmente heroísmo.” (HILLMAN, 1978, p. 114-115).

No tocante às diferenças entre o herói e o puer, consideramos que são as virtudes civilizadoras e a ambição civilizadora (Hércules, Jasão e Teseu, por exemplo) que melhor ilustram o comportamento heroico (o herói é um poder da imaginação), enquanto o puer carateriza-se pela odisseia do espírito, pela ambição criadora (filho do poder do espírito) e, por conseguinte, não é nem o modelo, nem o lugar definidos que o preocupam. Finalmente, a hubris do herói provém da sua ligação secreta com a mãe, enquanto a arrogância do puer reflete a sua convicção narcísica: ele é “a criança do espírito que traz ao mundo a mensagem do pai” (HILLMAN, 1978, p. 121).

Peter Pan manifesta um comportamento imaturo, narcísico, bem como revela uma grande dificuldade em desenvolver uma perspetiva adulta e lúcida/realista em face da vida e mesmo do futuro (caraterísticas do senex). Nesse contexto, Peter recusa crescer, recusa o mundo dos adultos, quer continuar sempre criança, mergulhado num mundo governado pela fantasia e pela imaginação que a ilha da Terra do Nunca simboliza, à semelhança da Terra da Brincadeira, de Pinóquio, enfim, uma espécie de paraíso utópico em que a diversão fosse a condição natural dos seus habitantes (um imenso parque de diversões - uma brincolândia).

Por isso, quando a mãe de Wendy (a Sr.ª Darling) lhe diz que gostaria de adotá-lo, Peter perguntou-lhe rapidamente (BARRIE, 2005, 209-210):

- E vai mandar-me para a escola? - perguntou-lhe Peter, sorrateiramente. - É claro. - E depois para um escritório? - Creio que sim. - Então, em breve, serei um homem. - Sim, já não faltará muito. - Eu não quero ir para a escola para aprender coisas sérias - disse-lhe ele, com muita convicção. - Não quero ser um homem. […] - A Srª. Darling estendeu-lhe então os braços, mas ele recusou o seu abraço. - Mantenha-se longe de mim, minha senhora, ninguém vai me agarrar para me transformar num homem. - Mas onde irás tu viver? - Com a Sini, na casa que construímos para a Wendy. […] - O que eu irei me divertir - disse Peter, sem desviar os olhos de Wendy.

Também, quando o capitão Gancho lhe perguntou quem Peter era, a sua resposta, bem à maneira de uma criança sob o signo do puer aeternus, foi a seguinte: “- Sou a juventude, sou a alegria - respondeu Peter de improviso. - Sou um passarinho que saiu do ovo.” (idem, p. 190). Também convém relembrar que, no tocante à recusa do crescimento, havia um interdito na Terra do Nunca imposto pelo capitão Peter Pan, que determinava que nenhum dos meninos perdidos poderia crescer e, quando isso parecia acontecer, “Peter dava-lhes um desbaste” (ibidem, p. 66). Toda a criança, ou adulto, que esteja sob a influência desse arquétipo, tem sempre um comportamento complexo e não linear, o que torna naturalmente difícil compreender muitas vezes o seu comportamento, quantas vezes, errático, surpreendente, misterioso, arrogante, vaidoso, narcísico, etc.

No entanto, o comportamento de Peter Pan possui um denominador comum, que é o de ele ser ainda uma criança e ser também um herói. Pela sua faceta heroica, pertence ao Regime Diurno do imaginário com as suas “estruturas heroicas” (DURAND, 1984, p. 202-225)8 e, como é criança, pertence ao Regime Noturno com as suas “estruturas místicas” do imaginário (idem, p. 307-320)9. Por um lado, Peter Pan é uma criança solitária, exposta, abandonada, invencível e que vive num eterno presente, ou seja, denota dificuldade em (com)viver com o tempo (passado, presente e futuro): Peter “não tinha a noção do tempo” (BARRIE, 2005, p. 211). A sua memória estava fixada fundamentalmente no presente10, pois esquecia-se rapidamente de tudo (idem, p. 212-213):

- Eu esqueço-me sempre deles, depois de os matar - respondeu-lhe ele, com um encolher de ombros. Quando ela expressou certas dúvidas acerca do fato de Sininho ficar contente por vê-la, ele perguntou-lhe: - Quem é Sininho? […] - Há tantas… - disse ele - acho que ela já não deve estar viva. […] Peter acabou por vir para a próxima limpeza da Primavera e, coisa estanha, nunca se deu conta de que se tinha esquecido de um ano.

