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Revista de Educação Pública

versão impressa ISSN 0104-5962versão On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.28 no.68 Cuiabá maio/ago 2019  Epub 21-Jan-2020

https://doi.org/10.29286/rep.v28i68.8405 

Artigos

Hecceidade: formação como individuação sem sujeito

Haecceity: teaching as individuation without subject

Silas Borges MONTEIRO1 

1Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor Associado da Universidade Federal de Mato Grosso atendendo aos Cursos de Psicologia, Pedagogia e Filosofia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Programa de Pós-graduação em Psicologia (ambos do Instituto de Educação) e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Instituto de Ciências Humanas e Sociais (UFMT). E-mail: silasmonteiro@ufmt.br


Resumo

Este ensaio explora o conceito, usado por Deleuze e Guattari, de hecceidade, criado por Duns Scot. Sua estrutura é nominada pelo termo lembranças, para seguir o texto 1730 - Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível, de Deleuze e Guattari. Coube bem a estrutura: lembrança remete à palavra grega alêtheia, comumente traduzido por verdade. Ao mesmo tempo, este texto remete a episódios autobiográficos inspirados pelo opúsculo de Derrida: O animal que logo sou. Ao ser feita breve crítica ao conceito de sujeito como ordenador da vontade e do raciocínio, se pensa o conceito de hecceidade como individuação sem sujeito.

Palavras-chave: Hecceidade; Individuação; Professores

Abstract

This essay explores the concept, used by Deleuze and Guattari, of haecceity, created by Duns Scotus. Its structure is named by the term memories, to follow 1730 - Becoming-Intense, Becoming-Animal, Becoming-Imperceptible, by Deleuze and Guattari. The structure fit well: memories refers to the Greek word alêtheia, commonly translated by truth. At the same time, this text refers to autobiographical episodes inspired by Derrida’s pamphlet: The Animal That Therefore I Am. It making a brief critique of will and reasoning as behest of subject, we think the concept of haecceity as individuation without subject.

Keywords: Haecceity; Individuation; Teachers

O texto que aqui se apresenta recolhe questões iniciais que se adensaram, mais tarde, na elaboração do projeto de bolsa produtividade do CNPq, sob o título: Pode um filme-conceito ser um ato de educação? Criação de leitura e espectatura, texto e imagem, escritura e cinema. (2017-2020). Antes que fosse possível discutir a produção de audiovisuais, foi fundamental tratar das noções de sujeito e de formação, pois, com o projeto, se pretende atuar em processos formativos. Para apresentar esses pressupostos, valerei-me de tópicos intitulados lembranças, inspirado no texto de Deleuze e Guattari, publicado em Mil platôs: 1730 - Devir-Intenso. Devir-Animal, Devir-Imperceptível. Falarei de lembranças: de um ofegante, de um animal, de um feiticeiro medieval, de um conceito, de um esquecimento, de um professor.

Lembranças de um ofegante

Nunca fui, exatamente, ofegante, embora já tenha sido acometido por afetações pulmonares. Quando recebi o diagnóstico de tuberculose, lembro-me de um dia que fui buscar a medicação em um posto de saúde do bairro onde morava. Ao esperar ser atendido, ouvi uma profissional da saúde perguntar, em voz alta, no corredor: “o rapaz do estômago já foi?” Imaginei que diriam de mim: “o rapaz do pulmão ainda está aí?”

Deleuze lamentava que aquilo que era simples para uma pessoa, para ele era tremendo esforço: respirar. Sofria de insuficiência respiratória, decorrente de uma tuberculose mal curada na infância. Mas não é preciso patologias pulmonares para que pessoas se tornem ofegas. Arquejamos, como verbo intransitivo, por muitas razões, além das patológicas. Por vezes, uma ideia nos suprime o fôlego; em outras, antevisão de algo que nos parece inevitável; medos nos sufocam; desafios e incompreensões podem fazer-nos faltar o ar. No caso de Deleuze, a objetividade da insuficiência respiratória era-lhe não pouca coisa.

