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Revista de Educação Pública

versão impressa ISSN 0104-5962versão On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.29  Cuiabá jan./dez 2020  Epub 02-Mar-2020

https://doi.org/10.29286/rep.v29ijan/dez.7788 

Artigos

Formação de professores e a Reforma do Ensino Médio: aprofundamento da (des) regulamentação da docência na Educação Profissional Técnica de Nível Médio

Teacher training and the Reform of Secondary Education: deepening the (dis) regulation of teaching in Professional Technical Education of Medium Level

Tatiana Das MERCES1 

Marcelo  LIMA2 

1Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

2Doutor em Educação e Pós-doutor em historiografia da educação profissional pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).


Resumo

A partir da análise documental-bibliográfica, esta pesquisa analisa as principais legislações que regulamentam a formação docente para Educação Profissional, defendendo a necessidade de políticas públicas de formação docente como fundamentais para formação crítica dos professores. Os dados desta pesquisa apontam que, no Brasil, essas políticas sofreram com a descontinuidade e a fragmentação das ações por parte dos governos. Soma-se a isso a Reforma do Ensino Médio que, ao autorizar profissionais com notório saber a atuar na educação técnica e profissional, aponta para desvalorização da formação docente e para o desmanche dos direitos sociais.

Palavras-chave Formação docente; Educação Profissional; Reforma do Ensino Médio

Abstract

From the documentary-bibliographic analysis, this research analyzes the main legislation that regulates teacher education for Professional Education. Defend the need for public policies of teacher training as fundamental for the critical formation of teachers. The data of this research indicate that, in Brazil, these policies suffered with the discontinuity and the fragmentation of the actions by the governments. Added to this is the Reform of Secondary Education that, by authorizing professionals with "notorious knowledge" to act in technical and vocational training, points to the devaluation of teacher training and the dismantling of social rights.

Keywords Teacher training; Professional education; High School Reform

Introdução e história

No Brasil, a educação escolar está organizada em níveis (superior e educação básica), etapas (educação infantil, ensino fundamental, ensino médio) e modalidades de ensino. Uma dessas modalidades é a Educação Profissional e Tecnológica (EPT), cujas especificidades se relacionam com o processo de formação para inserção dos sujeitos no mundo do trabalho.

Muito além de formar alunos para o mercado e de transmitir conhecimentos e técnicas para o emprego, o trabalho do professor na EPT deve ser desenvolvido tendo em vista a integração entre a teoria e a prática, com o fito de proporcionar aos educandos não só a qualificação técnica adequada para o trabalho, mas, sobretudo, contribuir para sua emancipação como sujeitos.

Trabalhar nessa perspectiva não é uma tarefa fácil, posto que os professores enfrentam vários desafios que limitam – ora em maior, ora em menor grau – a sua atividade de ensino, como, por exemplo, as regras, missões e objetivos das instituições de EPT, que nem sempre estão vinculadas à formação humana e à educação emancipatória. Além do mais, isso pode incidir, em parte, devido ao fato de que, somente com a formação inicial, fica difícil para o professor propiciar uma educação ampla, cidadã e integrada à vida real dos educandos.

No contexto da EPT, a maioria dos docentes tende a não possuir licenciatura ou formação pedagógica, nem experiência na área do ensino; isso é, grande parte do corpo docente é constituído por profissionais bacharéis e tecnólogos. Para Machado (2008) e Moura (2014), esse perfil docente explica-se pelo fato de que, atualmente, não há uma regulamentação clara sobre os requisitos e sobre a formação mínima para atuar na profissão docente no contexto da EPT.

Segundo esses autores, além de uma regulamentação coerente, seria necessário um conjunto de políticas públicas de formação inicial e continuada na área da EPT para atualizar de forma crítica os profissionais envolvidos com uma docência que vai muito além das salas de aulas, incluindo os laboratórios, as oficinas e os espaços tecnologicamente complexos e que estão em permanente mutação.

Moura (2014) esclarece que a formação docente pode, no mínimo, levar o professor a refletir sobre o seu trabalho; a reflexão pode motivá-lo a criar atividades de ensino para além de uma formação pragmática e levá-lo a uma postura ética e comprometida com sua função política e social.

As discussões e os estudos sobre a formação de professor para a EPT não são novos no Brasil. Desde o início do século XX, o país vem consolidando políticas referentes à educação profissional devido, sobretudo, ao desenvolvimento da economia industrial; com efeito, a formação de educadores para essa área vem, juntamente a isso, ganhando atenção e sendo contemplada em várias legislações brasileiras. Machado (2008) esclarece que, em cada período histórico, há uma (re)adequação das exigências para atuação na EPT. Isso significa que a formação docente nessa área sofreu significativamente com a descontinuidade e a fragmentação das ações políticas por parte dos governos.

A primeira política de educação profissional pública de competência do Estado brasileiro foi instituída em 23 de setembro de 1909, no governo de Nilo Peçanha, mediante o Decreto n.º 7.566, que autorizou a criação 19 Escolas de Aprendizes e Artífices em várias unidades da federação. Com isso, visando à formação de professores para atuarem nessas escolas, foi criada a Escola Normal de Artes e Ofícios Wenceslau Brás no Rio de Janeiro (antigo Distrito Federal), em 1917. Machado (2008) afirma que essa foi a primeira iniciativa de formação de professores para o ensino profissional.