Por outro lado, Peter Pan é um herói estranho, quase que diríamos um anti-herói, porque no final ele acaba por não matar o capitão Gancho (simbolizando o monstro) (AA.VV, 1975), como tudo o indicaria, antes o empurra para o mar, onde James Gancho é devorado sim por um verdadeiro monstro - o crocodilo (BARRIE, 2005, p. 192):

[...] vendo Peter a voar pelos ares, convidou-o, com um gesto, para que este usasse o pé. Fez com que Peter lhe desse um pontapé em vez de uma facada. Por fim, Gancho obtivera a benesse que tanto desejara, ironicamente, e foi contente para as fauces do crocodilo. Assim pereceu James Gancho.

Do exposto, constata-se que Peter Pan, como seria provável, não mata o capitão Gancho com a sua espada, tanto mais que Peter “era um ótimo espadachim e esgrimia com uma rapidez estonteante” (idem, p. 189). O que acontece é que se assiste a uma eufemização da morte de James Gancho, talvez por Peter, que não simpatizava com ele, estar contente “por saber que, apesar de tudo, ele era um indivíduo fiel às tradições da sua raça.” (ibidem, p. 191). Essa eufemização teatralizada da morte de James Gancho contribui para que Peter Pan fugisse ao protótipo padrão do herói típico do Regime Diurno. A esse respeito, importa recordar que um dos traços mais marcantes que Gilbert Durand (1979, p. 121-122) atribui à imaginação simbólica é a função eufemizante entendida não como

[...] um simples ópio negativo, máscara que a consciência ergue em face da horrenda figura da morte, mas pelo contrário dinamismo prospectivo, que através de todas as estruturas do projecto imaginário, tenta melhorar a situação do homem no mundo. […] Contudo, essa mesma eufemização submete-se ao antagonismo dos regimes do imaginário. (…) o eufemismo diversifica-se, à beirada retórica, em antítese declarada, quando funciona em Regime Diurno, ou pelo contrário, pelo desvio da dupla negação, em antífrase, quando depende do Regime Noturno da imagem

Por outras palavras, podemos afirmar que Peter Pan eufemizou paradoxalmente a morte do seu maior e principal inimigo Gancho ao ter recusado, num dos momentos derradeiros da sua existência, trespassá-lo pela espada. Esse seu ato eufemístico adquire mais relevância pelo fato de a espada ter um simbolismo fortemente heroico e estar destinada, pela própria natureza, a cortar, a separar, a ferir e matar o outro (adversário humano ou monstro que seja…). Assim, esse tipo de arma permanece como sendo uma das armas mais emblemáticas das estruturas heroicas com os seus símbolos diairéticos de corte, de clareza, de pureza, de separação, de luz, de purificação: “a espada é, portanto, o arquétipo em direção ao qual parece orientar-se a significação profunda de todas as armas, e sobre este exemplo vê-se como ligam inextricavelmente numa sobredeterminação as motivações psicológicas e as intimações tecnológicas.” (DURAND, 1984, p. 185). A espada estabelece, isomorficamente, a relação entre a verticalidade, a transcendência e a virilidade.

Nesse contexto, Peter Pan afirma-se, por um lado, como uma Criança heroica, invencível, mas, por outro lado, como está sob a influência arquetipal do puer aeternus, Peter é malgré-lui um herói de tipo lunar, místico, enfim marginal em face da ortodoxia do Regime Diurno do imaginário (idem, p. 67-215) em que a espada simboliza a arma heroica por excelência estudada por Gilbert Durand nos “símbolos diairéticos” (ibidem, p. 178-202). As armas cortantes que separam o bem do mal representam esse tipo de símbolos. Nessa perspetiva, Durand salienta que “a arma de que o herói se encontra munido é, assim, ao mesmo tempo símbolo de potência e pureza.” (ibidem, p. 181). Dessa forma, explicita que “o herói puro, o herói exemplar, continua a ser o matador de dragões.” (ibidem, p. 188).

Nesse contexto, podemos finalmente defender a ideia de que Peter Pan, ao não utilizar a sua arma heroica para matar o capitão Gancho (símbolo do dragão) e entregá-lo à morte indiretamente, deixa-se influenciar arquetipicamente pela Criança, que ele, no fundo, é, carente de uma mãe e sofre, como diria Von Franz (1992, p. 13), de um complexo materno. Desse modo, não é por acaso que, quer a Mãe, quer a Criança, são arquétipos “substantivos” do Regime Noturno do imaginário (DURAND, 1984, p. 217- 433), deixando-se ambos tipificar pelas “estruturas místicas” (idem, p. 307-320) desse mesmo regime.