Começo esse texto deste modo por ter desejo de compor-lhe um movimento que tenha afetos à filosofia da diferença, em Deleuze, naquilo que o vejo ecoando Nietzsche (o que, a meu ver, nem sempre acontece). E, nesse caso, quando damos início a um ponto fundado em uma experiência biográfica, vem-nos, como natural, a ideia de que é o sujeito Deleuze, ou qualquer outro, que conduz um pensamento ou uma filosofia. Esse remetimento de um nome a um sujeito parece decorrer do antigo hábito ocidental de fundar a experiência humana como sendo uma consequência da ação de um sujeito.

Diferente do hábito comum do ocidente, venho argumentar que essa ideia que sustenta um gênero bem amplo como o de sujeito, onde cabemos todos nós humanos, não passa de hábito adquirido pelo modo como usamos a norma da língua. Essa intuição nascida da leitura que faço de Nietzsche nos ajuda a tratar, com Deleuze e Guattari, da ideia de individuação sem sujeito, condensada no conceito de hecceidade. Por essa posição assumida nessa leitura cruzada de Nietzsche e da filosofia dos mil platôs acabo por concluir que falar em sujeito, hoje, é balbuciar uma cantiga que, cada vez mais, perde seu sentido. Com isso, quero afirmar que falar em singularidade é, antes de tudo, falar de nós mesmos, muito mais do que do nosso gênero, identidade ou, quem sabe, classe. Pretendo mostrar que a peculiaridade que cada humano toma, torna-o, no limite, único, desde que não ceda à vontade de se tornar como os outros, o que para Nietzsche é explicado pela demanda do espírito gregário, o mais antigo experimentado pelos humanos.

Deleuze e Guattari (2011) falam em hecceidade, entendido como “individuação sem sujeito” (p. 8), no volume 1 de Mil Platôs, na edição brasileira. É tratado com maior profundidade em 1730 - Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível (DELEUZE; GUATTARI, 2012b), encontrado no volume 4 de Mil Platôs. Usei a estrutura desse texto para escrever este texto, igualmente como um espécie de hecceidade.

Se na língua portuguesa platô pode significar um disco que integra um dispositivo cuja função é transmitir força do motor às rodas de tração, na filosofia da diferença de Deleuze e Guattari pode ser entendido como campo de força. Assim, se pode perguntar: o que dá força à individualidade?; o que a traciona? Deleuze e Guattari (2012b, p. 19) retomam: “[...] como um devir não tem sujeito distinto de si mesmo; mas também como ele não tem termo, porque seu termo por sua vez só existe tomado num outro devir do qual ele é o sujeito, e que coexiste, que faz bloco com o primeiro.”

Se na língua portuguesa sujeito é o que se liga ao predicado, para Deleuze e Guattari, sujeito é termo de si mesmo, é sua própria duração: ele se estende em blocos de alianças. Logo, individualidade traz em pauta aquilo que o devir-sujeito se torna, se estende a outros devires, a outras alianças, é tornar-se cada vez mais si mesmo de modo não platônico, não como essência. Assim, é movimento de acrescentamento de si mesmo. Parece que Nietzsche pôs isso em tema ao incitar seu leitor a tornar-se o que se é: humanos, demasiado humanos. A força do acrescentamento está no demasiado: encher-se de si mesmo, não de algo que de fora chama, como uma vocação: é o atendimento ao apelo de cada corpo realizar-se a si mesmo. Devir singularidade. Em Ecce Homo, no capítulo Por que sou tão sábio, na § 1, se encontra: “A fortuna de minha existência, sua singularidade talvez, está em sua fatalidade: diria, em forma de enigma, que como meu pai já morri, e como minha mãe ainda vivo e envelheço.” (NIETZSCHE, 1995, epub).