A Escola Normal tinha a finalidade de habilitar dois tipos de professores: um para atuar nas escolas de ensino profissional e outro nas escolas primárias. Essa escola esteve em funcionamento durante 20 anos e, nesse período, teve 5.301 pessoas matriculadas, porém formou apenas 381 professores, a maioria para atuar nas escolas primárias; essa situação nos possibilita advertir a pouca importância que se davam aos cursos de formação de professores para atuação no ensino profissional (MACHADO, 2008).

No período Era Vargas, marcado pela expansão e relevância da indústria na economia nacional, o Decreto n.º 4.073 (Lei Orgânica do Ensino Industrial), de 30 de janeiro de 1942, estabeleceu as bases de organização e de regime do ensino industrial. Sobre o corpo docente, o artigo 54, § 1º, afirmava que a formação dos professores para atuar nas escolas industriais e escolas técnicas deveria ser feita em cursos apropriados. Segundo Machado (2008), esse Decreto marca a primeira menção sobre formação de professores para a EPT em legislação educacional.

Em 1946, foi criada a Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial (CBAI), um programa de cooperação consolidado entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos com o objetivo de formar professores para atuar no ensino industrial. Dessa forma, segundo Machado (2008), a CBAI, no ano de 1947, patrocinou o primeiro curso de aperfeiçoamento de professores do ensino industrial. Em 1963, essa comissão foi extinta pelo Decreto n.º 5.3041.

Machado (2008) expõe que foi somente depois dos anos 1960 que o Ministério da Educação (MEC) passou a regulamentar o trabalho do magistério na área da educação profissional mediante as portarias ministeriais. De 1960 até meados da década de 1980, várias normativas desarticuladas buscaram regulamentar a formação dos docentes de ensino profissionalizante, impactando em qualidade e em quantidade a demanda por docentes do ensino técnico.

A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) n.º 4.024, de 20 de setembro de 1961, definiu uma diferença entre a formação do magistério para atuar no ensino médio e para ensino técnico. A formação do magistério do ensino médio deveria ser feita em faculdades de filosofia, ciências e letras. Em contrapartida, para as disciplinas do ensino técnico, foi determinada que a formação deveria ser ministrada em cursos especiais (MACHADO, 2008). Até hoje, os cursos especiais são referências para a formação de professores na área da educação profissional.

Em 1968, o Parecer n.º 479/68 estabeleceu que a formação docente para as disciplinas específicas do ensino médio técnico deveria obedecer a um currículo mínimo e ao esquema 3 + 1, isso é, três anos de núcleo comum e um ano voltado para a especialização profissional (MACHADO, 2008). Nesse mesmo ano, ocorreu a Reforma Universitária (Lei n.º 5.540/68), que exigiu de todos os professores de disciplinas gerais e técnicas do ensino de segundo grau (hoje chamado de ensino médio) a formação em nível superior. No entanto, segundo Machado (2008), essa exigência foi negligenciada pouco tempo depois devido às normas complementares instituídas pelo Decreto-lei n.º 464/69, certificando em seu Art. 16 que enquanto não houvesse professores formados em nível superior a habilitação para as respectivas funções poderia ser feita mediante exame de suficiência realizado em instituições indicadas pelo Conselho Federal de Educação.

Em 1970, o CFE emitiu a Portaria Ministerial n.º 339/70, que planejava os cursos emergenciais, denominados: Esquema I (complementação pedagógica para os portadores de diploma de nível superior) e Esquema II (compreendiam disciplinas pedagógicas do Esquema I e as de conteúdo técnico específico, destinado aos portadores de diploma de técnico industrial de nível médio). Mais tarde, em 1976, o Parecer n.º 4.417/76 definiu que as instituições de ensino que ofertavam os cursos em consonância com os esquemas I e II deveriam, no período máximo de três anos, transformá-los em licenciaturas. Segundo Machado (2008), o prazo dado foi afrouxado, uma vez que muitas instituições alegavam que não tinham recursos para implementar os cursos de licenciatura; logo, não teve êxito a consolidação das licenciaturas plenas para a formação de professores na educação profissional. Com efeito, em 1982, a Resolução n.º 7/82 relativizou a exigência da transformação dos esquemas I e II em licenciaturas (MACHADO, 2008).

Em 1986, a Secretaria do Ensino de Segundo Grau (SESG/MEC) passou a se responsabilizar pelas questões relacionadas à formação de professor para o ensino técnico (MACHADO, 2008). Assim, no ano seguinte, a SESG/MEC e a SESU instituíram a Portaria n.º 355/87, criando um Grupo de Trabalho para elaborar uma nova proposta de licenciatura plena em matérias específicas do ensino técnico industrial de Segundo Grau. Todavia, em 1991, o Parecer CFE n.º 31 reforçou a flexibilidade da formação docente da formação especial do currículo de ensino de Segundo Grau (MACHADO, 2008).