Dessas estruturas, destacamos aquela que melhor dá conta da natureza de Peter Pan, a quarta estrutura do Regime Noturno, que é a da “miniaturização” (gulliverização) (ibidem, p. 315-319)11, ou seja, aquela que valoriza o reduzido, o pequeno, a substância íntima, o microcosmo, que possui uma visão liliputiana da vida e da própria existência. O que significa, portanto, que Peter, além de caraterizar-se por essa gulliverização, é governado predominantemente pela dominante digestiva, com tudo aquilo de táctil, de olfativo e de gustativo que essa dominante implica, em que os verbos descer, possuir, penetrar são subsumidos por um schème12 verbal mais lato, que é o verbo confundir. É de notar que esse é um verbo de arquétipos epitéticos (profundo, calmo, quente, íntimo e escondido) e de arquétipos substantivos (o Microcosmos, a Criança, a Mãe, a Casa, o Centro, o Recipiente, entre outros). E vimos bem como, ao longo da obra de Peter Pan, muitos desses elementos estão presentes e outros são mesmo incontornáveis, nomeadamente os elementos da casa e da mãe e da recusa do crescimento. Recordamos, a propósito da casa, que os meninos perdidos viviam numa casa “debaixo do chão” (BARRIE, 2005, p. 93-101) e que nela se entrava por meio dos buracos existentes em sete grandes árvores que davam, por sua vez, acesso à sua casa subterrânea. Essa descrição representa bem a importância que os arquétipos substantivos do Regime Noturno do imaginário desempenham na compreensão simbólica da obra de J. M. Barrie.

Algumas considerações: dos voos e das rasantes nas experiências cotidianas

Complementarmente aos aspetos simbólicos apontados, queremos finalizar recordando que Peter Pan, segundo Barrie (2005, p. 15-17), era um :

[...] rapaz endiabrado (…) e desajeitado (…) [e quando vinha ao quarto das crianças] tocava na sua flauta de Pã. (…) [e possuía um] pequeno corpo. (…) um rapazinho encantador, vestido com nervuras de folhas e coberto pela seiva que escorre das árvores, mas a coisa mais intrigante acerca dele é que ainda tinha os dentes de leite. Quando ele reparou que ela era uma adulta, rangeu essas pequenas pérolas .

Além disso, voava e acompanhava as crianças quando morriam “durante parte do percurso, para que elas não sentissem medo” (idem, p. 14). Peter não tinha crescido, disse Wendy confidencialmente à sua mãe (Sr.ª Darling), era física e mentalmente do seu tamanho. O conjunto dos aspetos agora assinalados remetem denotativa e conotativamente, como sublinhamos, para os deuses Pã (o deus-bode da natureza) e Hermes (o deus guia, que acompanha e voador). Peter Pan, à semelhança de Pã, age instintivamente e vive muito no e pelo instinto e, por isso, ele lança o pânico e delicia-se quando o espalha pelo seu comportamento instintivo (HILLMAN, 2005, p. 47-60). Quando falamos do instinto de Peter, falamos de pathos e daí compreendermos que o seu habitat predileto seja a natureza selvagem, onde ele gosta de passear e onde se desenrolam muitas das suas aventuras. À semelhança de Pã, Peter é uma criança abandonada e é bem-querido pelas fadas (e Pã era benquisto pelos deuses). Se o deus Pã agradou a todos os deuses do Olimpo, Peter Pan agradava a todos os meninos não crescidos… Tinha a sua companhia, mas sentia-se só, exposto, abandonado, daí o agarrar-se tanto a Wendy, ela mesma símbolo maternal e reflexo da sua anima, como o náufrago se agarra à tábua no alto mar.

O deus Pã representava a voz criativa da natureza, à sua semelhança. Quando Peter se aproximava da ilha da Terra do Nunca, ela renascia, para além de tocar na sua flauta (BARRIE, 2005, p. 65):

Ao sentir que Peter estava a regressar, a Terra do Nunca despertou mais uma vez para vida. (…) Quando ele está fora, tudo na ilha é muito sossegado. As fadas dormem mais uma hora de manhã; os animais selvagens tratam das suas crias; os peles-vermelhas alimentam-se fartamente, durante seis dias e seis noites; e, quando os piratas e os meninos perdidos se encontram, apenas mordem o polegar, em frente uns dos outros. Porém, com a chegada de Peter, que detesta a letargia, está tudo, mais uma vez, muito agitado. Se pusessem agora os vossos ouvidos contra o chão, ouviriam toda a ilha a fervilhar de vida.