Nietzsche oferece uma estrutura e não uma série de componentes autobiográficos. Se fosse uma série, entenderíamos como: - de certo modo, está morto como o pai, inerte, acabado; de certo modo, ainda vivo como a mãe, em fase de envelhecimento (cf. Ecce homo). Entendamos como estrutura: pai e mãe, vivo e morto, novo e velho. São pontuações de devires: Nietzsche se torna o que se é por um pai morto; se torna o que se é por uma mãe viva; experimenta uma espécie de amálgama de morbidez e vitalidade, de décadence e saúde. Por isso, não ignora os caminhos mais baixos e mais altos, a ordem paterna e materna, o homem e a mulher: vê-se alimentado de perspectivas de toda ordem. A isso se pode denominar de hecceidades; devir-singularidade traz em questão o tornar-se a si mesmo.

Quando fala sobre Foucault, em Conversações, Deleuze (2004) diz: “Parece idiota: não foi a descoberta da subjetivação que o matou. E no entanto... ‘um pouco de possível, senão eu sufoco…’” (p. 131). Talvez digam: um pouco de sujeito, senão eu sufoco. Quem é sufocado? Por que não um pensamento ofegante por falta de sujeito?

Lembranças de um animal

Em 1997, o colóquio de Cerisy teve como título L’animal autobiographique, tomando como trabalho a obra de Jacques Derrida. Na terça-feira à tarde, 15 de julho, Derrida entregou a conferência L’animal que je suis…, traduzido para o português em 2002 sob o título: O animal que logo sou…

A questão que Derrida (2002) explora é o animal autobiográfico, título do colóquio em que acaba por cunhar o termo ecce animot, uma referência ao texto autobiográfico de Nietzsche, sobre quem escreve: “a esse homem de que Nietzsche dizia, aproximadamente, não sei mais exatamente onde, ser um animal ainda indeterminado, um animal em falta de si-mesmo.” (DERRIDA, 2002, p. 15). Esse animal incompleto, ainda dirá: “É um animal de leitura e reescritura.” (p. 73). Assim, ao lidar com esse humano em devir, por que não dizer dele um devir-animal? Deleuze e Guattari (2012b, p. 21) afirmam:

Dizemos que todo animal é antes um bando, uma matilha. Que ele tem seus modos de matilha, mais do que características, mesmo que caiba fazer distinções no interior desses modos. É esse o ponto em que o homem tem a ver com o animal. Não nos tornamos animal sem um fascínio pela matilha, pela multiplicidade.

Essa multiplicidade assina palavras de morte e de vida. Não são disposições transitórias, que pipocam sob algum tipo de certo controle. Não há uma razão domando instintos. Há instintos que damos o nome de razão. Assim como há instintos que ofendemos por nomes baixos com a esperança de que nos deixem em paz - um tipo de paz que nega a vida. Essa multiplicidade faz do escritor um feiticeiro,

[...] porque escrever é um devir, escrever é atravessado por estranhos devires que não são devires-escritor, mas devires-ratos, devires-inseto, devires-lobo, etc. […] O escritor é um feiticeiro porque vive o animal como a única população perante a qual ele é responsável de direito. (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 21).

Essa radicalidade em dissolver o que chamamos de humano para o sentido de animal é uma forma de romper com a tradição clássica que vê o gênero animal como inscrição do humano, a ele atribuindo qualificações como racional, político e outras. Como escreveu Derrida (2002, p. 15): “Freqüentemente me pergunto, para ver, quem sou eu - e quem sou eu no momento em que, surpreendido nu, em silêncio, pelo olhar de um animal, por exemplo os olhos de um gato, tenho dificuldade, sim, dificuldade de vencer um incômodo.”

Lembranças de um feiticeiro medieval

Uma palavra sobre o criador do conceito de hecceidade: Duns Scot

John Duns Scot, nascido em torno de 1266 e morto em 1308, tinha como projeto intelectual não exatamente a filosofia, mas sim a teologia. Desacreditava na ciência como meio de conduzir à salvação; apoiava-se na fé, no amor e nas atitudes práticas que o fiel deveria ter. Tinha a ternura de um dogmático sincero. Sustentava que a teologia tinha de ser uma disciplina prática, mais do que teórica, portanto, deveria ser, de alguma forma, normativa.