Em 1996, a LDB n.º 9.394/96 foi apregoada. No ano seguinte, com o objetivo de regulamentar os artigos da LDB referente à educação profissional, foi criado o Decreto n.º 2.208, de 17 de abril de 1997. O artigo 9º desse decreto defendia que não apenas professores, mas instrutores e monitores poderiam atuar como docente no ensino técnico; além disso, esses profissionais deveriam ser preparados para o magistério, previamente ou em serviço, por meio de cursos de licenciatura ou programas especiais de formação docente. Segundo Machado (2008), esse artigo minimizava a formação docente para a EPT, uma vez que permitia que os professores fossem selecionados mais pela experiência profissional do que pela preparação para o magistério. Além disso, a formação para o magistério não precisaria ser pré-requisito, porque poderia ser dada em serviço. O Decreto n.º 2.208/97 foi revogado pelo Decreto n.° 5.154/04, porém, nele não havia menção sobre a formação docente, o que representa uma desvalorização do professor da EPT (MACHADO, 2008).

Em 1997, foi instituída a Resolução CNE/CP n.º 02, de 26 de junho de 1997. Essa resolução assegurava que profissionais não licenciados pudessem atuar na profissão docente. Para esses profissionais não habilitados a ensinar, a resolução previa uma formação docente por meio de programas especiais de formação pedagógica. Ao concluir os estudos nesses programas, o profissional deveria receber certificado e registro profissional equivalente à licenciatura plena. Por bastante tempo, essa resolução serviu como base legal para a formação docente; foi revogada recentemente: em 2015, mediante o Parecer CNE/CP n.º 02/15. Segundo Costa (2016, p. 98), a Resolução CNE/CP n.º 02/97 significou um “entrave para a efetivação de políticas para a formação docente na EPT, posto que, ela consiste em dispositivo legal conivente com a atuação de outros profissionais na profissão docente.” A autora ressalta que essa Resolução conduziu, por muito tempo, a formação docente a partir de uma lógica de percursos descontínuos, reducionistas, aligeirados e emergenciais.

Como se pode perceber, a trajetória histórica da regulamentação da profissão docente na educação profissional e tecnológica é bastante problemática, cujas políticas emergenciais e descontínuas informam muito sobre os interesses em disputa no campo da formação docente que atuam mais diretamente na formação de trabalhadores dos setores produtivos da economia. De modo geral, grande parte das atuais legislações facilita a entrada de profissionais mais vinculados ao setor da produção do que da educação. Gerada por um conjunto de normas desconexas e fragmentadas historicamente, a regulamentação do trabalho docente vem se ajustando mais aos interesses das instituições que ofertam a educação profissional do que de seus egressos que buscam uma formação emancipadora e a inserção cada vez mais qualificada no mundo do trabalho.

Impactos da regulamentação atual da docência na eptnm: aprofundamento da desregulamentação com a reforma do ensino médio

Atualmente, a formação e a profissão docente na EPTNM estão regulamentadas, sobretudo, pelos dispositivos da LDB n.º 9.394/96 (BRASIL, 2018), Parecer CNE/CP n.º 5/2006 (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2006), Resolução CNE/CEB n.º 06/12 (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2012), Parecer CNE/CP n.º 02/2015 (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2015a) e Resolução n.º 02/2015 (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2015b).

A LDB n.º 9.394/96 (BRASIL, 2018) apresenta disposições gerais sobre a formação de professores. No seu Art. 62, a LDB define que a formação docente para atuar na educação básica deve ser realizada por meio de curso superior de licenciatura, de graduação plena, fornecido nas universidades e institutos superiores de educação. Soma-se a essa formação, a prática de ensino de 300 horas, no mínimo, de acordo com o Art. 65 da mesma lei.

Sendo assim, os professores da educação profissional e tecnológica também deveriam ser licenciados, visto que tal modalidade é concebida como componente da Educação Básica a partir da Lei n.º 11.741/2008. Entretanto, os atuais dispositivos normativos da LDB permitem que profissionais não licenciados exerçam o trabalho docente, principalmente, na área educação profissional e tecnológica; isso fica claro no Art.61, IV, da LDB (BRASIL, 2018).

Art. 61. Consideram-se profissionais da educação escolar básica os que, nela estando em efetivo exercício e tendo sido formados em cursos reconhecidos, são: [...] IV - profissionais com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino, para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional, atestados por titulação específica ou prática de ensino em unidades educacionais da rede pública ou privada ou das corporações privadas em que tenham atuado, exclusivamente para atender ao inciso V do caput do art. 36 [...] (Incluído pela Lei n.º 13.415, de 2017).

Ao incorporar o inciso V no artigo 36, a lei acaba definindo o que o docente no itinerário formativo denominado formação técnico-profissional precisa saber, apontando, assim como já fizera o Decreto n.º 2.208/97, para o aprofundamento da desregulamentação do trabalho docente na educação profissional. Ou seja, a posse de um simples notório saber autoriza que se possa ensinar conteúdos (práticos e ou teóricos) de determinados campos correlatos à atuação profissional presente ou pregressa.