Não obstante essas afinidades entre o deus Pã e Peter Pan, nós defendemos a ideia de que a obra de J. M. Barrie representa uma leitura sublimada do deus Pã e das suas caraterísticas. Ambos são criaturas que não existem no mundo natural, a sua natureza é inteiramente imaginal e deve ser compreendida como tal, ou seja, como imagens como dados primários da psique (HILLMAN, 2005, p. 39-45). Conotativamente, Peter Pan não pode ser dissociado de Hermes, que é, aliás, patrono do deus Pã, “o que concede aspectos herméticos às ações de Pã” (idem, p. 35): Peter, como Hermes, acompanhava as crianças quando morriam (a qualidade hermesiana de psicopompo) e possuía a qualidade do voo, que lhe permitia ligar o céu e a terra, comunicar com esses dois planos de modo igual. Resumindo: Peter Pan era uma síntese de Hermes e de Dioniso, os deuses que mais graça acharam a Pã; contudo, é Dioniso quem, sob a forma de Pã, parece prevalecer em Peter em detrimento da influência e dos atributos de Hermes, revelando-se sob os aspetos da diversão, do grito, do pânico, da música, da alegria, da natureza selvagem, da solidão sombria e noturna, do pathos.

Por fim, convém não esquecer jamais, como declara J. M. Barrie, que “só as crianças alegres, inocentes e desprendidas conseguem voar.” (BARRIE, 2005, p. 215). As pessoas crescidas esquecem-se de voar, ou seja, afastam-se da imaginação, recalcam-na, recusam-na mesmo em nome da razão, do lado diurno, solar, patriarcal da vida em detrimento do lado noturno, místico, lunar, matriarcal da vida. E quando se esquecem de voar, começam a sofrer de “hipotrofia das imagens” (WUNENBURGER, 1991, p. 82), ou seja, tornam-se

[...] seres astênicos ou esquizoides, sofrendo de uma desvitalização da sua personalidade, fixando-se em torno de imagens pobres, estereotipadas, deterioradas, que aniquilam toda a capacidade de variação e de inovação poéticas, a favor de uma racionalização abstrata, mórbida, impermeável à duração, à pluralidade, ao conflito das coisas.

Metaforicamente, e usando as próprias palavras de Wendy, esse sofrimento advém-lhe, como mencionado anteriormente, das pessoas crescidas terem esquecido de voar: “ - E porque se esquecem elas? [pergunta Jane à sua mãe] - Porque já não são alegres nem inocentes nem desprendidas [respondeu-lhe Wendy].” (BARRIE, 2005, p. 215). E aqui, de novo, surge Peter Pan para sempre nos recordar de que nunca devemos esquecer de voar, ou seja, de imaginar, porque quando tal sucede a algum de nós, à semelhança de Ícaro, corremos o sério risco de desposar o infortúnio de nunca chegar à Sicília geográfica e, muito menos, a uma qualquer Terra do Nunca mítica, senão mesmo imaginal (CORBIN, 1964, p. 3-26; HILLMAN, 2004, p. 39-45).

Em face disso, tecendo ainda essa prosa, é mister (re)pensar nos alimentos com os quais nutrimos a imaginação. É nos voos e nas rasantes das experiências cotidianas, é nesse flanar entre nuvens que alimentamos e enriquecemos a nossa alma, o nosso imaginário. E somente nos permitindo a alçar voos é que podemos transitar entre o prosaico (a razão, o denotativo) e o poético (o sentir, o conotativo) da vida e, assim, nos tornarmos seres humanos mais compreensivos e tolerantes.

Segundo Jung (2014, p. 232):

[...] possuímos a metade da coisa. A imagem do mundo é a metade do mundo. Quem possui o mundo, mas não sua imagem, possui só a metade do mundo, pois sua alma é pobre e sem bens. A riqueza da alma consiste de imagens. Quem possui a imagem do mundo possui a metade do mundo, mesmo quando seu humano é pobre e sem bens. Mas a fome transforma a alma em fera que engole o prejudicial e com isso se envenena. [...] É sábio alimentar a alma [...]