Por outro lado, defendia a separação da filosofia da teologia. Era como se defendesse a autonomia da razão filosófica, algo próximo do projeto kantiano, séculos depois. O conceito de hecceidade é inscrito por Duns Scot em um ponto de discórdia com o pensamento de Tomás de Aquino. Para Tomás de Aquino, as essências constituem universais que tornam inteligíveis os seres particulares. Assim, o conhecimento só poderia dar-se no domínio das essências universais.

Duns Scot radicaliza o conceito aristotélico de abstração: a abstração converte-se numa forma fundamental do conhecimento, no próprio conhecimento científico. Seu ponto de vista é de que se os sentidos conhecem o objeto na sua existência atual; também, do mesmo modo, o deve conhecer o intelecto, que é uma potência cognitiva mais elevada. Posto que na realidade externa só existem coisas individuais, e que o universal só subsiste como tal no intelecto, Duns Scot preocupa-se em encontrar o fundamento comum da individualidade das coisas externas e da universalidade das coisas pensadas, reconhecendo esse fundamento comum numa equididade ou substância.

Embora na realidade externa só existam coisas individuais, deve, no entanto, haver uma substância ou natureza comum das individualidades. Em qualquer gênero dado, existe uma unidade primeira que serve de medida de todas as coisas que pertencem a esse gênero. A substância ou natureza comum é simultaneamente o fundamento da realidade dos indivíduos e o da universalidade do conceito. Logo, não é propriamente individual nem universal; pode-se dizer que é, por si mesma, indiferente à individualidade e à universalidade.

Essa natureza comum, que é fundamento de toda a realidade, quer no intelecto, quer fora do intelecto, é objeto do conhecimento intuitivo, isso é, da função intuitiva que o faz perceber na sua realidade a substância última das coisas. Na verdade, Duns Scot encontra-se, por um lado, perante o problema da individuação; por outro lado, da universalização. A individuação consiste, segundo Duns Scot, numa última realidade do ente, a qual determina e contrai a natureza comum à individualidade. Essa última realidade do ente, esse princípio contrator e limitativo, que restringe e define a natureza como indiferente nos limites de um indivíduo determinado, foi denominado de hecceidade. Com esse conceito, Duns Scot afasta da filosofia a preocupação exclusiva com as essências universais e transcendentes, e formula o início de uma concepção que atribui estatuto de ciência ao aqui e agora das coisas peculiares.

Lembranças de um conceito

Já foi anunciado que Deleuze e Guattari (2011) ofereceram o conceito de hecceidade; para eles, se refere à ideia de individuação sem sujeito. Seguiram os passos de Duns Scot e deram ao termo novo território conceitual. Colocaram em tema a multiplicidade, escapando da ideia de unificação ou identidade. Assim afirmam no volume 1 de Mil platôs:

As multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se produzem e aparecem nas multiplicidades. Os princípios característicos das multiplicidades concernem a seus elementos, que são singularidades; a suas relações, que são devires; a seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer, individuações sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres; a seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore); a seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização. (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 8).

A realidade é múltipla. Qualquer esforço de torná-la unitária, logo universal, caminha no campo da idealidade. E aí está o traço mais ambíguo e pleno de vitalidade: os elementos da multiplicidade são as singularidades. E saibamos que elas se relacionam por devir, isso é: “o devir não produz outra coisa senão ele próprio.” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 18). O devir evoca a si mesmo, afirma a singularidade. Como é animal, é sempre multiplicidade. Somos únicos, somos bandos, somos o que somos: cada um: e todos. Ao mesmo tempo, diz de nossa individuação.

Há um modo de individuação muito diferente daquele de uma pessoa, um sujeito, uma coisa ou uma substância. Nós lhe reservamos o nome de hecceidade. Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data têm uma individualidade perfeita, à qual não falta nada, embora ela não se confunda com a individualidade de uma coisa ou de um sujeito. São hecceidades, no sentido de que tudo aí é relação de movimento e de repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e ser afetado. (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 47).