Isso pode ter enorme impacto no valor social dos cursos de licenciatura, nos quais já se encontram os estudantes mais pobres do ensino superior. Além de precarizar ainda mais as condições de trabalho de docentes fora e dentro da educação profissional, representa um retrocesso na luta pela instituição da educação profissional como campo estatal do ensino regular.

Essa não institucionalidade, além de não ter o condão de resolver o problema da falta de professores formados, desvaloriza a contratação dos professores. Ou seja, para os reformadores de plantão, mais do que não regulamentar o trabalho docente na educação profissional, institucionaliza-se que o professor não precisa de certificado de licenciatura, basta ter uma prática ou experiência profissional que remeta a um saber fazer que se relacione com um saber profissional transformável em saber escolar da referida modalidade de ensino no contexto do Ensino Médio.

O Art. 36 – mencionado no Art.61, IV, da LDB (BRASIL, 2018) – normatiza uma nova organização curricular que prevê dois períodos. O primeiro trata-se da parte comum e obrigatória, norteada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que define os conhecimentos obrigatórios que todos os estudantes do Ensino Médio deveram ter acesso: Matemática; Língua portuguesa; Língua Inglesa; Arte; Educação física; Arte; Sociologia e Filosofia. O segundo remete à parte diversificada, que prediz as disciplinas optativas e certa flexibilidade da grade curricular, em que os estudantes poderão escolher aprofundar seus estudos em determinadas áreas do conhecimento: I. Linguagens e suas tecnologias; II. Matemática e suas tecnologias; III. Ciências da natureza e suas tecnologias; IV Ciências Humanas e sociais aplicadas; e V. Formação técnica e profissional (BRASIL, 2018). Nesse contexto, com a aprovação recente da Lei n.º 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, mudanças foram feitas na LDB, autorizando a entrada de profissionais bacharéis e tecnólogos às salas de aula a partir do reconhecimento do notório saber como formação suficiente para o trabalho docente para a formação técnica e profissional.

O Parecer CNE/CP n.º 05, de 4 de abril de 2006 (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2006), apresenta uma proposta para formação de professores na EPTNM, assegurando as licenciaturas como cursos de referência para atuação nessa modalidade de ensino; porém, mantém os programas especiais de formação pedagógica equivalentes à licenciatura, destinados à formação de professores. Logo, esse parecer não apresenta uma proposta de formação docente diferente do que já era determinado pela Resolução CNE/CP 02/1997 (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 1997). A diferença está na carga horária mínima, que passa de 540 horas para 800 horas. Sobre esse parecer, Costa (2016, p. 202) argumenta que a sua proposta é “um apelo ao continuísmo e dominância de interesses. Ou seja, não se tem o intento de revogar a resolução [CNE/CEB 02/97] que foi elaborada em um contexto muito diferente do que vivemos hoje.”

Especificamente sobre os requisitos para atuação docente na EPTNM, foi consolidada a Resolução CNE n.º 06, de 20 de setembro de 2012 (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2012). Essa Resolução retoma a questão da licenciatura para a formação de professores da educação profissional, mas deixa em aberto quando afirma poder ocorrer de outras formas. Assim, essa Resolução reafirma o cenário já existente de uma formação docente fragmentada e imediatista. O seu parágrafo 2º define que os professores não licenciados têm o direito de participar ou ter reconhecidos seus saberes profissionais em processos destinados à formação pedagógica ou à certificação da experiência docente. Sobre essa normalização, Costa (2016, p. 204) argumenta que “Ter o direito de se tornar professor não é o mesmo que ter a obrigatoriedade de ser professor para que possa lecionar na Educação Profissional Técnica de Nível Médio.”

Conforme exposto no parágrafo 2º da Resolução CNE n.º 06/12, o saber do docente da educação profissional e tecnológica pode ser considerado equivalente à licenciatura plena, excepcionalmente na forma de pós-graduação lato sensu e de reconhecimento dos saberes profissionais dos que atuam a há mais de 10 anos como professores. Ao instituir o reconhecimento dos saberes dos que já atuam, esse dispositivo valoriza o profissional em exercício, correndo-se o risco de minimizar a obrigação da oferta de formação inicial específica e também continuada para os professores que começaram a atuar na área. Portanto, a Resolução CNE n.º 06/12 não significa um avanço nas políticas de formação docente para a educação profissional e tecnológica, visto que ela abre espaços para outros modos de “[...]se tornar docente sem necessariamente cursar licenciatura ou programas de formação pedagógica.” (COSTA, 2016, p. 204).

O Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024), de 25 de junho de 2014 (BRASIL, 2014), assegura aos professores da educação básica a formação inicial em curso superior de licenciatura específico da área de conhecimento em que atuam, além da formação continuada em nível de pós-graduação lato e stricto sensu. Essas metas do PNE são importantes e significam um avanço, posto que os professores precisariam ser permanentemente atualizados nos seus conhecimentos com vistas à sua progressão funcional, sua valorização e melhoria do seu desempenho docente. No entanto, é relevante lembrar que a formação inicial necessita ganhar maior centralidade nesse processo e definir um melhor perfil de entrada desses profissionais.