Caso contrário - adverte (idem) - a criação de demônios e de dragões surge no coração - que já não mais voa. E, para nutrir a alma, flanar sobre esparsas nuvens num voo que traz um acalanto para o coração é preciso - exato e necessário.

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4Um aspeto muito ligado ao voo e ao gozo que esse dava a Peter Pan, bem como a Wendy e seus irmãos (op. cit., 2005, p. 51-63), é aquilo que Roger Caillois (1990, p. 43-47) designou de ilinx (vertigem) como sendo uma das caraterísticas, entre outras, do jogo.

5O complexo maternal, ou seja, a carência do arquétipo da Mãe (e de uma forma mais lata, do arquétipo do feminino - Anima) estava presente em todos os meninos que viviam sob a proteção de Peter na ilha da Terra do Nunca: “- Uma senhora, enfim, para tomar conta de nós - disse um dos gêmeos. - E vocês mataram-na! (…) - Fui eu o responsável - disse ele (o Perde-Tudo), refletindo. - Quando as senhoras vinham até mim em sonhos, eu costumava dizer: ‘Linda mãezinha, linda mãezinha’, mas quando por fim veio uma, desfechei-lhe uma seta.” (op. cit. , 2005, p. 82, p. 134-135, p. 220).

6James Hillman, a esse respeito, escreve: “Pois, se Pã é o deus da natureza ’dentro de nós’, então ele é o nosso instinto.” (2015, p. 47, 47-50).

7O referido autor sublinha que uma das caraterísticas do deus Pã é a do “pânico” (op. cit., p. 33, 51-60).

8Gilbert Durand colocou estas estruturas “esquizomorfas” no Regime Diurno do imaginário: a primeira caracteriza-se pelo autismo, a segunda carateriza-se pela desagregação e a terceira carateriza-se pelo “geometrismo mórbido” (DURAND, 1984, p. 209-214). Esse regime carateriza-se por “este racionalismo extremo e, no limite, ‘mórbido’ evidencia as estruturas esquizomorfas do Regime Diurno da representação. […] Poder-se-ia definir o Regime Diurno da representação como o trajeto representativo que parte da primeira e confusa glosa imaginativa enxertada nos reflexos posturais, até à argumentação de uma lógica da antítese e ao ‘fugir daqui’ platônico” (op. cit., p. 209 e 215).

9Sobre a natureza desse tipo de estruturas, Gilbert Durand diz o seguinte: “porque estas imagens noturnas de encaixamento, de intimidade, estas sintaxes de inversão e de repetição, estas dialéticas do voltar para trás (rebroussement) incitam a imaginação a fabular uma narrativa que integre as diversas fases do retorno. A imaginação noturna é, assim, naturalmente levada da quietude da descida e da intimidade que a taça simboliza, à dramatização cíclica, na qual se organiza um mito de retorno, mito sempre ameaçado pelas tentações de um pensamento diurno do retorno triunfal e definitivo. O redobramento do continente pelo conteúdo, da taça pela beberagem, leva irresistivelmente a atenção imaginária a concentrar-se na sintaxe dramática do fenômeno, do mesmo modo que no seu conteúdo intimista e místico.” (op. cit., p. 320).

10Afirmamos que ele vivia sobretudo o presente na medida em que, acreditando ou não naquilo que contava, lembrava-se da sua mãe dizendo “- Há muito tempo - disse ele -, costumava pensar que a minha mãe deixaria sempre a janela aberta para mim.” (BARRIE, 2005, p. 141).

11Importa salientar que nesse tipo de estrutura há “uma inversão completa de valores: aquilo que é inferior assume o lugar do superior, os primeiros tornam-se os últimos, o poder do pequeno esmaga a força do gigante e do ogre.” (DURAND, 1984, p. 317).

12Schème é uma noção nuclear no pensamento de Gilbert Durand que, em nosso entender, não tem tradução na língua portuguesa, embora Hélder Godinho, o tradutor das Structures Anthropologiques de l’Imaginaire para português, tenha traduzido por esquema. Nós mantemos o termo no original, remetendo para o conceito definido do seguinte modo por Gilbert Durand: “Le schème est une généralisation dynamique et affective de l’image, il constitue la factivité et la non-substantivité générale de l’imaginaire. (…) Ce sont ces schèmes qui forment le squelette dynamique, le canevas fonctionnel de l’imagination.» (op. cit., p. 61).

Recebido: 04 de Dezembro de 2018; Aceito: 05 de Janeiro de 2019

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