Aqui se entende que hecceidade trata da noção pura do movimento, do devir. Heráclito levado ao extremo! Tudo está em relação de movimento e de repouso: tudo pode afetar e ser afetado. E esse tudo sem rosto, sem subjetividade, anuncia a hecceidade.

Outra palavra que podemos usar para ilustrar uma hecceidade é acontecimento. Hecceidades são acontecimentos: “acontecimentos cuja individuação não passa por uma forma e não se faz por um sujeito.” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 52).

O tempo do acontecimento é aion. Diferente de cronos, em que o presente é sua marca, com extensões para o passado e futuro, há um futuro e um passado que fragmentam, a cada momento do tempo, o presente, e multiplicam, ao infinito, o passado e o futuro. Acontecimento é o nome do instante do devir.

Não há uma natureza humana que poderia vir a dar uma espécie de sustentação ao humano. Não há uma universalidade racional que oriente sua avaliação do mundo. As interpretações são acontecimentos da hecceidade. Por isso, devemos deixar de lado a ideia de que há um suporte de fundo que sustenta a compreensão de todas as coisas, como uma ideia perfeita, ou uma superestrutura. Não há fundo; não há fundamentos: há, apenas, agenciamentos.

Acompanhando Nietzsche em sua reflexão, não se vê sentido de determinação ou destinação do mundo, afinal, se houvesse, já teria sido alcançada: “Uma hecceidade não tem nem começo nem fim, nem origem nem destinação; está sempre no meio. Não é feita de pontos, mas apenas de linhas. Ela é rizoma.” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 50). Devemos nos lembrar que rizoma fala de trilhas difusas que se estendem aos caules. Com isso, quero afirmar que a destinação do que chamamos de subjetivação não encontrará um caminho único.

Entretanto, nosso hábito de linguagem concentra esforço ao nome próprio como síntese dessa subjetivação. Sou chamado pelo meu nome desde que sou capaz de responder à sua expressão sonora. Meu nome me convoca. Mas seria um equívoco, na visão de Deleuze e Guattari, entender que o nome próprio indica um sujeito. Sobre isso, afirmam:

Com efeito, se o nome próprio não indica um sujeito, não é tampouco em função de uma forma ou de uma espécie que um nome pode tomar um valor de nome próprio. O nome próprio designa antes algo que é da ordem do acontecimento, do devir ou da hecceidade. São os militares e os meteorologistas que têm os segredos dos nomes próprios, quando eles os dão a uma operação estratégica, ou a um tufão. O nome próprio não é o sujeito de um tempo, mas o agente de um infinitivo. Ele marca uma longitude e uma latitude. (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 51-52).

O nome marca de longitude e latitude, e esses se referem ao corpo:

[...] um corpo se define somente por uma longitude e uma latitude: isto é, pelo conjunto dos elementos materiais que lhe pertencem sob tais relações de movimento e de repouso, de velocidade e de lentidão (longitude); pelo conjunto dos afetos intensivos de que ele é capaz sob tal poder ou grau de potência (latitude). (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 47).

Logo, longitude do corpo traduz as relações de movimento e repouso, de velocidade e de lentidão. Corpos movimentam-se; corpos repousam. Por outro lado, corpos são afetos - efetivação de uma potência de matilha, que subleva e faz vacilar o eu - que tornam aquilo que somos: multiplicidade.2 Por isso, é possível afirmar:

Aqui não há mais absolutamente formas e desenvolvimentos de formas; nem sujeitos e formações de sujeitos. Não há nem estrutura nem gênese. Há apenas relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão entre elementos não formados, ao menos relativamente não formados, moléculas e partículas de toda espécie. Há somente hecceidades, afectos, individuações sem sujeito, que constituem agenciamentos coletivos. (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 57-58).