A meta 15.9 do referido PNE retoma os programas especiais para a formação docente dos professores sem habilitação para ensinar e que estejam em efetivo exercício. A meta 15.13 prevê aos professores da EP o desenvolvimento de modelos de formação que valorizem a experiência prática e que possam servir de complementação e certificação didático-pedagógica dos profissionais experientes. Essas metas, além de tirar o foco da formação inicial, valorizam mais os professores que já atuam no magistério. Assim sendo, elas não vão ao cerne do problema porque deixam de tratar dos docentes que deverão atuar e dos pré-requisitos de formação que deverão ser obedecidos nas futuras contratações.

As propostas da meta 16 do PNE – que prevê a formação da metade dos docentes em nível superior e a garantia da formação continuada – em certo sentido, significam um avanço na questão da formação dos professores, mas, por outro lado, nelas não se caracteriza o docente da educação profissional, que é um tipo de professor que possui muitas especificidades, que envolvem formação teórica e formação prática e questões de atualização tecnológica e de organização curricular. Nesse campo da educação, temos muitos docentes práticos e professores bacharéis sem formação em licenciatura. As metas 17 e 18 do PNE remetem à valorização dos professores atuantes nas redes públicas de educação, porém é relevante lembrar que a valorização do docente vai além das questões salariais, como, por exemplo, as condições de trabalho que, muitas vezes, são precárias nas escolas públicas estaduais e municipais.

Assim, o Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação, visando alcançar as Metas (15-18) do PNE, estabeleceu, mediante o Parecer CNE/CP n.º 02, de 9 de junho de 2015 (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2015), as novas diretrizes curriculares nacionais para a formação e capacitação de professores para a educação básica, revogando, em especial, a Resolução CNE/CP n.º 02/1997, entre outras. Esse Parecer CNE/CP n.º 02/2015 assegura a formação inicial e continuada – em conformidade à base comum nacional – aos profissionais que desejam exercer a docência na educação básica, inclusive em suas etapas e modalidades, o que inclui a educação profissional e tecnológica. Após a homologação desse Parecer, ensejou a edição da Resolução CNE/CP n.º 02/2015.

As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada – normatizada pela Resolução CNE/CP n.º 02, de 1 de julho de 2015 – apontam significativos avanços na política de formação docente para educação profissional e tecnológica: principalmente porque elas determinam a formação pedagógica aos profissionais não licenciados que desejam atuar na profissão docente, além da formação continuada.

Além disso (e muito importante), as DCNs não minimizam a formação dos docentes em programas especiais de formação pedagógica, como previa a Resolução CNE/CP n.º 02/97. Elas avançam também porque não utilizam o termo outras formas, que esvazia a definição dos currículos de formação, nem faz destaque à certificação da experiência e do reconhecimento dos saberes como algo equivalente à licenciatura como se faz presente na Resolução CNE n.º 06/12. Contudo, as atuais diretrizes não deixam de ressaltar o caráter emergencial e provisório dos cursos de formação pedagógica para os profissionais não licenciados. Assim sendo, a Resolução CNE/CP n.º 02/2015 não supera o caráter pelo qual a regulamentação da formação de professores para educação profissional e tecnológica tem sido marcada ao longo da sua história.

O Decreto n.º 8.752, de 9 de maio de 2016 (BRASIL, 2016), é um dos dispositivos legais mais novos sobre as políticas de formação docente para a educação básica. Esse Decreto assegura os cursos de formação pedagógica aos docentes sem licenciatura. Especificamente aos docentes na educação profissional e tecnológica, o Art. 12, inciso IV, prevê o desenvolvimento de projetos pedagógicos específicos dessa área. O Decreto avança, principalmente, por visar a valorização de todos os profissionais da educação básica – sejam eles graduados em licenciatura ou não – e também porque visa consolidar cursos de formação inicial e continuada conforme a área do saber em que os docentes atuam.

Contudo, é relevante retomar a Lei n.º 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, que ignora todos os esforços e avanços expostos até então nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) da Resolução CNE/CP n.º 02/15 e no Decreto n.º 8.752/16, pois, ao defender o notório saber como pré-requisito para atuação docente na Educação Profissional e Tecnológica, a Reforma do Ensino Médio retrocede em muito a regulamentação conquistada para a formação de professores, desvalorizando a profissão e o trabalho docente nesse campo, instaurando um processo de desregulamentação do trabalho docente.

Evidentemente, o fato de existir a lei não garante a sua realização. São necessários muitos esforços/ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade para que o direito possa ser traduzido na experiência; todavia, as leis são imprescindíveis ao Estado que visa implantar políticas públicas de maneira planejada. De modo geral, conforme os dispositivos legais relacionados neste artigo, é possível compreender que as políticas públicas referentes à docência na educação profissional e tecnológica sofreram idas e vindas no processo de definição da formação mínima para atuação e contratação do docente.

De modo geral, grande parte das legislações estudadas aborda a formação docente para educação profissional e tecnológica a partir do caráter emergencial e provisório, facilitando a entrada de profissionais do mercado nas salas de aulas. Como fora mencionado, as atuais legislações em vigor permitem a realização da formação docente para educação profissional e tecnológica: na modalidade presencial ou à distância; em serviço; por meio de cursos superiores de licenciatura; cursos de formação pedagógica ou continuada (lato sensu ou stricto sensu); programas especiais; e outras formas. Para ingressar na educação profissional e tecnológica é necessária, preferencialmente, a graduação em nível superior, porém a licenciatura e a formação pedagógica não são juridicamente requisitos obrigatórios.

Em suma, atualmente, não há uma regulamentação jurídica que defina claramente como deve ser a formação de professores para educação profissional e tecnológica. Com efeito, as instituições de ensino possuem liberdade para selecionarem seus docentes, tendo em vista os custos e certo horizonte formativo, bem como praticar currículos pragmáticos de formação docente que, por um lado, não possibilitam uma formação crítica e política sobre o papel docente e uma concepção mais ampla de educação profissional, que ultrapassa a visão tecnicista e mercadológica. Essa situação é, hoje, reforçada pela lei da Reforma do Ensino Médio, que autoriza a atuação de profissionais sem a formação docente, bastando apenas o notório saber para ministrar aulas no contexto da educação profissional e tecnológica. Para aprofundar essa questão, passo a analisar o processo de inserção dos docentes no Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).

Processo de inserção dos docentes na rede federal

A Rede Federal e seus Institutos Federais foram consolidados com a Lei n.º 11.892, de 29 de dezembro de 2008 (BRASIL, 2008), no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Todavia, a educação profissional propiciada por meio desses institutos possui uma história que remonta ao século passado, pois grande parte das instituições da Rede Federal originou das escolas de Aprendizes Artífices, criadas em 1909, no governo de Nilo Peçanha.

No estado do Espírito Santo, o Ifes foi oficializado em 23 de setembro de 1909, como Escola de Aprendizes Artífices do Espírito Santo. Desde 1909, várias escolas federais foram constituídas no estado capixaba. Com a criação da Rede Federal, em 2008, essas escolas passaram a integrar uma estrutura única, consolidando-se no Ifes. A partir de então, outros campi desse Instituto foram criados no estado. Atualmente, o Ifes é composto por 22 campi localizados em todas as microrregiões capixabas; possui 35 polos de educação a distância no estado; oferece, aproximadamente, 90 cursos técnicos de nível médio, 50 cursos de graduação, 15 de especializações e 10 de mestrados, atendendo a quase 17 mil alunos (IFES, 2017).

Evidentemente, o Ifes possui tradição na oferta de cursos EPTNM e é uma referência nessa modalidade de ensino na sociedade capixaba. Assim, com o objetivo de analisar os critérios estabelecidos para inserção (ou admissão) dos docentes na EPTNM, realizamos uma análise documental de dois editais de processos seletivos de professores, publicados pelo Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), divulgados em período recente (2017 e 2018), nos sites e na impressa local.

Os editais analisados, nesta pesquisa, apontam os seguintes requisitos mínimos exigidos aos docentes da EPTNM: graduação em nível superior e pós-graduação (especialização, ou mestrado, ou doutorado), como demonstrado na Figura 1 e 2.

Fonte: Ifes (2017)

Figura 1  Titulação exigida aos docentes da EPTNM no Ifes em 2017 

Fonte: Ifes (2018)

Figura 2  Titulação exigida aos docentes da EPTNM no Ifes em 2018 

Conforme exposto nos editais, a Rede Federal exigiu, para atuação docente nos cursos de EPTNM, a formação profissional inicial e continuada correspondente à área em que o professor deve atuar. Aos professores de ensino básico (matemática, geografia, química, etc.), foram exigidas as licenciaturas; porém, aos professores da área técnica, não foi exigida a formação docente: graduação em licenciatura ou formação pedagógica. Isso é, no contexto do Ifes, a formação na área do magistério não é condição obrigatória para o trabalho docente na EPTNM.

Essa situação permite que profissionais sem formação própria na área do ensino sejam selecionados para atuar nas salas de aula. Isso se deve também ao fato de que as legislações, que atualmente normatizam a atuação do docente na educação profissional e tecnológica, não estabelecem de modo explícito essa obrigatoriedade. Isso permite às instituições de ensino desenvolverem processos seletivos precários, que privilegiam um perfil que não dá conta de um ideal de profissional da docência para uma formação emancipatória.

Como exposto anteriormente, a atual LDB (BRASIL, 2018) exige a licenciatura como habilitação necessária para o exercício da docência na educação básica, mas, ao mesmo tempo, permite que profissionais bacharéis, que não possuem licença para ensinar, atuem na função de professor, principalmente, nas disciplinas específicas do ensino técnico e profissional. Além do mais, a lei da Reforma do Ensino Médio (BRASIL, 2017) reforça essa desvalorização da formação docente, ao admitir que as instituições escolares contratem profissionais que não possuem formação pedagógica, bastando apenas o notório saber para ocuparem o cargo de docente na área da EPTNM.