Parece que em poucos, como é em Nietzsche, pode-se aplicar tão bem esses conceitos. É dele a tarefa criadora de sucumbir com a noção de sujeito. Como poucos, ele foi múltiplo. Sua saúde e doença marcam longitude e latitude de seu corpo. Seu estilo de escrita por aforismo inaugura um estilo de escrita, reflexão, respiração, ritmo, alternância: Nietzsche era ofegante. Por isso, Deleuze e Guattari (2012b) afirmam:

Parece-nos que, em Nietzsche, o problema não é tanto o de uma escrita fragmentária. É mais o das velocidades ou lentidões: não se trata de escrever lenta ou rapidamente, mas que a escrita, e todo o resto, sejam produção de velocidades e lentidões entre partículas. […] Ecce Homo só tem individuações por hecceidades. (p. 41).

A questão é de quais agenciamentos o Sr. Nietzsche se vale para compor sua hecceidade. Qual seu tempo:

Nietzsche opõe a história, não ao eterno, mas ao sub-histórico, ou ao sobre-histórico: o Intempestivo, outro nome para a hecceidade, o devir, a inocência do devir (isto é, o esquecimento contra a memória, a geografia contra a história, o mapa contra o decalque, o rizoma contra a arborescência). (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 100).

Extemporâneo é outro nome para hecceidade. Aquilo que se ignora como devir, que se torna familiar retrospectivamente. Aquele que se sente desinstalado no tempo, à frente de seu tempo, atrás de seu tempo: desterritorializado, destemporalizado.

A constituição de nossa hecceidade está por ser entendida. Deleuze e Guattari anunciam pistas que podem ser percorridas.

Lembranças de um esquecimento

O grego chama a verdade de alêtheia. Chantraine (1999) sugere que isso pode ter a ver com a referência platônica do rio lethe, do esquecimento. Verdade é aquilo não esquecido. Esquecer, para o ambiente acadêmico, no ocidente, chega a ser criminoso. Os recursos racionais, os dispositivos de registro, as práticas intelectuais são mobilizadas para que não se esqueça. A educação, sob a inscrição tradicional, e mesmo as mais recentes, como o tecnicismo, tem na memória sua maior dependência. Memorizam-se nomes, lugares, códigos, fórmulas, cálculos. Será, então, o esquecimento nosso maior inimigo? Será ele o responsável pelo abandono das ideias universais? Serão os intelectuais os profissionais da memória? Serão os professores professadores daquilo que não somos, porque foi esquecido, com o dever categórico e imperativo de se lembrar?

Sou professor universitário. Encontro, a cada período letivo, jovens que vieram à instituição onde trabalho em busca de um certificado que lhes outorguem ser-algo. Ora, se levarmos ao limite a metáfora platônica, esses jovens são todos pedagogos, psicólogos, filósofos, geógrafos, programadores, engenheiros, médicos em latência, tudo dormitando na frágil memória deles, aguardando a reminiscência professoral, o que querem-ser. Entram no espaço chamado de universidade - pois lida com universais, logo, anti-hecceidades, por princípio - com sonhos e esperanças privadas e, por vezes, únicas. Em pouco tempo, são assoalhados, transformados em universitários, pois se aproximam do dito saber universal. E o que era próprio e singular se submete ao que é alheio e imposto. Seus corpos são tecidos pelas agulhas e linhas de seus professores: assim também o meu é, com as marcas do assenhoreamento das ciências, que nos disciplina, nos fatia, nos mói.

Seria o humano um animal-esquecedor? Seria o humano, como tratado pela teologia, o animal-falsidade, animal-mentira?

Deleuze e Guattari (2012a, p. 11) refletem:

Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide.

Transformo, com toda a audácia dos incautos, essa sentença em um imperativo: esqueçamos!, experimentemos! Façamos de nós o que for de nossa hecceidade. Algo próximo, quem sabe, de Nietzsche (1995, epub), que, ao apresentar-se ao mundo, em seu Ecce Homo, disse: “Todos os calados são dispépticos.” Uma palavra deve soar ou morro!

Lembranças de um professor

Deleuze foi professor.