É importante enfatizar que essa flexibilidade da legislação, em parte, se deve ao fato de que ainda não existem políticas sistemáticas de formação inicial nem continuada para professores que desejam atuar na EPTNM. Oliveira (2005) explica que a formação de professores para as disciplinas específicas do ensino técnico e profissional, normalmente, não é ofertada na forma de licenciatura, mas sim na forma de programas especiais, emergenciais e provisórios, que tendem a ignorar a especificidade e a complexidade da atuação docente nessa área.

Essa ausência de política sistemática oferece pouca alternativa para as instituições que precisam contratar profissionais com capacidade técnica, mas que também deveriam ter formação pedagógica. Por conseguinte, “a maioria das instituições que ofertam ensino técnico, no país, não exige a formação docente dos seus professores das disciplinas técnicas e não enfrenta dificuldades legais por esse fato.” (PENA, 2014, p. 24).

Do ponto de vista da lei, essa situação permite que, na experiência, a formação docente deixa de ser um dever do profissional que almeja atuar no magistério, passando a ser um encargo das instituições de ensino, que ficam responsáveis por propiciar cursos de formação que possibilitem a certificação do professor na EPTNM. Todavia, será que as instituições pesquisadas têm ofertado a formação necessária aos seus docentes? Essas são implicações que envolvem a formação docente na educação profissional e tecnológica.

É interessante retomar Tardif (2012), que aponta várias fontes de saberes relevantes para a formação docente. Uma delas é o trabalho diário, em que o profissional se torna professor a partir do saber experiencial. O autor cita também a formação profissional – ou formação acadêmica específica para atuação docente – como uma importante fonte de constituição do professor. Para ele, o conhecimento acadêmico oferece fundamentos científicos que permitem ao professor superar o senso comum: questionar o que sabe (ou pensa que sabe) e criar práticas de ensino tendo em vista a formação completa dos alunos.

Sem dúvida, a formação adequada para atividade de ensino deveria ser um critério fundamental a ser exigido nos processos seletivos de professores para atuação na EPTNM, por vários motivos: primeiro, porque valoriza e protege o exercício do professor e, segundo, porque permite a seleção de profissionais que possuem saberes próprios da docência.

Kuenzer (2010) complementa que a formação pedagógica é importante também para que o professor não reproduza a lógica capitalista na sua atividade de ensino, formando trabalhadores subordinados para exercer trabalhos precarizados. Conforme essa autora, a formação docente na EPTNM pode ajudar o professor a compreender o mundo do trabalho e, assim, criar ações educativas que permitam a formação de trabalhadores conscientes da sua realidade e capazes de enfrentar as condições impostas pelo capital.

Portanto, na EPTNM, é de suma importância que o professor tenha compreensão da complexidade e da especificidade do trabalho docente inerente a essa modalidade. Sem essa concepção fica difícil trabalhar na perspectiva da dimensão humana e formação integral. Assim sendo, a valorização da formação docente nos processos seletivos deveria ser considerada um importante investimento, pois somente a formação inicial, ora exigida pelas instituições, não dá conta de um ideal de profissional da docência para uma formação emancipatória.

Torna-se relevante frisar que o conhecimento tecnológico (teórico e prático) é importante para atuação docente na EPTNM, principalmente porque se trata de uma modalidade que prevê um ensino articulado entre os conhecimentos científico e tácito, no sentido de permitir aos educandos a reflexão sobre os conceitos que orientam as práticas laborais. Os autores, como Kuenzer (2010), Ciavatta (2015) e Frigotto (2010), esclarecem que, pedagogicamente, o conteúdo teórico e o prático precisam estar integrados na formação dos trabalhadores de modo que possa permitir uma educação mais próxima às reais necessidades desses sujeitos, isso é, os conhecimentos (teóricos e práticos) não devem sobrepor um ao outro.

Nessa perspectiva, seria relevante, na seleção de docentes para a EPTNM, a avaliação e a valorização da prática profissional, principalmente para aferir como os professores articulam a teoria e a prática na sua atividade de ensino. Contudo, é necessário ressaltar que, apesar da sua importância, apenas o conhecimento tecnológico (teórico e prático) não são suficientes para habilitar pessoas a atuar no magistério. Em outras palavras, ser professor exige muito mais do que apenas dominar técnicas e práticas de uma área tecnológica, pois seria necessário saber ensinar, isso é, transcender o conteúdo tecnológico em razão da aprendizagem dos alunos.

Além do mais, os editais de processos seletivos analisados nesta pesquisa apontam que o Ifes tende a valorizar os títulos acadêmicos (mestrados e doutorados na área de atuação, bem como as produções científicas), selecionando, provavelmente, profissionais com alta qualificação acadêmica e inseridos em atividades de pesquisas e extensões. Nesse caso, tal condição justifica-se pela natureza administrativa e pedagógica dessa instituição, uma autarquia e com ensino verticalizado, como também pela alta concorrência em que se configuram os seus processos seletivos. Contudo, o Ifes poderia abaixar as exigências e os requisitos para atuação docente, diminuindo os custos com o trabalho dos professores e, nesse caso, não sofreria nenhuma repressão jurídica, uma vez que as legislações atuais, apoiadas pela lei da reforma do Ensino Médio, abrem margem para isso.

Considerações finais

A Educação Profissional Técnica de Nível Médio (EPTNM) possui uma série de características que lhe dão especificidade no contexto da Educação Escolar. De modo sucinto, ela visa o preparo para exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. O trabalho docente nessa área é complexo e desafiador sob vários aspectos, mas, principalmente, porque os docentes são convocados a operar com teoria e com prática, com fito de proporcionar aos discentes a qualificação técnica adequada para o trabalho e, ao mesmo tempo, contribuir para a emancipação dos sujeitos e atuação consciente no mundo. Diante disso, é possível compreender que somente com a formação inicial, ora exigida pelas instituições, não há possibilidade de realização de um trabalho docente que ultrapasse a lógica do capital.

Para ter condições de desenvolver ações educativas mais amplas, para além do ensino tecnicista e centrado no mercado, comprometidas com a emancipação dos trabalhadores, o professor precisaria, além da formação tecnológica (na dimensão teórica e prática), ter uma formação específica da área da docência, bem como um compromisso político com a educação. Todavia, a maneira como as legislações brasileiras, histórica e atualmente, normatizam a formação e a profissionalização dos docentes na educação profissional e tecnológica é problemática, permitindo muitas distorções e configurando-se em vários desafios para o trabalho docente.

O contexto atual é de desregulamentação da formação docente para educação profissional e tecnológica, posto que a lei da Reforma do Ensino Médio autoriza os profissionais não licenciados a atuar no itinerário formativo denominado formação técnico-profissional, sendo suficiente a esses profissionais um simples notório saber, isso é, basta ter uma prática ou experiência profissional que remeta a um saber fazer que se relacione com um saber profissional transformável em saber escolar da referida modalidade de ensino, como já fizera o Decreto n.º 2.208/97. Trata-se, portanto, de um retrocesso na luta pela instituição da educação profissional como campo estatal do ensino regular.

Além do mais, as legislações atuais ainda não definiram de modo detalhado qual seria o currículo adequado para formação desse tipo de profissional que não é habilitado a ensinar. Tal contexto acaba permitindo às instituições praticarem currículos pragmáticos de formação docente que, por um lado, não possibilitam uma formação crítica e política sobre o papel docente e uma concepção mais ampla de educação profissional, que ultrapassa a visão tecnicista e mercadológica.

Essa discussão sobre a regulamentação da profissão e da formação docência na EPTNM permite entender que, atualmente, não há uma regulamentação jurídica que defina claramente os requisitos de entrada de professores para essa modalidade de ensino: elas abrem margens para que profissionais sem licença para a docência atuem em salas de aula.

Contudo, não podemos abstrair alguns avanços apresentados, sobretudo, nos dispositivos do Parecer CNE/CP n.º 02/15, Resolução CNE/CP n.º 02/15 e Decreto n.º 8.752/16, os quais visam consolidar cursos de formação inicial e continuada próprios à área e saber em que os docentes atuam, ampliando a formação docente na EPTNM para além dos programas especiais. Esses avanços, mesmo que tímidos, representam uma conquista dos educadores diante da valorização da sua profissão e sua formação.

Por outro lado, tais conquistas são, hoje, ameaçadas pela lei da Reforma do Ensino Médio, que foi sancionada como Lei n.º 13.415/2017. Essa lei se articula com o movimento de desmanche dos direitos sociais, sobretudo os vinculados à educação pública. Ao autorizar que profissionais não licenciados com notório saber atuem na EPTNM, a referida lei retrocede aos antigos interesses conservadores/liberais, que privilegiam a perspectiva da educação tecnicista e pragmática. Além do mais, não fica claro, nessa legislação, o que significa esse notório saber, dando margem a várias interpretações e permitindo que qualquer profissional do setor produtivo possa atuar nas salas de aula.

Conforme discutido ao longo deste texto, a lei da Reforma do Ensino Médio, ao valorizar o notório saber como único pré-requisito docente exigido pelas instituições de ensino, desvaloriza a formação docente como uma fonte de conhecimentos específicos, pedagógicos e didáticos que todo professor precisaria desenvolver para atuar no magistério e, portanto, indica um movimento de (des)regulamentação da profissão e da formação docente para EPTNM.

Todavia, é importante ressaltar que tal reforma tem sofrido resistências de muitos grupos que se preocupam em lutar pelo direito ao ensino médio para os alunos da classe trabalhadora e pela valorização do magistério; isso significa que a luta por uma sociedade justa e democrática continua. Essa luta é essencial para construir uma educação profissional e tecnológica na perspectiva da formação humana e integral, que prevê políticas de formação de professores comprometidas com o desenvolvimento de um perfil docente completo, isso é, que seja capaz de atender as demandas e as diversidades inerentes à EPTNM, bem como a valorização dos docentes (salários justos, plano de carreira, incentivo para formação continuada, entre outros elementos que são necessários para melhores condições do trabalho educativo). Investir na inserção, na formação e nas condições de trabalho dos professores é pressuposto básico de uma educação profissional e tecnológica de qualidade que visa à emancipação dos trabalhadores.

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Recebido: 31 de Dezembro de 2018; Aceito: 02 de Abril de 2019

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