Em uma entrevista a Claire Parnet, conhecida como abecedário, responde à indagação nascida da letra P de Professor. Parnet lembra que Deleuze conta com 64 anos, dos quais 40 viveu como professor, e experimenta o primeiro ano sem aula. Então, assim indaga: “Você sente falta de dar aula hoje?”, ao que ele responde: “Não, absolutamente. [...] mas, quando me aposentei, foi uma alegria porque eu já não tinha tanta vontade de dar aula. [...] Uma aula é algo que é muito preparado. [...] Se você quer 5 minutos, 10 minutos de inspiração, tem de fazer uma longa preparação.” (DELEUZE, 2001).

Ao perfurar o ato da preparação diligente e lenta, pensa que, para si, a aula diz de sua performance, nas seguintes palavras: “Uma aula é ensaiada. É como no teatro e nas cançonetas, há ensaios. Se não tivermos ensaiado o bastante, não estaremos inspirados. Uma aula quer dizer momentos de inspiração, senão não quer dizer nada.” (DELEUZE, 2001).

À oposição assumida pela didática crítica dos anos 1980 com respeito ao tecnicismo que regulava os corpos e gestos dos professores, seus tempos e durações, Deleuze - que não era pedagogo - acaba por coincidir com a posição de que a inspiração tem como fonte o trabalho e não o talento ou improviso.

Aulas são ensaios. Uma aula é ensaiada. Ora, porque não tornar isso mais radical? Por que não colocarmos aulas em cartaz? Por que imaginar que aulas podem ser epifanias, visitações dos espíritos que aparecem subitamente e que se perdem, restando apenas a memória da visitação? Por que não profanar esse espaço? Visitações e epifanias, ou seja, a visita dos demônios se faz em lugares sagrados, como bares e bordéis. Sala de aula é espaço profano, ou, no jargão deleuziano, espaço-tempo. Por isso, afirma: “Uma preparação bem longa, mas nada de método nem regras ou receitas. Núpcias, e não casais nem conjugalidade.” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 8).

Finalmente:

As aulas foram uma parte da minha vida, eu as dei com paixão. Não são de modo algum como as conferências, porque implicam uma longa duração, e um público relativamente constante, às vezes durante vários anos. É como um laboratório de pesquisas: dá-se um curso sobre aquilo que se busca e não sobre o que se sabe. É preciso muito tempo de preparação para obter alguns minutos de inspiração. (DELEUZE, 1992, p. 173).

Só em 1987, com 62 anos, abandonou o ensino, depois de uma longa carreira como historiador de filosofia. Mostra-se ao mundo filósofo; se reconhece como professor. Experimenta em seu corpo um dinâmica de hecceidades; por que não de devir-professor?

Referências

CHANTRAINE, P. Dictionnaire étymologique de La langue grecque. Historie des mots. Paris : Klincksieck, 1999. [ Links ]

DELEUZE, G. O abecedário de Gilles Deleuze. Vídeo. Editado no Brasil pelo Ministério da Educação, “TV Escola”, 2001. [ Links ]

_______. Conversações. Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992. [ Links ]

DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. Tradução Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998. [ Links ]

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. V. 1. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011. [ Links ]

_______. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2012a. [ Links ]

_______. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. V. 4. Tradução de Suely Rolnik. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2012b. [ Links ]

DERRIDA, J. O animal que logo sou (A seguir). Tradução Fábio Landa. São Paulo: Editora Unesp, 2002. [ Links ]

NIETZSCHE, F. Ecce Homo. Como alguém se torna o que é. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Arquivo em epub. [ Links ]

2Em Conversações, encontramos: “Os perceptos não são percepções, são pacotes de sensações e de relações que sobrevivem àqueles que os vivenciam. Os afectos não são sentimentos, são devires que transbordam aquele que passa por eles (tornando-se outro).” (DELEUZE, 2004, p. 171).

Recebido: 15 de Fevereiro de 2019; Aceito: 04 de Março de 2019

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